segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Ciência e Tecnologia, onde está a mentira? José A. Lutzenberger

CIÊNCIA E TECNOLOGIA
onde está a Mentira?
José A. Lutzenberger
Seminário de Abertura - Março l995
Universidade do Mato Grosso

Vivemos hoje uma civilização universal, o Industrialismo Global, que se tornou uma religião fanática. Ela se sobrepõe a todas as religiões e ideologias tradicionais. Não se diz religião. Sua doutrina atual não foi anunciada por nenhum profeta. Ela não tem livro santo nem catecismo explícito, mas a doutrina é tão forte que é confundida com senso comum e é aceita e seguida quase sem exceções pelos poderosos em todo mundo, sejam quais forem os regimes políticos. Ela é o alicerce do poder dos governos.

Mesmo antes do falecimento do chamado Comunismo, já era assim. Aliás, as diferenças entre Capitalismo e Comunismo são da mesma natureza que as diferenças entre Protestantismo e Catolicismo. Assim como estes têm a mesma doutrina básica, ambos são cristãos, Capitalismo e Comunismo querem a mesma coisa - desenvolvimento industrial sem limite. A diferença está na forma de administração. Catolicismo e Comunismo têm Papa infalível, doutrina rígida e explícita e facilmente classificam os que discordam, de "hereje" ou "inimigo de classe" e os perseguem. O Capitalismo é mais sutil, procura absorver, envolver, doutrinar subliminarmente. Onde não consegue integrar e dominar, aliena, desmoraliza e marginaliza.

O que está acontecendo não é a previsão de George Orwell em seu livro "1984", que previa um estado todo poderoso, totalmente repressivo, que, com tecnologia sempre mais sofisticada e envolvente, controlaria até a vida privada do cidadão. Está se concretizando a previsão de Aldous Huxley em seu livro "Brave New World", ou "Admirável Mundo Novo", versão em português. Este previa uma situação contrária, igualmente perniciosa, ou pior, porque mais inescapável - um poder difuso, quase invisível, supostamente democrático, que se impõe pela desinformação, pelo apelo a atitudes egoístas, hedonistas e mesmo orgiásticas.

Uma vez, em uma palestra para estudantes universitários, procurei mostrar os estragos sociais e ecológicos do consumismo. Um jovem me interpelou: "mas onde fica a felicidade das pessoas, se não houver consumo?" Lindo exemplo de assimilação inconsciente da doutrina imperante.

O dogma básico desta religão diz que o "crescimento econômico" é a medida de todo sucesso, é a medida de progresso, de prosperidade. Este crescimento não pode parar nunca.

Mas, nesta fé, crescimento econômico se mede em PNB, Produto Nacional Bruto, também chamado de Produto Social Bruto, PSB, ou Interno Bruto, PIB. Este índice econômico é a soma de todos os faturamentos numa economia nacional. Inicialmente, como PNB per capita, servia apenas para avaliar a média das rendas, o que, naturalmente, nada nos diz sobre a justiça social num país. Que significa a média entre a renda do usineiro nordestino, que anualmente chupa milhões em subsídios, e a miserável renda de seu bóia fria? O PNB, no entanto, passou a ser índice para medir e comparar progresso. Mas ele só mede atividade, não distingue entre atividade desejável e indesejável.

Digamos que a poluição e a degradação ambiental cheguem a ponto de causar violenta deterioração na saúde pública. Construíremos mais hospitais e ambulatórios, haverá mais gastos com médicos, enfermeiras, medicamentos, ambulâncias, funerárias, o índice crescerá da mesma maneira que ele cresce com atividade realmente produtiva. Os economistas, ao invés de medir mais sofrimento, estarão medindo mais prosperidade. O mesmo acontece com desastres, guerras, terremotos, devastação florestal. Até a corrrupção, o crime e a droga fazem crescer o PNB.

O crescimento assim medido, não pode parar. Seus custos geram, inclusive, mais crescimento. Em Washington, em reunião preparatória para a cúpula do meio ambiente no Rio de Janeiro, a ECO-92, ouví o Presidente George Bush, depois, na própria cúpula, a Primeira Ministra da Noruega, Gro Bruntland, mentora da Conferência, em palavras diferentes, dizerem a mesma coisa: "precisamos de mais crescimento para termos os recursos para arrumar os estragos que já temos."

Instrumento supremo para atingirmos este alvo é a Tecnologia, que precisa desenvolver-se sem freios, pois ela é vista como uma espécie de cornucópia, que nos dará sempre novos milagres, para resolver todos nossos problemas, sem fim. Sua fonte e justificativa é a Ciência.

Na prática política e administrativa já temos um conceito unificado - Ciência e Tecnologia. Quase todos os governos do mundo têm Ministérios ou Secretarias de Ciência e Tecnologia. Não conheço nenhum que os separe. A real e sagrada função da ciência, nesta visão, é a produção de novas tecnologias, de tecnologias vendáveis, de preferência patenteáveis, que levem a faturamento, sempre mais faturamento. Neste enfoque, a Ciência é apenas servo fiel da economia. Assim, consideram-se cientistas hoje, quase todos aqueles "pesquisadores" que desenvolvem novas tecnologias, mesmo que se trate apenas de encontrar uma nova fórmula para sabão ou perfume. Por outro lado, aqueles poucos que ainda fazem ciência básica, por exemplo, nos grandes aceleradores de partículas, como em CERN, para descobrir as leis mais básicas do comportamento da matéria, quando precisam pedir verbas aos governos, justificam seu trabalho com o possível aparecimento de novas tecnologias ainda não discerníveis, mas que, certamente, serão de grande valor. A simples curiosidade diante dos mistérios do Universo, não vale. A biologia molecular já está quase toda em mãos de grandes empresas transnacionais, que com ela procuram desenvolver produtos ou mesmo seres vivos patenteados. Aliás, as aves em nossos atuais campos de concentração de galinhas, já não são mais raças, são marcas registradas.

Mas o que é a Ciência, o que é Tecnologia?

É claro que, pelo conceito corrente, é isto que aí está. O "establisment" é técnico-científico-industrial, é a igreja da nova religião.

Mas, em termos filosóficos, o que é Ciência, o que é Tecnologia?

A Ciência - com C maiúsculo - é um diálogo limpo com o Universo, ou seja, com a Natureza. Ela se apoia no postulado de que o Universo não é caótico. Não existem milagres, mistérios insondáveis sim. As leis do comportamento da Natureza são universais, imutáveis e intransgredíveis. Quer dizer que as leis da física são as mesmas na galáxia longínqua que está a bilhões de anos luz de distância, eram as mesmas quando partiu de lá a luz que hoje observamos e que levou bilhões de anos para aqui chegar, e serão as mesmas enquanto durar o Universo. E, se alguém nos contar que conhece um lugar onde os rios correm montanha acima e a chuva sobe do solo ao céu, não precisamos perder tempo para ir lá verificar.

Muitos leigos, especialmente economistas e políticos, analfabetos em ciências naturais, parecem pensar que a Ciência acabará encontrando maneiras de superar as leis da Natureza. Que passaria por cima da lei da gravidade, por exemplo. Argumentam, assim, que sempre haverá tecnologia para reparar o que estragamos, que encontraremos sempre novos recursos, quando se acabarem os atuais. Mas, se hoje um Boeing 747 atravessa oceanos com 500 pessoas a bordo, a novecentos quilômetros por hora e em dez mil metros de altura, é porque os engenheiros que projetam e desenvolvem estas naves se atêm estritamente às leis da física, eles não têm como não submeter-se à lei da gravidade, às leis da aerodinâmica e outras. Qualquer desrespeito a estas leis e o avião não voa ou cai.

A Ciência quer descobrir as leis universais, imutáveis e intransgredíveis do comportamento da Natureza. Como faz para descobrí-las? Ela se empenha num diálogo absolutamente honesto com tudo o que podemos observar. Observando e comparando fatos ou fenômenos, por intuição, imaginação ou associação de idéias, concebe modelos, regras ou conjuntos de regras. Chega-se, assim, a uma hipótese. A hipótese sugere experimentos que podem refutá-la ou não. Se for refutada, não deixou de ser um bom instrumento de trabalho porque obriga a ajustes no modelo ou à procura de outro modelo. Se não for refutada, não quer dizer que não possam surgir novas observações que a refutem. Portanto, o cientista jamais poderá afirmar que encontrou a verdade absoluta, só aproximações sempre mais precisas. O que de nada adianta, são hipóteses ou afirmações que não podem ser refutadas ou conferidas.

Conheço místicos que me contam o que viram em galáxias remotas em "viagens astrais" ou o que viram no futuro. Não posso provar o contrário, tampouco eles podem me convencer. O cientista, como cientista, só pode apresentar afirmações comprováveis ou refutáveis. Precisa dizer, também, como fazer estas verificações.

A atitude básica da Ciência é o oposto da postura dos místicos. Estes, costumam afirmar que têm acesso à verdade absoluta, não admitem dúvidas. Na escola primária, nosso professor de catecismo procurava nos incutir que a maior virtude estava na fé cega, acreditar sem pedir provas. Eu tinha dez ou doze anos. Esta posição me chocava, fez nascer em mim o interesse pela Ciência e Filosofia.

Se os místicos estivessem todos de acordo, nós, os demais pobres mortais, poderíamos dizer: "Está bem, estes caras têm antenas que nós não temos, deve ser verdade." Mas não é assim, conheço tremendas discordâncias entre eles, todas apresentadas como certeza absoluta.

A Ciência não pretende apresentar verdade absoluta, ela só procura sempre mais aproximação. Sugiro aos jovens que leiam a fascinante história da Ciência, a maior aventura do espírito humano, especialmente a história da Astronomia e da Física. Em todas as disciplinas, tambem na Biologia ou na Geologia, verão como a evolução do conhecimento passa por sucessão de hipóteses e paradigmas, cada vez mais precisos e mais envolventes. Também nesse ponto, o leigo, muitas vezes, pensa que a Ciência progride pela derrubada de conhecimento anterior. Não é bem assim. O que costuma acontecer é a ampliação de horizonte e o esmero no detalhe.

Einstein não derrubou Newton, foi além, incluiu Newton numa visão mais ampla. Conseguiu assim, explicar observações que não coroboravam Newton, p.ex., a órbita de Mercúrio. Copérnico não derrubou Ptolomeu que, com as observações imprecisas da época e tomando a terra como referência, também previa eclipses, mas tinha que pressupor ciclos e epiciclos com matemática bastante complicada. A perspectiva heliocêntrica de Copérnico trouxe uma grande simplificação.

Na Genética, T. H. Morgan não derrubou Mendel, colocou-a em pespectiva mais ampla. Crick e Watson não derrubaram Morgan, aprofundaram, assim como na Geologia, a deriva dos continentes, com suas placas tectônicas, simplificou e ampliou enormemente a compreensão da evolução geológica de nossas paisagens, sem invalidar conhecimentos anteriores.

Fundamental, portanto, para o cientista é a honestidade absoluta e sem perdão. Cientista que faz trapaça, engana, mente, por definição, não é cientista. A pessoa que faz Ciência tem que ser humilde, modesta, autocrítica. Virtude básica é o ceticismo. Terá que estar disposta em qualquer momento a abandonar as suas mais queridas idéias ou explicações, cada vez que a Natureza as contradisser na observação ou no experimento. Os verdadeiros grandes cientistas eram assim. É comum hoje ouvir-se que Ciência nada tem a ver com valores ou emoções, ou com ética. Mas, esta honestidade é uma decisão ética.

A Ciência é um valor em si. Quanto mais nos aprofundamos no diálogo limpo com o Universo, mais nos damos conta de sua beleza e elegância.

Pessoalmente, gosto de definir Ciência como a contemplação da divina beleza do Universo, sem medo da emoção contida nesta frase. Sim, a Ciência é profundamente emotiva, não é nada fria. Ela é contemplativa, amorosa, está baseada em sentimentos de admiração diante do Grande Mistério.

E a Tecnologia o que é? A Tecnologia também não é fria, é muito quente. A Tecnologia aproveita-se dos conhecimentos, das informações que o diálogo limpo deu à Ciência para fazer artefatos, instrumentos. Ora, todo artefato serve a alguma vontade, a do inventor ou de seu patrão. Isto tem a ver com poder, por pequeno ou grande que seja. É uma atitude impositiva, é o contrário da atitude básica da Ciência, que é contemplativa.

Não queremos com isso dizer que a técnica é ruim em si. Pode ser boa, neutra, perniciosa, dependendo dos alvos que persegue. Mas, enquanto que a Ciência leva à atitudes de respeito, fascinação, amor, vontade de proteger, a técnica facilmente cai na agressão, é o que predomina no mundo moderno.

Vejamos uma metáfora. Digamos que um cientista e um tecnocrata se encontram diante de um espetáculo da Natureza. Estão observando o Pão de Açúcar no Rio. O cientista se encanta com aquele gigantesco monolito, uma rocha inteiriça de seiscentos metros de altura, com uma só fenda vertical. Terá que pensar como os milhões de anos de erosão geológica a deixaram com aquela forma. Conhecendo o material da rocha, gneiss, saberá que a Serra do Mar, da qual faz parte, surgiu uns seiscentos milhões de anos atrás, quando a deriva dos continentes empurrava a América do Sul em direção contrária à atual, que, do outro lado, está fazendo crescer os Andes. Da geologia irá até a cosmologia. Vislumbrará a formação do nosso sistema solar, uns quatro e meio bilhões de anos atrás. Saberá que os elementos mais pesados, além do hidrogênio e hélio, sem os quais nosso planeta não existiria ou seria apenas uma bola de gases, só podem ter-se originado muito antes do nascimento do nosso sol, numa supernova, centenas de milhões ou mesmo bilhões de anos antes. Quanto mais pensar em tudo isto, mais fascinado estará. Maior ainda será a fascinação quando observar a vida que cobre a rocha: os líquens, musgos, cactos, bromélias e outras plantas epílitas, os insetos e aves, mamíferos, répteis, o que hoje sobra de bosque na base, a vida no mar circundante. Terá que pensar no mais fantástico processo que conhecemos: a Vida em seus três e meio bilhões de anos de evolução orgânica, um processo sinfônico estonteante que, entre as milhões de formas e comportamentos dos seres vivos, da bactéria e alga microscópica à baleia e sequóia, também deu origem à nossa espécie, à nossa capacidade de percepção, de encantamento diante desta fantástica maravilha. Quanto mais observar, mais comovido estará, mais amor sentirá, mais sofrerá com os estragos que hoje se constatam.

