sexta-feira, 30 de julho de 2010

A (Feliz) Cidade do Futuro - Carlos Cardoso Aveline





 
 
 Cidades Mais Solidárias Surgirão Ao Longo do Século 21
 
 
Carlos Cardoso  Aveline
 
Os povos têm alma. As cidades têm alma.  A ciência esotérica afirma que o próprio  universo não só possui uma alma, mas evolui segundo um plano divino definido por ela. E também que nada pode existir sem uma essência sutil inspiradora, seja ela chamada de alma, espírito, buddhi ou mônada. É ela que define a razão de ser, a meta e o ideal de cada um de nós. 
 
A alma está presente em todas as coisas, mas nem sempre somos capazes de aceitar este fato, e às vezes agimos como se o mundo fosse 'desalmado'. Para perceber com nitidez a existência   da alma fora de nós, é necessário fortalecer profundamente o contato com ela em nosso interior.  Perceber é sempre uma questão de sintonia.
 
A compaixão e a solidariedade brotam quando nossa alma está presente de fato no modo como olhamos as coisas.
 
A palavra sânscrita namastê, uma saudação indiana tradicional, pode ser traduzida da seguinte maneira: 'A alma imortal presente em mim saúda a alma imortal presente em você'.
 
Mário Quintana escreveu que a amizade sincera ocorre quando 'a alma muda de casa'. Colocamos nossa alma em tudo aquilo com que nos identificamos. 
 
Na Rússia  antiga, a população era contada com ajuda dessa palavra: uma cidade tinha, por exemplo, cinco ou sete mil almas.
 
Desse ponto de vista, nenhuma crise ou grau de violência urbana pode alterar a realidade básica: as cidades brasileiras são grandes conglomerados de almas, verdadeiros oceanos de energia espiritual, mental e emocional. Os dramas que elas vivem constituem os desafios necessários para que a alma coletiva desperte, perceba o seu próprio potencial de paz e harmonia ― e mude o mundo físico como consequência da sua mudança interior. 
 
A alma coletiva de uma população urbana   ameaçada   pela  contaminação ambiental, violência, pobreza e corrupção dos administradores está necessariamente confusa e desorientada. Mas ainda vive e espera por uma chance de viver melhor.
 
O escritor Júlio Verne estava certo ao afirmar que uma cidade é como um livro. A arquitetura, o trânsito de veículos e pessoas, os sons, a organização espacial e os fluxos energéticos de um ambiente urbano não ocorrem por acaso. São mensagens: são enigmas. Podemos decifrar seu significado, porque a alma humana em evolução se reflete dinamicamente em cada cidade com todas as suas luzes e sombras. Os sentimentos de poder, ambição, desânimo, amor, solidariedade e egoísmo constroem a cidade noite e dia, fazendo dela um cenário complexo que combina com guerra e paz, decadência e renovação.
 
Há duas grandes tendências históricas perfeitamente legíveis no 'livro' das nossa cidades. Uma é a desagregação geral de uma sociedade que só acredita em valores materiais e sensoriais, mesmo quando mantém uma crença formal ou verbal em Deus. O grande centro das atenções dessa sociedade é o dinheiro em si, desvinculado do bem comum a que deveria servir. O crime, as drogas e a violência são agentes dessa destruição. Dirigentes políticos e econômicos dão o exemplo, roubando, com diferentes graus de sutileza, o dinheiro do povo trabalhador. Incapazes de compreender essa tendência e de localizar a alternativa, os movimentos sociais articulam resistências simbólicas, verbais, e se acomodam ao processo enquanto sofrem a mesma desagregação em si mesmos.
 
A outra grande tendência visível nas cidades é o surgimento de novas relações de produção e novos laços humanos baseados em uma filosofia de vida que transcende o mundo visível dos cinco sentidos e busca valores permanentes.
 
Essa nova sociedade surge no meio da antiga, trazida por uma nova religiosidade vivencial e não-dogmática, pelos movimentos espiritualistas, a ioga, os livros de auto-ajuda, o desenvolvimento da inteligência emocional no trabalho e na família, os programas de estímulo à criatividade, a arte comunitária, a música new-age, a alimentação natural e integral, a e conomia solidária  e a defesa do meio ambiente.
 
