[EcoDebate] Em geral, é comum acreditar-se que os economistas sejam, por natureza, estreitos e egoístas. Uma possível justificativa para essa crença – largamente difundida, diga-se de passagem – repousa no fato dos economistas defenderem, grosso modo, a prática do individualismo como ação motivadora do progresso. Em outras palavras, em termos econômicos, é o “salve-se quem puder”. Isso leva, em sentido geral, a típica e habitual confusão de entender que sucesso/progresso está estritamente relacionado com acumulação individual de bens, num êxtase sem precedentes à prática materialista.
Todavia, desde que o escocês Adam Smith (1723-1790) consagrou a idéia de que uma “mão invisível” age para assegurar a consistência dos planos individuais e, por isso, no final, ver prevalecido o interesse de toda a sociedade, reforçou-se substancialmente o sentimento em favor de que cada um deve, individualmente, buscar avançar à sua maneira. No entanto, esse mesmo Smith, fazendo uso das contribuições da filosofia estóica, apontou que “o homem deve considerar-se não separado e desvinculado, mas um cidadão do mundo, um membro da vasta comunidade da natureza”. (SMITH, 1790, apud SEN, 2002).
Conquanto, a partir desse pressuposto em prol da ação individual, regulada pela “mão invisível” (invisible hand) como se cada agente econômico (consumidor, empresas, governo) agisse o tempo todo de forma isolada e não-interrelacionada, é possível concluir o seguinte: deve-se buscar a melhoria individual e dane-se o resto.
Dessa forma, à medida que o individualismo é então enaltecido e decantado em verso e prosa pela economia tradicional, inegavelmente cria-se considerável contribuição no sentido de desviar a ciência econômica de seus verdadeiros pressupostos, incluídos aí o principal deles: estabelecer uma melhoria social e levar às pessoas o bem-estar.
Assim sendo, isso nos leva então, forçosamente, a uma indagação de essência puramente reflexiva: qual é o valor fundamental que orienta a economia normativa – aquela economia cujo princípio indica como devem se comportar os indivíduos? Na base, a pergunta mais apropriada é: como deveria ser a ação econômica?
Antes de nos ocuparmos a responder essa indagação, sabendo ser a Economia uma disciplina que nos leva a compreender o mundo, cabe pontuar algumas pertinentes considerações.
* O conceito central em economia não é o dinheiro
Primeiramente, não percamos de vista a noção de que o conceito central em economia não é o dinheiro, como muitos acreditam; mas, antes, o incentivo, e, no final, as expectativas. Os pressupostos que fundamentam a teoria econômica dominante apontam para o seguinte: as pessoas agem, em geral, de acordo aos seus incentivos, esperando obter algo logo mais a frente. Também de forma bem geral, as pessoas respondem de acordo com suas necessidades (esse é o indicador de referência) e, a partir da satisfação dessas necessidades, abre-se relevante espaço para a obtenção da tão desejada felicidade (o ponto a ser atingido); ainda que essa tal felicidade, filosoficamente, seja algo extremamente subjetivo, com margem considerável de ampliação para uma correta compreensão desse fenômeno.
No entanto, tomemos ao menos uma colocação a esse respeito. A filosofia moral de John Stuart Mill (1806-1873), por exemplo, sobre isso, acentua que “felicidade” se resume a “prazer e ausência de dor”. Isso, dizia Stuart Mill, “são as únicas coisas desejáveis como fins”.
Como também foi um bom economista social, Stuart Mill sabia que a qualidade do prazer não é menos importante do que a sua quantidade. E, em nenhum momento, a questão de se ter muito ou pouco dinheiro se apresenta como condição fundamental (sine que non) para a obtenção de prazer ou ausência de dor, para ficarmos apenas no pensamento de Mill, visando não estender esse assunto. Portanto, não me parece descabido afirmar que, para Stuart Mill, não há uma correlação positiva entre o nível de renda e a felicidade.
No entanto, para o tradicional pensamento econômico, há uma corrente de seguidores que enxergam e refletem a questão do dinheiro (do acesso a ele) como sendo o ponto central da economia. Para esses, tudo deve girar, por conseqüência, em torno da obtenção do dinheiro. Daí a existência do postulado que assegura que o bem-estar/felicidade aumenta em função do rendimento. A variável renda, nesse caso, é vista como altamente significativa para a determinação da felicidade. Visto unicamente por esse prisma, basta aumentar o salário (ou qualquer outra maneira de obter dinheiro) que a felicidade se apresenta logo mais a frente. O dinheiro seria, nesse ponto, absoluto e potencialmente gerador de felicidade. Nesse aspecto, os indivíduos tenderiam puramente a se comportar somente a partir de (em função de) suas rendas, e de nada mais.