Já o tecnocrata, vê as coisas de maneira bem diferente. Ele se pergunta: "que podemos fazer com isso? Além do potencial turístico, será que contém algum minério importante que podemos explorar? Quanto podemos ganhar com isso? Quem sabe, demolindo uma parte, aterrando o mar, poderemos obter grandes lucros na especulação imobiliária?" E, assim por diante.

As atitudes da Ciência e da Tecnologia são ambas profundamente emotivas, mas as emoções são de sinal contrário.

A Ciência e a Tecnologia, é claro, são inseparáveis. Assim como a Tecnologia se aproveita da Ciência, esta não progride sem a outra, sem telescópios, microscópios, aceleradores de partículas, lasers, chips e computadores, uma infinidade de instrumentos de medida cada vez mais precisos e sofisticados. O casamento é indissolúvel, mas é difícil, as partes têm caráter oposto. Um é contemplativo, o outro impositivo.

Na Ciência, como vimos, não pode haver mentira, por definição! Mas, observemos atentamente as tecnologias e, sobretudo, as infra-estruturas tecno-burocráticas que hoje predominam. Estão cheias de mentira, trapaça, logro, insinuação enganosa. É claro que as respectivas técnicas, em si, são tão perfeitas quanto possível, a mentira está nos objetivos, no uso e no aproveitamento destas pelo poder estabelecido.

Vejamos: no carro moderno, o motor, o carburador, a distribuição, refrigeração, engrenagens, transmissão, os pneus são verdadeiras maravilhas técnicas, inimagináveis no tempo do "Ford de bigode". Mas, mudar quase todos os anos o modelo, modificando os enfeites, os plásticos do stop e das sinaleiras, o parachoque (de plástico) que não passa de enfeite também, insinuar status, isto é mentira. Está no mesmo nível moral da vigarice.

Uma das maiores trapaças da tecnologia moderna está na política da obsolência planejada, ou seja, no envelhecimento premeditado dos objetos, com as mudanças desnecessárias de modelo ou "styling" (este anglicismo já é para enganar), e com peças calculadas para não durarem, ou sistemas que não permitem reparação. O auge desta trapaça está no objeto de um só uso.

A lata de alumínio para cerveja ou refrigerante, usada uma só vez e jogada no lixo ou pela janela do carro, não deixa de ser de um objeto de grande técnica, mas é um absurdo energético. Pelas informações que tenho, sua fabricação consome cerca de um KWH por unidade. Ela é também um crime ecológico. Os três mil quilômetros quadrados de floresta prístina inundada em Tucuruí e as montanhas demolidas em Carajás têm a ver com este crime. Este tipo de lata nos foi apresentado como uma nova etapa no progresso - a lata anterior, de ferro, já era um absurdo - mas nenhum esforço foi feito para esclarecer o público consumidor dos custos ecológicos e sociais desta técnica.

No supermercado, as embalagens excessivas, super luxuosas, com etiquetas enganosas são outra mentira com grandes custos ambientais. Custos perfeitamente evitáveis, caso houvesse "marketing" honesto. Se a tecnologia fosse sempre honesta não haveria necessidade do tremendo aparato de publicidade que nos bombardeia a cada passo, que já insiste até em transformar os bebês em consumidores desenfreados. Infelizmente a maioria das pessoas é tão alienada, ou tão acostumada está, que não se dá conta do insultante que é grande parte desta publicidade.

No feudalismo medieval o exercício do poder era simples, eu diria honesto, porque aberto. Era através da força, as técnicas aplicadas eram transparentes para todos. Impossível confundir forca com arado. Hoje a situação é bem mais complexa e o exercício do poder nas chamadas democracias é bem mais sutil. O ideal da tecnocracia são estruturas tecno-burocráticas sempre mais envolventes e inescapáveis.

Aos jovens estudantes de agronomia sugiro que procurem entender o que aconteceu na agricultura nos últimos 50 a 70 anos. O camponês tradicional (infelizmente, em nosso país, com exceção do sul, predominou sempre o latifúndio), em termos sistêmicos, na economia como um todo, era esquema autárquico de produção e distribuição de alimentos. Ele produzia seus próprios insumos. O esterco de seus animais e o manejo orgânico mantinham a fertilidade do solo. A energia era humana e animal, ambas vinham de seu solo, era energia solar, fotossíntese. No mercado semanal, o camponês entregava seus produtos praticamente na mão do consumidor. Esta é a razão porque, em português, ainda dizemos, segunda, terça, quarta-feira, etc. Os poucos instrumentos e equipamentos que usava eram feitos pelo artesão, ferreiro ou marceneiro da aldeia, que também contava como camponês. Naquela situação, entre quarenta e sessenta por cento da população trabalhava na agricultura.

Argumenta-se hoje que a agricultura moderna, a agricultura empresarial é fantasticamente mais eficiente que a agricultura camponesa tradicional. Isto porque, em países do chamado Primeiro Mundo, só dois por cento ou menos da população são agricultores. Dois por cento da população seriam capazes de alimentar toda a população, enquanto que antes eram quarenta ou sessenta. Caso procedesse este argumento, realmente não teríamos alternativa. Mas esta conta é falaciosa, quando não, mentirosa.

Os que hoje se dizem agricultores, no contexto geral da economia da nação, são apenas pecinhas numa gigantesca estrutura industrial e burocrática, que inclui campos de petróleo, refinarias, siderurgias, fábricas de tratores e combinadas, indústria química, transportes, indústria de "beneficiamento" de alimentos que mais merecem o nome de indústrias de denaturação e contaminação de alimentos e muita, muita coisa mais. O economista moderno, em suas estatísticas vê a fábrica de equipamentos agrícolas como indústria metalúrgica, mas isto é agricultura. A fábrica de agrotóxicos e adubos é tida como indústria química, mas deveria contar como agricultura, porque faz parte do moderno esquema de produção e distribuição de alimentos. Se fizermos a conta completa, somarmos todas as horas de trabalho, direta ou indiretamente ligadas à produção e distribuição de alimentos, facilmente chegaremos também a quarenta por cento ou mais. Inclusive as horas de trabalho necessárias para ganhar o dinheiro para pagar o imposto que sustenta os subsídios (em nosso caso, repor as perdas da inflação) terão que ser adicionadas. Veremos que em termos de mão-de-obra houve pouco ganho. Houve, isto sim, uma redistribuição de tarefas. A pessoa sentada diante do computador no banco, que cuida dos créditos agrícolas, pode não considerar-se agricultor e nunca ter visto de perto uma lavoura, mas está neste negócio. Quem fizer cálculos completos e comparar atentamente, verá que o camponês tradicional também era mais eficiente em termos de produção por hectare. Diferença fundamental - a agricultura tradicional, camponesa, como a da Europa ou da China, era indefinidamente sustentável, a chinesa já dura três mil anos. A agricultura moderna não é sustentável. Além disso, ela tem horríveis custos sociais e tremendos custos ambientais. Em termos globais, centenas de milhões de pessoas foram marginalizadas pelo que friamente chamamos de "êxodo rural". Os mais velhos se lembram muito bem, nossas grandes favelas começaram a surgir e crescer desde a década de quarenta.

Quando eu estudava agronomia, na mesma década, toda a pesquisa agrícola estava dirigida à melhora dos métodos orgânicos e ecológicos, sem que lhes déssemos esse nome. Dali para diante, a indústria foi tomando conta, conseguiu redirecionar ensino, pesquisa e extensão agrícola. Por favor, não me entendam mal, não estou pleiteando a volta a uma agricultura camponesa primitiva. Com o conhecimento científico que hoje temos, poderíamos já estar fazendo uma agricultura ecologicamente racional e socialmente justa, com estilo de vida, no campo, mais agradável e sadio que a vida nas atuais cidades.

Quem souber fazer contas, que estude de perto a produtividade dos modernos campos de concentração de galinhas, dos calabouços de porcos e dos confinados de gado. Verá que, na maioria dos casos, estamos destruindo mais alimento do que produzimos, e isto, com grandes estragos ambientais e sociais e enormes custos de energia. O que aumenta é a concentração de poder industrial.

Não vamos entrar em outros campos, como o da energia, do transporte e mais alguns. Importante é que nos demos conta de que são promovidas hoje não necessariamente tecnologias racionalmente concebidas para resolver de maneira simples, menos agressiva, mais ecológica, problemas de reais necessidades humanas. Não, o que se promove e impõe, são tecnologias e estruturas que concentram poder.

Devemos, portanto, aprender a distinguir entre tecnologias "duras" e "suaves". Mas hoje, em nossa atual cultura, a grande maioria das pessoas é completamente ignorante naquilo que mais esta cultura caracteriza, em Ciências Naturais e em Tecnologia. Não tem condições, portanto, de distinguir. Isto é um desastre político-cultural que, quanto menos é levado em conta pelos políticos, tanto maior ele é. Estes costumam ser os mais ignorantes e mais safados, e que, quase sempre, aceitam como seus, os argumentos da Tecnocracia.

Quando um empresário diz: "isto não podemos fazer, não é econômico", ou "não tem outra maneira de fazê-lo, seria antieconómico", ele está pensando na economicidade de sua empresa. Mas, o político deveria pensar na economicidade para a Nação. Quando a política confunde economicidade de empresa com economicidade nacional, está aceitando cegamente aquele argumento de um dos chefões da General Motors que dizia: "What´s good for GM is good for the USA." O que é bom para minha empresa, é bom para o país? Nem sempre!

Mil aspectos mais poderíamos citar e elaborar, sobre como hoje o poder e a criação de dependência são sustentados pelas tecnologias duras, e como as tecnologias verdadeiramente humanas, racionais e ecológicas são desmoralizadas, combatidas e suprimidas. Quero, com isso, motivar muitos jovens inteligentes, com preocupação social e ecológica a que ampliem seu horizonte científico, técnico, cultural e ético, e passem a examinar com atenção nossa atual civilização. Que participem, então, da necessária revolução ética, sem a qual não teremos futuro.



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Temos ou não Futuro? José A. Lutzenberger

TEMOS OU NÃO FUTURO?
José A. Lutzenberger
Novembro de 1996
O Livro da Profecia Brasil XXI e Mais

Gosto de imaginar que, após a minha morte, de vez em quando eu possa voltar, como observador apenas, aos lugares onde vivi. A primeira vez seria por volta do ano 2050. Depois, cem anos mais tarde, duzentos, quinhentos. Mais adiante cada mil, dois mil, dez mil, cinqüenta mil, cem mil, meio milhão, um milhão. Enfim, a cada cinqüenta ou cem milhões de anos, até o fim da evolução de nosso sistema solar, daqui a uns 5 bilhões de anos, com certa flexibilidade nos períodos para poder observar os momentos de grande crise na história da Vida, como a que estamos vivendo.

Isto porque, desde muito jovem, como naturalista que sempre fui, quando observo o mundo vivo, a geologia, o firmamento, quando me debruço sobre livros de astronomia, de cosmologia, a escala de tempo em que gosto de raciocinar é a escala de tempo que rege este maravilhoso processo criativo que caracteriza nosso planeta e o distingue dos demais que conhecemos - o grandioso, o indescritivelmente belo, complexo e vasto panorama da Sinfonia da Evolução Orgânica.

Mas então, por que não começar com a primeira visita daqui a um milhão ou vários milhões de anos? Acontece que, apesar de naturalista, ou exatamente por isso, nunca perdi a fé em nossa espécie. Ela também é fruto deste maravilhoso processo, que não pode ser suicida. Somos ainda muito novos, apenas uns dois milhões de anos, e não temos as limitações que tinham os grandes sáurios. Podemos aprender. Depois que eles se foram, uns oitenta milhões de anos faz, apareceu na orquestra um novo instrumento, a coisa mais sofisticada, mais poderosa que a Vida já produziu - o cérebro humano. Suas potencialidades são praticamente ilimitadas. Ele poderia ser um enriquecimento fantástico, mas hoje perdeu o devido tom, ameaça desintegrar a sinfonia.

É por acreditar nas possibilidades positivas deste instrumento que gostaria de começar em escala de tempo humana, que é a de dezenas, centenas e milhares de anos. Se conseguirmos sobreviver mais mil milênios, um milhão de anos, já seremos outra espécie.

Até o ano 2050, ou seja, durante a vida de crianças e jovens de hoje, terão acontecido inversões fundamentais e irreversíveis nas tendências atuais. Ninguém é e ninguém pode ser profeta, mas uma coisa é certa: o estilo de vida consumista, esta última excrescência da religião fanática, a cultura industrialista global, que já conseguiu o que o Cristianismo, Islamismo e Comunismo não conseguiram, conquistar a Humanidade toda, este estilo de vida não pode ser extrapolado por mais meio século. Até lá, ou aprendemos a nos enquadrar nas leis da Vida, ou ela nos punirá severamente.