O novo e o velho estão presentes na cidade,  e é preciso talento para focar nossa consciência onde realmente queremos. A alma inspiradora desligou-se de certas estruturas sociais e e conômicas antigas, que por isso são sinais crescentes de 'enlouquecimento' e se desagregam.    
 
A alma da vida anima agora o que é novo. A alternativa surge em pequena escala,  com os erros, as dúvidas e a falta de experiência típicos de toda tendência histórica que está começando. Mas as sementes da nova cidade já germinam dentro da velha e  têm à sua disposição antigos modelos e arquétipos, alimentados durante milênios  pelo constante sonho humano de uma fraternidade universal.
 
Os gregos buscavam a cidade ideal. Pitágoras fundou Crotona, uma cidade comunitária voltada para a sabedoria e que tinha cerca de duas mil pessoas, algo significativo para a época.
 
Platão e Plutarco escreveram sobre sociedades ideais. Os cristãos primitivos viviam em suas comunidades e tinham seus bens materiais em comum. Na Idade Média, a busca da comunidade perfeita continuou a ser  incentivada pela vivência religiosa.
 
Em 1516, Thomas More criou sua "Utopia", influenciado não só pelos sábios gregos, mas pelos relatos recentes de descobrimentos.  Em sua ilha ideal, as casas não têm fechaduras ou cadeado, porque não há miséria social ou roubos. Em 1602, Tommaso Campanella escreveu "A Cidade do Sol" em um lugar incômodo onde a luz solar não chegava: sua cela de preso político, onde havia sido colocado pela Inquisição após liderar uma revolução que objetivara proclamar na Calábria uma república universal. Campanella foi tremendamente torturado e só escapou da morte porque se fingiu de louco: a Inquisição não matava alguém a quem considerasse insano. Décadas mais tarde, ele saiu da prisão e foi viver na França, protegido por Richelieu. Deu aulas na Sorbonne. [1]
 
Francis Bacon publicou em 1627 "A  Nova Atlântida", livro que descreve  uma república ideal governada por sábios.  Profeticamente, seus habitantes dispunham de aviões e submarinos.
Para que possamos compreender o futuro, a importância da contribuição de Thomas More, Tommaso Campanella, Francis Bacon e dezenas de outros pensadores e ativistas utópicos é enorme. Já no início do século 19, por exemplo, o industrial inglês Robert Owen proclamou:
 
'Chegou o momento em que uma mudança deve ser produzida. Uma nova era deve começar. O espírito humano, que até agora esteve envolvido nas trevas da ignorância, deve finalmente iluminar-se. É chegado o tempo em que todas as nações do mundo, em que todos os homens de todas as raças e de todos os climas sejam levados a um novo tipo de conhecimento. Haverá uma só linguagem e uma só nação. As grandes invenções modernas, os melhoramentos e o progresso contínuo das ciências técnicas e mecânicas (que, sob o regime do individualismo, aumentaram a miséria e a imoralidade dos produtores industriais) estão destinados, depois de ter causado tantos sofrimentos, a destruir a pobreza, a imoralidade e a miséria. As máquinas e as ciências são chamadas a fazer os trabalhos penosos e insalubres' [2]
 
 
Dono de uma fortuna, Owen comprou uma grande extensão de terras nos Estados Unidos em 1825, e fundou a comunidade "New Harmony". A experiência durou pouco: três anos depois ele havia perdido 80% da sua riqueza. Mas Owen não desistiu. Voltou para a Europa, prosseguiu expondo suas idéias de várias maneiras e é considerado um dos fundadores do socialismo. Depois de Owen vieram  Charles Fourier e outros pensadores utópicos. Em seguida surgiram os chamados socialistas científicos: Karl Marx e Friedrich Engels queriam eliminar a contradição entre cidade e campo, dando todo o poder ao trabalhador.
 
