quarta-feira, 30 de junho de 2010

Artigo de Maria Rita Kehl sobre o projeto de revisão do código florestal




MARIA RITA KEHL - O Estado de S.Paulo

O deputado Aldo Rabelo é um patriota. Anos atrás, criou um projeto de lei contra o uso público de palavras estrangeiras no País. Não me lembro se a lei não foi aprovada ou não pegou. Somos surpreendidos agora por nova investida patriótica do representante do PC do B: substituir o verde-folha do nosso pendão por um tom mais chique, o verde-dólar. Nada contra a evolução cromática do símbolo pátrio. Mas não se esperava tamanho revisionismo da parte de um velho comunista: o projeto de revisão do código florestal proposto por Rabelo é escandaloso.

Ou não: se o PC do B ainda tem alguma coisa a ver com a China, nada mais compreensível do que a tentativa de submeter o Brasil à mesma voracidade do país que hoje alia o pior de uma ditadura comunista com o pior do capitalismo predatório: devastação da natureza, salários miseráveis, repressão política.

E nós com isso? Nós, que não somos chineses - por que haveremos de nos sujeitar aos ditames da concentração de renda no campo que querem nos impingir como se fossem a condição inexorável do desenvolvimento econômico? Não sou economista, mas aprendo alguma coisa com gente do ramo. Sigo o argumento de uma autoridade quase incontestável no Brasil, o ex-ministro do governo FHC e hoje social democrata assumido, Luis Carlos Bresser Pereira. A concentração de terras e a produtividade do agronegócio, boas para enriquecer algumas poucas famílias, não são necessárias para o aumento da riqueza ou para sua distribuição no campo. Nem para alimentar os brasileiros. A agricultura familiar - pasmem: emprega mais, paga melhor e produz mais alimentos para o consumo interno do que o agronegócio. Verdade que não rende dólares, nem aos donos do negócio nem aos lobistas do Congresso. Mas alimenta a sociedade.

Vale então perguntar quantos brasileiros precisam perder seus empregos no campo, ser expulsos de seus sítios para viver em regiões já desertificadas e improdutivas, quantas gerações de filhos de ex-agricultores precisam crescer nas favelas, perto do crime, para produzir um novo rico que viaja de jatinho e manda a família anualmente pra Miami? Quanto nos custa o novo agromilionário sem visão do País, sem consciência social, sem outra concepção da política senão alimentar lobbies no Congresso e tentar extinguir a luta dos sem-terra pela reforma agrária?

Meu bisavô Belisário Pena foi um patriota de verdade. Um médico sanitarista que viajou em lombo de burro pelo interior do País para pesquisar e erradicar as principais doenças endêmicas do Brasil no início do século 20. O relato da expedição empreendida por ele e Arthur Neiva pelo norte da Bahia, Pernambuco, sul do Piauí e Goiás, em 1912, virou um livro que eu ganhei do professor Antonio Candido.

A pesquisa começa pela descrição do clima, ou seja, da seca, e segue a descrever a "diminuição das águas" no interior. Reproduzo a grafia da época: "Não há duvida de que a água diminue sempre no Brazil Central; o morador das marjens dos grandes rios não percebe o fenômeno, mas o depoimento dos habitantes das proximidades dos pequenos cursos e de coleções d"agua pouco volumosas é unânime em confirmar este fato. De Petrolina até a vila de Paranaguá, não se encontra um único curso perene. O Piauhy, encontramo-lo cortado (com o curso interrompido) ; o Curimatá, completamente sêco; para citar os maiores (...) Acresce que, em toda a zona, o homem procura apressar por todos os meios a formação do deserto, pela destruição criminosa e estúpida da vejetação".

Os professores Jean Paul Metzger e Thomas Lewinsohn, no Aliás de domingo passado, acusam a falta de embasamento científico do projeto de Aldo Rabelo. Mas mesmo sem o aval de cientistas sérios, já é de conhecimento geral o que meu bisavô constatou em 1912: a evidente relação entre o desmatamento, a diminuição das águas e a desertificação do interior do País.

O novo código de "reflorestamento" propõe reduzir de 30 para 7,5 metros a extensão obrigatória das matas ciliares nas propriedades rurais. Uma faixa vegetal mais estreita do que uma rua estreita não dá conta de impedir o assoreamento dos rios que ainda não secaram, nem barrar a devastação pelas cheias como a que hoje vitima tantos moradores da Zona da Mata. Quem nunca observou, sobrevoando o Brasil central, que os rios que não têm mais vegetação nas margens estão secos? Outra piada é isentar as pequenas propriedades da reserva florestal obrigatória. Se até o gênio do mal que mora em mim já teve essa ideia, imaginem se ninguém mais pensou em dividir grandes fazendas em pequenos lotes "laranjas" para se valer do benefício?