Sou daqueles que se vêem obrigados a viajar quase constantemente, por terra e por ar. No avião, sempre cuido em obter bom lugar de janela. Observo atentamente a geologia, os ecossistemas e biomas, a "civilização". Com meus setenta anos de idade, tenho uns sessenta de observação intensiva, refletida. Ultimamente, no Brasil, quando comparo o que hoje vejo com o que via anos e décadas atrás, me assusto. Fico pensando, se os cento e cinqüenta milhões de brasileiros fazem e continuam fazendo os estragos que agora se constatam, como será daqui a trinta ou quarenta anos quando formos trezentos milhões? Mas o Brasil não é exceção. Nos cinco continentes, o que chamamos "progresso" ou "desenvolvimento" tornou-se um processo cada dia mais eficiente de demolição de todos os sistemas de suporte de vida e de desestruturação social.

Uns vinte por cento da Humanidade, a maioria nos países do chamado Primeiro Mundo e uma minoria nos demais, depende de uma movimentação cada vez mais acelerada de recursos finitos e praticam rapina cada vez mais brutal nos sistemas renováveis, a ponto de torná-los finitos também. As florestas tropicais úmidas na Ásia Sudoriental, nas Filipinas, Indonésia, Nova Guiné, Austrália, na África, estão chegando ao fim. Nas florestas temperadas úmidas na costa norte do Pacífico, na América do Norte, avança rápido o corte raso sobre os últimos cinco por cento de mata prístina. Na costa sul do Chile e na Terra do Fogo inicia-se agora processo semelhante, porém mais vandálico ainda. As florestas boreais na Sibéria e no Alasca também já estão sendo atacadas ferozmente. Todos os demais grandes sistemas naturais, Cerrado, Savana, Agreste, Mata Atlântica, Restinga, Pampa, Pradaria, Estepe, Caatinga, todas as florestas subtropicais, os banhados e pantanais, quando já não estão seriamente devastados, estão agora sob séria ameaça. Demolimos montanhas, barramos rios, inundamos imensos vales, afogando florestas virgens ou preciosos solos agrícolas. A pesca insaciável, agora com equipamentos eletrônicos cada vez mais eficientes, que não deixam escapar um peixe sequer num enorme cardume, está depauperando os oceanos. A poluição contamina terra, mar e ar. Já somos mais de 5,7 bilhões, e a cada ano se acrescentam mais de cem milhões. Mas, a cada ano também, milhões de hectares de terras antes férteis são degradados pelos métodos imediatistas da agricultura moderna ou pela primitiva agricultura de rapina - erosão, perda de húmus, contaminação química, destruição da microvida; desertificação acelerada, esgotamento dos aqüíferos fósseis que não têm reposição.

Socialmente, o desastre não é menor. Todas as estruturas sociais que cresceram e se organizaram historicamente, que eram estáveis, que davam às pessoas identidade, segurança e sentimento de aconchego, de significado e calor humano, quer se trate de culturas camponesas, de artesãos em estrutura familiar, pescadores artesanais, ou dos últimos habitantes das últimas selvas, isto é, dos povos aborígines e indígenas, de seringueiros e caboclos, quilombos, ou dos últimos nômades no Kalahari ou no Ártico, todos estão sendo desmoralizados, alienados, marginalizados. Para compreender o que está acontecendo, basta observar de perto a Cidade do México com seus mais de vinte milhões de habitantes ou a proliferação de favelas em todas as partes do Mundo.

Dos quase seis bilhões que somos, uns três bilhões ainda vivem em ambiente rural, com estruturas sociais mais ou menos estáveis. Se mais um bilhão tiver que juntar-se às massas de deserdados que já incham todas as pequenas, médias e grandes cidades no Terceiro Mundo e nas gigantescas conurbações já quase incontroláveis, se isto acontecer, e é quase inevitável que aconteça, ninguém mais poderá prever e conter as convulsões, migrações, conflitos e guerras que virão. O levante dos índios camponeses de Chiapas, no México, é um pequeno começo e augúrio. Mas o neoliberalismo e, agora, a globalização da economia, vão acelerar ainda mais o processo em marcha.

Dividimos o Mundo em países ricos e pobres. Poucos se dão conta de que os pobres não eram pobres. Sua atual miséria é conseqüência do que chamamos desenvolvimento.

Nas classes abastadas da cultura industrial, as pessoas estão eticamente cada vez mais desorientadas. Cresce a insegurança, a criminalidade, o desespero e a alienação, aumenta a corrupção e a incapacidade dos governos em arcar com os problemas. Além de contribuir para maior devastação e miséria no Terceiro Mundo, a globalização, assim como está hoje concebida, aumentará e já está aumentando o desemprego no Primeiro Mundo, pois um de seus alvos expressos é demolir conquistas sociais pela exportação de empregos.

Não obstante a clara visibilidade das graves conseqüências das políticas econômicas atuais, a doutrina predominante, imposta pelas transnacionais e cegamente obedecida pela grande maioria dos governos, pretende estender até o mais remoto rincão o industrialismo e consumismo desenfreados.

A economia global é hoje um processo exponencial. Ele tem retroação positiva. Pregar que necessitamos de mais crescimento para obtermos os meios de que necessitamos para reparar os estragos causados pelo desenvolvimento passado é como pedir mais neve e mais encosta para a bola de neve que já está se transformando em avalanche. Vejamos uma metáfora que ilustra nossa situação:

Uma colônia de pulgões sobre um tomateiro, crescendo exponencialmente, vai duplicando em números - dez, vinte, quarenta... mil, dois mil, quatro mil... Inicialmente, desde o ponto de vista do pulgão, uma situação muito linda. Mas, invariavelmente, chega o momento em que a planta não agüenta mais, morre. É o fim, também, do pulgão. Nossa situação é pior, crescemos em números e aumentamos de maneira mais rápida ainda nosso impacto ambiental. É como se o pulgão, além de se tornar cada vez mais numeroso, ficasse também sempre mais gordo, com apetite cada vez mais voraz.

Se não houver mudança de rumo, de enfoques, de cosmovisão, o colapso está programado. Temos que repensar. Teremos muita sorte se vier uma sucessão de colapsos parciais, menores, não um só grande. Este poderia significar o fim da Civilização. Colapsos menores permitirão ainda a tomada de novas decisões fundamentais.

Vejamos os possíveis colapsos:

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Finanças - Somas fabulosas, da ordem de trilhões de dólares por dia, circulam com a velocidade da luz, saltando de mercado a mercado em volta do globo. Um dinheiro ultra-especulativo que já praticamente não tem mais ligação com fatores concretos. Em grande parte se trata dos chamados "derivativos", que são apostas sobre apostas sobre apostas, uma especulação abstrata, totalmente absurda. Os governos não têm o mínimo controle. A lógica é comandada pelos algoritmos nos computadores. Os próprios operadores podem, a qualquer momento, perder o controle. Entre eles predominam indivíduos ambiciosos, inescrupulosos. Quando vier o colapso, estará desencadeada uma crise econômica mais grave e, certamente, mais duradoura que a de 1929. Bilhões de pessoas perderão suas economias ou seu poder aquisitivo.
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Energia - Quanto mais tempo for mantido artificialmente baixo o preço do petróleo, mais violenta será a próxima crise, quando o petróleo começar a escassear de verdade. O mundo não está se preparando para esta crise. A pesquisa, o desenvolvimento e aplicação das alternativas solares indefinidamente sustentáveis avançam a passo de lesma, enquanto aumenta célere o consumo de petróleo. No Brasil, continuamos apostando na rodovia para a quase totalidade de nosso transporte. O que acontecerá numa megalópole como São Paulo, quando o petróleo triplicar ou quintuplicar de preço? Na indústria, as tecnologias continuam esbanjando energia. Uma só lata de alumínio para cerveja ou refrigerantes, em sua fabricação consome mil e quatrocentos Watt/hora, a quantidade de energia elétrica que uma lâmpada de cem Watt consome em quatorze horas. Isto, sem falar na demolição de montanhas em Carajás, perda de quase cem mil hectares de floresta ao longo da ferrovia, inundação de três mil quilômetros quadrados de floresta intata em Tucuruí.
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Agricultura - Os métodos da agricultura moderna vivem às custas da produtividade futura, seus insumos são todos recursos não renováveis e os renováveis estão sendo consumidos em vez de desfrutados. A produção de carne e ovos em esquema de confinamento, com alimentação subtraída do consumo humano, contribui para o problema da fome. Galinhas, porcos e até gado, são hoje alimentados com grãos cultivados especialmente para este fim ou com tapioca ou torta de palma importados da Ásia e África. No Rio Grande do Sul destruímos toda a floresta subtropical úmida do Vale do Uruguai para exportar soja para alimentar vacas e porcos na Europa. Se, na Índia, houve quebra-quebra de estabelecimentos tipo McDonald's, é por isso. Se somente os chineses partirem para o tipo de produção de carne que predomina no Primeiro Mundo, teremos logo uma tremenda crise no abastecimento e preço dos cereais.
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Epidemias - Até recentemente, pensávamos que já existia um controle total das enfermidades infecciosas, que sobrariam somente as degenerativas. Mas, junto com estas, está havendo agora nova proliferação das doenças infecciosas, e nunca estivemos tão suscetíveis a elas como hoje. Os agentes patógenos viajam livremente com milhões de pessoas em aviões atravessando continentes e oceanos. Se o vírus da AIDS fosse menos complicado em sua transmissão, se fosse como o vírus da gripe....! Por outro lado, estamos todos, ricos e pobres, mal alimentados. Uns comem demais e comem alimento desnaturado, mal equilibrado, contaminado com resíduos de agrotóxicos e com aditivos, os outros comem de menos ou morrem de fome. Isso tudo, mais a contaminação geral do ambiente em que vivemos e a falta de paz de espírito - quem não sofre hoje de stress, frustação, desespero? - afeta o sistema imunológico. As epidemias vão voltar. Talvez não da maneira como eram as grandes epidemias no passado, que matavam milhões de pessoas de vez, mas na forma de uma degradação crescente da saúde pública. Por outro lado, o custo da medicina, com seus enfoques tecnológicos, já está se tornando tão caro que os sistemas de seguro de saúde se aproximam todos da insolvência.
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Clima - A moderna sociedade industrial está interferindo em todos os mecanismos de controle do clima: gás carbônico, camada de ozônio, aerossóis, poeiras e fumaças, albedo, florestas e demais biomas. Apesar das solenes promessas na Eco '92 no Rio de Janeiro, os governos não estão partindo para ação séria, concreta. A China, com sua população de 1,2 bilhões de pessoas, pretende ainda instalar uma fantástica capacidade de fornalhas para geração de energia elétrica. Os capitães da indústria automobilística agem como se acreditassem que seria possível dar à Humanidade inteira a densidade de carros particulares que existe nos Estados Unidos (dois ou mais por família), isto, com carros produzidos de acordo com a filosofia da obsolescência planejada, com absurdo esbanjamento de recursos não renováveis.
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Convulsões Sociais - Como vimos, as crescentes complicações e calamidades desencadearão conflitos, levantes, migrações em massa, guerras que, por sua vez, só poderão aumentar a devastação. Possíveis desequilíbrios climáticos poderão ter como conseqüência que não mais tenhamos colheitas seguras, o que agravará ainda mais as convulsões.

Possivelmente teremos, também, alguns ou muitos colapsos ainda imprevisíveis, maiores ou menores.

Até aqui, a ênfase está na situação global. Vejamos agora a situação do Brasil. Diante deste quadro, se não houver catástrofe climática planetária, o Brasil é, ainda, um espaço privilegiado. Sobra muito para preservar e recuperar, temos ainda mais tempo que os demais para aprender. Se, acima, ao mencionar as florestas tropicais úmidas, não mencionamos a Amazônia, foi para mencioná-la aqui em contexto esperançoso. Com toda a absurda devastação que já houve, sobram ainda mais de 80%. No coração da grande floresta, a maior do Planeta, no Estado de Amazonas, são mais de 95%.

Assim como os oceanos, a atmosfera, os rios e lagos, a Amazônia está entre os grandes sistemas essenciais para a bio-geo-fisiologia do Planeta Vivo - Gaia. O argumento de que "os outros derrubaram, deixem-nos fazer o mesmo" não procede. Vejamos outra metáfora: eu posso sobreviver - miseravelmente, é claro - com a perda de um, vários ou todos os membros, sem audição ou visão, mas não posso sobreviver a perda do coração, dos rins, do pulmão... No organismo de Gaia, a Amazônia, especialmente depois da devastação já quase total das demais florestas tropicais úmidas, é imprescindível.

Portanto, que slogan absurdo: "ocupar para não entregar"! Acaso não temos a Amazônia mais do que ocupada? Ou queremos vê-la na situação de Bangladesh que já foi floresta tropical úmida?

Agora, novembro de 1996, nosso governo federal pretende punir com elevada carga tributária as "terras improdutivas". Quanto ecossistema intato, até então nem sequer ameaçado, foi destruído no passado recente devido a enfoques assim reducionistas do INCRA. Na Amazônia, um dos instrumentos dos grileiros de terras para justificar posse é a derrubada de floresta, sem nenhum sentido produtivo ou social. Para o INCRA este tipo de devastação é "benfeitoria". Como pode um país que se diz sério permitir tamanho absurdo?

Este tipo de visão terá que mudar. Hoje, preservar natureza intocada deve ser visto como altamente produtivo em termos de sobrevivência da nação e de nossa espécie. Se ainda não nos encontramos em situação de pressão demográfica como a da China ou da Índia, ou de falta de espaço como na Holanda, que já tem 20% de seu território nacional coberto de construções ou de pavimentos, longe de constituir-se em sinal de subdesenvolvimento e atraso, a nossa é uma situação altamente vantajosa e desejável.

