domingo, 27 de dezembro de 2009

Autopoiese Intrapessoal - Vladimir Dimitrov e Robert Ebsary

AUTOPOIESE INTRAPESSOAL

Vladimir Dimitrov e Robert Ebsary

O que é autopoiese intrapessoal

Humberto Maturana e Francisco Varela introduziram a idéia de autopoiese como uma forma de
organização sistêmica, na qual os sistemas produzem e substituem seus próprios componentes,
numa contínua articulação com o meio. Os sistemas autopoiéticos são autocatalíticos, isto é, não
apenas estabelecem, mas também mantêm uma fronteira peculiar com o mundo circundante —
fronteira essa que simultaneamente os separa do meio ambiente e o conecta com ele. Os seres
humanos são exemplos de sistemas autopoiéticos — eles se reproduzem numa co-evolução
incessante com o meio: as pessoas respondem, (ou seja, reagem, adaptam-se) àsmudanças do
ambiente e este responde (reage, "adapta-se") à intervenção humana.
Cada indivíduo tem característica que refletem sua estrutura interna peculiar. Essa estrutura está
aberta às mudanças: inevitavelmente evoluímos, no curso de nossas vidas. Como as pessoas
dividem entre si o que experimentam e o que sabem (ou pensam que sabem) acerca de si mesmas e
do mundo, muitas semelhanças se originam das maneiras pelas quais elas vêem, interpretam e
entendem os fenômenos vitais. Mesmo assim, cada indivíduo expressa seu self como uma
personalidade única, desde a infância até a velhice. Em todo ato físico, emocional, mental ou
espiritual, o self de cada indivíduo reproduz a si próprio, mantendo uma fronteira peculiar com o
mundo circundante e "evoluindo" em harmonia com ele. A reprodução e evolução do self de cada
indivíduo, em conexão vital com o seu meio ambiente, é o que chamamos de autopoiese
intrapessoal.
O self individual
Segundo as antigas escrituras védicas, o self é o gênio fundamental e supremo da natureza, que
espelha a sabedoria do cosmos. Esse gênio está dentro de cada um de nós, como parte de nosso
esquema interno, e não pode ser apagado. Uma definição científica do self pode basear-se na
semiótica: o self individual surge como uma escolha conceitualizada de indicadores que traduzem,
para usar uma boa analogia, a sensação que temos de estar "em casa" com nossos sentimentos e
pensamentos. Por meio do estudo dessa escolha, e relacionando-a às condições espaciais e
temporais sob as quais ela foi feita, o indivíduo pode buscar a sua identidade e autenticidade.
A busca da identidade e da autenticidade conduz a um ícone, que representa um signo do self de
cada um. Esse ícone evolui com o correr do tempo. Entender o que ele significa a cada instante
constitui a essência do autoconhecimento — o processo central da autopoiese intrapessoal.
Autoconhecimento
Trata-se de um processo que inclui três vertentes:
1. Conhecimento do ideal (CDI), que busca respostas para a questão: "Que espécie de
personalidade ideal eu gostaria de desenvolver (nutrir, fazer crescer, concretizar) em mim
mesmo?"
2. Conhecimento dos obstáculos no caminho para o ideal (COI). Aqui, o objetivo é responder à
pergunta: “Que tipo de obstáculos (externos ou internos) me impedem de alcançar
(desenvolver, concretizar) o meu ideal?”.
3. Conhecimento da energia individual (CEI). Esse conhecimento procura respostas para a
indagação: “Como posso ampliar e utilizar melhor o meu potencial (poder, força de vontade,
determinação) para lidar com (ou superar) os obstáculos que há no caminho para o meu
ideal?”.
Como as três gunas (termo sânscrito para designar as qualidades fundamentais da natureza
humana, descritas na antiga filosofia iogue de Patanjali), as três vertentes do autoconhecimentoJosé JÚLIO Martins TÔRRES – Web Site: www.juliotorres.ws – E-mail: juliotorres@juliotorres.ws – Blog: blogjuliotorres.blogspot.com 2
jamais estão em equilíbrio: elas mudam sempre, de modo que a cada momento uma delas
prevalece. Se predomina o conhecimento do ideal (CDI), estamos com freqüência num estado
contemplativo ou onírico — seja gerando ativamente idéias, planos, visões e cenários de futuro,
seja imaginando passivamente que estamos em algum estado ou condição ideal. Caso predomine o
conhecimento dos obstáculos no caminho para o ideal (COI), é possível que nos sintamos
deprimidos: podemos estar cônscios do quão difícil seria alcançar o estado ideal (tal como o vemos
em nosso sonhos, planos e visões) e de quanto esforço, conhecimento e vigilância seriam
necessários para mantê-lo. Na situação em que prevalece o conhecimento da energia individual
(CEI) estamos em geral num ânimo ativo e criador — agimos na direção de pôr em práticas as
nossas idéias, planos e sonhos.
Como de costume, as três vertentes acima interagem mutuamente por meio de vários ciclos de
feedback positivo e negativo. O caminho mais promissor para a auto-realização e o crescimento
pessoal parece ser o feedback positivo entre o CDI e o CEI. A imagem do ideal estimula as ações
humanas e estas o tornam mais real, próximo e alcançável. Um círculo de feedback negativo entre
o CEI e o COI parece agir contra a auto-realização e o crescimento individual. Quanto menos
ativos estamos, mais obstáculos surgem no caminho para os nossos ideais e vice-versa.
As vertentes de autoconhecimento e seus modelos interativos emergem da conexão estrutural com
o meio ambiente, onde ocorre a experiência humana. A esse meio damos o nome de espaço
experiencial humano. Ele proporciona o contexto no qual a autopoiese intrapessoal se manifesta.
O espaço experiencial humano
Examinemos as principais características desse domínio.
O espaço experiencial humano é caótico, porque:
a. Não podemos predizer quais os padrões de experiência que vão surgir em nossas vidas, nem
mesmo em curtíssimo prazo;
b. Mudanças mínimas nas narrativas que fazemos a nosso respeito, e sobre o mundo em que
vivemos, podem provocar alterações dramáticas em nossa experiência cotidiana;
c. Modos de comportamento aparentemente simples e rotineiros podem levar a modelos
experienciais extremamente complexos.
O espaço experiencial humano é multidimensional, porque:
a. Um número quase infinito de fatores inter-relacionados, "internos e externos", contribui para a
nossa dinâmica experiencial;
b. Forças auto-organizadoras emergem da turbulência dessa dinâmica e são responsáveis pela
evolução humana.
O espaço experiencial humano não obedece à linearidade do tempo:
a. Tanto o passado quanto o futuro se encontram nos modelos experienciais do tempo presente;
b. A natureza de um evento experiencial reflete diretamente a percepção humana num
determinado instante.
Atratores estranhos 1 (ou atratores caóticos) surgem e desaparecem no espaço experiencial humano:
a. A vida humana se bifurca de um atrator para outro;
b. Os atratores de nossa experiência sensorial são estruturas dissipativas, isto é, vão diminuindo e
se dissipando à medida que convergem para o atrator final, que é a morte física.
A experiência humana tem uma tendência a se fixar num atrator estranho específico do espaço experiencial humano:
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a. Com muita freqüência este atrator é aquisitivo, orientado para o ganho — ligado à busca do
bem-estar material (ou da fama, do poder, do prazer, do conhecimentos etc);
b. A força auto-organizadora que emerge desse tipo de atrator mantém sempre a mesma direção
— no caso, para a geração cada vez maior (de dinheiro fama, prazer, conhecimento etc);
c. Com a dissipação (retração, diminuição) do poder do atrator, a intensidade de sua força auto-organizadora
diminui.
Dois fatores — inspiração e intenção — desempenham um papel crucial nos processos de
autoconhecimento e são indispensáveis para as manifestações externas e internas da autopoiese
intrapessoal.
Inspiração
A inspiração proporciona energia ao espaço experiencial humano e prolonga a vida dos atratores
que ali pulsam. Ela pode também fornecer a energia necessária para um salto súbito (de um atrator
para outro). O impacto crucial da inspiração implica que ela pode provocar a emergência de novos
atratores e, assim, constitui um poderoso estimulador da criatividade humana.
Como a criatividade, a inspiração ocorre espontaneamente em nosso espaço experiencial. Sabemos
que buscar inspiração ou pretender ser espontâneo é algo que não funciona na prática. Pelo
contrário, iniciativas como essas criam obstáculos à deflagração do flash inspirador. Entretanto, há
muitos catalisadores poderosos da inspiração, sejam eles externos (belos cenários, personalidades
marcantes, música, quadros, leituras etc), ou internos (realizações individuais, força de vontade,
experiências amorosas, fé, esperança etc). Diferentes catalisadores podem ter efeitos inspiradores
diversos em diferentes indivíduos.
A dinâmica de qualquer atrator orientado para os ganhos materiais no espaço experiencial humano
(mesmo os ligados à acumulação do conhecimento) pode ser reforçada, mas nunca inspirada. A
fixação a um determinado atrator não pode ser inspirada. Quando se tenta reforçá-la, em geral o
resultado é a exaustão desse atrator. No entanto, um ato de genuína inspiração pode ajudar uma
pessoa a resistir às forças de algum atrator prejudicial ao corpo e à mente, e assim livrá-la de
fixações excessivas. (Os Alcoólicos Anônimos são um exemplo de inspiração espiritual, que ajuda
as pessoas a lidar com o poder prejudicial do alcoolismo). Qualquer esforço espiritual genuíno
necessita de um lampejo de inspiração, do contrário perde em sinceridade e fenece rapidamente.
A inspiração é necessária para proporcionar energia à procura da identidade e da autenticidade, que
por sua vez são importantes para a busca auto-realização, iluminação e sabedoria. Não se trata de
um fenômeno "logocêntrico", isto é, ela não se baseia em nenhum sistema logicamente consistente
de pensamento, que proclama sua legitimidade amparando-se em proposições externas e
universalmente válidas. Fundamenta-se, ao contrário, em lógicas humanas e autoconstituídas, que
são circulares, auto-referenciadas e portanto paradoxais.
Por ser estimuladora da criatividade, a inspiração precisa ser intermitente (descontínua) em termos
de causalidade: as cadeias causa-efeito se desfazem diante de sua lucidez. Qualquer análise a
posteriori de como a inspiração funciona possivelmente revelará relações de similaridade
geométrica entre trajetórias experienciais, e não ligações de coerência entre causas físicas.
Portanto, os mecanismos geométricos parecem ser adequados para "mapear" (localizar) eventos
inspiradores no âmbito das dinâmicas experienciais.
Intenção
Em contraste com a inspiração, a intenção é um fenômeno logocêntrico, ou seja, baseado em um
sistema logicamente consistente de pensamento. O pensamento lógico, a análise causa-efeito e a
acumulação de conhecimentos teóricos e práticos nos ajudam a determinar nossas metas,
propósitos e objetivos, e a escolher as abordagens por meio das quais eles podem ser alcançados. A
intenção orienta os fluxos de energia no espaço experiencial humano. A força de vontade
individual é diretamente responsável pela manutenção da intencionalidade humana. Sem ela (e sem José JÚLIO Martins TÔRRES – Web Site: www.juliotorres.ws – E-mail: juliotorres@juliotorres.ws – Blog: blogjuliotorres.blogspot.com 4
todos os demais esforços físicos e mentais dela emanados) a energia da inspiração se dissolve
irreversivelmente.
A inspiração faz nascer novos atratores no espaço da experiência humana, mas é a intenção que
escolhe para onde deve se orientar a nossa atividade. A mera geração de muitos atratores, sem que
sejam desenvolvidos esforços suficientes para assimilar suas finalidades e entender a sua natureza,
pode ser muito destrutiva. Na antiga fábula, o jumento morre de fome porque é incapaz de escolher
entre duas fontes atraentes de alimento. Na fábula do nosso tempo, a humanidade está matando o
seu meio ambiente (e portanto a si própria), porque é incapaz de entender a natureza perigosa de
muitos dos atratores criados pelo pensamento linear atualmente dominante, e também porque está
fortemente orientada (de forma exaustiva e competitiva) para o ganho e a acumulação de bens
materiais, prestígio e prazer.
A compreensão dos atratores que atuam no espaço experiencial humano requer um certo esforço.
Entretanto, antes disso é necessária a intenção de estarmos atentos ao que acontece em nossas
vidas. Em sua maior parte, os eventos da vida humana são extremamente sutis e ligados às
delicadas esferas dos mundos mental, emocional ou espiritual de nossa individualidade. Para poder
sentir e entender o que acontece nesses domínios, precisamos de extrema atenção, vigilância e
cuidado. Essas qualidades devem ser intencionalmente descobertas em nosso íntimo e por nós
mesmos. Ninguém de fora pode injetá-las em nós, tornar-nos cônscios do que acontece em nosso
espaço experiencial interior. Esse espaço é sagrado, e só nós próprios podemos ter acesso a ele —
o espaço sagrado interior de um indivíduo é o lugar onde funciona a sua autopoiese intrapessoal.
"Não me siga, siga a você mesmo"
Essa frase famosa é de Nietzsche. Ela se relaciona fortemente com o funcionamento da autopoiese
intrapessoal. Significa que o processo autopoiético que se manifesta num determinado indivíduo
não pode ser transplantado para o espaço interno de outro. Se você segue os outros em vez de ser
você mesmo, perderá rapidamente a sua centelha e deixará de refletir a luz de sua individualidade.
Sem esta, não há auto-atenção, crescimento pessoal nem progresso na vida.
Seguir outra pessoa (seja mentalmente, emocionalmente ou espiritualmente) significa copiar,
imitar ou identificar-se com o mecanismo de autopoiese intrapessoal do outro e esquecer o seu self
real. Essa circunstância pode resultar em conflitos fatais entre o self e a mente (confusão de
pensamentos), entre o self e o coração (confusão de sentimentos) e entre o self e o espírito
(confusão na busca da identidade). A autopoiese intrapessoal precisa de liberdade para funcionar.
A partir do momento em que nos rendemos a algum outro self, nossa liberdade é perdida e nos
tornamos incapazes de auto-expressão. A falta de liberdade torna a autopercepção impossível e
resulta na perda de oportunidades individuais para o autoconhecimento, auto-realização e
crescimento.
Capacidade de Aprender
A capacidade individual para a aprendizagem é crucial para o estabelecimento, seja ele espontâneo
ou intencional, de conexões e interdependência entre os eventos experienciais e seus modelos e
processos. Se encararmos os eventos e os processos como fenômenos interconectados, poderemos
extrair deles muitos significados e, dessa maneira, utilizá-los como lições pessoais de vida.
Infelizmente, nossa capacidade para apreender o significado de nossas experiências é bastante
limitada. Somos capazes de refletir apenas sobre os pontos de mutação globais de nossas vidas, e
eles são muito poucos. Há uma infinidade de eventos minúsculos, de difícil percepção, que
acontecem incessantemente e influenciam de modo decisivo o nosso modo de viver. É possível
aprender a percebê-los? A resposta positiva se relaciona, mais uma vez, com o despertar da
percepção.
A percepção humana é infindável. Uma vez aberta, ela se espraia e ajuda a ver mais e mais as
coisas que acontecem em nosso cotidiano — mas não a percebê-las como acontecimentos isolados José JÚLIO Martins TÔRRES – Web Site: www.juliotorres.ws – E-mail: juliotorres@juliotorres.ws – Blog: blogjuliotorres.blogspot.com 5
e insignificantes, e sim como constituintes vitais de uma teia integral e dinâmica, que pulsa em
cada um de nós e daí se estende a todas as criaturas animadas e inanimadas do Universo.
Nascemos para perceber a nós mesmos. O que precisamos é aprender como fazer emergir essa
propriedade inerente, como retirá-la de debaixo das camadas de preconceitos, estereótipos, hábitos
e ignorância, que se acumularam durante anos e anos de obediência cega a instruções alheias, ou
no desempenho de atividades nas quais nos comportamos como robôs, no bojo de atratores
orientados para ganhos exclusivamente materiais. As técnicas de concentração, contemplação e
meditação, especialmente ajustadas à natureza de cada indivíduo, podem ajudar de modo decisivo
no aguçamento de nossa capacidade de aprender a partir dos eventos da vida, não importando o
quão insignificantes eles pareçam ser.
Conclusão
De todas as experiências que podemos viver, a do nosso self interior é a mais importante. Nossos
corpos estão sempre mudando. Nossas mentes, com seus pensamentos, sentimentos e desejos,
também vêm e vão. Num caso e no outro, trata-se de experiências fechadas no tempo e no espaço:
não devem ser confundidas com as pessoas que as experimentam.
Deepak Chopra observa que "aquele que passa por uma experiência está além do tempo e do
espaço. Representa o fator atemporal que há em toda experiência limitada pelo tempo. É ele quem
sente o que está por trás dos sentimentos, quem pensa os pensamentos, quem anima os nossos
corpos e mentes". Ele é o nosso self. Sua reprodução e evolução constitui um entrelaçamento
indissolúvel com o Universo e está no centro da autopoiese intrapessoal, cujo entendimento
equivale ao entendimento de nós mesmos — e essa é a mais elevada das compreensões.
Nota
1. Um atrator é um centro para onde determinadas energias são atraídas. Por exemplo, a aquisição de dinheiro, poder e
bens materiais é o atrator para onde se dirige grande parte das energias da nossa cultura. Os atratores são estruturas
importantes na teoria do caos e dos fractais. Este termo vem do latim fractus, que significa irregular e fragmentado. Os
fractais são figuras representativas da geometria do caos e mostram que nele há também uma ordem. Num fractal, cada
parte reproduz com exatidão todas as características da totalidade. Os sistemas dinâmicos (os seres vivos, por
exemplo) podem assumir comportamentos incertos e caóticos, que os físicos e matemáticos representam graficamente
por meio de fractais — os chamados "atratores estranhos" ou "atratores caóticos".
Referências bibliográficas
MATURANA, H. and VARELA, F., 1987. The Tree of Knowledge. Boston: Shambala.
LUHMANN, N., 1990. Essays on Self-Reference. New York.
McNEIL, D. and DIMITRO, V., 1998. Topology of Uncertainty, in Fuzzy System Design: Social and Engineering
Applications, Ed. L.Reznik and V. Dimitrov, Heidelberg: Physica Verlag.
CHOPRA, D., 1994. Journey into Healing. New York: Harmony Books.
(Março, 2000)
VLADIMIR DIMITROV é pesquisador do Center for Systemic Development da University of Western Sidney –
Awkesbury, Austrália. O co-autor deste estudo, ROBERT EBSARY, já falecido, pertencia à mesma Universidade.

Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós- Moderna - João Maria André

DA MÍSTICA RENASCENTISTA À RACIONALIDADE

CIENTÍFICA PÓS-MODERNA -

Revista Filosófica de Coimbra a-7 vol 4 (1995)pp 67-101

(A propósito da articulação entre Ciência,
Filosofia e Misticismo em Nicolau de Cusa)

JOÃO MARIA ANDRÉ

Introdução

1.O homem é hoje convidado a interrrogar-se na sua relação com a
natureza a partir de múltiplos lugares,de pontos perdidos em diver-
sificados caminhos em que se enredou a nossa ligação ao mundo e
simultaneamente o nosso afastamento dele.E dessa interrogação despertam
diferentes olhares e díspares sentimentos:por um lado o reconhecimento
do triunfo da razão científico-técnica que realizou o sonho de Descartes
de tornar o homem dono e senhor da natureza concretizado através do
projecto de F.Bacon de identificação entre saber e poder;por outro lado,o empobrecimento resultante dessa realização vislumbrado num desen-
canto perante a fria realidade quantitativa e numérica em que se
transformou a terra,que,de nossa morada e habitação,passou a objecto
manipulável num tempo vazio e num espaço reduzido às linhas,superfícies
e volumes,únicas letras constitutivas do alfabeto com que Galileu e
Newton,acompanhados por Descartes e os seus mais ou menos anónimos
discípulos a procuraram ler e conhecer.Nesta dupla sensação de assombro
e empobrecimento adivinha-se uma dupla ruptura com a qual nos vemos
confrontados no final deste Século XX:em primeiro lugar,a ruptura entre
a natureza e a cultura,em que aquela se reifica perante o símbolo do
humano que é a segunda,e,depois,entre cultura e tecno-ciência,em que
esta se desenvolve e autonomiza como a mão manipuladora da primeira,
que assim parece permanecer limpa e livre de contaminações pragmáticas
e utilitaristas e desenvolver-se na promoção do humano na sua integridade
e plenitude.