Por desinformação ou má-fé, os defensores do desmatamento alardeiam que essa é uma disputa entre desenvolvimentistas e amantes do "verde". Mentira. O objeto da disputa é o tempo. O projeto de Rabelo defende os que querem agarrar tudo o que puderem, já. No futuro, ora: seus netos irão estudar e viver no exterior. Do outro lado, os que se preocupam com as gerações que vão continuar vivendo no Brasil quando todo o interior do País for igual às regiões mais secas do Nordeste atual - algumas das quais já foram ricas, verdes e férteis, antes de ser desmatadas pela agricultura predatória. Que pelo menos contava, no início do século 20, com o beneplácito da ignorância.  

MARIA RITA KEHL - O Estado de S.Paulo

O deputado Aldo Rabelo é um patriota. Anos atrás, criou um projeto de lei contra o uso público de palavras estrangeiras no País. Não me lembro se a lei não foi aprovada ou não pegou. Somos surpreendidos agora por nova investida patriótica do representante do PC do B: substituir o verde-folha do nosso pendão por um tom mais chique, o verde-dólar. Nada contra a evolução cromática do símbolo pátrio. Mas não se esperava tamanho revisionismo da parte de um velho comunista: o projeto de revisão do código florestal proposto por Rabelo é escandaloso.

Ou não: se o PC do B ainda tem alguma coisa a ver com a China, nada mais compreensível do que a tentativa de submeter o Brasil à mesma voracidade do país que hoje alia o pior de uma ditadura comunista com o pior do capitalismo predatório: devastação da natureza, salários miseráveis, repressão política.

E nós com isso? Nós, que não somos chineses - por que haveremos de nos sujeitar aos ditames da concentração de renda no campo que querem nos impingir como se fossem a condição inexorável do desenvolvimento econômico? Não sou economista, mas aprendo alguma coisa com gente do ramo. Sigo o argumento de uma autoridade quase incontestável no Brasil, o ex-ministro do governo FHC e hoje social democrata assumido, Luis Carlos Bresser Pereira. A concentração de terras e a produtividade do agronegócio, boas para enriquecer algumas poucas famílias, não são necessárias para o aumento da riqueza ou para sua distribuição no campo. Nem para alimentar os brasileiros. A agricultura familiar - pasmem: emprega mais, paga melhor e produz mais alimentos para o consumo interno do que o agronegócio. Verdade que não rende dólares, nem aos donos do negócio nem aos lobistas do Congresso. Mas alimenta a sociedade.

Vale então perguntar quantos brasileiros precisam perder seus empregos no campo, ser expulsos de seus sítios para viver em regiões já desertificadas e improdutivas, quantas gerações de filhos de ex-agricultores precisam crescer nas favelas, perto do crime, para produzir um novo rico que viaja de jatinho e manda a família anualmente pra Miami? Quanto nos custa o novo agromilionário sem visão do País, sem consciência social, sem outra concepção da política senão alimentar lobbies no Congresso e tentar extinguir a luta dos sem-terra pela reforma agrária?

Meu bisavô Belisário Pena foi um patriota de verdade. Um médico sanitarista que viajou em lombo de burro pelo interior do País para pesquisar e erradicar as principais doenças endêmicas do Brasil no início do século 20. O relato da expedição empreendida por ele e Arthur Neiva pelo norte da Bahia, Pernambuco, sul do Piauí e Goiás, em 1912, virou um livro que eu ganhei do professor Antonio Candido.


A pesquisa começa pela descrição do clima, ou seja, da seca, e segue a descrever a "diminuição das águas" no interior. Reproduzo a grafia da época: "Não há duvida de que a água diminue sempre no Brazil Central; o morador das marjens dos grandes rios não percebe o fenômeno, mas o depoimento dos habitantes das proximidades dos pequenos cursos e de coleções d"agua pouco volumosas é unânime em confirmar este fato. De Petrolina até a vila de Paranaguá, não se encontra um único curso perene. O Piauhy, encontramo-lo cortado (com o curso interrompido) ; o Curimatá, completamente sêco; para citar os maiores (...) Acresce que, em toda a zona, o homem procura apressar por todos os meios a formação do deserto, pela destruição criminosa e estúpida da vejetação".

Os professores Jean Paul Metzger e Thomas Lewinsohn, no Aliás de domingo passado, acusam a falta de embasamento científico do projeto de Aldo Rabelo. Mas mesmo sem o aval de cientistas sérios, já é de conhecimento geral o que meu bisavô constatou em 1912: a evidente relação entre o desmatamento, a diminuição das águas e a desertificação do interior do País.