Assisti certa vez, não faz muito tempo, um governante nosso entonar a costumeira litania terceiro-mundista diante do Primeiro Ministro da Áustria: "É, porque nos somos um país pobre, necessitamos da ajuda dos países ricos, como vocês". Tive que discordar. Disse, "Nós somos ricos, muito ricos, fantasticamente ricos. Com oito e meio milhões de quilômetros quadrados, temos cem vezes mais território que a Áustria, que tem oitenta e quatro mil, metade montanhas cobertas de gelo. Temos recursos de toda sorte, minerais, solos agrícolas, enormes florestas, cerrados, restingas, praias intatas, espaço, muito espaço... Somos pobres, muito pobres, isto sim, em políticos de visão".

Sim, somos muito, muito ricos. Vamos aprender a desfrutar - não consumir - de maneira eficiente e sustentável o que já está desbravado. Não precisamos destruir um hectare mais de selva intata. Só na Amazônia, temos mais de quatrocentos mil quilômetros quadrados de terra deflorestada, uma área total do tamanho da Espanha, quase toda mal aproveitada, degradada ou mesmo abandonada. Em parte esta superfície se está recuperando naturalmente, em parte continuamos a degradá-la ainda mais. No resto do país a soma de áreas deste tipo é ainda maior, somam muitas dezenas de milhões de hectares. Alí sim, nos espera muito trabalho, trabalho significativo, entusiasmante para jovens e velhos idealistas.

Precisamos repensar "progresso", "desenvolvimento"!

A atual medida de progresso, o PNB ou PIB (Produto Nacional Bruto ou Produto Interno Bruto), em termos de real progresso, no sentido de mais satisfação, mais alegria de vida, mais felicidade, segurança, satisfação para maior proporção da população, num mundo humanamente mais significativo, mais sustentável, não mede absolutamente nada. Ele só mede fluxo de dinheiro, sem nada dizer sobre o que este fluxo causa de bom ou de mau. Nada nos diz sobre a real, a concreta riqueza nacional. Absolutamente nada nos diz sobre justiça social. O PNB per capita, usado para comparar progresso entre países, é apenas uma média entre o que ganham os podres de rico e os que não tem o suficiente para se alimentar. O PNB só pode interessar a banqueiros com visão ultra-reducionista, desligada do mundo real.

Voltemos a Carajás: adicionar ao PNB brasileiro as divisas que ganhamos na exportação de alumínio e minério de ferro, sem descontar num balanço nacional a demolição da montanha, a perda da floresta, a perda do meio de vida do caboclo e do índio, etc., etc.... é como se, após visitar a agência de meu banco, retirar dinheiro de minha conta e gastá-lo, me sentisse mais rico. De fato, estou mais pobre, a conta está menor.

Primeiro passo essencial, portanto, para um progresso real é o de obrigar nossos administradores públicos a nos apresentar balanços reais, do tipo que faz o administrador de empresa para seus acionistas. Balanços em que se somam, de um lado, todas as entradas, sim, mas do outro se descontam todas as saídas, perdas, depreciações.

Neste tipo de balanço, o estoque de riqueza nacional - da real, da concreta, objetiva riqueza nacional - não terá que ser necessariamente contabilizado em termos monetários, mas em termos de hectares de solos agrícolas férteis ou degradados, capazes de recuperação ou não (a que custo?), de quilômetros quadrados de florestas, intatas, parcial ou totalmente devastadas, em recuperação natural ou em reflorestamento, etc. Terão que aparecer as toneladas de minérios ainda existentes, os barris de petróleo ainda disponíveis, e assim por diante. Terão que entrar, também, critérios qualitativos, como exploração irrecuperável ou reciclabilidade, fatores subjetivos, como beleza de paisagem, pureza das águas e do ar, contentamento, saúde, expectativa de vida, segurança, emprego, qualidade de vida em termos de cultura, recreação, moradia e muita coisa mais.

Se este tipo de balanço fosse feito na situação atual, todos verificariam que, a cada dia, estamos empobrecendo, não enriquecendo e progredindo, como nos querem fazer crer nossos governos. Uma real democracia só será possível com este tipo de conta.

Precisamos repensar também a tecnologia. Poucos, especialmente entre os políticos, se dão conta de que predominam hoje aquelas tecnologias que concentram poder nas grandes infra-estruturas tecno-burocrático-legislativas, não tecnologias concebidas simplesmente para atender reais necessidades humanas, da maneira mais simples, mais barata, mais acessível, ecologicamente mais compatível e socialmente mais desejável.

Daí que teremos que repensar - energia, transporte, agricultura, moradia, processos de produção e comportamento de consumo e, antes de mais nada, o sistema de educação - da família ao jardim de infância, primário, secundário, universitário e pós-graduação. Hoje, este esquema está a serviço dos poderes estabelecidos e a maior parte deste esquema cabe aos meios de comunicação, especialmente à TV, que está fazendo o que previa Aldous Huxley em seu livro "Admirável Mundo Novo" (Brave New World), onde os poderosos dominam pela desinformação, boçalização e incitamento a um estilo de vida hedonístico-orgiástico. Mas a TV, a Internet e todo este fantástico aparato de comunicação global instantânea, poderiam também ser usados para uma educação real, para uma reformulação de nossa cosmovisão e comportamento.

Um instrumento fantástico, bem mais fácil de implementar imediatamente, seria um imposto único, cobrado na fonte, só sobre a energia e o uso de matérias primas. Ele promoveria logo tecnologias bem mais inteligentes, como, entre muitas outras coisas que aqui não cabe detalhar, uma economia solar: solar direto térmico, solar direto fotovoltaico; biomassa em combustão direta, em pirólise ou biogás; vento, hidráulico - tudo em esquema totalmente descentralizado. Para nós, este potencial é tão fantástico que não precisamos pensar em tecnologias mais complicadas e caras, como marés e vagas. Promoveria também o uso racional, frugal e reciclado de matérias primas finitas, simplificaria radicalmente a administração pública, promoveria emprego, não capital, seria, portanto, socialmente bem mais justo que o atual sistema que, em termos de justiça social é uma grande mentira. Ele promoveria um comportamento bem mais sábio que o que predomina hoje.

Estes primeiros passos levariam automaticamente a um início de nova consciência e reorientação de nossa cultura industrial, que deixaria de ser suicida.

Quero dedicar os anos que me sobram a este trabalho fundamental. Como gostaria de ver o Brasil, este precioso pedaço de Gaia em que tive a sorte de nascer, transformar-se no berço deste renascimento cultural de nossa espécie e da recuperação do Grande Processo Criativo. Como seriam exaltantes as observações em minhas imaginárias visitas futuras!



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A Febre de Gaia José A. Lutzenberger

A FEBRE DE GAIA
José Lutzenberger, julho de 2000
Tradução: Lilly Lutzenberger do original GAIA’S FEVER*

A faixa de temperaturas nas quais a Vida pode existir e florecer, isto é, a faixa de temperaturas que torna possível a bioquímica, a química das proteínas, carbohidratos, hidrocarbonetos, ácidos nucléicos, a construção de células vivas e organismos, a qual é também a faixa na qual a água pode coexistir em suas três fases físicas – líquida, gasosa e sólida – é extremamente estreita, se comparada com as temperaturas que prevalecem no Universo como um todo.

Estas variam desde perto do zero absoluto, 273ºC negativos, no espaço interplanetário ou em planetas distantes como Netuno e Plutão, até entre 400 e 500ºC positivos em Vênus; aproximam-se dos 20 a 40°C negativos no verão, ao meio-dia, na linha do Equador de Marte; vão a aproximadamente 6000°C na superfície de nosso Sol, perto de 20 milhões de °C em seu interior; mais, muito mais ainda, na superfície de estrelas maiores e chegando a bilhões de °C nas fornalhas de estrelas em implosão – as supernovas.

Tivéssemos de representar este alcance de temperaturas sobre uma linha na qual cada grau fosse um milímetro, esta teria um comprimento de várias centenas de milhares de quilômetros, ela iria a uma distância muito além da Lua.

A faixa propícia para a Vida vai de alguns graus abaixo de zero, onde a Vida só sobrevive em repouso, até aproximadamente 80 graus positivos para alguns poucos organismos - certas bactérias e algas que conseguem viver em vertentes quentes nos precipícios marinhos e nos geisers, o que totaliza uma faixa de aproximadamente 100°C. Se aplicada na referida linha, ela cobriria uns dez centímetros. Dez centímetros sobre várias centenas de milhares de quilômetros!

Desde esta perspectiva, percebemos o quanto é precioso nosso mundo. Ele se torna mais precioso ainda quando aprendemos que a Vida foi capaz, ao longo de mais de 3,5 bilhões de anos, de contrarrestar forças que tendiam a tornar a Terra muito mais quente ou muito mais fria. Sabemos, por considerações cosmológicas, que o Sol é atualmente de 20 a 30% mais quente do que era quando a Vida começou a se estruturar nos oceanos primordiais. Nosso planeta poderia ter acabado numa situação de descontrolado efeito estufa, como em Vênus: um pouco menos quente, mas, ainda assim, com ao redor de 200°C positivos. Os oceanos teriam se evaporado.

Ou se, por alguma razão, na época das primeiras manifestações de Vida, com o Sol ainda mais frio, houvesse nebulosidade demais, o desequilíbrio poderia ter ido em sentido contrário. O albedo elevado - isto é, a refletividade aumentada para a luz – teriam refletido grande parte da energia solar incidente de volta para o espaço sideral. Menos calor, mais neve, mais albedo ainda, menos calor ainda. A Terra poderia ter se tornado uma bola coberta de neve. Em qualquer dos casos, Gaia nem teria se tornado realidade ou teria perecido logo.

No entanto, conscientemente, estamos bagunçando todos os mecanismos de controle climático - com dióxido de carbono demais, metano, óxidos de nitrogênio, óxidos de enxofre, freons, hidrocarbonetos, desmatamento e desertificação. Por quanto tempo poderemos abusar do sistema? Quanto tempo demorará Gaia para ficar com febre? Será mesmo necessário que conheçamos todos os detalhes para começarmos a agir?

Quando as coisas começarem a dar errado, elas não precisam descontrolar-se completamente. Não precisamos chegar a outra era glacial ou derretimento das capas de gelo na Groenlândia e Antártida, com inundação das maiores cidades e territórios de elevada densidade populacional. A exacerbação das irregularidades climáticas que já se verificam, breve nos colocará numa situação na qual não mais poderemos contar com colheitas seguras. Atualmente, somos ao redor de 6 bilhões de humanos. As reservas de alimentos estão diminuindo. De que nos serviria um clima de praia em Spitzbergen, se não tivermos mais o suficiente para comer? E o que dizer das convulsões sociais, revoluções e guerras que resultariam daí, com figuras como Saddam Hussein e outros tendo acesso a armas de destruição em massa?

O que para Gaia, ao longo de seus 10 bilhões de anos de expectativa de vida e com pelo menos mais 5 bilhões pela frente, poderia ser apenas uma leve e passageira febre, talvez representasse o fim da civilização para nós.

Uma pessoa sábia talvez arrisque aprender com seus erros, mas ela certamente evitará experimentos nos quais, se derem errado, as conseqüências serão inaceitáveis e irreversíveis. Como podemos fazer os poderosos compreenderem que a Moderna Sociedade Industrial está embarcada precisamente neste tipo de experimento?

* publicado em inglês, na revista ambientalista britânica
"The Ecologist", volume 29, n°2, março/abril de 1999

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Reverência pela Vida José A. Lutzenberger

REVERÊNCIA PELA VIDA
José A. Lutzenberger

Quando eu era jovem, nos anos 40 e 50, a grande floresta de araucárias do sul do Brasil lá estava, primordial, quase intacta. Era uma das florestas mais majestosas do mundo, tão magnífica quanto as da região do Pacífico Norte, na América do Norte, ou as florestas de uma das regiões do mundo mais fantásticas que conheço, os fiordes, no sul do Chile.

A floresta de araucárias não existe mais! A floresta do Pacífico Norte também quase desapareceu e começou a destruição em massa no Chile. As grandes florestas da Sibéria são hoje vítimas de um ataque feroz, as florestas tropicais do Sudeste Asiático, da Nova Guiné e da Austrália estão próximas do fim. Apesar de a Amazônia continuar oitenta por cento intacta, o ritmo da devastação está voltando a crescer. Não existe controle e, com exceção do Governo do Estado do Amazonas, não há vontade política para detê-la. Mas a obliteração de todas as florestas primárias do mundo é apenas uma parte do comportamento destrutivo da nossa atual cultura industrialista global. Todas as selvas remanescentes estão sendo destruídas, todos os sistemas de sustentação de vida estão desestruturados. É verdade que todas grandes civilizações antes da nossa - romana, grega, maia, asteca, babilônia, chinesa e outras - foram até certo ponto predadoras do meio-ambiente. Algumas sucumbiram por causa disso, mas a destruição era local ou regional. Hoje ela é global, atinge a menor ilhota no meio do oceano.

Qualquer pessoa informada sabe que nossa atual situação é insustentável. Foi disso que tratou a Conferência Rio-92. Sabemos como lidar sustentavelmente com alguns recursos, mas com outros insistimos em fazer o contrário. O pecuarista tradicional dos Pampas do Rio Grande do Sul, da Argentina e do Uruguai maneja seu gado da maneira como um investidor sábio aplica sua fortuna. Gasta apenas os juros e mantém o capital, aumentando-o sempre que possível. Assim, o pecuarista que possui, digamos, mil cabeças de gado, venderá entre cem e cento e cinqüenta por ano. Selecionará seus animais para obter mais saúde e produtividade e protegerá e aperfeiçoará suas pastagens. É por isso que o Pampa ainda é uma das paisagens mais preservadas e belas do mundo.