Ora, restringir a ação do indivíduo apenas e tão somente em função de seus rendimentos é tornar as próprias ações desses indivíduos numa estreiteza sem precedentes. Se a obtenção de dinheiro fosse, de fato e, de direito, uma pré-condição para a obtenção da plena felicidade, todos os habitantes dos países cuja renda per capita é elevadíssima certamente teriam, na média, a efetiva sensação de viverem num “paraíso”, cuja felicidade resplandeceria em cada canto. Isso seria, pois, o supra-sumo da ação da “mão invisível”, criando, na essência, a partir do alto rendimento de cada um, (pelo conceito per capita), uma espécie de “paraíso econômico”, sem a ausência de dor (conceito de Mill) e, também, sem a incidência de nenhum outro tipo de crise econômica, de desajuste macroeconômico, taxa de desemprego, recessão, sofrimento econômico etc. Nessa linha de análise, basta agir individualmente, tendo pode de compra elevado, pois a felicidade trata-se puramente de um “objeto” comprável que está ao alcance desses abonados.
O mundo econômico, por esse sentimento tipicamente monetário, seria então mais que perfeito se fosse, reiteramos, o dinheiro (melhor dito: o rendimento pessoal) atributo fundamental e determinante de sucesso, de bem-estar e, até mesmo de possibilidade de se auferir vida longa. Como isso está longe de ser verdadeiro, sendo nada mais que um sofisma, o propósito principal da economia então parece não ser esse de característica puramente mercantil. Afinal, parece-nos que ainda não foi “elaborado” um custo monetário para se medir essa tal felicidade.
* A Utilidade interpretada como bem-estar
Embora a utilidade, em termos econômicos, seja tipicamente interpretada como bem-estar, à reflexão que cabe aos economistas modernos é se essa “utilidade” representa adequadamente o “bem-estar”. Ou, dito de outra forma, se a felicidade está relacionada à obtenção de utilidades, sendo, tanto o conceito de utilidade, quanto o de felicidade, algo de difícil mensuração, uma vez que envolve uma gama distinta de sensações e pressupostos particulares.
Conquanto, uma coisa é certa: a economia moderna não dá muita atenção a esse princípio, nem a conceitos que se aproximam dessa tal felicidade, tais como, direitos morais e liberdade.
O fato é que é muito difícil aceitar a existência de uma ciência social, como é o caso da Economia, que não faça uso (e nem raramente menciona) do conceito de liberdade em seus pressupostos básicos. Logo, é urgente redefinir a essência dessa ciência econômica, estabelecendo, em definitivo, seu verdadeiro propósito. Sobre isso não pode haver celeuma, muito menos qualquer tipo de incertezas.
* O essencial em termos de Economia
Julgamos, nesse pormenor, que o essencial em termos de economia – longe da essência monetária, é importante frisar – é a questão social. O propósito é levar à sociedade desenvolvimento social. Insistindo nesse assunto, o verdadeiro propósito da economia, para usarmos as palavras do professor Tyler Cowen “é obter mais das boas coisas da vida” (**) e, a sacada econômica mais relevante, por incrível que pareça, é que se pode obter as boas coisas da vida mesmo sem ter dinheiro.
Para concluir, cabe apontar que num mundo cercado de constantes injustiças e de crescente desrespeito aos valores que enaltecem a essência da vida (e do bem viver), buscar o bem-estar (e a condição de estar bem), pelas lentes da ciência econômica, nos parece que deva estar acima de qualquer outro pensamento.
Afinal de contas, a economia – uma ciência puramente social – carrega consigo essa finalidade: fazer com que a vida dos mais necessitados melhore substancialmente. Isso envolve, todavia, fazer com que esses atinjam a “felicidade”, ainda que venhamos a concluir que essa tal felicidade seja sempre uma conseqüência (e não o propósito) da realização (isso sim o propósito) daquilo que tanto se deseja. E, para isso, não importa especificamente aumentar os rendimentos pessoais – a variável renda não seria então fortemente significativa nesse caso. Basta, apenas, fazer a inclusão dos necessitados num sistema que seja, por si só, capaz de agregá-los (e não de excluí-los) e de lhes dar o devido valor (e não de tirar-lhes), incluindo, é claro, obter, no fim, essa tal felicidade.
(**) Descubra o seu economista interior, de Tyler Cowen, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2009.
Marcus Eduardo de Oliveira, Economista brasileiro, é especialista em Política Internacional. Articulista do site “O Economista”, do Portal EcoDebate e da Agência Zwela de Notícias (Angola). Autor dos livros “Conversando sobre Economia”, “Pensando como um Economista” e “Provocações Econômicas” (no prelo). Os artigos desse autor em torno de questões econômicas têm sido amplamente publicados no Brasil e no exterior, com destaque em Portugal, Cabo Verde, Timor Leste e Angola.
Contato: prof.marcuseduardo{at}bol.com.br
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