O novo código de "reflorestamento" propõe reduzir de 30 para 7,5 metros a extensão obrigatória das matas ciliares nas propriedades rurais. Uma faixa vegetal mais estreita do que uma rua estreita não dá conta de impedir o assoreamento dos rios que ainda não secaram, nem barrar a devastação pelas cheias como a que hoje vitima tantos moradores da Zona da Mata. Quem nunca observou, sobrevoando o Brasil central, que os rios que não têm mais vegetação nas margens estão secos? Outra piada é isentar as pequenas propriedades da reserva florestal obrigatória. Se até o gênio do mal que mora em mim já teve essa ideia, imaginem se ninguém mais pensou em dividir grandes fazendas em pequenos lotes "laranjas" para se valer do benefício?

Por desinformação ou má-fé, os defensores do desmatamento alardeiam que essa é uma disputa entre desenvolvimentistas e amantes do "verde". Mentira. O objeto da disputa é o tempo. O projeto de Rabelo defende os que querem agarrar tudo o que puderem, já. No futuro, ora: seus netos irão estudar e viver no exterior. Do outro lado, os que se preocupam com as gerações que vão continuar vivendo no Brasil quando todo o interior do País for igual às regiões mais secas do Nordeste atual - algumas das quais já foram ricas, verdes e férteis, antes de ser desmatadas pela agricultura predatória. Que pelo menos contava, no início do século 20, com o beneplácito da ignorância.  

sábado, 26 de junho de 2010

Este mundo da injustiça globalizada - José Saramago

Texto lido no encerramento do Fórum Social Mundial de 2002.


Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. 

Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. 

Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. 

Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. 

Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.

Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. 

Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica.

E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.






sexta-feira, 25 de junho de 2010

O verdadeiro propósito da Economia e o valor fundamental que orienta a economia normativa - Marcus Eduardo de Oliveira


[EcoDebate] Em geral, é comum acreditar-se que os economistas sejam, por natureza, estreitos e egoístas. Uma possível justificativa para essa crença – largamente difundida, diga-se de passagem – repousa no fato dos economistas defenderem, grosso modo, a prática do individualismo como ação motivadora do progresso. Em outras palavras, em termos econômicos, é o “salve-se quem puder”. Isso leva, em sentido geral, a típica e habitual confusão de entender que sucesso/progresso está estritamente relacionado com acumulação individual de bens, num êxtase sem precedentes à prática materialista.


Todavia, desde que o escocês Adam Smith (1723-1790) consagrou a idéia de que uma “mão invisível” age para assegurar a consistência dos planos individuais e, por isso, no final, ver prevalecido o interesse de toda a sociedade, reforçou-se substancialmente o sentimento em favor de que cada um deve, individualmente, buscar avançar à sua maneira. No entanto, esse mesmo Smith, fazendo uso das contribuições da filosofia estóica, apontou que “o homem deve considerar-se não separado e desvinculado, mas um cidadão do mundo, um membro da vasta comunidade da natureza”. (SMITH, 1790, apud SEN, 2002).