Algo parecido poderia ter sido feito com a floresta de araucárias. Ela ainda poderia existir, bela como sempre. Poderíamos ter extraído seletivamente, retirando a cada ano o equivalente ao crescimento de um ano. Se decidíssemos usar árvores de duzentos anos, deveríamos ter colhido uma de cada duzentas árvores; das árvores de cem anos, uma de cada cem; e das de cinqüenta anos, uma de cada cinqüenta, a cada ano. A floresta não necessitaria de ajuda humana para se regenerar. Mas os madeireiros não enxergavam a floresta de modo como o pecuarista vê e maneja seu gado. Viam-na como uma mina, e não era deles. Então extraíram o que puderam, o mais rápido possível, e o fizeram da maneira mais esbanjadora. Isso acontece hoje com todas as florestas remanescentes no planeta, e é como tratamos a maioria de nossos recursos naturais.

Por que a sociedade permite esse tipo de rapina do bem comum? Há uma falácia fundamental em nosso atual pensamento econômico:

Os governos gostam de confundir os interesses empresariais com os interesses da Nação. Hoje, após o colapso do que se chamou socialismo, estão reavivando, sem questionar, o postulado proposto por Adam Smith, segundo o qual a soma total dos interesses privados irrestritos, de certa forma, por meio de uma "mão invisível", transforma-se em benefício para todos. Mas esse postulado é errado, basicamente errado, quando se aplica ao nosso trato com a Natureza. Por exemplo, cada uma das frotas pesqueiras deseja extrair a maior tonelagem de peixe que puder apanhar. Por isso elas continuam aperfeiçoando seus métodos, a ponto de, ao encontrar um grande cardume, atrair eletronicamente para suas redes até o último peixe. E isso é bom para o oceano ou para a humanidade?

Baseado na confusão de que o benefício público surge automaticamente dos lucros imediatistas de indivíduos ou empresas, os governos fazem um tipo de balanço que jamais ocorreria a um executivo em sua firma. O índice usado para avaliar e comparar o progresso, o PNB - Produto Nacional Bruto - mede apenas o fluxo de dinheiro, sob a ingênua suposição de que a felicidade geral aumenta com o crescimento da renda média, sem fazer distinção do que todos os diversos rendimentos causam à sociedade e ao mundo como um todo. Mas esse índice nada nos diz sobre a verdadeira riqueza nacional, nada nos diz da justiça social ou da sustentabilidade de nossos sistemas econômico, agrícola e industrial. Pelo contrário, o índice cresce com o aumento da devastação. Já ouvi pessoas poderosas no Brasil dizer que a madeira da Amazônia vale tantas centenas de bilhões de dólares, por isso deveríamos vendê-la o mais depressa possível; e o mesmo para todos os minérios do subsolo.

Se realmente desejarmos um futuro duradouro para nossos filhos e descendentes, devemos nos colocar muitas questões - sobre nossa economia e nossa tecnologia, assim como sobre nossa cosmologia.

Um primeiro passo vital seria os governos começarem a fazer para o país o tipo de contabilidade que os empresários fazem em suas companhias. Eu mesmo sou um pequeno empresário; minha contabilidade soma todos os rendimentos e aquisições e subtrai todos os custos e perdas. Qualquer diminuição dos bens materiais, seja pela venda ou pela redução de valor, pelo envelhecimento ou desgaste, também é deduzida. Agora, se olhássemos para nossa empresa do modo como os governos o fazem, estaríamos somando o rendimento com os custos, desprezando as perdas materiais. Poderíamos ir à falência e sentir-nos felizes!

Quando nós, brasileiros, demolimos montanhas, inundamos milhares de quilômetros quadrados de florestas virgens para produzir alumínio para exportação, devastamos dezenas de milhares de quilômetros quadrados de cerrado para produzir carvão vegetal para fazer ferro gusa, está correto somar a renda obtida em moeda estrangeira, mas também deveríamos ter um balanço nacional em que deduzíssemos a perda das florestas, a perda dos minérios nas montanhas, a perda do ganha-pão do seringueiro que hoje vaga nas favelas das grandes cidades, o genocídio das tribos indígenas extintas e muito mais. Com esse tipo de verdadeira contabilidade nacional não haveria muitos motivos para celebrar.

Se os norte-americanos fizessem esse tipo de balanço, perceberiam que hoje são muito mais pobres do que cinqüenta anos atrás, quando a maior parte de seu petróleo ainda estava no solo, a maioria de seus minérios ainda não fora extraída e em grande parte desperdiçada em orgias consumistas, quando a maioria de suas florestas primitivas continuava intacta, seus rios limpos, etc. Naquela época eles tinham a metade da população atual, muito mais recursos e menos problemas sociais. Os alemães e os japoneses perceberiam que na verdade são países pequenos, superpopulosos, totalmente dependentes dos recursos de outros povos.

Não apenas em nível social, mas também global, precisamos de uma contabilidade que nos diga a verdade. Se permitirmos que a Floresta Amazônica desapareça, não apenas nós, brasileiros, ficaremos mais pobres, mas as conseqüentes mudanças climáticas tornarão todo o mundo mais pobre. Hoje sabemos que isso poderia provocar uma alteração das correntes marítimas capaz de desencadear uma nova era glacial, infinitamente pior que um aquecimento global.

Enquanto avaliarmos o progresso, não em termos da verdadeira riqueza material e social, mas em termos de fluxo de moeda, como no PNB, não veremos problema em aceitar o mais absurdo de nossos atuais dogmas econômicos: que uma economia só é saudável enquanto continuar crescendo. Esquecemos que nossos campos, nosso território, nossas montanhas, nossos minérios, petróleo e gás não crescem, que o planeta não cresce. E, enquanto nossos economistas nacionais, a quem os administradores escutam, continuarem a ser completamente analfabetos em ciências naturais e em tecnologia, eles acreditarão em si mesmos quando pregarem que os recursos são ilimitados, porque não vêem problemas causados pela tecnologia, que novas tecnologias não possam solucionar.

Também se tornou um dogma geralmente aceito, de que dar rédea solta às forças do mercado, e fazê-lo em escala global, resolverá todos os problemas econômicos e produzirá maior justiça em escala mundial. Isto também é uma falácia fatal.

A maioria de nossos mercados é manipulada por subsídios - veja-se o programa do álcool brasileiro -, por impostos, regulamentos, esquemas financeiros que favorecem os grandes às custas dos pequenos, como no caso das agroindústrias e dos camponeses, e muito mais. No mundo todo, as estruturas sociais que surgiram historicamente, organicamente e sistemicamente, estruturas sociais que dão às pessoas um sentido de identidade, um sentimento de aconchego, de segurança e de relativa justiça social, sejam elas camponeses, artesãos, artífices, pescadores, aborígenes, povos tribais nas selvas que ainda restam, quase todas elas, com muito poucas exceções, hoje estão sendo desmoralizadas, desenraizadas, marginalizadas e jogadas às favelas. Este processo irá se tornar ainda pior. Mesmo no Primeiro Mundo, a exportação de empregos para o Terceiro Mundo está provocando grave desemprego e logo causará sérias revoltas sociais.

O mercado, como funciona hoje, incrementa as injustiças sociais, ignora as verdadeiras necessidades das pessoas, vê apenas a demanda expressa em termos de dinheiro. Os que não têm dinheiro nem sequer aparecem no mercado, por mais que estejam necessitados.

O mercado também é cego no que concerne às futuras gerações. É por isso que ele promove a mais desperdiçadora, imediatista e irreversível violação dos recursos não renováveis e leva à destruição dos recursos que poderiam ser utilizados de maneira sustentável, como as florestas e a pesca, sem preocupar-se com o que ficará para nossos descendentes. Talvez seja por isso que há tão pouco interesse em nossa única fonte de energia realmente duradoura, a energia solar. A energia do sol - podemos usá-la ou não - só pode ser aproveitada eficazmente de modo descentralizado, que não concentra poder em alguns poucos, e , mais importante, a energia solar não pode ser roubada das futuras gerações.

Todos os sistemas naturais - e a Vida tem quase quatro bilhões de anos - são altamente dinâmicos, mas estáveis: eles não crescem. Os indivíduos de todas as espécies nascem, crescem, envelhecem e morrem, mas o ecossistema não cresce nem morre quando não é perturbado por outras forças. A menos que nós, humanos, aprendamos com a Vida a ver nossas economias como sistemas dinâmicos, mas estáveis e duradouros, acabaremos por sucumbir. Devemos ainda aprender com a Vida que seus sistemas são estáveis e duradouros porque se baseiam na perfeita reciclagem de recursos e não em seu consumo. Nosso atual sistema econômico baseia-se no consumo da Natureza.

Hoje em dia fala-se muito na importância de se preservar a biodiversidade. Mas a biodiversisdade é vista como mais um recurso, uma necessidade de estabilidade dos sistemas que desejamos explorar, ou simplesmente como uma fonte de novas substâncias químicas, como medicamentos e outras. Não é vista como um valor em si. Nossos pensadores econômicos e tecnocráticos, em sua visão de mundo, antropocêntrica e gananciosa, têm dificuldade em compreender quão única e preciosa é cada espécie, por mais humilde, no contexto da grande Sinfonia da Evolução Orgânica da qual nós, seres humanos, somos apenas parte e produto. Enquanto enxergarmos a Criação apenas como um armazém gratuito, onde a indústria e o comércio podem servir-se indefinidamente de bens, nossa tecnologia cada vez mais agressiva e envolvente tornará inevitável a extinção progressiva das criaturas que convivem conosco, a ponto de mutilar seriamente esse nosso planeta ímpar, Gaia, o único planeta vivo que conhecemos. Gaia não é apenas uma nave espacial que abriga bilhões de seres vivos, a maioria deles dispensável na opinião da sociedade industrial moderna. Não, é um sistema vivo, como um organismo em que tudo está conectado e interage com tudo, que tem sua própria bio-geo-fisiologia e homeostase, isto é, tem um equilíbrio autocontrolado. Nesse sistema vivo, cada espécie é importante e insubstituível, e seu desaparecimento debilita o organismo como um todo.

Nós, seres humanos, devemos parar de agir como um câncer nesse superorganismo. Portanto, precisamos de uma nova ética - na verdade muito antiga - holística e abrangente, uma ética que abraça toda a Criação, uma ética baseada no princípio fundamental, proposto por Albert Schweitzer , de reverência pela Vida em todas as suas formas e manifestações.

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Gaia José A. Lutzenberger

GAIA
José A. Lutzenberger
Março de 1986
Revisão e ampliação Setembro de l994

A visão cartesiana que ainda domina grande parte do pensamento científico atual coloca-nos como observadores externos da Natureza. Daí o conceito de "ambiente natural". O ambiente é visto como algo externo a nós, no qual estamos total e umbilicalmente imersos, é verdade, mas que não faz parte de nosso ser - uma dicotomia bem clara.

Temos hoje a cibernética e a sinergística, mas são raros, muito raros, os que observam a Natureza, muito mais raros ainda, aqueles que lidam com o Mundo dentro dos enfoques destas disciplinas. A doutrina que norteia a tecnologia moderna baseia-se, sempre, em visão reducionista. Os alvos são estreitos, o raciocínio é linear.

Mas o Mundo não é assim. Façamos um "experimento mental" (Gedankenexperiment), como dizia Einstein: Acaso seria possível um planeta cheio de vida, como o nosso, mas no qual ela estivesse constituída apenas por animais, sem que existissem plantas? É claro que não. Por que não?

Mesmo aqueles animais que só se alimentam de carne, como o leão ou o gavião caramujeiro, que carne comem? Eles comem carne de animais herbívoros ou de animais carnívoros que comeram herbívoros. A coisa sempre termina na planta.

Por que termina na planta? Muito simples: a planta sabe fazer uma coisa que animal nenhum consegue fazer. A planta domina a técnica - a "tecnologia" como diríamos hoje - da fotossíntese. O que é fotossíntese? As plantas captam energia solar, retiram do ar gás carbônico que elas combinam com água para fazer substâncias orgânicas. Neste trabalho elas liberam oxigênio. A fórmula supersimplificada da fotossíntese é a seguinte:

CO2 + H2O + energia solar = CH2O + O2

Esta reação é muito interessante. Do lado esquerdo temos duas substâncias minerais simples, substâncias sem conteúdo energético, isto em nível molecular, que é o nível no qual transam os seres vivos e o mundo mineral que os circunda.(Em termos de física nuclear, que rege no interior do Sol e das estrelas, ou nos infames reatores e bombas nucleares, a coisa seria diferente). Da água e do gás carbônico não se pode retirar energia. De vez em quando aparecem nos jornais histórias de inventores que teriam concebido motores que usam água como combustível. Ora, quem conhece as leis básicas da física e a direção das reações mais fundamentais da química, sabe que isto é balela. Seria como querer fazer fogo com cinza em vez de com lenha.

Do outro lado da fórmula temos um carboidrato e oxigênio livre. CH2O é a fórmula supersimplificada dos açúcares,amidos,celuloses. Os carboidratos têm alto conteúdo energético. Poderíamos chamá-los de baterias químicas. Quando combinados, isto é, queimados com oxigênio liberam calor. A reação da fotossíntese fornece as duas coisas - carboidratos e oxigênio! Os animais, para todas as suas atividades, necessitam de energia. A única fonte inesgotável de energia na Terra é a radiação solar, enquanto durar o Sol, mais uns cinco bilhões de anos. Se a Vida dependesse de algo como o petróleo ou do carvão, já se teria acabado. Mas esta é uma consideração absurda, pois foi a Vida que fez o carvão e o petróleo. Para captar a luz é preciso ficar parado, apresentar grande superfície de captação, É o que fazem as plantas com suas folhas, sempre orientadas em direção ao Sol. Pela sua natureza dinâmica, os animais não podem fazer isso. Servem-se das plantas, aproveitam as substâncias orgânicas por elas produzidas.