A vocação do saber,inscrito na ciência,a transmutar-se em acção domi-
nadora é,segundo alguns,uma marca que lhe é inerente desde a aurora
do pensamento ocidental,a filosofia helénica,que encontraria na técnica
a realização da sua essência e da sua oculta vontade de poder,sobretudo
a partir da mutação operada entre o Século XVI e o Século XVII 1,quando
se articula a especificidade matemática do ente como coisa 2 com a sua
representabi 1 idade susceptível de uma orientação investigativa teórica e
prática 3.Assim se foi gerando o mundo-máquina de Newton e,com ele,
a percepção de uma natureza sem profundidade nem densidade,onde o
novo não irrompe,subjugada que parece estar à omnisciência deter-
minística do demónio de Laplace 4,símbolo da razão instrumental da
Modernidade e do alcance desmesurado da noção de progresso,com que
ela atravessa as Luzes,a Revolução Industrial e a aurora do Século XX .
Mas,a esta crença nas possibilidades do homem e da razão,sucede-se a
fragmentação,a suspeita de uma técnica que escapa ao controle humano,
a insegurança face ao rosto invisível do poder tecnocrático,a incerteza,a
dúvida e a angústia perante um tempo em que se cruza a decadência do
consumismo externo,com a pobreza,a fome,a guerra e os flagelos que
planetariamente atravessam o mundo,o qual de abrigo se tornou um perigo
e de lar se transformou em exílio do homem sedento de outros valores,
de maiores certezas e de fundadas esperanças.Tal situação facilmente
degenera em terreno fértil para o florescimento dos mais diversos funda-
mentalismos,com origens e sinais tão opostos como os que caracterizam
o crescimento de novas seitas religiosas,o desvio totalitarista de troncos
religiosos já existentes,a coloração ecológica de dogmatismos tecidos
num pseudo-respeito pelos valores da terra,ou outras derivações neo-
mitológicas desenvolvidas a partir de algumas racionalidades em crise 6.
É fácil em tais momentos,confundir o místico com o mágico,na medida
em que é o mistério que alimenta tanto uma atitude como a outra.Só que
na derivação mágica do comportamento místico é a manipulação que se
impõe à racionalidade dando origem ao que se poderia chamar misti-
ficação .Em contrapartida,na sua acepção mais autêntica,a experiência
mística,longe de se opor à racionalidade,alimenta-a e alimenta-se dela,
num cruzamento dialéctico entre o efável e o inefável,remetendo para uma
experiência de plenitude que o discurso apenas simbolicamente pode
traduzir.
Mas ao lado desta irrupção dos fundamentalismos,que se traduzem
sempre na negação da diferença e na anulação da racionalidade perante o
dogma,devem ainda assinalar-se três outros fenómenos extremamente
significativos na renovação mística do final do nosso século.
Em primeiro lugar,as experiências proporcionadas pela generalização
dos alucinogéneos a partir da década de 60,que vulgarizaram as expe-
riências transracionais da realidade,dando frequentemente origem a
teorizações de um outro acesso à felicidade,fora dos caminhos trilhados
pela racionalidade científica e mecanicística da Modernidade e pela
sociedade de consumo a que esses caminhos conduziram.
Em segundo lugar,e na sequência dessas experiências,a aproxima-
ção operada com os quadros conceptuais do Oriente,quer no aspecto
mais exterior e folclórico,como o domínio do corpo a partir de exer-
cícios físicos enraizados nessas tradições,quer no seu aspecto mais
interior,como as técnicas de meditação e domínio da mente,mais
caracterísiticas das diferentes formas do Budismo,do Confucionismo ou
do Taoísmo.
Finalmente,deve acrescentar-se todo o desenvolvimento de uma
literatura inspirada nos novos caminhos da cientificidade,nomeadamente
no campo das Ciências da Natureza e,mais especificamente,da Física,
cuja inadequação aos traços mais característicos da inteligibilidade
ocidental ao longo da Modernidade é bem manifesta,inclusivamente pelo
testemunho dos seus próprios protagonistas.
Entretanto,não deixa de ser interessante e significativo articular
esta procura de fundamentos para a nova ciência no misticismo oriental
com a inspiração mística de algumas tentativas de desconstrução da racio-
nalidade moderna no campo estritamente filosófico e metafísico,tentando,
com essa desconstrução,inverter a história do "esquecimento do ser"e
abrir novas clareiras de plenitude para a serenidade a que existencialmente
se aspira e para a harmonia com o Uno inefável que transcende infinita-
mente as suas concretizações nos coisificados entes da nossa sociedade
Com razão ou sem ela.
É na elaboração de uma síntese filosófica que se
encaminha nesta direcção que Heidegger parece antever a superação da
crise da metafísica ocidental ,mas uma reflexão séria sobre os traços
dominantes do modelo de inteligibilidade científica que,à falta de melhor
termo ,podemos continuar a designar "pós-moderno",proporciona-nos
igualmente a possibilidade de estabelecer uma outra ponte ,não meramente
ao nível desconstrutivista ou no quadro ético da procura de um outro chão
para a harmonia serena da presença do ser,mas também ao nível das traves
positivas de sustentação de uma visão da realidade mais consentânea com
a racionalidade científica actual e claramente pertencente à nossa tradição
filosófica ocidental .O que pretendemos afirmar é que se é importante o
encontro com o pensamento dos povos orientais,o seu misticismo não é
o único que proporciona um quadro mental adequado a certas formas da
racionalidade científica pós-moderna ,já que ,mergulhando nas nossas
raízes mais autênticas ,subvertidas pelos múltiplos "ismos"florescentes
entre o Século XVII e o Século XX,é-nos possível reencontrar veredas
perdidas que nos teriam conduzido a uma outra relação com o ser e
com os entes e vias para a reabertura de um diálogo interrompido
pela colonização exercida sobre o Oriente que ainda hoje teima em
ocidentalizar-se no que de mais viciado a Europa e a América têm para
lhe oferecer.
É evidente que não há,no horizonte em que se situam as reflexões
propostas,qualquer confusão entre o âmbito da mística e o campo das
ciências :uma é a experiência mística do mergulho na fonte originária
do ser,outra é a experimentação científica construída no quadro de
uma pesquisa sobre os fenómenos naturais .São efectivamente "dois jogos
de discurso e de silêncio",em que,como diz H.Atlan,"os limites do
discurso científico são o não dito desse discurso"e "os limites do discurso
místico residem precisamente no próprio discurso,no dito do discurso",
"pois,por definição o que há para dizer não pode ser dito .No entanto,
não nos parece,como as palavras deste mesmo autor sugerem,que a
sua complementaridade seja de procurar apenas ao nível da vivência
ética .O que julgamos estar em questão é a dimensão macro-
-paradigmática ou os suportes dos grandes quadros de inteligibilidade do
real.É aí,nessa dimensão mais profunda em que se geram as formas de
olhar para a realidade,que a reflexão sobre os pontos de cruzamento da
ciência com a mística pode ser fecunda (sem com isso pretendermos
afirmar que o objecto específico da racionalidade científica é comum ao
da espiritualidade mística),porque é daí que fluem as linhas lógicas da
percepção última da realidade.
Isto é tanto mais pertinente quanto a mística que vamos enfrentar não
é uma pura mística do indizível,que investiria mais nos sentimentos,nos
afectos e na vontade do que na mente humana,mas é antes uma "mística
do logos"que faz justamente do discurso e do conhecimento a via
privilegiada de acesso ao fundo mais denso que se joga na sua dialéctica
da ocultação e da desocultação.Ela desenvolve-se na Europa na transição
da Idade Média para a Idade Moderna e se,em muitos aspectos,prenuncia
traços constitutivos da Modernidade,em muitos outros ultrapassa a
racionalidade determinista que esvaziou,ao longo desta época histórica,
a natureza e a realidade do seu encanto e da sua complexidade.
2.Tendo em conta estas considerações já esboçadas,o percurso que
iremos iniciar será constituído por dois momentos relativamente distintos.
Em primeiro lugar,procuraremos ver em que medida é que é possível
especificar e caracterizar um quadro mental,com contornos claramente
místicos,na transição do pensamento medieval para a racionalidade
científica moderna,ou seja,em que medida é que a passagem do "cosmos
medieval"para o "universo moderno"foi aberta por intuições enraizadas
no misticismo renascentista ,nomeadamente em Nicolau de Cusa como
foco de irradiação desse misticismo.Em segundo lugar,preocupar-nos-
-emos em articular a mundividência subjacente às grandes conquistas do
Século XX e a mudança macro-paradigmática por ela implicada,com
concepções nucleares do mesmo misticismo,o que nos permitiria concluir
que ele,afinal,conteria em si próprio sementes que só muitos séculos
depois parecem estar a germinar.Para tal,não iremos forçar os autores a
dizer o que efectivamente não disseram nem escreveram,mas procurare-
mos descobrir tão-só o potencial que as suas "conjecturas"eventualmente
comportavam e a actualidade de que ainda hoje se revestem.
O pensamento de Nicolau de Cusa e a Revolução Científica
do Século XVII
3.Nicolau de Cusa é uma figura controversa nos alvores da Ciência
Moderna.Se há autores que não hesitam em reconhecer-lhe o lugar de
pioneiro de alguns traços mais característicos da nova visão do mundo,
outros há que afirmam peremptoriamente a sua insignificância como
homem de ciência.Assim,Maurice de Gandillac,por exemplo,na sessão
da "Société Française de Philosophie"realizada a 20 de Março de 1965,
afirmava em termos bastante explícitos:"Levando às suas consequências
extremas as considerações ockhamistas sobre a unidade da mecânica
celeste e da mecânica `sublunar',ao mesmo tempo que os contributos
de um estudo sobre o `infinito',prosseguido de diversas formas pelos
doutores da via moderna,o autor da Douta ignorância é o primeiro
filósofo,parece,que aplica à `machina mundi'a velha fórmula pseudo-
-hermética da esfera infinita,cujo centro está em toda a parte e a
circunferência em parte alguma.O universo perdeu todo o ponto fixo e
pode estender-se sem limites.É ao espírito que compete dar-lhe forma e,
neste trabalho,a matemática desempenha um papel menos místico e
simbólico que propriamente instrumental."11 Idêntica posição adoptam
outros autores,como,por exemplo,F.Nagel,que considera o Cardeal
alemão como um verdadeiro precursor de Galileu,mesmo no campo da
ciência experimental 12,ou Rombach,que proporciona a fundamentação
das primeiras páginas da obra de Nagel,admitindo explicitamente que a
obra cusana é um marco importantíssimo na passagem de uma ontologia
substancialista para uma ontologia funcionalista ,substrato da moderna
racionalidade científica 13.Já as considerações de Karl Jaspers,quando se
trata de responder a esta questão ,não deixam qualquer margem para
dúvidas:"O Cusano não pertence aos fundadores directos da Ciência
Moderna."14
Mais ponderadas e menos radicais nos parecem as posições de R.
Haubst e de Thomas McTighe ,que,sem excluírem articulações específicas
entre o pensamento deste filósofo e a nova ciência que tardava em emergir,
admitem sobretudo que ele teria esboçado um horizonte conceptual bem
mais compatível com as futuras descobertas científicas do que aquele que
era oferecido pela filosofia aristotélico -tomista.O primeiro sublinha a
abertura que o pensamento filosófico -teológico deste autor proporcionou
ao progresso das Ciências da Natureza 15;o segundo entende que "embora
ele tenha dado poucas contribuições ao empreendimento da nova ciência,
a sua obra comporta um grande significado no que se refere à teoria da
ciência."16
É também em tal quadro que,ao longo desta primeira parte das nossas
reflexões ,pretendemos movimentar-nos.O que significa que nos interessa
fundamentalmente explicitar em que medida é que considerações e
trabalhos mais científicos deste místico renascentista são determinados,na
sua base filosófico -epistemológica,por uma atitude e um travejamento
conceptual de natureza mística ,fora dos quais perderiam todo o seu
sentido .Neste âmbito,interessam-nos especialmente três domínios:a
matemática,a cosmologia e as ciências experimentais ,pois foram justa-
mente estes os domínios mais salientados por aqueles que colocam este
pensador no número dos precursores da Ciência Moderna.
4.O Renascimento poderia caracterizar-se,sob o ponto de vista
da articulação entre discurso,razão e linguagem,por dois fenómenos
sintomáticos,de sentido aparentemente divergente,mas susceptíveis de
uma síntese unificadora a um nível mais profundo:por um lado,devido
à desagregação dos grandes impérios medievais,com a consequente
irrupção de tendências conducentes à formação de Estados nacionais,
verifica-se uma grande implementação das línguas naturais,como plastifi-
cação discursiva desse nacionalismo,o que determina progressivamente
a cunhagem de conceitos em termos novos e nem sempre adequados a essa
transformação;por outro lado,o desenvolvimento e quantificação das
Ciências da Natureza,com a subsequente subalternização de perspectivas
mais qualitativas,bem como a aspiração a uma linguagem exacta que
traduzisse essa mesma quantificação,conduzem a um aperfeiçoamento da
Matemática,cuja importância como nova linguagem e instrumento
conceptual se vai impondo progressivamente 17.E no cruzamento destas
duas tendências,às quais se poderia juntar a renovação do interesse por
um uso perfeccionista das línguas clássicas,que Nicolau de Cusa mostra
a sua fecundidade e,ao mesmo tempo,a liberdade e independência com
que vive criativamente as marcas do seu tempo.Com efeito,não deixa de
escrever em latim,mas,ao mesmo tempo,o latim que escreve permite-
-nos conjecturar que terá pensado mais em alemão do que na língua
de Cícero.Por outro lado,a matemática merece-lhe uma atenção tal
que o conhecimento que dele se teve ao longo dos primeiros séculos
da Modernidade será mais um resultado do interesse que os seus escri-
tos matemáticos terão despertado,do que consequência da sua obra
filosófica.