Conquanto, a partir desse pressuposto em prol da ação individual, regulada pela “mão invisível” (invisible hand) como se cada agente econômico (consumidor, empresas, governo) agisse o tempo todo de forma isolada e não-interrelacionada, é possível concluir o seguinte: deve-se buscar a melhoria individual e dane-se o resto.
Dessa forma, à medida que o individualismo é então enaltecido e decantado em verso e prosa pela economia tradicional, inegavelmente cria-se considerável contribuição no sentido de desviar a ciência econômica de seus verdadeiros pressupostos, incluídos aí o principal deles: estabelecer uma melhoria social e levar às pessoas o bem-estar.
Assim sendo, isso nos leva então, forçosamente, a uma indagação de essência puramente reflexiva: qual é o valor fundamental que orienta a economia normativa – aquela economia cujo princípio indica como devem se comportar os indivíduos? Na base, a pergunta mais apropriada é: como deveria ser a ação econômica?
Antes de nos ocuparmos a responder essa indagação, sabendo ser a Economia uma disciplina que nos leva a compreender o mundo, cabe pontuar algumas pertinentes considerações.
* O conceito central em economia não é o dinheiro
Primeiramente, não percamos de vista a noção de que o conceito central em economia não é o dinheiro, como muitos acreditam; mas, antes, o incentivo, e, no final, as expectativas. Os pressupostos que fundamentam a teoria econômica dominante apontam para o seguinte: as pessoas agem, em geral, de acordo aos seus incentivos, esperando obter algo logo mais a frente. Também de forma bem geral, as pessoas respondem de acordo com suas necessidades (esse é o indicador de referência) e, a partir da satisfação dessas necessidades, abre-se relevante espaço para a obtenção da tão desejada felicidade (o ponto a ser atingido); ainda que essa tal felicidade, filosoficamente, seja algo extremamente subjetivo, com margem considerável de ampliação para uma correta compreensão desse fenômeno.
No entanto, tomemos ao menos uma colocação a esse respeito. A filosofia moral de John Stuart Mill (1806-1873), por exemplo, sobre isso, acentua que “felicidade” se resume a “prazer e ausência de dor”. Isso, dizia Stuart Mill, “são as únicas coisas desejáveis como fins”.
Como também foi um bom economista social, Stuart Mill sabia que a qualidade do prazer não é menos importante do que a sua quantidade. E, em nenhum momento, a questão de se ter muito ou pouco dinheiro se apresenta como condição fundamental (sine que non) para a obtenção de prazer ou ausência de dor, para ficarmos apenas no pensamento de Mill, visando não estender esse assunto. Portanto, não me parece descabido afirmar que, para Stuart Mill, não há uma correlação positiva entre o nível de renda e a felicidade.
No entanto, para o tradicional pensamento econômico, há uma corrente de seguidores que enxergam e refletem a questão do dinheiro (do acesso a ele) como sendo o ponto central da economia. Para esses, tudo deve girar, por conseqüência, em torno da obtenção do dinheiro. Daí a existência do postulado que assegura que o bem-estar/felicidade aumenta em função do rendimento. A variável renda, nesse caso, é vista como altamente significativa para a determinação da felicidade. Visto unicamente por esse prisma, basta aumentar o salário (ou qualquer outra maneira de obter dinheiro) que a felicidade se apresenta logo mais a frente. O dinheiro seria, nesse ponto, absoluto e potencialmente gerador de felicidade. Nesse aspecto, os indivíduos tenderiam puramente a se comportar somente a partir de (em função de) suas rendas, e de nada mais.
Ora, restringir a ação do indivíduo apenas e tão somente em função de seus rendimentos é tornar as próprias ações desses indivíduos numa estreiteza sem precedentes. Se a obtenção de dinheiro fosse, de fato e, de direito, uma pré-condição para a obtenção da plena felicidade, todos os habitantes dos países cuja renda per capita é elevadíssima certamente teriam, na média, a efetiva sensação de viverem num “paraíso”, cuja felicidade resplandeceria em cada canto. Isso seria, pois, o supra-sumo da ação da “mão invisível”, criando, na essência, a partir do alto rendimento de cada um, (pelo conceito per capita), uma espécie de “paraíso econômico”, sem a ausência de dor (conceito de Mill) e, também, sem a incidência de nenhum outro tipo de crise econômica, de desajuste macroeconômico, taxa de desemprego, recessão, sofrimento econômico etc. Nessa linha de análise, basta agir individualmente, tendo pode de compra elevado, pois a felicidade trata-se puramente de um “objeto” comprável que está ao alcance desses abonados.
O mundo econômico, por esse sentimento tipicamente monetário, seria então mais que perfeito se fosse, reiteramos, o dinheiro (melhor dito: o rendimento pessoal) atributo fundamental e determinante de sucesso, de bem-estar e, até mesmo de possibilidade de se auferir vida longa. Como isso está longe de ser verdadeiro, sendo nada mais que um sofisma, o propósito principal da economia então parece não ser esse de característica puramente mercantil. Afinal, parece-nos que ainda não foi “elaborado” um custo monetário para se medir essa tal felicidade.
* A Utilidade interpretada como bem-estar
Embora a utilidade, em termos econômicos, seja tipicamente interpretada como bem-estar, à reflexão que cabe aos economistas modernos é se essa “utilidade” representa adequadamente o “bem-estar”. Ou, dito de outra forma, se a felicidade está relacionada à obtenção de utilidades, sendo, tanto o conceito de utilidade, quanto o de felicidade, algo de difícil mensuração, uma vez que envolve uma gama distinta de sensações e pressupostos particulares.
Conquanto, uma coisa é certa: a economia moderna não dá muita atenção a esse princípio, nem a conceitos que se aproximam dessa tal felicidade, tais como, direitos morais e liberdade.