Vamos agora inverter nossa pergunta inicial:

Poderíamos imaginar um planeta com vida, mas sem animais, só com plantas? Não seria este um planeta bem mais harmônico, sem sofrimento? As plantas poderiam desenvolver-se livremente, sem serem pastadas, pisoteadas, consumidas, queimadas.

Impossível.

A fórmula da fotossíntese mostra que o alimento principal das plantas é o gás carbônico. Mas ele é quase um gás raro na atmosfera. O nitrogênio, N2, constitui o grosso do ar, aproximadamente 78%. O oxigênio, O2, está próximo dos 21%. O resto é argônio e gases raros. Apesar de sua concentração ter sido drasticamente aumentada nos últimos duzentos anos pelas chaminés das indústrias, os escapes dos carros, pela destruição do húmus dos solos e pela devastação florestal, o gás carbônico constitui apenas 0,033%. Porque as plantas não esgotam rapidamente o gás carbônico?

São os animais que não permitem que as plantas morram de fome. Os animais dominam outra técnica muito parecida à fotossíntese, quase igual, porém invertida - a respiração. Vejamos a fórmula simplificada da respiração:

CH2O + O2 - energia = CO2 + H2O

Exatamente o contrário da fotossíntese! Enquanto as plantas, armazenando energia, sintetizam substâncias orgânicas, liberando oxigênio, os animais, com oxigênio, queimam estas substâncias e usam a energia liberada no processo. Eles devolvem ao ambiente exatamente aquilo que a planta retirou*.

Detalhe curioso, muito significativo: o catalisador da fotossíntese é a clorofila, um pigmento verde, uma molécula bastante complicada do tipo que os químicos chamam de quelatos. Quelatos são moléculas grandes, em forma de gaiola, que seqüestram em seu centro um átomo de metal. No caso da clorofila é um átomo de magnésio. O catalisador da respiração é a hemoglobina, também um pigmento, este, vermelho. O átomo central é o ferro. Como sabe todo aquele que estuda teoria das cores, vermelho e verde são cores complementares.

Podemos agora desenhar um diagrama muito simples:

CO2 -> Planta -> O2 -> Animal -> CO2

A Planta capta gás carbônico, entrega oxigênio, o Animal consome este oxigênio, devolve o gás carbônico. O círculo se fecha. A energia que toca este carrossel é a radiação do Sol.

Ora, Planta e Animal fazem parte da mesma unidade funcional, são órgãos de um organismo maior: não somente a Planta está aqui para nós, nós também aqui estamos para ela!

As árvores, florestas, pradarias, os banhados, as algas microscópicas dos oceanos, são órgãos nossos, tão nossos quanto nosso pulmão,coração, fígado ou baço. Poderíamos chamá-las de "nossos órgãos externos", enquanto estes últimos são nossos órgãos internos. Mas nós somos órgãos externos delas! O Organismo Maior é um só.

Mas a complementaridade e interdependência de fotossíntese e respiração, de sedentariedade e mobilidade, é apenas uma entre a infinidade de interações que integram o Grande Processo Vital. Vamos apenas lembrar algumas.

A abelha e a flor. Em alguns casos a dependência entre flor e animal fecundador é tão precisa que as duas espécies são exclusivas, evoluem juntas. É o caso das vespinhas das figueiras que vivem dentro dos figuinhos. Cada espécie da grande família dos Ficus é fecundada por outra espécie de microimenóptero, exclusiva dela. Ou o beija-flor que tem o bico certo para a orquídea certa; a mamangava que tem dimensões e pêlos certos para a respectiva flor de maracujá.

Em alguns solos úmidos, extremamentes ácidos e pobres em nutrientes, o mundo vegetal consegue avançar com pioneiras muito especializadas, certas plantas carnívoras. Não conseguindo retirar minerais do solo, elas se alimentam de insetos. Quando morrem, com o húmus daí resultante, enriquecem o solo, preparando-o para outras plantas, menos especializadas. A morte é fundamental no Grande Contexto.

Por que muitas plantas fazem frutos gostosos? A eficiência na fotossíntese proíbe às plantas viajar. Mas elas têm que conquistar território. O fruto é o preço que elas pagam ao animal que o come pelo transporte da semente. As grandes figueiras centenárias que enfeitam, ainda, campos e capões do litoral e da baixada central gaúcha, são bem mais precisas. Na maioria das árvores,

* Para que não protestem alguns, as plantas também respiram, mas o balanço é negativo para o gás carbônico. as sementes germinam na escuridão do solo da floresta. As mudinhas passam anos ou décadas de vida precária, lutando para chegar em cima. Em geral só conseguem quando, pela queda de um gigante decrépito, surge um novo espaço. A figueira faz o contrário. Ela nasce no alto de outras árvores. Passa anos de vida precária como epífita*, alimentando-se do húmus dos galhos e troncos podres. Mas consegue enviar uma raiz ao chão. Quando lá chega, se fortalece, emite mais raízes, abraça e estrangula a árvore sobre a qual nasceu, acaba transformando-se num novo gigante. Mas como chegou a semente lá em cima? A Semente do figuinho só germina depois de passar pelo estômago de um pássaro. Caída ao chão, não germina, falta o tratamento dos ácidos digestivos que eliminam substância inibidora da germinação.

Teríamos que escrever compêndio de muitos volumes, quiséssemos mostrar apenas parte do fascínio das simbioses, como a da Saúva, onde cada espécie tem sua espécie específica de fungo,que cultiva no composto que faz com as folhas que corta.

Até as criaturas que costumamos classificar de pragas ou parasitas têm sua função. A moderna agronomia não estaria trabalhando com enxurradas de venenos se não tivesse esquecido que a "praga" só ataca hospedeiro doente, desequilibrado, desajustado. Atacando somente os indivíduos marginais dentro das populações, os organismos parasitas constituem-se em mais um crivo da Seleção Natural, que esmera constantemente as espécies, faz surgir sempre mais diversidade, sempre mais sinergismo, sempre mais ciclos e epiciclos de reciclagem dos recursos dos quais se serve a Vida.

E as milhões de espécies de bactérias, cada uma com sua função específica? Sem elas não haveria digestão nem decomposição, não funcionaria a reciclagem dos nutrientes minerais. Plantas e animais, quando mortos, ficariam como múmias, a obstruir o espaço dos vivos. Sobre o solo estragado, a fome mataria os sobreviventes. As plantas também não teriam acesso ao nitrogênio do ar, indispensável para a síntese das proteínas. Mas, assim como existem bactérias que ajudam as plantas obter nitrogênio, há as que devolvem nitrogênio ao ar, mantendo, assim, um equilíbrio de fluxo estável. Outras bactérias, também no solo, dão à planta acesso ao fósforo e demais nutrientes minerais, especialmente os micronutrientes, indispensáveis à saúde das plantas. O fósforo é indispensável no código genético, aquela genial escrita bioquímica que, em nível molecular, fixa, registra, perpetua e, pelas mutações, enriquece a Sabedoria da Evolução Orgânica e que, em cada indivíduo vivo, desde o óvulo fecundado até a morte, comanda o desenvolvimento e o funcionamento do organismo.

E todos aqueles seres maiores que, no solo ou sobre ele, preparam o trabalho das bactérias, mastigando, roendo, dilacerando, desmanchando, transportando os restos dos organismos mortos: os fungos, protozoários, colêmbolas, nematóides, planárias, insetos - entre eles, sociedades altamente estruturadas como as formigas e térmitas (cupins) - ácaros, aranhas, escorpiões, centopéias e minhocas, e mesmo criaturas maiores, como moluscos e até mamíferos, como tatus e toupeiras? Sem eles as bactérias passariam muito trabalho, os ciclos vitais seriam muito lentos.

A Vida jamais poderá ser compreendida nos termos que queria Descartes que, nos seres vivos, com exceção dos Humanos, via simples máquinas, relógios ou autômatos; robôs, como diríamos

* Epífita: Planta que vive sobre outra planta sem ser parasita desta, por exemplo, a orquídea e muitas bromélias. hoje. Mas esta visão ainda está bem viva, muito viva, por exemplo, nos laboratórios de toxicologia da indústria química, que submete milhões de criaturas indefesas, macacos, cachorros, gatos, ratos, porquinhos-da-índia e outros, por ela simplesmente classificados de "cobaias", a torturas indescritíveis para, em enfoque ridiculamente bitolado, estabelecer, entre outras abstrações indecentes, a "dose diária admissível" dos venenos com que fazem seus grandes negócios. Esta visão, é triste ter que dizê-lo, é comum em muito curso e aula de biologia, e nas modernas fábricas de carne ou ovos, eufemisticamente chamadas de "criação confinada" e "aviários". A Vida também não poderá ser compreendida apenas dentro da visão da moderna Biologia Molecular, com suas abordagens ultra- reducionistas e com seu "dogma central" que postula ser a incrível diversidade de formas e funções, resultado apenas da seleção natural de mutações ao acaso.

Só uma visão sistêmica, unitária, sinfônica poderá nos aproximar de uma compreensão do que é nosso maravilhoso

p l a n e t a v i v o.

Nunca existiram tantos biólogos como hoje. As "ciências biológicas" - muito significativo este plural - ocupam cada vez mais especialistas. Na indústria conheci excelentes entomólogos que só pesquisavam métodos químicos para matar e mesmo erradicar insetos. Nas estações experimentais agrícolas são comuns aqueles pesquisadores que passam a vida relacionando estatisticamente a reação de certas plantas a determinados tratamentos químicos. Há os que só estudam o efeito de determinados poluentes sobre certos organismos aquáticos. Quando observo o trabalho dos biólogos moleculares, que se aprofundam sempre mais na dança das macromoléculas dos gens nos cromossomos e no citoplasma, pouco ligando para o organismo como um todo, me vem a imagem de alguém que, querendo conhecer e compreender os magníficos sistemas ferroviários europeus, por exemplo, a Bundesbahn, na Alemanha, se limitasse a estudar, com o microscópio, as letras nas tabelas dos grossos manuais de horários dos trens, e que passasse a vida fazendo nada mais que isso.

Não deixa de ser muito interessante o que toda esta gente descobre e cataloga e, por isso, esses trabalhos são muito importantes, mas, desvinculados da visão do todo, nenhuma orientação ética nos proporcionam. Aliás, é dogma corrente em círculos científicos modernos que a Ciência nada tem a ver com valores, com ética, com política, com religião...

Sobram biólogos, mas torna-se cada vez mais difícil encontrar naturalistas. Naturalistas como eram Darwin, Haeckel, Humboldt, Julian Huxley; como alguns de meus mestres: Allarich Schulz entre nós, seu irmão Harald; Croizat e Vareschi, na Venezuela; o grande Ruschi no Espírito Santo, Sioli na Amazônia e, a hoje mitológica figura, Balduíno Rambo, quase totalmente esquecida de seus conterrâneos gaúchos, um dos grandes espíritos que esta terra contemplou e venerou!

Esta, a diferençaa entre biólogo convencional, apenas "científico" e o naturalista.A diferença está na v e n e r a ç ã o ! Para o naturalista, a Natureza não é simples objeto de estudo e manipulação, é muito mais. Ela é algo divino - não temos medo desta palavra - é sagrada, e nós humanos somos apenas parte dela. Daí a atitude do naturalista não poder jamais ser atitude de agressão, dominação espoliação. O naturalista procura a integração, a harmonia, a preservação, o esmero, a contemplação estética. Ele está no mesmo nível do artista, do compositor, maestro, escultor, pintor, escritor, mas ele trabalha dentro da disciplina científica, em diálogo limpo com a Natureza.

Quanto mais o naturalista se maravilha diante das incríveis interações e complementações a nível de átomo, molécula, célula, organismo, espécie, população, comunidade e ecossistema, mais ele procura chegar à síntese. Dentro da visão ecológica surgiu, assim, o conceito de Ecosfera, que é o conjunto e a interação de todos os ecossistemas, entre si e com o mundo mineral. O diagrama que segue nos dá uma representação simplificada da Ecosfera:

A Biosfera, o conjunto dos sistemas vivos, está íntima e inseparavelmente integrada na Litosfera e na Atmosfera. O todo constitui uma unidade funcional, um organismo à parte, um sistema dinâmico integrado, equilibrado, auto-regulado.

É ainda enfoque comum que a Vida existe neste planeta e nele se mantém até hoje, (já são pelo menos três bilhões e meio de anos desde seus primeiros suspiros nos oceanos primordiais), porque a Terra, entre os planetas de nosso sistema solar, reúne condições muito especiais: tamanho e rotação certa à distância certa de uma estrela de tamanho certo. Daí o âmbito certo de temperaturas propícias aos processos bioquímicos. No Universo predominam temperaturas extremas, desde quase zero absoluto, -273 graus centígrados no espaço intersideral; por volta de 6000 graus centígrados na superfície do Sol; dezenas de milhões de graus em seu centro; centenas de milhões no centro de estrelas maiores e até bilhões e centenas de bilhões de graus nas explosões das novas e supernovas. Mas os processos vitais da química do carbono só funcionam acima do zero centígrado e se estropiam antes de chegar aos 100 graus centígrados. Somente algumas espécies de algas cianofíceas e algumas bactérias conseguem viver em águas com temperaturas próximas de 70 graus centígrados, em fontes térmicas; alguns fungos e actinomicetos ainda vivem bem aos 60 graus centígrados nos compostos dos agricultores e jardineiros orgânicos.