O que torna,entretanto,exemplarmente importante a relação de
Nicolau de Cusa com a Matemática,no momento de transição do Pensa-
mento Medieval para a Ciência Moderna,é o facto de ele proporcionar
os fundamentos para a percepção e afirmação da sua superioridade
cognitiva e da sua exactidão,mas,ao mesmo tempo,não a entronizar
como a linguagem expressiva por excelência da plena transparência do real
à razão (base fundamental do novo racionalismo e da nova matematização
das Ciências da Natureza).
É verdade que o Cardeal alemão foi um matemático insigne do seu
tempo e que os seus interesses por essa ciência se foram aprofundando
desde o conhecimento travado com Paolo Toscanelli,aquando da sua
estadia em Pádua,com o qual manterá um estreito contacto até à hora da
sua morte.A atestar esses interesses está a quantidade de escritos sobre a
ciência dos números e das figuras,redigidos entre 1445 e 1459,e que
ultrapassam mais de uma dezena.No entanto,não menos importante que
constatar esse facto,é compreender-lhe o sentido.E,neste quadro,torna-
-se claro que o seu interesse matemático só através da sua transposição
para a actividade filosófica é que ganha plenamente sentido.A justeza
desta interpretação manifesta-se em várias afirmações do autor,como
quando explicita a sua divisão tripartida da actividade especulativa,
colocando precisamente a Matemática como uma ciência intermédia entre
a Física e a Teologia:"Deves pressupor,abade,aquilo que outras vezes
ouviste de mim,ou seja,que são três as formas de investigação espe-
culativa.A mais baixa é a Física,que trata da natureza e considera as
formas não abstractas e sujeitas ao movimento [...1.Outra forma de
especulação é a que trata da forma absoluta e do todo estável,ou seja,da
forma divina.Ela é abstraída de qualquer alteridade,pelo que é eterna,
sem mudança e variação.[...]Há,enfim,um tipo de especulação média,
que olha as formas não abstractas mas todavia imóveis e chama-se
especulação matemática."19
No entanto,esta situação intermédia da Matemática não significa uma
desvalorização do grau de certeza que nela é possível atingir,já que,
subjacente a toda a gnoseologia cusana e à sua passagem de uma
metafísica do ser para uma metafísica do sujeito ou da mente 20,há a
aceitação de que o homem pode conhecer de modo preciso aquilo que
brota exclusivamente do seu pensamento,como é o caso dos entes
matemáticos:"Com efeito,as entidades matemáticas,que procedem da
nossa razão e que experimentamos em nós como no seu princípio,são
conhecidas por nós de modo preciso como entes da nossa razão,ou seja,
com a precisão racional da qual procedem,tal como os entes reais são
conhecidos de modo preciso com aquela precisão divina com que vêm ao
ser."21 O conhecimento matemático é,assim,uma explicação da própria
mente humana.É evidente que pareceria possível estabelecer um paralelo
entre esta afirmação e a distinção operada por Galileu entre "conhecimento
intensivo"e "conhecimento extensivo":"Convirá recorrer a uma distinção
filosófica e referir que o entendimento se pode tomar com dois sentidos,
intensive ou extensive.Extensive significa que em relação à multiplicidade
dos inteligíveis,que é infinita,o entendimento é praticamente nulo,ainda
que lhe fosse possível compreender mil proposições,dado que mil em
relação ao infinito é equivalente a zero;mas se o termo entendimento,
tomado na acepção intensive,significa a compreensão intensiva,isto é,
perfeita,de uma proposição,direi então que o entendimento humano
compreende algumas proposições tão perfeitamente e alcança uma certeza
tão absoluta quanto a própria natureza.Tal é o caso,por exemplo,das
proposições das ciências matemáticas puras,a saber,a geometria e a
aritmética;o intelecto divino conhece um número delas infinitamente
maior,dado que as conhece todas,mas,se o intelecto humano conhece
poucas,julgo que o conhecimento que delas tem iguala,em certeza
objectiva,o conhecimento divino,porque chega a compreender a sua
necessidade,e esse é o mais alto grau de certeza." Há,todavia,
subjacente a estas considerações de Galileu,o projecto de uma plena
matematização da ciência,nomeadamente da Física,cuja perfeição e
verdade estariam garantidas pela perfeição e pela verdade da linguagem
utilizada.Mas Nicolau de Cusa está ainda longe de tal ideal científico,
embora se situe nas suas fronteiras,que não chega propriamente a
franquear.
Com efeito,nele a Matemática continua ao serviço de um projecto
filosófico-teológico que visa criar as condições de possibilidade para uma
"symbolica investigatio"sobre o infinito (e daí que a noção de inifi-
nito seja um dos factores de potencialização das suas especulações
matemáticas).É por isso que se podem circunscrever a três ou quatro
questões os seus estudos matemáticos,salientando-se,entre elas,a questão
da quadratura do círculo e a questão das transmutações geométricas.
O motivo dessa opção não é difícil de descortinar:elas são,na verdade,
aquelas que estão mais ligadas aos seus interesses filosóficos 23.O próprio
Nicolau de Cusa frequentemente se refere às suas investigações matemá-
ticas como uma forma de pôr à prova o seu princípio da "coincidência dos
opostos"24,tendo plena consciência de que,dessa forma,não só abria vias
filosófico-teológicas ainda por explorar,como também inaugurava uma
nova arte no domínio das Matemáticas,susceptível de permitir uma
resolução de problemas que o primado do aristotélico princípio de não-
-contradição até aí não permitira equacionar devidamente 25.
Compreende-se,assim,que,após ter concluído o seu De mathematicis
complementis,se sinta impelido a redigir o Complementum theologicum,
cujo objectivo fundamental se traduz numa tematização da "utilidade
transcendente"da Matemática,relativamente à consideração do infinito em
termos teológicos. Todas essa considerações nos permitem concluir
que "a nova arte das matemáticas"ensaiada por Nicolau de Cusa só
ganha sentido no enquadramento no seu pensamento místico-teológico,
como,aliás,o demonstra a sua utilização,no De docta ignorantia,no De
coniecturis,e no Complementum theologicum.
5.Um segundo domínio em que o pensamento deste autor tem vindo
a ser resgatado do esquecimento diz respeito às suas afirmações
cosmológicas,que inaugurariam a passagem de "um mundo fechado"ao
"universo infinito"27.No entanto,e na sequência da interpretação da
relação entre misticismo e ciência que temos vindo a desenvolver,seria
erróneo desarticular as revolucionárias fórmulas cusanas da inspiração
místico-teológica que as suporta e que também,de certo modo,as limita.
Assim,essas suas teorias são sobretudo desenvolvidas nos capítulos
11 e 12 do segundo livro do De docta ignorantia.E o que deve ser
salientado é que o capítulo 11 aparece precisamente subordinado ao título
"Corolários sobre o movimento",o que significa que é das anteriores
considerações filosóficas e místicas que se deduzem os novos princípios
cosmológicos.Daí que essas primeiras afirmações resultem simplesmente
do reconhecimento da expressão da Trindade divina no universo e da
presença de Deus em tudo:"Do que dissemos,sabemos que o universo é
trino;que não há universo algum que não seja uno pela potência,o acto
e o movimento da conexão.Nenhum deles pode subsistir absolutamente
sem o outro,pelo que é necessário que existam em todas as coisas segundo
os graus mais diversos.[...]É impossível,portanto,que a máquina do
mundo tenha um centro fixo e imóvel (seja ele a terra sensível,o ar o fogo
ou outro),se se considerarem os diversos movimentos das esferas celestes.
No movimento não se chega ao mínimo simples,isto é,ao centro imóvel,
porque o mínimo coincide necessariamente com o máximo.O centro do mundo
coincide com a circunferência. E, a confirmar o que
acima dissemos ,afirma-se igualmente algumas linhas depois:"Logo,como
não é possível que o mundo esteja encerrado entre um centro corpóreo e
uma circunferência ,o mundo não é inteligível ,sendo Deus o seu centro
e a sua circunferência ."29 E para quem pensar que é a infinitude do
universo que aqui se supõe,tal questão é clarificada,de imediato,com
as seguintes palavras:"E porque o mundo não é infinito ,não pode contudo
ser concebido como finito,já que carece de limites ,dentro dos quais possa
estar encerrado."30
É um passo grande aquele que aqui é dado relativamente ao fim da
noção de cosmos medieval ,mas concordamos com a interpretação de
Koyré ,quando afirma que "só podemos compreender [esta concepção ]
como uma tentativa para exprimir e sublinhar a falta de precisão e de
estabilidade do mundo criado."31
Este passo acentua-se com o reconhecimento de dois outros elementos
extremamente importantes para a nova visão do universo:por um lado,a
afirmação de que também a terra se move 32 e,por outro lado,a cons-
ciência de uma certa homogeneidade entre a terra e os outros astros,na
composição dos quais entram ,embora em proporções diversas ,idênticos
elementos 33 .Importa ,no entanto ,sublinhar que estas afirmações,se em
alguns pontos podem ultrapassar a própria teoria copernicana,pela
adivinhada destruição do cosmos antigo e medieval ,por outro lado,não
traduzem nada que se pareça com uma perspectiva heliocêntrica ,dado que
se reconhece que a Terra ,embora se mova,descreve um círculo mínimo,
estando por isso muito mais perto do repouso do que qualquer outro
astro 34.Não há ,no entanto ,qualquer dúvida de que,sobre este chão
místico ,é uma nova cosmologia que começa a emergir.
6.Ainda no que se refere à relação de Nicolau de Cusa com o(s)
paradigma(s)científico(s)da Modernidade,merece especial atenção o
quarto diálogo do Idiota,intitulado precisamente De staticis experimentas.
Alguns autores pretendem ver neste texto um dos primeiros esboços de
uma ciência quantitativa e experimental que só séculos depois atingiria
alguma maturidade.É nessa linha que se situa Maurice de Gandillac,que
afirma explicitamente:"Em relação às antigas matematizações platónicas
ou neopitagóricas,as fórmulas do Cusano -mais nitidamente ainda do
que as de um Oresme -têm o incontestável mérito de escapar ao pressu-
posto qualitativista,sem com isso sucumbir à magia simbolista,de sentir
o valor das medidas experimentais sem regressar ao culto das ideias-
-números,à atracção das `harmonias místicas-36.
É certo que neste escrito são avançadas hipóteses extremamente
significativas sobre as possibilidades de uma ciência experimental baseada
nos pesos conseguidos através duma minuciosa utilização da balança,sem
descurar,sobretudo,as aplicações utilitárias que daí poderiam advir.Fala-
-se,por exemplo,no peso das águas das diferentes fontes 37,no peso das
urinas de sãos e doentes em ordem a um mais correcto diagnóstico 38,fala-
-se,até,no próprio peso do ar inspirado e expirado 39.Sugerem-se
experiências para distinguir metais e pedras preciosas 40,para pesar a força
de um íman 41,para avaliar o estado higrométrico da atmosfera 42 e medir
a resistência do ar à queda dos corpos de diferentes formas e volumes 43
Tudo isto demonstra efectivamente uma grande atenção aos dados experi-
mentais e à respectiva quantificação a partir do seu peso.
Parece-nos,no entanto,que para situar correctamente estas audazes
intuições é necessário ter em conta três pontos que se nos afiguram
fundamentais.
Em primeiro lugar, todas essas considerações se apoiam numa inspiração
bíblica, como o próprio texto,logo no início,
disse que o peso e a balança são o juízo de Deus que tudo criou no
número,no peso e na medida,equilibrou as fontes da água e mediu a
quantidade da terra -como escreve o Sapiente."44 Idêntica afirmação já
havia surgido no De docta ignorantia,quase no final do segundo livro:
"Com admirável ordem os elementos foram constituídos por Deus,que
criou todas as coisas no número,no peso e na medida."45 No entanto,este
ponto de partida para constatar "a admirável arte divina na criação do
mundo e dos elementos"não pode ser lido fora do seu contexto,como se
fosse uma incursão pré-galilaica na legibilidade matemática do mundo
natural.O contexto em que ele surge é inquestionavelmente estético e
místico,tendo a ver com a concepção de proporção e harmonia com
profundas raízes medievais e origens pitagóricas.Com efeito,no mesmo
capítulo daquela obra,afirmava-se algumas linhas antes:"Deus na criação
do mundo serviu-se da Aritmética,da Geometria,da Música e da Astrono-
mia em conjunto,disciplinas das quais nos servimos também nós quando
indagamos as proporções das coisas,dos elementos e dos movimentos.
Com a Aritmética reuniu-as;com a Geometria deu-lhes uma figura de tal
maneira que,de acordo com as suas condições,tivessem solidez,estabi-
lidade e mobilidade;com a Música deu-lhes proporções tais que não
houvesse mais terra na terra que água na água,ar no ar e fogo no fogo,
de tal maneira que nenhum elemento fosse completamente resolúvel no
outro."46 E logo a seguir à afirmação anteriormente citada,apressa-se a
esclarecer que "o número diz respeito à Aritmética,o peso à Música e a
medida à Geometria."47 Neste quadro,devem entender-se as experiências
com a balança,imaginadas,feitas ou apenas sugeridas,como uma forma
que,sem deixar de ter as suas repercussões práticas,não pode ser
desligada da pesquisa da harmonia musical que preside à constituição
dos seres a partir dos seus mais simples elementos,o que nos permite
concluir que,mais do que uma ciência quantitativa,o que tais consi-
derações têm como horizonte é a descoberta da música que soa no mundo
e no universo.
Entretanto e em segundo lugar,deve ainda ter-se em conta que,à
semelhança do que se passa nas suas considerações sobre a linguagem,
em que as palavras concretas surgem como expressões exteriores de um
82 João Maria André
nome natural que mais não é do que o símbolo de um verbo indizível,
fundamento transcendental de todo o discurso 48,também no que se
refere à matemática e ao número se verifica uma distância claramente
afirmada entre o número humano e o número divino,do qual o primeiro
não é senão uma longínqua aproximação:"Conjecturando simbolicamente
a partir dos números racionais da nossa mente,sobre aqueles [números ]
mais inefáveis da mente divina,dizemos que o primeiro exemplar das
coisas,no espírito do criador,foi o número,do mesmo modo que o número
do mundo,que é feito à sua imagem,brota da nossa razão."49 Isto
demonstra a clara distância que separa Nicolau de Cusa de Galileu,já
que admitida esta diferença entre os dois tipos de número,nunca o
primeiro poderia dizer que o entendimento humano atingiria uma certeza
idêntica à do entendimento divino na compreensão de uma proposição
matemática.
Esta nota remete-nos,finalmente,para uma outra característica de
todas as afirmações do Idiota de staticis experimentas,que impede de ver
nesse diálogo cusano o nascimento do projecto de uma ciência exacta e
quantitativa do mundo empírico.Com efeito,a regra da "douta ignorância"
nunca é relegada para segundo plano pelo autor desse diálogo,o que
transforma toda e qualquer afirmação feita numa simples conjectura que
é,de acordo com a definição do De coniecturis,"uma afirmação positiva
que participa,na alteridade,da verdade tal como ela é.1150 Só assim se
pode compreender que no diálogo em questão não se encontre uma única
afirmação que permita concluir pela possibilidade de realização de uma
cientificidade precisa.Pelo contrário,quase todas as conclusões fazem
questão em sublinhar a natureza conjectura(dos resultados que uma ciên-
cia concebida nesses termos permite obter.Assim se deve entender a frase
com que o "Idiota"abre o diálogo:"Ainda que neste mundo nenhuma coisa
possa atingir a precisão,sabemos,todavia,por experiência,que o juízo
da balança exprime uma maior verdade e é aceite em qualquer lugar".
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 83
Confirmam esta afirmação as repetidas vezes com que é invocado o
conceito de conjectura ao longo de todo o diálogo 52.