O fato é que é muito difícil aceitar a existência de uma ciência social, como é o caso da Economia, que não faça uso (e nem raramente menciona) do conceito de liberdade em seus pressupostos básicos. Logo, é urgente redefinir a essência dessa ciência econômica, estabelecendo, em definitivo, seu verdadeiro propósito. Sobre isso não pode haver celeuma, muito menos qualquer tipo de incertezas.
* O essencial em termos de Economia
Julgamos, nesse pormenor, que o essencial em termos de economia – longe da essência monetária, é importante frisar – é a questão social. O propósito é levar à sociedade desenvolvimento social. Insistindo nesse assunto, o verdadeiro propósito da economia, para usarmos as palavras do professor Tyler Cowen “é obter mais das boas coisas da vida” (**) e, a sacada econômica mais relevante, por incrível que pareça, é que se pode obter as boas coisas da vida mesmo sem ter dinheiro.
Para concluir, cabe apontar que num mundo cercado de constantes injustiças e de crescente desrespeito aos valores que enaltecem a essência da vida (e do bem viver), buscar o bem-estar (e a condição de estar bem), pelas lentes da ciência econômica, nos parece que deva estar acima de qualquer outro pensamento.
Afinal de contas, a economia – uma ciência puramente social – carrega consigo essa finalidade: fazer com que a vida dos mais necessitados melhore substancialmente. Isso envolve, todavia, fazer com que esses atinjam a “felicidade”, ainda que venhamos a concluir que essa tal felicidade seja sempre uma conseqüência (e não o propósito) da realização (isso sim o propósito) daquilo que tanto se deseja. E, para isso, não importa especificamente aumentar os rendimentos pessoais – a variável renda não seria então fortemente significativa nesse caso. Basta, apenas, fazer a inclusão dos necessitados num sistema que seja, por si só, capaz de agregá-los (e não de excluí-los) e de lhes dar o devido valor (e não de tirar-lhes), incluindo, é claro, obter, no fim, essa tal felicidade.
(**) Descubra o seu economista interior, de Tyler Cowen, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2009.
Marcus Eduardo de Oliveira, Economista brasileiro, é especialista em Política Internacional. Articulista do site “O Economista”, do Portal EcoDebate e da Agência Zwela de Notícias (Angola). Autor dos livros “Conversando sobre Economia”, “Pensando como um Economista” e “Provocações Econômicas” (no prelo). Os artigos desse autor em torno de questões econômicas têm sido amplamente publicados no Brasil e no exterior, com destaque em Portugal, Cabo Verde, Timor Leste e Angola.
Contato: prof.marcuseduardo{at}bol.com.br

terça-feira, 22 de junho de 2010

VALORES PARA EL SIGLO XXI - Jordi Pigem



Quisiera compartir desde Barcelona (España) este articulo de Jordi Pigem

Xavier

Vivimos en un mundo interdependiente. Si el ámbito de experiencia de la mayoría de nuestros antepasados no iba más allá de la comunidad local, hoy nos afecta lo que ocurre en lugares remotos y nuestras acciones tienen también repercusiones globales. Disciplinas tan dispares como la física cuántica, la ecología y la geopolítica confirman día a día la interdependencia de cosas que hasta hace poco veíamos como separadas. Simultáneamente, a la vez que la economía, la experiencia y el conocimiento expanden su marco parece también expandirse lo que podríamos llamar nuestro horizonte ético: el horizonte que abarca a todos aquellos que identificamos como nuestros semejantes. 

 En la antigua Atenas el horizonte ético solo abarcaba a los hombres libres allí nacidos: mujeres, esclavos y forasteros no eran ciudadanos de pleno derecho. Cuando, a finales del siglo XVIII, Mary Wollstonecraft publicó un ensayo defendiendo la igualdad de derechos de la mujer, un irritado varón replicó que si las mujeres habían de tener derechos también podrían tenerlos los animales. En las últimas décadas han cobrado fuerza iniciativas que aspiran a ampliar el horizonte ético más allá de lo humano, afirmando nuestra responsabilidad hacia los animales (especialmente los primates), los ecosistemas o la Tierra entera. Ya en 1975, el filósofo australiano Peter Singer (hoy catedrático de bioética en Princeton), desde una fría perspectiva utilitarista daba alas al movimiento por los derechos de los animales con su clásico Animal liberation. En Francia, Michel Serres planteó considerar el mundo como sujeto de derecho en Le contrat naturel (1990), mientras que Bruno Latour proponía un “parlamento” de la naturaleza en Politiques de la nature (1999). Hoy se plantea crear una “jurisprudencia de la Tierra” que reconozca al planeta como pleno sujeto de derecho. Uno de sus impulsores es el norteamericano Thomas Berry, para quien “el mundo no es un conjunto de objetos sino una comunidad de sujetos”.

 Por más que queda mucho por hacer para que la Declaración Universal de los Derechos Humanos sea algo más que una declaración, esta Carta Magna aprobada en 1948 refleja presupuestos culturales que hoy empiezan a ser obsoletos: el ‘individuo’ al que se refiere es un ser acósmico, huérfano de naturaleza, que parece vivir sin aire ni agua y cuya única relación con el mundo es el derecho de propiedad. Hace ahora veinte años, la Comisión de Medio Ambiente y Desarrollo de Naciones Unidas pidió la elaboración de una nueva Carta Magna que pusiera al día nuestros principios éticos y sentara los principios de una sociedad sostenible. Ello dio lugar, durante más de diez años, al proceso de consulta más abierto y participativo que jamás haya generado una declaración internacional. Aportaron propuestas y revisiones cientos de organizaciones de la sociedad civil y miles de personas de todo el mundo, incluyendo políticos de prestigio (Mikhail Gorbachev), empresarios (Maurice Strong), académicos (Steven Rockefeller, Mary Evelyn Tucker) y líderes indígenas. En junio del año 2000 se presentó oficialmente en La Haya el texto final de la Earth Charter o Carta de la Tierra, bajo los auspicios de la reina Beatriz de Holanda. Desde entonces, el texto ha ido recibiendo el apoyo de miles de organizaciones de todos los ámbitos y, mientras se espera que sea aprobado por Naciones Unidas, cuenta ya con el apoyo de su brazo cultural y educativo, la UNESCO. 

