segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Salvar o objeto técnico: Entrevista com Gilbert Simondon


Compartilhado por Flávia Vivaqua em corocoletivo@yahoogrupos.com.br


Entrevista com Gibert Simondon



Trad. Thiago Novaes









Quando falamos das técnicas, é geralmente de um ponto de vista exterior a elas, seja aquele da organização do grupo social, das condições de vida ou do trabalho dos indivíduos, do equilíbrio da natureza, etc. Trata-se então de discutir a eficácia, a utilidade das ferramentas e das máquinas. Há mais de 20 anos, Gilbert Simondon - titular da cadeira de psicologia geral na Universidade de Paris-V - propõe uma abordagem diferente, não utilitarista. Contra a imagem do objeto estético do pensamento contemporâneo, que reconhece a autonomia e especificidade, ele argumenta que existem objetos técnicos[1]. Eles existem e valem por si mesmos, de uma maneira singular, exigindo estudo próprio.







Anita Kechickian: Você escreveu, em 1958, que existia uma alienação existente produzida pela falta de conhecimento do objeto técnico. É ainda nesta perspectiva que continua a sua investigação?



Gilbert Simondon: Sim, mas eu a amplio dizendo que o objeto técnico deve ser salvo. Ele deve ser salvo de seu estado atual que é miserável e injusto. Este estado de alienação se encontra mesmo, em parte, em autores como Ducrocq[2] que fala “dos escravos técnicos”. É preciso modificar as condições nas quais ele se encontra, nas quais é produzido e nas quais ele é, sobretudo, utilizado, porque ele é utilizado de forma degradante. O automóvel, objeto técnico do qual todo mundo se serve, é algo que degrada em poucos anos, porque a pintura não se destina a resistir às intempéries, e porque ela é colocada depois de terem sido feitas as soldas elétricas. De maneira que no interior da montagem da carroceria se situa uma ferrugem crescente que destruirá o carro em alguns anos, enquanto o motor ainda está bom. Este simples fato leva à perda de toda a construção técnica. É contra um tal esmagamento que me insurjo.



Anita Kechickian: Você já não leva mais em consideração a alienação do homem?



Gilbert Simondon: Levo, mas outros pesquisadores também a usam. Penso notadamente nos movimentos fisiocráticos contemporâneos (os ecologistas) que se ocupam em salvar o homem, para lhe dar forma de libertação. Os mesmos não se interessam, ou muito pouco, pelo objeto técnico, que continua abandonado.



Anita Kechickian: Quem se ocupa disso?



Gilbert Simondon: Muitas pessoas, muitas vezes por profissão, tais como os engenheiros e técnicos. Há também os comerciantes, mas eles não são talvez aqueles que se ocupam melhor, porque eles falam disso com segundas intenções. Eu vi um anúncio exaltando o roqueiro de um certo automóvel. Este tipo de embelezamento do objeto técnico por algo que não seja a tecnicidade mesma deve ser recusado. Concordo que o objeto técnico seja estetizado e mesmo erotizado, mas no interiror de sua própria margem de indeterminação. De fato, no objeto técnico, nem tudo é coalescente com tudo, existe alguma incerteza que pode ser melhor preenchida por um arranjo não só funcional, mas agradável aos olhos. Um roqueiro não é em si mesmo um objeto técnico. Ele não tem nenhuma funcionalidade própria. Ele só ganha sua funcionalidade em um carro. É por isso que considero que não deve ser tomado como motivo para a venda.



Anita Kechickian: A que você atribui essa alienação do objeto técnico?



Gilbert Simondon: Ela provém essencialmente do que é produzido para ser vendido. E no preços bem acima de seu preço de custo. Em um automóvel, a necessidade de placas aplainadas, isto é, acabadas de uma forma agradável, representa a metade do preço que será dado à aparência. Há algo de errado [nisso]. Neste sentido, um caminhão me parece mais puro do ponto de vista estético e técnico que um carro de passeio.



Anita Kechickian: Dito de outra maneira, o objeto técnico se tornou um objeto de consumo como outro qualquer?



Gilbert Simondon: Há um enorme desperdício incentivado pelo técnico ou pelo fabricante. A forma do não-desperdício já existe em matéria de energia, por exemplo, mas há uma espécie de frenesi da novidade que é uma verdadeira monstruosidade. A motocicleta foi durante muito tempo um objeto despojado. Hoje se tornou um objeto de consumo que mudamos de um ano para outro o conjunto de cores, a cromagem ou localização de um certo comando. Assim, ela acaba por "datar", mesmo que não esteja de todo ultrapassada do ponto de vista de suas características essenciais.



Anita Kechickian: O que seria uma novidade propriamente técnica?



Gilbert Simondon: As principais melhorias. Por exemplo, seria muito melhor em vez de modificar a forma do bagageiro de uma motocicleta, que os freios duplos agissem simultaneamente sobre a roda dianteira e a roda traseira. Há tantas coisas por resolver e que seriam mais positivas a estudar, entre outras, por segurança.