Com estas considerações não pretendemos,de modo algum,desvalo-
rizar o mérito que Nicolau de Cusa possa ter tido para a instauração da
moderna ciência da natureza.Pretendemos antes radicar todas as suas
preocupações científicas no chão do seu misticismo,uma vez que é ele
que as alimenta e lhes dá contornos específicos face aos seus contem-
porâneos e aos verdadeiros pais da Revolução Científica do Século XVII.
O que demonstra que,neste caso,o misticismo não só não é incompatível
com a nova ciência em processo emergente,mas contribui para esboçar
um quadro conceptual em que ela se integra,mas que ao mesmo tempo
revela os seus limites no que se refere a uma plena transparência dos
fenómenos naturais à racionalidade humana matemática que progressi-
vamente se vai afirmar nas suas certezas e nas suas conquistas.
Traços Filosófico-Epistemológicos duma racionalidade científica
pós-moderna face a alguns traços místico-filosóficos
do pensamento cusano
7.Ao longo do Século XX tem vindo a desenvolver-se,em diversos
domínios,um modelo de inteligibilidade do real,cujos contornos ainda
não são muito claros na sua positividade,mas que sobressaem funda-
mentalmente pela superação de algumas dicotomias instauradas pela
revolução científica do Século XVII,nomeadamente no que se refere à
contraposição entre sujeito e objecto de conhecimento,matéria e espírito,
determinismo e liberdade,fragmentação especializadora e totalidade
integradora,análise e síntese,natureza e cultura.Entretanto,o que torna
extremamente interessantes os adivinhados contornos deste novo macro-
-paradigma é a possibilidade da sua articulação com os esboços concep-
tuais inerentes a outras áreas de experiência do real diferentes daqueles
que são objectivamente definidos pela sede reducionista da experimentação
com a consequente manipulação da natureza.E,por mais estranho que
possa parecer,tais esboços conceptuais são justamente encontrados nos
caminhos de que a Ciência do Século XVII se quis afastar:o fundo inesgo-
tável da percepção mística e,em alguns casos,alquímica,da realidade.
Não é,por isso,de estranhar que um Físico como Wolfgang Pauli,num
ensaio sobre a relação entre a ciência e o pensamento ocidental,afirme
que o seu inovador futuro estará na articulação entre o pensamento místico
e o pensamento crítico-racional 53.Tal articulação não deverá ser conce-
bida como uma mera justaposição de perspectivas diferentes,mas como
uma síntese definidora de um solo comum em termos de unidade concep-
tual 54,que exige a inscrição e a percepção da racionalidade do mistério
numa Pós-modernidade que seja efectivamente capaz de superar a unidi-
mensionalidade racionalista da Modernidade ,como diz Miguel B.Pereira:
"Na discussão sobre Modernidade e Pós-Modernidade é a essência da
razão que se interroga e,com ela,a racionalidade do transracional e do
mistério .A diferença na sua pluralidade mítica,científica ,filosófica e
teológica põe em risco a sua inteligibilidade,quando se cristaliza numa
transversal idade pura e heterogénea sem traça de unidade ,pois,ao contrá-
rio do diverso ,o diferente eclode de um fundo relacional ,que,ao perfazer-
-se num processo de perfeição ,se pluraliza ."55 É nesta interrogação sobre
a racionalidade da Pós-modernidade e sobre as suas concretizações
científicas e as suas tematizações meta-científicas que nos parece fecundo
o repensamento de alguns traços característicos da mística pré-renascentista
e renascentista ,e,nomeadamente ,do misticismo especulativo de Nicolau
de Cusa,cujo fundo,em muitos aspectos ,comporta alguns contornos
susceptíveis de articulação com a nova racionalidade emergente neste final
do Século XX.Para esse repensamento ,interessam-nos,sobretudo,dois
níveis relativamente distintos :por um lado ,as considerações que se refe-
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 85
rem aos pressupostos gnoseológico-epistemológicos da nova discursividade
científica,e,por outro lado,as que se referem aos pressupostos físico-
-cosmológicos desta nova mentalidade ainda em construção.
8.Uma das consequências do desenvolvimento da História das
Ciências na segunda metade deste Século foi a percepção de que o
conhecimento científico da realidade não é uma representação objectiva
e precisa da mesma,mas sim uma criação do espírito humano que se deixa
estruturar pela situação histórica e social dos investigadores e se vê
sobredeterminada por aquilo a que Thomas Kuhn designou por "paradig-
mas"ou "matrizes disciplinares",que proporcionam os princípios de
organização e percepção dos próprios factos científicos 56.Reconhecê-lo
é reconhecer que o conhecimento humano é sempre um conhecimento
perspectivístico da realidade que capta a partir de determinados pontos de
vista e a partir de determinados filtros,que,segundo a concepção de
S.Toulmin,pertencem ao campo do que se poderia chamar as "concepções
ideais da ordem natural"57.Kuhn não hesita mesmo em recorrer a um
vocabulário com profunda carga religiosa e mística para falar daquilo a
que chama revoluções paradigmáticas e tematizar as suas consequên-
cias ao nível de cada investigador,ao utilizar explicitamente o termo
"conversão"58.
Ora,sem pretendermos introduzir problemáticas estranhas e temporal-
mente desfocadas do horizonte gnoseológico do Séc.XV,parece-nos
interessante constatar que,na já referida viragem operada por Nicolau de
Cusa da Metafísica do Ser para a Metafísica do Sujeito ou da Mente 59,e
no seu aprofundamento do conceito de "douta ignorância"e da dimensão
necessariamente conjectural do nosso conhecimento,está já presente a per-
cepção de que conhecer é criar os contornos de um mundo configurado pela
mente humana na alteridade em que se move relativamente à verdade
Só assim se podem compreender as afirmações com que abre o 1 °capítulo
do De coniecturis:"As conjecturas devem ter origem na nossa mente como
o mundo real tem origem na razão divina infinita.Quando a mente
humana,nobre imagem de Deus,participa segundo as suas possibilidades
da fecundidade da natureza criadora,ela extrai de si própria,enquanto
imagem da forma omnipotente ,entes racionais à semelhança dos entes
reais.A mente humana é forma conjecturai do mundo,como a divina é a
forma real.Por isso,como a entidade divina absoluta é tudo aquilo que é
em qualquer coisa que é,assim a unidade da mente humana é a entidade
das suas conjecturas"'i1.$claro que a dimensão sociológica da concepção
de paradigma de Kuhn está ausente desta reflexão,mas não o está,de
modo algum ,a dimensão perspectivística ,que é acentuada quando se trata
de definir o que se deve entender efectivamente por conjectura.Com
efeito,quando o autor declara que todas as afirmações dos sábios não são
senão conjecturas ,recorre ao seguinte exemplo para ilustrar a sua tese:
"Quando tu,padre,olhas com os teus olhos a face do Sumo Pontífice,o
nosso santíssimo senhor papa Eugênio IV,fazes dela uma descrição
positiva que consideras exacta de acordo com o olhar.Quando depois te
voltas para a raiz de que deriva a distinção dos sentidos,ou seja,para a
razão,compreendes que o sentido da vista participa da função distintiva
[da razão ]na alteridade contraída do órgão.Assim intuis a deficiência que
te afasta da precisão,porque não havias visto esta face tal como é,mas
na alteridade segundo o ângulo dos teus olhos,diferente de todos os outros
olhos dos seres viventes."62 O conhecimento humano,na sua finitude,está
assim contraído ao ponto de vista e à perspectiva a partir da qual se
realiza,como aliás o documenta também o seu De visione Dei,
nomeadamente nos capítulos introdutórios 63
Daí,a consciência permanente de que o nosso conhecimento é um
conhecimento como que num espelho e por enigmas 64.A alteridade
que marca o conhecimento limita-lhe a precisão e transforma-o,conse-
quentemente,em conhecimento simbólico.Por isso,não deixa de ser
interessante constatar que um Físico,como W.Heisenberg,recorra a uma
expressão praticamente idêntica para falar do próprio conhecimento
científico no quadro das suas investigações em Mecânica Quântica:"Desta
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 87
maneira,a Mecânica Quântica é um exemplo maravilhoso de que se pode
ter compreendido com toda a clareza o conteúdo de uma coisa,sabendo-
-se ao mesmo tempo,no entanto,que só se pode falar de tal conteúdo
através de imagens e comparações"65.Idêntica expressão utiliza também
Sir James Jeans,matemático e astrofísico inglês,que,depois de comparar
o nosso conhecimento matemático do mundo com "as sombras da Caverna
de Platão",considera a nossa "re-construção"do mundo empírico como
criações abstractas do nosso espírito 66 e a totalidade do mundo como a
actividade de um puro matemático 67.Não seria difícil encontrar no
desfasamento,tematizado por Nicolau de Cusa,entre o número humano
e o número divino um parentesco,ainda que longínquo,com estas
considerações.
Do mesmo modo,a humildade com que a ciência se aproxima da
realidade física desde a formulação do princípio de incerteza de Heisen-
berg,segundo o qual é impossível determinar simultaneamente a posição
e o momento de uma partícula,não pode deixar de evocar também o
princípio da "douta ignorância"e a natureza conjectural do conhecimento
humano que lhe está associada.
9.Um segundo aspecto em que parece interessante o paralelo com o
pensamento de Nicolau de Cusa,mantendo-nos ainda no âmbito episte-
mológico,mas já com consequências que ultrapassam o domínio do
conhecimento e do discurso,diz respeito à dupla lógica por ele tematizada
na prossecução da verdade.Por diversas vezes se refere este místico
quatrocentista à necessidade de superar a lógica de não-contradição,como
instrumento da razão para a percepção do mundo empírico quotidiano,pela
lógica da coincidência dos opostos,mais adequada para uma penetra-
ção,ainda que incompreensível,na natureza da infinito.Entretanto,os
domínios a que as investigações quer da astrofísica,quer da microfísica
nos abrem são justamente os domínios do que poderíamos considerar como
o tendencialmente infinitamente grande e o tendencialmente infinita-
mente pequeno,ou seja,os domínios que se aproximam daquilo a que
Nicolau de Cusa chamou o Máximo e o Mínimo.Ora,relativamente a este
aspecto,uma das primeiras conclusões a que o conjunto de cientistas que
esteve na origem da Nova Física chegou foi a de que a lógica e a
linguagem utilizadas na Física Clásica eram insuficientes e inadequadas
para a compreensão das novas descrições da estrutura da matéria.É,mais
uma vez,Heisenberg quem nos dá conta desta constatação nos seus
Diálogos:"Penso que todo este complexo conjunto de inter-relações se
tornou mais acessível ao pensamento com o conhecimento da teoria
quântica,pois nesta,graças à linguagem abstracta das matemáticas,
logramos formular ordens unitárias acerca de domínios muito amplos;
porém,ao mesmo tempo,damo-nos conta de que,quando queremos
descrever em linguagem corrente os efeitos destas ordens,temos de acudir
às comparações,aos pontos de vista complementares,que implicam
paradoxos e contradições aparentes."68 Também numa linha idêntica e
numa linguagem verdadeiramente paradoxal,que faz lembrar muitas
das expressões igualmente paradoxais do Cardeal alemão,afirma J.R.
Oppenheimer:"Se perguntarmos,por exemplo,se a posição de um electrão
permanece invariável temos de responder `não',se perguntarmos se a
posição do electrão se altera com o tempo,temos de responder `não';se
perguntarmos se o electrão se encontra em repouso,temos de responder
`não';se perguntarmos se se encontra em movimento,temos de responder
,não'."69 E,comentando esta afirmação,diz Fritjof Capra:"Energia e
matéria,ondas e partículas,movimento e repouso,existência e não-
-existência -estes são alguns dos conceitos opostos ou contraditórios
que são transcendidos na Física moderna.De todos estes pares,o último
parece ser o fundamental,e,no entanto,em Física atómica,temos de
alcançar ainda mais longe do que os conceitos de existência e não-
-existência."
Esta reformulação da harmonia dos opostos,que aparece postulada
pelos autores acabados de citar,parece estar também presente,de certo
modo,no conhecido princípio de complementaridade,formulado por Niels
Bohr,para dar conta do dualismo entre a imagem de ondas e a imagem
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 89
de partículas como dois aspectos distintos ,que aparentemente se excluem,
mas que afinal se complementam 71.
10.Um terceiro aspecto,mais de natureza físico-cosmológica,em que
o pensamento do Cardeal alemão poderá oferecer um possível horizonte
para a compreensão da nova racionalidade científica emergente neste final
do Século XX,diz respeito à sua visão do Universo,que não hesitaríamos
em considerar como sendo sobredeterminada por um paradigma sistémico,
relacional e holístico,desenvolvido a partir de uma filosofia da unidade
que não nega a diferença,mas a implica como elemento fundamental para
a sua constituição.Com efeito,a representação da multiplicidade dos entes
como um conjunto de relações condensa-se,no pensamento cusano,no seu
conceito de Universo e no conceito de contracção que lhe está associado.
O Universo é,por um lado,o máximo contraído,e,por outro,a con-
tracção ,em unidade ,de tudo o que existe "explicado"empiricamente.Por
isso,é identidade na diferença e unidade na pluralidade como o evidencia
a respectiva etimologia :"Universo significa universalidade,ou seja,
unidade de várias coisas." Todavia,o Universo não existe onticamente
enquanto tal,mas só tem existência contraído na pluralidade das coisas.
Esta ideia é desenvolvida através da retomada e da reinterpretação da
fórmula de Anaxágoras ,segundo a qual "qualquer coisa está em qualquer
coisa" tal como "tudo está em tudo".A realidade é um conjunto de entes
que só se entende a partir da sua intrínseca e total relacional idade,tanto
numa perspectiva vertical,como numa perspectiva horizontal,e tanto
numa perspectiva espacial como numa perspectiva temporal.No ser
concreto de cada ente se contraem todos os outros entes no que são,no
que foram e no que serão,como se contrai o próprio passado e o próprio
futuro desse mesmo ente e também dos outros.O mundo de Nicolau de
Cusa não é,assim,um aglomerado de indivíduos tomados na sua atómica
singularidade,mas uma teia de relações,em que tudo tem a ver com tudo,
como o postula também a própria metáfora do organismo em que o autor
reinscreve a sua perspectiva sistémica.Isto coloca-nos na "órbita do
pensamento holístico",para utilizar uma expressão com que Miguel B.
Pereira pretende caracterizar o paradigma emergente neste final de século,
já que "na Física Quântica desaparece a fragmentação","sem qualquer
separação entre observador e observado,que são aspectos de uma
realidade única e indivisível."Com esta perspectiva sistémica do
universo se pode articular plenamente a "Bootstrap Theory"no quadro da
teoria da Matriz S,desenvolvida por Geoffrey Chew.Segundo Capra,que
se faz eco desta concepção ao apresentar os traços configuradores do
paradigma da Nova Física,a visão das partículas subatómicas que emerge
da "Bootstrap Theory"pode ser sintetizada na expressiva frase que afirma
que "cada partícula consiste em todas as outras".Isso não deve,contudo,
levar a imaginar que cada uma contém todas as outras num sentido
clássico,estático."As partículas subatómicas não são entidades separadas,
mas padrões de energia num processo dinâmico de vai-e-vem."79.Daí que
a imagem do universo seja a de um "todo dinâmico,cujas partes estão
essencialmente inter-relacionadas,apenas podendo ser entendidas como
padrões de um processo cósmico.
Não causa,pois ,qualquer estranheza que os intérpretes do pensamento
cusano que mais se debruçaram sobre a sua possível articulação com
alguns quadros da ciência contemporânea tenham encontrado nesta
relacionalidade um dos traços bastante significativos para tal aproximação.