 Descartes quiso convertirnos en maîtres et possesseurs de la nature; para ello, la revolución ontológica del siglo XVII dejó al mundo sin vida y lo convirtió en suma arbitraria de objetos, listos para ser poseídos, clasificados, manipulados y consumidos. Hasta hace poco hemos soñado con ser señores de la naturaleza: nos hemos creído muy superiores, y nos hemos ido sintiendo cada vez más solos. Hoy sabemos que nuestro rumbo no es sostenible a nivel económico, ecológico o psicológico y que, como afirma la Earth Charter, “estamos en un momento crítico de la historia de la Tierra” y necesitamos transformar profundamente “nuestros valores, instituciones y formas de vida”.

 Entre las muchas iniciativas para promover la Carta de la Tierra destaca la del maestro de escuela mallorquín Guillem Ramis i Moneny, que junto con otros educadores y desde el programa Vivim Plegats ha elaborado diversas adaptaciones infantiles y juveniles de este texto para su uso en escuelas (a partir de los tres años de edad) de las que hay versiones en catalán, castellano, euskera, gallego y otras ocho lenguas. Entre 2000 y 2004 unas ochenta escuelas de Mallorca, Menorca, Eivissa y Formentera participaron en el proyecto, que desde entonces se ha extendido por España y a nivel internacional. Dos Fòrums d’Infants celebrados en Mallorca incorporaron principios de la Carta de la Tierra, enseñando a los niños a respetarse a sí mismos, al mundo y a los demás a través de juegos, cuentos, diálogos, dibujos y canciones. Desde Madrid la Fundación Valores promueve activamente la Carta de la Tierra en colaboración con Leonardo Boff y Federico Mayor Zaragoza, ambos miembros de la Earth Charter Comission.

 La Carta de la Tierra refleja un cambio de sensibilidad que parece estar amaneciendo, sigilosamente, bajo el estruendo de las guerras e injusticias contemporáneas. Hace algo más de tres cuartos de siglo, en la última página de su última obra, D.H. Lawrence anunciaba una creciente conciencia planetaria: “Mis pies saben perfectamente que soy parte de la tierra, y mi sangre es parte del mar… No hay ninguna parte de mí que exista por su cuenta, excepto, tal vez, mi mente, pero en realidad mi mente es solo un fulgor del sol sobre la superficie de las aguas”. Por los mismos años, durante un atardecer en el África tropical, el filósofo, teólogo, músico y médico alsaciano Albert Schweitzer avanzaba a través de una manada de hipopótamos cuando, de repente, la expresión “reverencia por la vida” (Ehrfurcht vor dem Leben) amaneció en su mente. Durante el resto de su vida este premio Nobel de la Paz consideró que la reverencia por la vida era lo que más necesitaba el mundo. Hoy parece todavía más necesaria. Tal vez se trate, como afirma la Carta de la Tierra, de aprender a vivir “con reverencia ante el misterio del ser, con gratitud por el regalo de la vida y con humildad con respecto al lugar que ocupa el ser humano en la naturaleza”.
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Commonwealth: amor e pós-capitalismo - Bruno Cava

bibliotecadiplô e OUTRASPALAVRAS
Boletim de atualização de Outras Palavras e Biblioteca Diplô - Nº 8 - 22 de junho de 2010