Anita Kechickian: Você opõe assim as simples mudanças e as invenções, as criações, que são apenas técnicas?



Gilbert Simondon: De fato. Assim como há um risco em toda a criação, penso que há um risco das técnicas. Certamente a inflação dos objetos técnicos atualmente é um, não apenas aquele dos armamentos ou do consumo excessivo. É por isso que eu disse anteriormente, é preciso salvar o objeto técnico, uma pouco como é [levantada a] questão de salvação humana nas Escrituras. Eu acredito que há do humano no objeto técnico, e este humano alienado pode ser salvo com a condição de que o homem seja benevolente com ele. É particularmente importante jamais condená-lo. No Antigo Testamento, há uma espécie de ciúme do Senhor para com a criatura. E dizemos que a criatura transgride. Mas não seria toda a criação uma transgressão? Eu acredito que a transgressão, cuja origem é a serpente, é a criação de uma pessoa. Se Adão e Eva não tivessem jamais saído do Jardim do Éden, eles não teriam se tornado pessoas humanas ou inventores. Seus filhos foram um pastor e o outro um agricultor. As técnicas nasceram lá. Finalmente, as técnicas e a transgressão me parecem ser a mesma coisa. Antigamente os ferreiros eram considerados malditos.



Anita Kechickian: A transgressão ainda é possível no mundo contemporâneo que valoriza a mudança e a inovação?



Gilbert Simondon: Este é o caso do engenheiro da Ford que, encarregado de outros, para estudar as máquinas de embalar pneus, declarou que nada iria requerer um tal condicionamento, que não era necessário embrulhar. Ele transgrediu porque ele estava lá para examinar os aparelhos e os reconheceu como inúteis.



Anita Kechickian: Neste caso, podemos dizer que a tecnologia, isto é, o estudo das realidades técnicas, lida apenas com a sua invenção ou sua gênese?



Gilbert Simondon: A verdadeira tecnologia é uma reinvenção. Como há formas diferentes de progresso das técnicas, existem vários tipos de tecnologias. Ela é obrigada a avançar passo a passo na indução quando ela considera um problema que foi resolvido por via indutiva. O conhecimento é obrigado a imitar em uma certa medida o processo. Se o estudo é indutivo, é que o objeto foi feito de várias maneiras. Por exemplo, as minas não são uma realidade que foi concluída na primeira vez. De 1550 até hoje têm se sucedido uma série de aperfeiçoamentos. No início, se faziam poços inclinados onde havia degraus. Em seguida, se fizeram poços cada vez mais próximos onde passavam cargas guiadas cada vez mais importantes, de ar, etc. No entanto, pode-se conhecer o objeto técnico por dedução quando ele foi inventado como conseqüência de um axioma. Por exemplo, o rádio é uma invenção do cientista (savant). Não podemos pensar nele senão dedutivamente, a partir da propagação prevista por Maxwell, para seu atual deslocamento.



Anita Kechickian: O objeto deduzido é então um objeto pensado. Ele não apresenta, por isso mesmo, incovenientes?



Gilbert Simondon: Este o laço com o concreto que falta na dedução. Para imitar na superfície da terra as condições de um vôo espacial, pesquisadores dos EUA fizeram perecer três pilotos: eles alimentaram a cabine com oxigênio puro. No cosmos, na ausência de gravidade, podemos fornecer oxigênio puro porque um eventual começo de incêndio queima no local sem se propagar e sem aquecimento (por falta de convecção), mas a situação terrestre da tentativa o torna terrivelmente perigoso, porque mesmo o metal da cabine pode queimar. Uma simulação sobre um modelo poderia talvez ter evitado o acidente. Da mesma forma, julgar o Titanic inaufragável porque equipado com anteparas estanques era uma dedução incompleta. O fato, excepcional, que um iceberg pudesse rasgar o casco de 80 metros não foi previsto. A dedução é necessária, mas ela não é suficiente porque é rígida e lacunar. Penso que há diferentes etapas no progresso técnico, e a última é quando o objeto se torna o mais inofensivo o possível. O que ele não é quando sai das mãos do dedutor.



Anita Kechickian: Esses são os únicos modos de invenção?



Gilbert Simondon: Há uma terceira modalidade de progresso que eu tento pensar sob a noção de transdutividade. É a passagem de um conjunto constituído a um conjunto a constituir. Neste sentido é transdutivo o que é transmitido passo a passo, o que se propaga eventualmente com amplificação. É a passagem do triodo (tubo de eletrônico) para o transistor, isto é, de um sistema a outro, onde as tensões e correntes não são as mesmas. Outro exemplo seria o motor do avião advindo sem dúvida do motor da moto, leve, confiável e que não requer refrigeração a água. Em todos os casos, recorremos a uma analogia real onde se levam em conta as diferenças, e não um simples argumento aproximativo.