Já fizemos referência à forma como Rombach concebe a transição da Idade
Média para o Renascimento como a passagem de uma ontologia da
substância para uma ontologia da relação (embora a sua equiparação da
noção de relação à noção de função não nos pareça plenamente compatível
com o pensamento cusano 81).E também importante assinalar que no
Colóquio organizado pela Assembleia Espanhola de Filosofia Medieval em
1964,Wolfgang Strobl dizia muito significativamente:"O pensamento das
ciências contemporâneas é rigorosamente estrutural e relacional.Todos
os elementos do Cosmos estão numa relação universal,e determinados por
leis estruturais numa ordem ascendente de configurações e confirma-
ções.Por issso,uma filosofia que considera e reconhece a relação como
categoria transcendental,adapta-se muito bem às exigências que requer
uma filosofia das ciências dos nossos dias.Este é o caso,sem dúvida,do
pensamento nitidamente estrutural e relacional do Cardeal de Cusa."
Uma outra dimensão susceptível de ser considerada nesta aproxi-
mação do chão filosófico do misticismo cusano com os pressupostos
igualmente de natureza filosófica da Física Contemporânea diz respeito
ao carácter dinâmico do fundo estrutural de toda a realidade.Se alguma
metafísica podemos ver em Nicolau de Cusa subjacente à sua concepção
da realidade,para além de holística e sistémica,ela é também dinâmica
como integralmente dinâmicas são interpretadas as camadas mais
profundas sobre as quais se apoia a actual leitura dos fenómenos físicos.
Em Nicolau de Cusa,esse dinamismo transparece de dois aspectos
relativamente distintos.Em primeiro lugar,ele está subjacente às últimas
considerações sobre o princípio fundante de todas as coisas e sobre o
mundo que nele tem a sua fonte.É assim que ,depois de ter caracterizado
o princípio de tudo como "possest ",ou seja,como a actualidade de todas
as possibilidades 83 e depois de ter caracterizado o ser das criaturas como
o poder ser feito ("posse fieri"),uma espécie de átrio de toda a
actualidade 85,este autor concentra a sua visão desse mesmo princípio
(undante única e simplesmente no seu poder (com o duplo sentido de
possibilidade e de energia que gera a actualidade de qualquer facto):
"Compreendi então que a hipóstase ou a subsistência das coisas é o poder.
E porque pode ser,sem o `poder-ele-próprio '[posse ipso ]não pode ser.
Como poderia sem o poder?Por isso ,o `poder-ele-próprio '[posse ipsum ]
sem o qual nada pode ser o que quer que seja ,é aquilo relativamente ao
qual nada pode haver de mais subsistente ."86 O posse ipsum aparece,
assim ,como o princípio de toda a actividade,do qual os poderes visíveis
não são senão "aparições "87 e a realidade é,deste modo,concebida a
partir do seu pleno dinamismo.
Entretanto,não é só esta articulação da realidade com o seu
fundamento teológico-metafísico que a impregna de uma dimensão
dinâmica e transformadora .Vimos já anteriormente como toda a sua
cosmologia é postulada e parte do pressuposto de que tudo neste mundo
deve estar em movimento ,que não é senão o nexo ou a união construída
nos entes empíricos do seu posse com o seu esse.Mas,igualmente
importante para entender essa perspectiva dinâmica do real é o seu par
de conceitos complicatio/explicatio.Esta fórmula,que radica no verbo
grego zcX$xsty,que significa dobrar,visa exprimir a pertinência mútua
entre identidade e diferença no pensamento cusano .Assim,a complicatio,
normalmente atribuída ou à realidade divina como fundamento de todas
as coisas ,ou à mente humana como unidade dos seus conhecimentos,
significa a identidade na sua máxima plenitude e riqueza ,anterior a
qualquer oposicionalidade e a qualquer alteridade,que de algum modo pré-
-contém ,enquanto a explicatio é a diferenciação em múltiplas expressões
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 93
visíveis dessa identidade originária ,plena e oculta 88.Esta força criadora
do trânsito da complicatio para a explicatio surge bem evidente num breve
texto da Apologia doctae ignorantiae:"Na verdade,na medida em que
Deus é a complicação de todo o ser,assim ele criando explicou o céu e a
terra."89 No De coniecturis este modelo da complicatio/explicatio aparece
reescrito a partir do esquema de Proclo das quatro unidades (o uno
originário,a unidade intelectual,a unidade racional da alma,e a unidade
material do corpo 90 ),e no De visione Dei é aplicado ao nascimento e
desenvolvimento de uma nogueira,em cujas sementes se encontram com-
plicadas toda a árvore e todas as nozes,sendo tais sementes a "virtude"
contraída da árvore e dos seus frutos91.Rudolph Haubst ,num interessante
artigo publicado já em 1964,tira partido do tratamento cusano deste par
de conceitos para defender aquilo que em termos actuais se poderia chamar
um evolucionismo cristão e que encontraria algum paralelo na concepção
cosmogénica de Theilhard de Chardin.
Neste contexto,assume especial importância a sua definição da
natureza como "uma espécie de complicação de todas as coisas que
acontecem através do movimento"93 Tal movimento traduz-se num
processo ascensivo das unidades inferiores para as unidades superiores
cruzado com um processo descensivo das unidades superiores para as
unidades inferiores,estando todas elas ligadas por uma mútua presença e
ínterconexão condensada no conceito de contractio,mas simultanea-
mente todas elas atravessadas por uma dinâmica interna,de forma a
realizarem-se do melhor modo que lhes é possível.
Todos estes elementos que acabámos de referir e sublinhar como
aspectos importantes do quadro filosófico de que emerge a compreensão
mística da natureza em Nicolau de Cusa encontram o seu paralelo em
determinados parâmetros sem os quais não seria fácil compreender
alguns elementos subjacentes à ciência contemporânea .Quer a Mecânica
Quântica,quer a Teoria da Relatividade ,tanto nos seus primeiros desen-
volvimentos ,como nas suas mais recentes tematizações configuram uma
perspectivação profundamente dinâmica do universo num sentido bem
diferente do mecanicismo clássico.Assim,importa ter em conta que
"o aspecto dinâmico da natureza surge,na teoria quântica,como uma
consequência da natureza ondulatória das partículas subatómicas"96,que
nos proporcionam,pois,a ideia de um universo em permanente devir.Do
mesmo modo,não pode esquecer-se que a célebre equação de Einstein,
E=mc2,estabelece em termos inequívocos uma equivalência entre massa
e energia,pelo que a energia está contida na massa de um objecto e a
sua lei fundamental é a da transformação ,caracterizando-se,conse-
quentemente,o mundo das partículas subatómicas por uma dimensão
intrinsecamente dinâmica.
Entretanto,avançando no cruzamento destas duas teorias,cuja articu-
lação parece ter sido conseguida no foral dos anos quarenta 97 ,deparamo-
-nos com a noção de "teoria quântica dos campos relativista",segundo a
qual,recorrendo às palavras de I.Bogdanov,"os objectos que nos rodeiam
não são senão conjuntos de campos (campo electromagnético,campo de
gravitação,campo protónico,campo electrónico)",de tal modo que "a
realidade essencial,fundamental,é um conjunto de campos que interagem
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 95
permanentemente entre si." Por outras palavras ,isto significa que
o dinamismo subatómico ,patente nas chamadas partículas portadoras
ou mensageiras como os fotões ,os gravitões ,as partículas W e Z e os
gluões 99 ,constitui o fundo da própria existência material.
Terá sido ,no entanto ,D.Bohm aquele que,mediante o aprofunda-
mento desta concepção dinâmica da realidade física,mais avançou nos
pressupostos filosóficos que ela implica e ,por isso mesmo,talvez seja ele
que mais facilidade e disponibilidade manifesta para um diálogo com o
misticismo oriental .É assim que no seu texto "Fragmentação e totalidade-
avança para uma concepção de matéria como "fluxo universal ":"O que
propomos para esta nova forma geral de observar é que toda a matéria é
desta natureza .Ou seja:há um fluxo universal que não se pode definir
explicitamente ,mas que se pode conhecer só de forma implícita,como o
indicam as suas formas e as suas estruturas explicitamente definíveis,
umas estáveis e outras não estáveis ,que podem ser abstraídas do fluxo
universal ." Para entender esta perspectiva através da qual Bohm procura
superar a fragmentação característica da Física Clássica,modelada pelo
paradigma cartesiano e galilaico-newtoniano do primado das singulari-
dades e da fragmentação,é necessário ter em conta o seu conceito de
ordem implicada com a sua correspondência dinâmica na noção de
holomovimento .De acordo com tal perspectiva,a realidade é vista como
um conjunto de subtotalidades de ordens implicadas em movimento de
inter-relação que se repercute no todo e,assim,modifica a sua face ou
figura .São,no fundo ,os conceitos de complicatio e de explicaiio que
ecoam neste modelo de inteligibilidade do real subordinado à lei do
holomovimento,que é vida implícita e o fundamento tanto da vida
explícita como da matéria inanimada. Mais ainda :é a própria cons-
ciência que se assume,neste processo de holomovimento ,pois ,como diz
F.Capra,"para compreender a ordem implicada,Bohm julga necessário
olhar a consciência como uma configuração ideal do holomovimento e tê-
-la explicitamente em conta nesta teoria .Ele vê a mente e a matéria como
sendo interdependentes e correlacionadas,mas não causalmente ligadas.
Elas complicam mutuamente projecções de uma realidade mais elevada
que não é matéria nem espírito."
Entretanto ,numa entrevista ainda mais recente com R .Weber,D.
Bohm,para além da ordem implicada ,fala de uma outra ordem situada
a um nível de maior profundidade ,que seria a ordem super-implicada,
que organiza as ordens implicadas na sua dinâmica complexidade
estrutural.
Que não é forçada esta aproximação que procuramos fazer entre as
concepções de D.Bohm e as de Nicolau de Cusa,demonstra-o o facto de
o primeiro invocar precisamente o segundo na entrevista que acabámos
de referir .Por um lado,para retomar a ideia de que "a eternidade se
explica no tempo" e,depois,para se confrontar com a equivalência
entre tempo e espaço na experiência mística ao nível de profundidade de
penetração na "ordem implícita".
Entretanto ,I.Prigogine,que vem insistindo há já alguns anos na
dimensão criadora da natureza e na irreversibilidade temporal dos seus
processos,tendo como ponto de partida a noção de que o tempo é
sempre criação do novo ,manifestando algumas reservas relativamente
à ordem implicada de D.Bohm,por a achar demasiado conserva
dora,não deixa,contudo,de acentuar o dinamismo criador inerente aos
mais simples ou elementares processos naturais.Daí que ele possa afirmar,
na sua Nova aliança,que "a ciência dos processos irreversíveis reabilitou
no seio da Física a concepção de uma natureza criadora de estruturas
activas e proliferantes"
Se do mundo da Microfísica passamos ao universo da Astrofísica,
deparamo-nos com a mesma concepção dinâmica como estruturadora da
percepção e da compreensão dos seus fenómenos a partir de um "Big-
-Bang"inicial.A teoria geral da relatividade bem como as descobertas de
Hubble e a lei que é conhecida com o seu nome mostram-nos que o
universo é um conjunto de galáxias em expansão permanente a partir do
seu impulso inicial que teria acontecido há cerca de 15.000 milhões de
anos
Verifica-se assim que,apesar das diferenças entre os múltiplos modelos
propostos para a compreensão da realidade física,todos eles assentam em
determinados princípios cujo correlato filosófico,ao nível do dinamismo
que os impregna,não seria difícil de encontrar na mística alemã dos
alvores do Renascimento.
.Um último ponto que gostaríamos de sublinhar para concluir este
cruzamento entre o quadro filosófico que suporta as intuições místicas de
Nicolau de Cusa e o travejamento conceptual subjacente às novas
concepções da Física Contemporânea diz respeito à dimensão estética que
os atravessa.
Assim,é interessante verificar que o Cardeal alemão,na linha,aliás,
de uma scientia laudis que se desenvolve desde a Idade Média,conclui o
seu 2 °livro do De docta ignorantia enaltecendo "a admirável arte de Deus
na criação do mundo e dos elementos",e sustentando que,em tal arte,ele
se serviu da música para estabelecer a proporção e a harmonia de umas
partes em relação às outras.É por isso que quase sempre que se vê
obrigado a utilizar metáforas para falar da criação,recorre a símbolos
artísticos,sendo de destacar,de entre eles,o símbolo da música,de tal
modo que o universo é apresentado como uma melodiosa harmonia
resultante da conjugação de sons diferentes 111.
Tal metáfora virá a ecoar em alguns investigadores dos fenómenos
naturais e astronómicos que também não hesitam em recorrer à mesma
simbologia para exprimir o movimento das partículas e dos astros.É assim
que Sir James Jeans nos fala dos processos da natureza e do movimento
dos átomos como idênticos a uma criação musical. Do mesmo modo,
F.Capra,quase a concluir um capítulo significativamente intitulado "a
dança cósmica",afirma em termos bastante expressivos:"A Física
moderna veio revelar que toda a partícula sub-atómica não só entra na
dança da energia como também é uma dança de energia:um processo
pulsante de criação e destruição." Por seu lado,G.Bogdanov,ao
invocar a noção de vazio quântico caracteriza-o com estas palavras:
"O vazio quântico é assim o teatro de um incessante ballet de partículas,
que aparecem e desaparecem num tempo extremamente breve,incon-
cebível à escala humana."
Parece instaurar-se,assim,a um nível quase inconsciente,a ideia de
que um dos modelos que melhor permite compreender o universo da Nova
Física é,afinal,o modelo estético,com também o subentende I.Prigogine,
quando,ao responder à pergunta de R.Weber sobre qual o modelo com
o qual substituiria,no Século XX,o símbolo do relógio do Século XVII
e do motor térmico do Século XIX,propõe o modelo da arte,afirmando
que "a arte é essencialmente a expressão de uma pulsão fundamental na
natureza.Na arte,vemos a irreversibilidade e a imprevisibilidade.Estas
são as características que gostaríamos de atribuir hoje ao universo,tanto
quanto a uma obra de arte."
É,pois,também nesta redescoberta da dimensão artística da natureza
que o conhecimento dos cientistas de hoje parece aproximar-se significa-
tivamente das intuições dos sábios de outrora.
Conclusão
Terminamos este estudo introdutório sobre a articulação entre
misticismo,filosofia e ciência,conscientes de que outras hipóteses se
poderiam colocar (e alguns têm já colocado)para abrir diferentes vias para
o seu aprofundamento.Assim,há quem pense que o conceito de
unidade que constitui o horizonte em que se movimenta a experiência
mística (nomeadamente a de origens orientais ou a de heranças neopla-
tónicas)poderia ser comparado à tentativa deste final de Século e à
aspiração de tantos Físicos que,desde Einstein,trabalham no sentido de
unificar numa única superforça as quatro grandes forças que regem todos
os fenómenos da natureza (a força da gravidade,a força electromagnética,
a força nuclear forte e a força fraca),proporcionando assim as bases
para uma teoria unificada dos fenómenos naturais.Pensamos,no entanto,
que a unidade buscada através da experiência mística não se situa ao
mesmo nível que a "teoria unificada"procurada na racionalidade cientí-
fica,e articulá-las neste contexto seria forçar uma aproximação de duas
experiências diferentes e confundir os planos em que os saberes da
realidade e na realidade se movimentam.
Igualmente os discursos de alguns Físicos sobre a natureza última da
realidade seria susceptível de oferecer outra plataforma de apoio.O texto
de Schriõdinger também incluído por H.-P.Dürr na sua antologia e
intitulado "O que é real?-Fundamentos para a eliminação do dualismo
de pensamento e ser ou de espírito e matéria",marcado por um