Por Bruno Cava | Imagem: Odalisca, de Henri Matisse (detalhe)
Déjeme decirle, a riesgo de parecer ridículo,
que el revolucionário verdadero está guiado
por grandes sentimientos de amor
Ernesto Guevara
Antônio Negri esteve no Brasil em 2003, na sua primeira viagem internacional depois de ser libertado da prisão, após cumprir pena na Itália por sua militância nos anos 1970. Durante a década, fez outras viagens à América do Sul, para conhecer de perto os movimentos de transformação catalisados pelos governos de esquerda no Brasil, na Argentina e na Bolívia. Nessas ocasiões, ofereceu palestras, participou de congressos, foi entrevistado pelo programa Roda Viva, dividiu mesa de debates com Gilberto Gil, defendeu sem papas na língua o governo Lula e lançou um livro em que discute diretamente a realidade social latino-americana (“Global: biopoder e lutas em uma América Latina globalizada”, 2005, em co-autoria com Giuseppe Cocco).
Não me esqueço de uma passagem marcante de uma dessas vindas. À noite, no bairro de Santa Teresa (Rio de Janeiro), fora do circuito oficial de eventos acadêmicos, Negri prelecionava para um círculo de conhecidos sobre as nuances políticas de seu sistema-mundo. Lá pelas tantas, um artista performático presente interrompeu-o com impaciência: “Tá bom, Toni, mas agora fala um pouco do amor! Do amor!”. Tinha tudo pra resultar em saia-justa, mas o filósofo italiano prontamente passou a discorrer sobre o conceito de amor e sua importância capital dentro do pensamento de esquerda. Impressionou os presentes.
Tomando a sua obra, chega-se à conclusão de que não poderia ser diferente, pois o amor atravessa-a de ponta a ponta. Bebendo da inesgotável filosofia de Spinoza, em “Anomalia Selvagem” (1981) o amor já aparece como constituinte da potência revolucionária, a partir da multiplicação do desejo (cupiditas) e da força em desenvolvê-lo (vis). Tema desenvolvido posteriormente em dezenas de livros, muitos dos quais traduzidos para o português, como O Poder ConstituinteDe voltaKairós, Alma Vênus, MultitudoO Trabalho de DionisoAdeus Sr. Socialismo, entre outros.
Nesse projeto, Commonwealth se propõe a inventar um novo amor.
Último livro da trilogia escrita a quatro mãos com Michael Hardt, – seqüenciandoImpério (2000) e Multidão (2004), – o livro saiu pela Harvard University Press no ano passado e ainda aguarda versão em português. O título não deve ser traduzido porComunidade, mas por Comum– mas bem poderia ficar Amor e Comum. De fato, os autores declaram que o amor é essencial para a filosofia e a política. Sem ele, e sem a arte dos bons encontros que o favorece, não se pode falar em libertação e democracia. Constituir um novo homem e uma nova sociedade implica radicalizar o amor – no comum de formas de vida, bens, afetos, imagens e conhecimentos. “O amor é uma força econômica.” O amor não tem medida, é só excesso, vence a morte e opera a revolução, como princípio da organização (política) da produção. Eis aí síntese cúpida do livro de 433 páginas.
Para fazer bom proveito de Commonwealth, não é preciso recorrer à obra pregressa da parceria Negri e Hardt. O livro arremata os dois anteriores e amadurece as suas questões, problemas e conceitos. Se o robusto estofo filosófico é assegurado pelo intelectual padovano de 76 anos, a prosa fluida, simples e atlética é tributária de Michael Hardt – professor de literatura de língua inglesa. Indicado, portanto, para quem desgosta de penosos e herméticos livros de filosofia e concorda com Ortega y Gasset: “a clareza é a cortesia do filósofo.” Hardt, por sinal, é autor de uma das mais límpidas introduções ao pós-estruturalismo francês (Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia, 1993).

Um amor que mobiliza a cidade dos homens,
é combinação produtiva de desejos e afetos,
passa longe da família, carreira profissional e nação