Por muito pouco a Terra escapou ao destino de Vênus ou ao de Marte, nossos vizinhos mais próximos. De Júpiter e Saturno e além, nem falar. É sabido que em Vênus a temperatura média de superfície está por volta dos 400 graus centígrados. Não há substância orgânica que resista. Os oceanos não resistiram, evaporaram. Já em Mercúrio, mais próximo ao Sol que Vênus, nem a atmosfera resistiu, se foi. Em Marte as temperaturas de meio dia no verão, estão próximas dos 40 graus abaixo de zero. O gás carbônico está nas calotas polares que são de gelo seco. Oceanos, nem pensar.

De fato, a Terra está em condições muito especiais, não somente quanto à temperatura. Se fosse uma bola de gás, como Júpiter, ou bola sem ar nem água, como a Lua, de nada adiantariam temperaturas certas. Fundamental para a Vida é também o confronto dos três estados físicos: sólido, líquido e gasoso. Sem este confronto não haveria reciclagem, como aquela dos ciclos interligados do carbono e oxigênio, não haveria os grandes e pequenos ciclos bio-geo-químicos.

Para que não se apague, a Vida exige ainda outras condições imprescindíveis: atmosfera de composição certa, salinidade certa nos oceanos, âmbito certo de pH (medida de acidez e alcalinidade). Devem estar presentes também pelo menos uns 25 dos mais de cem elementos da tabela de Mendeleiev.

Quando a NASA preparava as primeiras naves não tripuladas que desceram em Marte, ela poderia ter economizado o grande custo dos dispositivos automáticos que recolheram e analisaram solo do planeta para verificar se continha alguma forma de microvida, mesmo muito mais simples que as mais simples de nossas bactérias.

James Lovelock, um dos raros cientistas que hoje consegue sobreviver como consultor autônomo, trabalhava então para a NASA. Ele propôs que bastaria estudar melhor a atmosfera de Marte ou de qualquer outro planeta, referente ao qual houvesse dúvidas quanto à existência de alguma forma de vida. O importante seria verificar se a atmosfera, em sua composição, se encontrasse próxima ou longe do equilíbrio químico estático. Bastariam observações espectroscópicas. Não foi escutado e não foi encontrada vida. Não podia.

O que aconteceria com a atual atmosfera da Terra se a Vida desaparecesse? Sua composição parece violentar as leis da química. Sem o reabastecimento da fotossíntese, o oxigênio não duraria mais que uns poucos milhões de anos. Seria consumido na oxidação das rochas e do nitrogênio Este acabaria nos oceanos, em forma de nitratos. Os mares não mais teriam o pH próximo de neutro, propício à Vida, seriam um caldo corrosivo, altamente ácido. Uma vez que os processos eruptivos estão longe de terem chegado a seu fim, voltaria a elevar-se a concentração de gás carbônico. A Terra acabaria quase tão quente quanto Vênus. Os oceanos? Evaporados! O vapor de água na alta atmosfera seria dissociado pela ação direta dos raios ultravioletas e da radiação cósmica. O hidrogênio se perderia ao espaço interplanetário, o oxigênio liberado oxidaria os restos de nitrogênio. O ácido nítrico exporia mais rocha crua, o oxigênio todo se fixaria em forma de óxidos. Levaria mais tempo que a fixação do oxigênio da primeira fase, mas, tempo é o que menos falta à Natureza. Uma atmosfera como a que temos não pode existir num planeta morto.

Portanto, um bom químico que olhasse a Terra de longe, suficientemente longe para não discernir florestas, cidades, estradas, somente analisando espectrogramas de nossa atmosfera, se daria logo conta de que aqui acontece algo de extremamente interessante. A atmosfera da Terra está muito longe de um equilíbrio químico estático. Este não é o caso de Vênus, de Mercúrio, Júpiter, de Saturno e dos demais, que parecem perfeitamente normais quimicamente. Tremendamente fascinado ficaria este químico!

Lovelock, em colaboração com Lynn Margulis*, preocupado com a não aceitação de sua proposta à NASA, e pensando mais profundamente no caso, inverteu o enfoque convencional, segundo o qual a Vida existe na Terra, porque a Terra reúne e mantém as condições certas. Se a Terra oferece condições adequadas é porque a Vida assim as mantém!

Vejamos o caso da temperatura propícia aos processos vitais. Em algum momento entre quatro e três e meio bilhões de anos atrás, a Terra já estava consolidada, as lavas solidificadas, os oceanos formados, a temperatura estava certa. O Sol era entre 15 e 20% menos quente que hoje, fato estabelecido, porque o Sol é uma estrela bem normal da "seqüência geral", cuja evolução é perfeitamente conhecida e calculável pelos cosmólogos. Se a Terra não era uma bola de gelo é porque ainda tinha muito calor próprio e porque a atmosfera de então propiciava um forte efeito estufa. Ela estava constituída principalmente de gás carbônico, metano e amoníaco, com restos de hidrogênio. A quase totalidade do hidrogênio da primeira atmosfera já se tinha perdido. Esta atmosfera era de origem eruptiva.

Naquela atmosfera reduzinte começou, e só nela podia começar, a Vida. Se numa atmosfera oxidante, como a atual, surgissem as primeiras substâncias orgânicas, elas seriam rapidamente destruídas pela oxidação. Só numa atmosfera reduzinte elas podem acumular-se. Baseando-se nas idéias sobre a origem da Vida, de Oparin, Miller, no laboratório de Urey, em genial experimento, demonstrou como, em balão de vidro contendo água com sais minerais e uma atmosfera como aquela, fazendo incidir descargas elétricas, após pouco tempo apareciam carboidratos, aminoácidos e até nucleótidos. Estas são as peças básicas da química da Vida. Os oceanos devem ter se transformado num caldo de substâncias orgânicas, cada vez mais rico e sempre mais complicado. Alguns cientistas falam do "comsomê primordial".

A partir do metano e amoníaco da Atmosfera, com a energia das descargas elétricas e da radiação, formava-se sempre mais material orgânico. Com isso diminuia o efeito estufa. Ótimo, o Sol estava lentamente ficando mais quente.

Deve ter levado pelo menos um bilhão de anos até que a evolução, inicialmente só bioquímica, acabasse dando origem à primeira célula de complexidade próxima à de uma bactéria. Dali para diante os grandes traços da Evolução Orgânica são conhecidos. Os primeiros organismos unicelulares só podiam alimentar-se da matéria orgânica existente nos oceanos. A sopa começou a autoconsumir-se. Havia perigo de extinção.

Não demorou, por volta de uns dois e meio bilhões de anos atrás, veio a solução.

A fotossíntese pertimiu à Vida sintetizar sua própria matéria orgânica, captando diretamente a energia solar. Era a solução, mas representava um tremendo perigo: a primeira grande crise de poluição! O Oxigênio liberado na fotossíntese, para a totalidade dos seres então existentes, todos anaeróbios, era veneno mortal. Como seria se hoje parecesse e proliferasse nos oceanos um

* Lynn Margulis é a cientista americana, microbióloga, que postulou outra síntese fascinante: a teoria que diz que as células dos organismos superiores, chamadas eucarióticas, são composições simbióticas nas quais várias células simples, procarióticas, sem núcleo delimitado nem organelas, como as bactérias, se juntaram dando origem à célula complexa com diversas organelas e núcleo delimitado. Outra maravilhosa complementação! organismo que, em processo parecido à fotossíntese liberasse cloro? Seria o fim de todas as formas superiores de vida. A Vida conseguiu superar aquela crise. As formas de vida anaeróbia sobrevivem até hoje, no lodo dos banhados, no fundo da lama dos oceanos e nos intestinos dos animais superiores; são as bactérias metanogênicas, entre outras, tão úteis nos biodigestores de biogás. A poluição virou vantagem. A atmosfera inverteu, de reduzinte para oxidante, tornando possível a maravilha da vida animal, que levou até o cérebro humano e dos delfins.

Mas o Sol continuava ficando mais quente. O efeito estufa do metano e amoníaco já quase desaparecera, sobrava o gás carbônico. Se até hoje temos temperaturas agradáveis - o registro fóssil, pela determinação da relação oxigênio 16 para oxigênio 18, mostra que as médias se mantiveram sempre próximas às atuais - é porque a Vida, mais uma vez, achou solução.

Surgiram, nos oceanos, organismos como cocolitos e outros microorganismos; surgiram corais, moluscos e outros animais maiores que fazem carapaças ou estruturas de carbonato de cálcio e magnésio. Imensas jazidas foram acumuladas. A movimentação tectônica mais tarde ergueu muitas delas. Nas falésias dramáticas das Dolomitas, no Tirol, e em milhares de montanhas nos Alpes, Atlas, Andes e demais cordilheiras, estão à vista as estratificações. Em algumas delas, de um só golpe de vista, podemos observar milhões de anos de paciente trabalho de deposição. Um dos espetáculos mais fantásticos deste processo é o Grand Canyon. Foram assim retiradas da Atmosfera gigantescas quantidades de gás carbônico. Mas não bastou a fixação deste gás em forma de carbonatos. Outros organismos tiveram que ajudar no trabalho. Surgiram as primeiras grandes florestas, ainda de plantas no nível evolutivo de musgos e samambaias, de licopódios, cicadáceas, palmeiras, e muitas formas hoje extintas, isto, no Período Carbonífero, uns trezentos milhões de anos atrás. Foram depositadas gigantescas jazidas de carvão mineral e lignito. Em banhados mais recentes cresceram as turfeiras do norte da Europa, Canadá e Sibéria. Na Escócia é fácil observar como ainda hoje crescem.

Quanto ao petróleo e o gás natural, feitos por bactérias, parece haver ainda discordância quanto a época em que se formaram, possivelmente isto aconteceu ao longo de todo o processo evolutivo. Parte dele pode ser remanescente do caldo primordial.

Diminuindo sempre a concentração do gás carbônico na Atmosfera e, com isto, o efeito estufa, foi possível manter constante e em nível apropriado o âmbito de temperaturas, apesar do aumento contínuo do calor do Sol. Não fosse este paciente e coordenado trabalho de bilhões de criaturas através de bilhões de anos, a Terra já seria outra Vênus. Assim como os organismos dos mamíferos e aves têm um mecanismo homeostático (equilíbrio auto- regulado) que mantém a temperatura do corpo independente da temperatura externa, assim a Ecosfera tem sua homeostase térmica própria.

Só quem esta perspectiva alcança compreende o atrevimento da Sociedade Industrial Moderna ao considerar o petróleo e gás natural, o carvão, lignito e turfa simples "combustíveis fósseis".

Longe desta visão imediatista suicida, com a veneração do verdadeiro naturalista, Margulis e Lovelock, diante do incomensuravelmente grandioso do quadro, concluiram que o conceito de Ecosfera precisava ser ampliado.

O novo conceito proposto, que começa a ser aceito pelos grandes ecólogos e que já conquistou a vanguarda do movimento ecologista, é o conceito de

G A I A.

A Ecosfera não é um simples sistema homeostático, automático, químico-mecânico. O Planeta Terra é um sistema vivo, um organismo vivo com identidade própria, o único de sua espécie que conhecemos. Se outras gaias existem no Universo, em nossa ou em outras galáxias, serão todas diferentes. Um sistema vivo tão destacado merece nome próprio. O nome GAIA foi proposto por William Golding, escritor, e lançado por Lovelock e Margulis. É o nome que os antigos gregos, em sua cosmovisão bem mais holística que a nossa, davam à deusa Terra.

É claro que a Terra não é um ser vivo como uma planta ou um animal individual, que nascem, crescem, se reproduzem, envelhecem e morrem, mas é um sistema vivo, como o é um bosque, um serrado ou banhado, porém num nível de organização superior ao destes.

Tornou-se comum a imagem da Terra como uma nave espacial. É uma figura boa diante da visão convencional, na qual a Terra é apenas substrato ou palco para a Vida, e a Vida, para nós Humanos, não passa de recursos. Haja vista nossa atitude diante da Amazônia. Mas a imagem da nave espacial engana. Uma nave tem passageiros. Em GAIA não há passageiros, tudo é e todos somos GAIA. Usando outra imagem, não teria sentido dizer que meu coração ou meu cérebro são passageiros meus. Até a parte mineral, os continentes, as rochas - do ar e da água já não precisamos falar - são parte integrante de GAIA, como o caracol ou a concha o são do molusco. Parece que a deriva dos continentes, causa do vulcanismo e do crescimento de novas montanhas, enquanto as velhas se desgastam, é pelo menos influenciada também pela sedimentação no fundo dos oceanos. Os radiolários e as diatomáceas com suas belíssimas carapaças de sílica, junto com aqueles outros organismos que depositam cálcio, incluindo certas algas marinhas, fazem deposições de quilômetros de espessura no fundo dos mares. Com isto se altera o efeito isolante para o calor do magma e alteram-se as condições de pressão, surgem aqueles fluxos que movimentam as placas continentais. Esta é a reciclagem que acaba devolvendo aos continentes os nutrientes perdidos aos oceanos, dando-lhes rochas novas. Um ciclo que leva uns duzentos milhões de anos.

No organismo de GAIA nós humanos, individualmente, somos como células de um de seus tecidos. Um tecido que hoje se apresenta canceroso, mas que, oxalá, ainda tem cura. Já somos os olhos de GAIA.Com os olhos dos astronautas e nas imagens de satélite, GAIA, pela primeira vez, viu-se a si mesma em toda sua singela beleza - brancos véus lentamente espiralando, ora tapando, ora revelando o azul profundo dos oceanos, o amarelo dos desertos, as diferentes tonalidades de verde; ora confundindo-se com os pólos.

Poucos, pouquíssimos, dão-se conta do monumental, não somente em termos de História Humana, mas em termos de História da Vida, que representa aquela primeira foto de GAIA, ou aquela outra de Meia GAIA subindo solitária no firmamento, negro como piche, da Lua!