acentuado espiritualismo ,apresenta-nos um caminho nessa direcção,tal
como algumas considerações de D.Bohm sobre o papel da consciência
na compreensão das dimensões do universo 119 nos sugere pistas para um
reencontro do monismo de G.Bruno,na sua radicalização do pensamento
cusano .Mas pensamos também que esse caminho ,embora fácil,não se
enquadra nos critérios em que procurámos apoiar-nos ao longo das páginas
anteriores.
Com efeito,o que procurámos fazer foi demonstrar,em primeiro lugar,
como as incursões científicas de Nicolau de Cusa eram incompreensíveis
sem o suporte metafísico e místico em que se baseavam ,e,em segundo
lugar,como esse mesmo suporte era susceptível de proporcionar um
quadro conceptual adequado aos fundamentos filosóficos dos mais recentes
paradigmas científico -naturais .Um projecto inteiramente diferente é ver
em que medida é que alguns investigadores científicos procuraram
complementar,através de textos de natureza filosófica ,mística ou
religiosa ,a sua investigação física .Nesse âmbito,o que está em causa é
superar a dimensão estritamente científica através da crença religiosa ou
mística ,que qualquer Físico,como pessoa humana,pode legitimamente,
de acordo com os imperativos da sua consciência ,conceptualizar .Assim,
estamos de acordo com R.Weber,quando afirma que "a ciência pro-
cura os limites da natureza ,o misticismo a sua infinitude ;a ciência a
gotícula do oceano,o misticismo a onda .A ciência esforça-se por
explicitar o mistério do ser,o misticismo por experimentá -lo."Mas,
quando a mesma autora afirma logo a seguir que "a ciência e o misti-
cismo partilham,todavia,a mesma busca da realidade ,porque cada
uma deseja encontrar a verdade fundamental relativamente à matéria
e à sua fonte "120,especificaríamos que,em nossa opinião,o tipo de
realidade que cada uma busca é diferente ,e o âmbito epistemológico desse
desejo de encontrar a verdade fundamental relativa à matéria e à sua fonte
não é,de maneira alguma ,o mesmo .O que não quer dizer que não seja
possível encontrar em pressupostos filosóficos subjacentes à ciência e ao
misticismo padrões de racionalidade semelhantes e cujo desvelamento se
nos afigura extremamente fecundo.E,para isso,não é só o misticismo
oriental tantas vezes invocado que pode oferecer-nos um plano de
frutuosas aproximações .Por mais importante que seja esta redescoberta
do Oriente ,e é-o na perspectiva de um ecumenismo universalista e de
um pensamento dialógico não euro-cêntrico que urge instaurar,não é
menos importante consciencializarmo -nos de que na transição para a
Da Mística Renascentista à Racionalidade Científica Pós-Moderna 101
Modernidade perdemos pistas que só agora,timidamente,voltamos a
interpretar.
E por tal motivo que,cinco séculos depois de formuladas as intuições
cosmológicas,filosóficas e místico-teológicas de Nicolau de Cusa,elas nos
parecem susceptíveis de um repensamento novo e original à luz dos
paradigmas emergentes na nova racionalidade científica.
Revista Filosófica de Coimbra -a.°7 -vol.4 (1995)pp.67-101