Voltando ao texto, Commonwealth resgata Dante e sua noção de vita nuova. Esta se realiza na comunhão de amor que mobiliza a cidade dos homens em busca da autonomia, da riqueza e da igualdade. Amor nada sentimental, que se desdobra ética, estética e politicamente. Cupidez que é causa e consequência, em ciclo virtuoso, da liberdade e potência de cada um, na sua combinação produtiva de desejos e afetos. Portanto, amor que passa longe da família, da carreira profissional e da nação – três vilões a bloquear o comum e expropriá-lo em nome de felicidades atrofiadas, impotentes e socialmente desiguais. A família corrompe-o pela exclusividade afetiva, hierarquia paternal, narcisismo filial e mecanismos de transferência de propriedade. A carreira profissional compromete-o pela alienação do trabalho, o individualismo, o controle patronal e a concepção unidimensional de tempo. E a nação pela homogeneização das diferenças, a imposição das maiorias, a xenofobia intrínseca e os ideais abstratos de glória, sacrifício e destino coletivo.
Com efeito, todo o último livro da trilogia pode ser lido como uma sinfonia, pautada pela repetição de motivos rítmicos e melódicos, ao redor do tema do amor revolucionário. Isto é, do comumCommonwealth consiste assim num tratado de democracia radical, numa reedição contemporânea da Política arquetípica, dividida em seis partes densamente discursivas, entremeadas por seis ensaios mais leves e de imaginação livre (De CorporeDe Homine e De Singularitate, cada qual subdividido em dois capítulos). A orquestração retorna muitas vezes às mesmas cadeias argumentativas, porém sobre territórios discursivos diferentes, que vão da ontologia à antropologia, da filosofia da história à geopolítica, da ética à economia política. Logo, corta em diagonal os campos do conhecimento, em total transdisciplinariedade.
É impróprio falar em influências teóricas do livro, uma vez que não há compromisso com rigor exegético. Deliberadamente. Na realidade, perspectivista, o texto mobiliza autores amiúde contra eles mesmos. Trata-se de achar o devir minoritário do pensador que serve de referência. Esse conceito de Gilles Deleuze designa o procedimento de seleção de linhas conceituais periféricas, ocultas, menores no sistema de outro autor – o ponto de fuga é então, por assim dizer, repatriado em nova perspectiva.
Por isso, comparece em Commonwealth um Karl Marx minoritário, extraído não da vasta ortodoxia socialista, mas dos marxianos Grundrisse – cadernos manuscritos, volumosos e não-publicados em vida, onde o autor aponta outras direções a seu pensamento. Daí a sintonia da obra com o materialismo transformador, a análise fina do estatuto do trabalho (atualmente pós-industrial) e a recusa à república da propriedade e aos direitos burgueses. Mas, ao mesmo tempo, a dissintonia com a dialética histórica, a teleologia da ditadura do proletariado e teorias do colapso do capitalismo como evento transcendente, que vem de fora para abolir as classes por decreto.
Estas teorias, aliás, são enfrentadas logo na primeira parte, sob a legenda discurso apocalíptico. Os autores têm como alvo principal o filósofo Giorgio Agamben – autor dos hits acadêmicos Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (1995) e Estado de exceção (2003), – para quem somente uma ruptura radical, ontológica e messiânica poderia salvar a civilização ocidental de sua falência política. Negri e Hardt chegam a convocar o mitólogo Evêmero (IV a.C). No evemerismo, o foco em teorias escatológicas “eclipsa e mistifica as formas dominantes de poder que continuam a reinar hoje – poder da propriedade e do capital, poder respaldado pela lei”.
Também onipresente no texto negri-hardtiano um Michel Foucault minoritário, abduzido de seus livros e cursos do final da década de 1970. Neles, o professor do Colégio da França discorre sobre a matriz biopolítica do poder (ou biopoder). Ou seja, um governo instaurado sobre os viventes e as populações, com base em saberes biológicos, médicos, psicológicos, estatísticos. Na esteira de outro intelectual, Gilles Deleuze, Commonwealth insiste no duplo sentido do poder na filosofia de Foucault. Se por um lado, a partir do vivente, o biopoder expõe, esquadrinha, controla e assim constitui o sujeito; por outro lado, a vida possui um rendimento positivo que independe daquele. Em síntese, a resistência biopolítica não aparece a posteriori do exercício do poder e não está enclausurada irremediavelmente em sua operação de captura. A resistência precede o poder, como a sua condição. Logo, o biopoder (opressão) não se confunde com a biopolítica (resistência). A resistência é primeira. Ontologicamente.

Para produzir, o capitalismo precisa agora
conceder liberdade. Mas ela, potencializada pelo desejo,
pode dispensar o sistema – violentamente, se preciso

Em termos práticos: pode existir enfim uma saída, para contornar e subverter as malhas cada vez mais cerradas e abrangentes das sociedades de controle. Existe uma escapatória para o pensamento e a ação de esquerda, que não finde recodificada e domesticada pelo capitalismo. Existe uma alternativa para a modernidade capitalista – a altermodernidade analisada ao longo do livro. E essa saída não é ex machina, como o deus de mentira que irrompia no palco para salvar o dia, ao final das peças gregas. Para Negri e Hardt, não adianta reinventar a roda. Os movimentos de libertação já trabalham na construção do comum, num fazer multidão baseado em redes colaborativas, no trabalho imaterial, na militância glocal (global + local), na produção de renda por fora dos circuitos capitalistas de fixação/exploração do trabalho. A análise de Negri e Hardt não opera pelo lado do poder, mas sob a espécie da resistência: “As lutas pela liberdade determinam todo o desenvolvimento das estruturas de poder”.
Se para os apocalípticos e pessimistas de esquerda, há um buraco negro no horizonte, uma sociedade inteiramente submetida a dispositivos difusos e perversos de controle, para os autores de Commonwealth a sociedade contemporânea vaza por todos os lados e é o poder capitalista quem padece de um impasse. Para produzir numa sociedade pós-industrial, o capitalismo precisa conceder liberdade e promover a produtividade imanente à vida. Mas essa mesma liberdade, potencializada pelo desejo, constituída no comum, articulada em multidão, inebriada de amor, pode dispensá-lo – violentamente, se preciso. É o drama de conter um lobo pelas orelhas: se soltá-lo, ele foge; mas se continuar segurando-o, ele morde.
O novo amor de que fala Commonwealth não se traduz por otimismos poliânicos ou entusiasmos ingênuos. Não é tampouco uma nova aposta pascalina: como se fosse preciso resistir porque não teríamos outra opção. Para os autores, o amor revolucionário significa que é preciso resistir porque é desejável. Porque queremos. E se não há garantias de que, resistindo, o amanhã será melhor, podemos “reconhecer que essa contingência não deve levar a conclusões cínicas, a ignorar o fato que sim, é possível mudar a sociedade e a nós mesmos”. Afinal, a grande felicidade, fazer tudo aquilo que somos capazes em comum, a beatitude de Spinoza, conquista-se politicamente na multiplicação de vida que é a própria revolução democrática

SER(ES) AFINS