Anita Kechickian: Mais cedo você se referiu aos ecologistas. Não há, entre alguns deles, uma nova concepção da técnica? Eu penso notadamente na solar.



Gilbert Simondon: A solar é o futuro porque é a única energia virtualmente inesgotável. Os ecologistas pensam a técnica como em harmonia com a natureza. É um pensamento antitecnocrático. Tudo que eu peço a esses movimentos é que não rejeitem misticamente a tecnicidade. Eles devem aprender ciências ecologistas, como Dumont, por exemplo, condições em que o objeto técnico não agride a natureza. Se lavramos um solo que tem

tendência à laterização, esgotamos a terra em poucos anos. O que convém é que o arado o impede de ficar como um tijolo. Eu concordo totalmente com a necessidade de adaptar o objeto técnico à natureza.



Anita Kechickian: Mas ele não deve também ser adaptado ao homem?



Gilbert Simondon: Sem dúvida, e é por isso que retenho a ideia de convivialidade de Illich para quem os objetos técnicos devem ser feitos para o homem e não para escravizar. Aqui podemos saudar o aparecimento no mercado de certas ferramentas feitas para as mulheres que, mais fracas, mas mais rápidas, possam utilizá-las. Ao contrário, não se deve introduzir as técnicas de força em uma população que não a quer. É disto que Illich se queixa sobre a técnica, cujo impacto ele teme sobre uma determinada sociedade. É preciso observar que os testes de arar com trator e carroça foram feitos durante a era colonial, onde se tentou introduzir a agricultura pesada ​​em uma área onde ela foi catastrófica. O arado que faz movimentar sem voltar ao solo (um pouco como uma grade) se encontra adaptado não só para uma população que limita seu uso, mas também para um país, em suas condições geológicas.



Anita Kechickian: Existem então sociedades que se recusam certos objetos técnicos. Podemos ser insensíveis aos objetos técnicos?



Gilbert Simondon: Sim. As populações ditas primitivas são muitas vezes insensíveis aos objetos técnicos. Às vezes, elas se interessam por eles, mas em um sentido que nos ultrapassa. Na Nova Zelândia, por exemplo, os nativos construiram espécies de torres de controle e pistas, esperando que um avião fosse pousar em sua aldeia. Eles consideram que os aviões são o produto de trabalho de seus antepassados, e que eles lhes pertencem. É por isso que eles querem chegar a fazê-los aterrissar. Então, para tentar, eles fazem o seu caminho. É uma variante do "Cargo-Cozido."



Anita Kechickian: Entre a indiferença e a superestimação, há um valor inerente a um objeto técnico?



Gilbert Simondon: Sobre este ponto as tradições diferem. O Antigo Testamento não parece ter reconhecido para a técnica um valor outro que não o utilitário. Em outras culturas, você encontra, por exemplo, o mito de Prometeu, que não tem o mesmo sentido. Eu acho que, quanto a mim, o objeto técnico tem muitos valores. Primeiro, ele é algo que provém de uma atividade muito antiga do homem, e que é provavelmente aquela que o tirou da barbárie. Mas há também o valor daquilo que é o resultado de uma concretização de origem humana.



Anita Kechckian: Finalmente, o que merece ser salvo no universo das técnicas?



Gilbert Simondon: O que merece ser salvo é o coração de cada uma das invenções. Se a locomotiva a vapor merece ser salva é menos por sua grande caldeira que por sua possibilidade de frear continuando a andar, simplesmente invertendo o vapor. Isso permite desacelerar suavemente, sem risco de fazer descarrilar a máquina (graças à coulisse de Stephenson, em particular). É preciso conservar o material do passado, porque ele representa uma possibilidade de retomada, e não apenas para constituir uma arqueologia. O transformador de Faraday (1831) era em forma de um toro. Por volta de 1870-1880, a construção industrial reteve as formas cúbicas. É apenas por causa das exigências de alta fidelidade e os dos melhores rendimentos que voltamos aos transformadores toroidais. Assim, a forma do toro inventada por Faraday não se destinava a figurar no museu do começo das técnicas, era uma forma racional merecendo ser retomada. As técnicas nunca estão completamente e para sempre no passado. Elas contêm um poder esquemático inalienável e que merece ser conservado, preservado.











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[1] 1. Gilbert Simondon, Du Mode d’Existence des Objets Techniques, Aubier - 1958, repr. 1969, 1972. G. Simondon também publicou L’individu et sa genèse physico-biologique (individuation à la lumière des notions de forme et d’information), PUF, 1964. Veja também sobre este tema o apanhado sobre “La culture technique”, Esprit, outubro de 1982.



[2] A. Ducrocq, Energia, Vitória, Flammarion, 1980.



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SER(ES) AFINS