A Cooperação Agrícola no MST

A COOPERAÇÃO AGRÍCOLA NO MST
17 de novembro de 2009

Os dicionários definem cooperação como “colaboração”, “prestação de auxílio para um fim comum”, “solidariedade”. Estendendo o conceito, podemos dar-lhe o significado de “toda atividade realizada em conjunto para a solução de necessidades sociais e econômicas”.

A prática da cooperação é, para o MST, um grande instrumento pedagógico para a construção do ser social. Ela permite ao trabalhador rural romper com a auto-suficiência e o individualismo, e acreditar no êxito da aplicação da força conjunta na produção e nos serviços ligados à sua atividade.

A partir de uma visão abrangente, o MST combina a organização da moradia, o agrupamento das famílias em núcleos de base e a promoção da cooperação como forma de criar uma nova estrutura social no assentamento. Vivendo próximas, em agrovilas ou núcleos de moradia, organizadas em núcleos de base, as famílias são estimuladas a solucionar seus problemas de forma conjunta. A construção de uma escola ou a reforma de uma ponte pode ser feita em mutirão.

O MST entende que a saída individual é fatal para o assentado e, conseqüentemente, para o assentamento em termos de seu desenvolvimento e êxito como um todo. Adquirindo crédito, ferramentas, máquinas e matrizes de animais, produzindo a lavoura, comercializando a produção e até mesmo chegando ao ponto de ter a terra, o capital e o trabalho em conjunto, os agricultores melhoram a produtividade e a qualidade.

Sua prática deve ser encarada como um processo que evolui em compasso com a realidade. Se ela não evoluir, estará condenada à estagnação e ao fracasso.

Para o MST, existem razões econômicas, sociais e políticas para estimular e promover a cooperação agrícola entre os assentados.

As razões econômicas

- Aumento do capital. Os assentados conseguem obter mais crédito para a aquisição de bens necessários ao aumento da produção.

- Obtenção de crédito. É preciso que um coletivo de assentados reúna seus bens e suas sobras, para poder obter créditos visando à aquisição de bens necessários ao aumento da produção.

- Racionalização da produção de acordo com os recursos naturais. O solo e o clima são dois fatores importantíssimos na produção e na produtividade agrícola. É muito difícil aproveitar corretamente suas potencialidades em um esquema familiar individual, em que o assentado tem de produzir um pouco de tudo para poder sobreviver. Com a cooperação agrícola é possível aproveitar ao máximo o solo e o clima, produzindo para o mercado apenas os produtos apropriados a eles.

- Desenvolvimento da agroindústria. Quando se realizam diversas atividades em conjunto, é possível racionalizar o uso de mão-de-obra e liberar uma parcela cada vez maior desta para outros fins de interesse geral da comunidade. A mão-de-obra tornada disponível pode ser utilizada em unidades agroindustriais de pequeno e médio portes voltadas à transformação dos produtos da lavoura e da criação. Esses produtos – o arroz beneficiado, a fruta despolpada, a ave abatida etc – ganham maior valor na hora da comercialização.

As razões sociais e políticas

Além da aproximação das moradias, com acesso facilitado à infra-estrutura básica, como estradas, água e energia elétrica, a cooperação agrícola facilita a educação das crianças e dos adultos, agilizando a conquista e a construção desse importante equipamento social. Também o acesso ao transporte coletivo e ao atendimento de saúde são favorecidos pela cooperação.

A cooperação leva o assentado a participar das lutas específicas (vinculadas às suas necessidades imediatas) e das lutas gerais da sociedade como um todo. Num sistema de cooperação, os agricultores percebem-se como uma força que, somando-se à de outras categorias, pode contribuir para a construção de uma nova sociedade.

FORMAS DE COOPERAÇÃO

O MST estimula diversas formas de organização da cooperação agrícola nos assentamentos, tais como: mutirões, lavouras coletivas, compra conjunta de máquinas e equipamentos, associações e cooperativas para comercialização conjunta e grupos ou cooperativas de trabalho coletivos ou semi-coletivos.

Associação

Existem diversos tipos de associação: de aquisição de animais, máquinas ou implementos agrícolas; de comercialização (compra e venda de produtos agropecuários); de beneficiamento da produção (armazenagem, farinheiras, serrarias, moinhos etc).

Em geral a produção ocorre no lote familiar e a associação presta algum serviço de interesse comum. Em alguns casos, ela serve apenas para a representação política dos assentados.

Cooperativa de Prestação de Serviços (CPS)

Esta forma de cooperação é um desdobramento da associação. Quando a atividade dos assentados cresce, eles buscam normalmente criar um agente econômico com uma maior capacidade de agir no mercado regional. A CPS planeja, organiza e comercializa as principais linhas de produção dos assentados em seus lotes familiares.

Além disso, presta serviços de assistência técnica, fornece insumos agrícolas e serviços de máquinas, repassam crédito etc. Por essas características, tem agregado muitos associados e atua regionalmente.

Cooperativa de Produção Agropecuária (CPA)

Este é um tipo de cooperativa em que os fatores de produção (a terra, o trabalho e o capital) são administrados coletivamente. Sua propriedade e produção são sociais, pois os donos são os trabalhadores e as sobras são repartidas entre si conforme o trabalho aportado de cada um. Em geral, esta cooperativa se reduz a um pequeno número de famílias variando de 10 a 60.

AGROINDÚSTRIAS NOS ASSENTAMENTOS

Vencendo diversas dificuldades na continuidade de sua luta, os assentados do MST desenvolveram diversas atividades econômicas. Em meados da década de 1990, atingiram um estágio superior: o da agroindustrialização.

A agroindustrialização, além de gerar novos postos de trabalho, elevou o nível de qualificação do trabalhador rural, o que tem contribuído para fixar a juventude nos assentamentos. Ela envolve desde o processamento da produção (secagem, armazenagem e classificação dos produtos) até o acabamento final da matéria-prima, passando por etapas intermediárias de beneficiamento parcial do produto.

OS TIPOS DE AGROINDÚSTRIA

São três os tipos de agroindústria desenvolvidos nos assentamentos do MST: a rural, a mista e a tradicional.

Agroindústria rural

Esse tipo de agroindústria trabalha com produtos sofisticados/especiais. A matéria-prima é extraída dos próprios lotes e o trabalho é realizado pela família ou por um grupo de famílias. O tipo de produto depende da matéria-prima existente no momento. Por exemplo, se é tempo de goiaba, faz-se goiabada. O capital empregado é pequeno, não requerendo escala de produção para viabilizar o empreendimento. Em geral produzem-se queijos, doces, geléias, compotas etc.

Agroindústria mista

Para esse tipo de agroindústria são necessários todos os recursos industriais. Parte da matéria-prima é proveniente da propriedade e parte, de terceiros. Como a mão-de-obra é dos associados, não existe assalariamento e os custos administrativos são menores. A inserção dos produtos no mercado é feita driblando as grandes empresas. Esse tipo de empreendimento não seria viável nem teria competitividade se adquirisse matéria-prima exclusivamente de terceiros e assalariasse a mão-de-obra.

Agroindústria tradicional

Adota todos os recursos industriais, assalaria os funcionários e adquire a matéria-prima de terceiros. Para competir com as grandes empresas (os monopólios) em preço e qualidade, tem de apresentar alta produtividade e adotar uma postura de fomentadora da produção e de especialização de seus parceiros.

Além disso, precisa estabelecer relações contratuais com outras grandes empresas ou agroindústrias e articular-se com grandes equipamentos de comercialização.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Jardim - Rubem Alves

Jardim

Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos "conhecimento de palavras e ignorância da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa única palavra: Jardim! Jardim é a imagem de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado dizer uma última palavra, uma única palavra, Jardim seria a palavra que eu diria."(Clique aqui para você ler um texto sobre jardins)

Depois de uma longa espera consegui, finalmente, plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo porque jardins precisam de terra para existir. Mas a terra eu não tinha. De meu, eu só tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os jardins existem, antes de existirem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação de nossa verdade interior escondida, a alma nua se oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma... Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros sem asas... São como as canções, que nada são até que alguém as cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à espera de alguém que as liberte e as plante na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse minha. Mas a terra não me pertencia.



O terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo, mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas, lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava a escada no muro e ficava espiando.

Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser realizado. E até andei procurando uma outra casa para onde me mudar, pois constava que outros tinham planos diferentes para aquele terreno onde viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado, espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.

Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.

Não chamei paisagista. Paisagistas são especialistas em jardins bonitos. Mas não era isto que eu queria. Queria um jardim que falasse. Pois você não sabe que os jardins falam? Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu - constantes trazem recados. Você ainda não sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro, um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha, banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você terá saudades... Vocês, então, saberão..." É preciso ter saudades para saber. Somente quem tem saudades entende os recados dos jardins. Não chamei um paisagista porque, por competente que fosse, ele não podia ouvir os recados que eu ouvia. As saudades dele não eram as saudades minhas. Até que ele poderia fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas são especialistas em estética: tomam as cores e as formas e constróem cenários com as plantas no espaço exterior. A natureza revela então a sua exuberância num desperdício que transborda em variações que não se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo por canais invisíveis, em ruídos de fontes ou folhas... O jardim é um agrado no corpo. Nele a natureza se revela amante... E como é bom!

Mas não era bem isto que eu queria. Queria o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro de mim como saudade. O que eu buscava não era a estética dos espaços de fora; era a poética dos espaços de dentro. Eu queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados, de felicidades perdidas, de alegrias já idas. Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu. Pois melancolia é justamente o oposto: ficar chorando as alegrias perdidas, num luto permanente, sem a esperança de que elas possam ser de novo criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade é a dor que se sente quando se percebe a distância que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que isto: é compreender que a felicidade só voltará quando a realidade for transformada pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade. Entendem agora por que um paisagista seria inútil? Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de sonhar os meus sonhos...

Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim. Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada me horroriza mais que os filmes de ficção científica onde a vida acontece em meio aos metais, à eletrônica, nas naves espaciais que navegam pelos espaços siderais vazios... E fico a me perguntar sobre a perturbação que levou aqueles homens a abandonar as florestas, as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza seu mundo interior ficou também metálico, eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a esperança do Paraíso se perdeu. Pois, como o disse o místico medieval Angelus Silésius:


Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.

Este pequeno poema de Cecília Meireles me encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma teologia condensada, a revelação do nosso lugar e do nosso destino:

"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."

Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo, destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa para uma política. Pois política é isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro. Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem sabe, o contrário: todo jardineiro deveria ser político. Pois existe apenas um programa político digno de consideração. E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard: "O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso." (O retorno eterno, p 65).

SER(ES) AFINS