Este é um fato totalmente novo! Um momento decisivo na vida de GAIA. Uma situação faustiana. O homem, conhecendo demais, talvez cedo demais, cego de orgulho e com gula incontrolável, desencadeou um processo de demolição que supera todas as crises anteriores.

Como vimos no início, ao apontar a hoje baixa concentração de gás carbônico na atmosfera, a Sociedade Industrial já está interferindo significativamente, contrariando as tendências de GAIA, em um de seus importantes sistemas de controle. A concentração antes do alastramento da industrialização estava próxima de 0,025%. Já conseguimos aumentá-la uns 30% em menos de 200 anos, uma fração de segundos na escala de tempo de vida de GAIA. Talvez a razão porque ainda não estamos sentindo conseqüências muito graves seja só porque, também cegamente, estamos concomitantemente interferindo em outros mecanismos de controle que têm efeito contrário. Estamos aumentando a concentração dos aerossóis* e das poeiras no ar que, refletindo radiação solar, devolvem energia ao espaço.

Aliás, nesta questão do controle térmico pela diminuição da concentração do gás carbônico, GAIA já estava chegando a um limite. Já não pode baixar muito mais esta concentração. Por duas razões muito simples: Se baixar muito mais, as plantas acabarão morrendo à míngua. Para elas o CO2 é o nutriente principal. Só não é mencionado nos manuais de adubação dos agrônomos porque está gratuito no ar e ainda não dá para fazer negócio com ele. A outra razão é que, em termos de diminuição de efeito estufa já não dá para ganhar quase nada com a concentração baixa como está. Talvez seja esta a causa da crise climática de Pleistoceno. Neste último período geológico, durante os últimos três milhões de anos, menos de um dia na vida de GAIA, tivemos as quatro grandes eras glaciais. Quando um sistema homeostático bem equilibrado começa a se desequilibrar, antes de entrar em colapso ou reequilibrar-se, é comum aparecerem vibrações irregulares, com exageros para ambos os lados. Algo deste tipo pode ter acontecido no Pleistoceno. Lovelock gostava de dizer que GAIA estava com febre.

Entretanto, após o fim da última grande glaciação, parece que GAIA já tinha encontrado nova solução**. De lá para cá,um período muito curto, uns l5.000 anos apenas, minutos na cronologia de GAIA, alastraram-se as florestas tropicais úmidas no que hoje chamamos Amazônia, Congo, Índia, Sri Lanca, Bangladesh, Indochina, Indonésia, Oceania, Austrália. As florestas tropicais úmidas têm uma fantástica evapotranspiração. Da água da chuva que sobre elas cai, em menos de dois dias até 75% é devolvida à Atmosfera, formando novas nuvens que voltam a produzir chuva mais adiante. Como mostrou Salati***, as chuvas que caem nas faldas orientais dos Andes estão constituídas de água que, em seu caminho desde as primeiras nuvens dos ventos alíseos na costa Atlântica, caiu e voltou às nuvens entre cinco e sete vezes. As florestas tropicais úmidas estão sobre o Equador, sua influência climática se exerce sobre ambos os hemisférios, fato este hoje lindamente ilustrado, como num filme, nas imagens móveis de satélite nos institutos metereológicos. Ora, estas grandes florestas, para o clima global, são gigantescos aparelhos de ar condicionado. Convém lembrar que as comunidades florísticas e os ecossistemas das atuais florestas tropicais úmidas são muito antigos, evoluiram nos últimos duzentos milhões de anos, o que é novo é sua presente extensão.

* Não confundir com Clorofluorcarbonos - CFCs, estes, em geral, são comumente chamados de aerossóis por serem usados nesta forma. Aerossol se refere à suspensão de pequenas partículas líquidas e/ou sólidas em um gás, como o é a nuvem.

** Quando usamos este tipo de linguagem não queremos sugerir que GAIA toma decisões conscientes, é apenas uma pequena liberdade poética, queremos suscitar emoção.

*** Eneas Salati: Climatólogo da Universidade de Piracicaba, São Paulo, Brasil, foi chefe do INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Mais uma vez, o homem moderno está contrariando os desígnios de GAIA. Em toda a parte estão sendo demolidas as florestas tropicais úmidas, num ritmo que, na década de 80, chegava a alcançar cem mil quilômetros quadrados ao ano. No caso da Amazônia, se for devastado o Estado do Pará, coisa que parece certa até logo após o ano 2000, poderá, quem sabe, ser desencadeado um processo de colapso da grande floresta, pois ela faz seu próprio clima. Onde a floresta desaparece e é substituída por solo nu ou capoeira rala, no lugar da evapotranspiração o solo torrado produz ventos ascencionais quentes. As nuvens se dissolvem, deixa de cair chuva mais adiante. Mas a Hiléia só pode sobreviver com chuvas copiosas.

Sobrarão recursos para GAIA? Ou vamos incapacitá-la? Desde 1975 o clima anda meio caótico no Mundo inteiro. Será mau augúrio?

Por enquanto a intenção expressa da Sociedade de Consumo é continuar demolindo. A ordem é "desenvolvimento" a qualquer custo, quer dizer, tudo o que GAIA fez, será substituído por algo feito pelo Homem, em enfoque imediatista, sem levar em conta os sistemas de controle de GAIA.

Vejamos um raciocínio muito usado por aqueles que querem enriquecer na devastação da Amazônia. Atribuem aos defensores da floresta a afirmação - metafórica- " a Amazônia é o pulmão do Mundo ". Interpretam-na como sinônimo de fábrica de oxigênio. Desde quando pulmão produz oxigênio? Pulmão consome oxigênio. Citam, então, corretamente, ecólogos que mostram que a grande floresta consome exatamente a mesma quantidade de oxigênio que produz. Portanto, segundo eles, não há problema, não vamos morrer asfixiados se a Hiléia ficar reduzida a alguns pontinhos no mapa, que serão então chamados de "reservas ecológicas" ou "bancos genéticos".

Mas, se a Amazônia ou qualquer outro ecossistema em equilíbrio produzisse muito mais ou muito menos oxigênio do que consome, GAIA já teria morrido. GAIA, por uma razão muito importante, desde que inverteu a Atmosfera de reduzinte para oxidante, soube manter sempre a concentração de oxigênio por volta dos 20%. Concentrações mais baixas tornariam difícil a vida animal. Uma vez que tudo está ligado com tudo, todas as formas de vida sofreriam. Por outro lado, concentrações superiores seriam ainda mais perigosas. Facilmente levariam a um holocausto. Já em 25% até folhas verdes, mesmo molhadas, queimariam como papel. Qualquer raio acabaria com toda uma amazônia. é por isso que no avião, quando baixam as máscaras de oxigênio, fica terminantemente proibido fumar. Concentração muito alta de oxigênio poderia, talvez, até levar a um incêndio da própria Atmosfera. Quando os físicos de Los Alamos dispararam a primeira bomba nuclear, sabendo que as temperaturas alcançariam milhões de graus, tinham um medo louco, justamente disto. Assim mesmo, bons aprendizes de feiticeiros que eram, não se contiveram. Felizmente nada aconteceu*.

O equilíbrio aproximado entre produção e consumo de oxigênio, sozinho, não seria suficiente. Sempre há os ecossistemas em fase inicial de sucessão ecológica que podem produzir muito mais oxigênio que o que consomem. Os grandes incêndios, por outro lado, nada produzem, só consomem. Inevitáveis seriam flutuações que poderiam tornar-se perigosas. Mas GAIA, com timoneiros precisamente ajustados controla os grandes e pequenos ciclos bio-geo-químicos.

* Este texto foi escrito em 86. Recentemente me contou um físico que, o que eles temiam não era a combustão química da atmosfera e sim a combustão nuclear do hidrogênio da água da atmosfera. Eles eram bons físicos, mas não entendiam de química.
Recém estamos descobrindo estes sistemas. No caso do ciclo do oxigênio está envolvido o metano, hoje gás raro na Atmosfera e que é produzido por aqueles organismos que conseguiram sobreviver à inversão da atmosfera, retirando-se para os lodos anaeróbios e para o intestino dos animais. o Homem já se encarrega de dar um jeito nisso também. São poucos os banhados no Planeta que não estão ameaçados de "saneamento".

Muito poderia ser dito sobre os demais gases menores, como o ozônio,os óxidos de nitrogênio e de enxofre, do amoníaco, do monóxido de carbono e dos compostos de metila, cada um com sua função definida. Alguns destes ciclos, todos acionados por seres vivos, especialmente microorganismos no mar e no solo, ou por determinadas algas marinhas nas plataformas continentais, têm a ver com outro importante equilíbrio vital - a manutenção da salinidade dos mares em aproximadamente 3%. A origem dos sais no Oceano é a meteorização das rochas. Os óxidos insolúveis acabam formando solo ou, quando são levados pela erosão, vão formar sedimento no fundo do mar, mas os sais solúveis - quando não retidos nos processos vitais - são todos levados ao mar, onde ficam em solução, especialmente o cloreto de sódio. Mas, a evaporação na superfície dos mares que faz as nuvens, só leva aos continentes água destilada. Como se explica, então, que o Oceano já não está tão morto como o Mar Morto no Jordão? Esta é outra linda história que começa a ser desvendada.

Será mesmo acaso tudo isto, como quer a Ciência Moderna que não aceita fins, alvos, intenção no Comportamento do Universo, que postula apenas acaso no surgimento da Sinfonia da Evolução Orgânica, este processo caprichoso que deu origem a milhões de espécies - nós entre elas - de animais, plantas, fungos, protozoários, bactérias, fagos e vírus, em interação multifacetada unitária, uma integração sinergística que nossas melhores cabeças cibernéticas com suas baterias de computadores jamais poderiam ter concebido e cuja beleza a Ecologia apenas vislumbra ?

Por isso, não pode ser verdade aquela idéia fundamental atribuída a Darwin de que na Seleção Natural vence sempre o mais forte, sucumbindo os mais fracos - idéia que muito agrada àqueles que têm ambição de poder, de controle, de dominação. Quanto mais nos aprofundamos na Ecologia, mais nos damos conta que sobrevive o mais ajustado, o que mais harmoniza, que mais ressonância tem com a Sinfonia, entre eles criaturas tão delicadas, tão frágeis e vulneráveis como a orquídea e o beija-flor, a sarracênia e a perereca.

A integração é mesmo anterior ao nascimento do Sistema Solar que já nasceu um bilhão de anos antes do nascimento de GAIA. Não tivesse o Sol com sua coorte de planetas, luas, asteróides e cometas, ao condensar-se de nuvens de gases intersiderais, captado também certa porção de cinzas da explosão de alguma supernova que ocorreu centenas de milhões ou alguns bilhões de anos antes - o Universo tem idade para isto - não teríamos aqui todos os elementos que formam montanhas, mares e ar e dos quais a Vida não pode prescindir, os planetas seriam simples bolas de gás, principalmente hidrogênio e hélio.

Será mesmo acaso tudo isto? Que divino acaso!

Se bem que na Biologia tudo parece ser intencional - o ovo não teria sentido, não fosse para dar origem ao pinto - a maioria dos biólogos tem horror a qualquer sugestão de alvo, de finalidade preconcebida no maravilhoso processo da Evolução Orgânica. Tom Berry, que mereceria ser chamado de "o teólogo da Ecologia", costuma dizer: "It is not intentional, it is not directed, it is creative." (A coisa não é intencional, não é dirigida, é criativa).

Mas o que vamos fazer primeiro: desvendar esta Maravilha, ou vamos continuar como um câncer no organismo de GAIA, devastando, fazendo extinções em massa, toxificando até que não haja volta?

Quando daquela ameaça mortal que foi a crise da poluição do oxigênio, que quase extinguiu as formas de vida então existentes, GAIA, em vez de sucumbir, soube tirar proveito. Transformou um inimigo feroz em poderoso aliado, fator de mais vida, de vida mais complexa, mais perfeita, mais diversificada, mais harmônica - uma estonteante transcendência!

Estaremos, quem sabe, dois e meio bilhões de anos mais tarde - o tempo necessário para que evoluísse uma das coisas mais complicadas que GAIA até agora produziu: o cérebro humano - diante de uma nova transcendência?

Neste momento, nosso comportamento canceroso representa um perigo mortal para GAIA. Mas isto não é inevitável. Se soubermos usar sabiamente o potencial intelectual que ela nos propiciou, assim como a fabulosa tecnologia que daí surgiu, poderemos até mesmo assumir o controle consciente de GAIA. Sistema nervoso autônomo GAIA já tem, seríamos a massa cinzenta do cérebro de GAIA. A moderna eletrônica, com seus computadores sempre mais perspicazes, comunicação global instantânea por satélite, já começa a estruturar algo que quase poderia tornar-se um meta-sistema-nervoso planetário. Mas o conteúdo deste fluxo nervoso terá que mudar. Se conseguirmos esquecer nossas querelas, acabar com a prostituição da Ciência para a demolição da Vida e para os delírios da corrida armamentista e da "guerra nas estrelas", se conseguirmos colocar nosso gênio em ressonância com GAIA, só o futuro poderá dizer das alturas alcançáveis.

Entretanto, a continuar a cacofonia atual, o desastre será total. Para nós! Talvez nem tanto para GAIA. GAIA tem muitos recursos, tem muito tempo. Com novas formas de vida encontrará saída. Sobram-lhe ainda uns cinco bilhões de anos até que o Sol, em sua penúltima fase evolutiva, ao tornar-se "gigante vermelho", venha expandir-se até aqui, antes de apagar-se lentamente. GAIA será recirculada nos gases incandescentes do Sol, assim como cada um de nós seremos recirculados no solo.

E as conseqüências éticas, filosóficas, religiosas de tudo isto?

Pena que as Igrejas não atinem. O índio atinava!

José A. Lutzenberger JAL/am.-25.01.96

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