Nenhum dos projetos urbanísticos e sociais voltados para a construção de uma cidade solidária e justa teve até hoje êxito marcante, no Ocidente capitalista, porque o pensamento humano não foi capaz de resolver de modo integrado e coerente ― simultaneamente ―  os desafios psicológicos, espirituais, econômicos, políticos, culturais e urbanísticos que o ser humano enfrenta. 
 
A chave do êxito é uma estratégia integrada por todos esses aspectos da vida. O pensamento holístico surgiu no século 20 e tem tudo para transformar- se em uma prática social vitoriosa ao longo do século 21. Ele traz consigo uma consciência multidimensional, e reintegra o ser humano à natureza.
 
A partir das décadas de 1920 e 1930, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright elaborou uma das propostas urbanísticas mais interessantes para o futuro.  Ele começa fazendo uma crítica da velha cidade, que se desagrega porque perdeu contato com a alma:
 
'A felicidade do cidadão convenientemente 'urbanizado' consiste em aglutinar-se a outros dentro da desordem, iludido pelo calor hipnótico e pelo contato forçado com a multidão. A violência e o rumor mecânico da grande cidade agitam sua cabeça 'urbanizada' e enchem seus ouvidos 'urbanizados' , assim como outrora   o canto dos pássaros, o sussurro do vento nas árvores, as vozes dos animais ou dos seres amados enchiam seu coração.(...)  Assim, o cidadão verdadeiramente 'urbanizado' , escravo do instinto gregário, está submisso a um poder estranho, do mesmo modo que o trabalhador medieval era escravo de um rei ou de um Estado.' [3]
 
A proposta de Wright é a ampliação do contato da cidade com os ritmos naturais da vida e, portanto, com o meio ambiente e a paisagem. Ele criou um arquétipo a que deu o nome de Broadacre. Ali, para cada habitante haveria uma superfície de um acre, isto é, de quatro mil metros quadrados. 'Broadacre é a cidade natural da liberdade de espaço', escreveu Wright.
E acrescentou:
 
"Se o livre acesso ao solo se baseasse em condições realmente democráticas, a arquitetura seria formulada a partir das condições naturais do terreno; os edifícios se assemelhariam, com infinita variedade de formas, à natureza e ao caráter do solo sobre o qual estivessem concluídos; seriam parte integrante dele. (...) Broadacre seria edificada em tal clima de simpatia para com a natureza que a sensibilidade própria do lugar e a  sua própria beleza seriam exigência fundamental para a construção da cidade."
 
Com a arquitetura orgânica, diz Wright, o homem recupera a posse da sua própria nobreza ―  e do seu território. Ele se torna mais um  elemento vivo na paisagem, tal como as árvores, os rios e as colinas.  Para isso, o solo precisa ser posto à disposição de todos, em condições justas.
 
Abolida a tirania do proprietário- fantasma de áreas de terra, 'os edifícios se elevarão livremente dentro de espaços verdes ou se estenderão preguiçosamente pelo flanco das colinas, com as quais formarão um conjunto harmonioso. Que significado tem um edifício, se não está estreitamente vinculado ao solo em que se levanta?", observa ele.
 
A cidade orgânica de Frank Wright parece seguir a filosofia do espaço natural da antiga China, que vem despertando um entusiasmo crescente por todo o Ocidente sob o nome de Feng Shui (literalmente vento e água, dois elementos dinâmicos em qualquer paisagem). Até o momento, a organização espacial das energias sutis através do Feng Shui tem sido utilizada principalmente dentro de casas e apartamentos. No futuro, a tendência  natural talvez seja aplicar  o Feng Shui em espaços urbanos abertos e no planejamento das cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, outras iniciativas irão aprofundando soluções e alternativas que já estão maduras e perfeitamente ao alcance  da nossa sociedade.
 
 Pelo menos sete pontos podem ser acrescentados ao uso de Feng  Shui e à proposta estratégica de uma cidade orgânica:
 
1 - Reforma agrária. Ela diminui a pressão sobre as cidades. Mas não basta distribuir terras. É preciso dar assistência técnica, criar relações de produção solidárias e transparentes, dar estímulos para que as famílias rurais pemaneçam no campo, e garantir que a produção seja ecologicamente correta, preservando o ecossistema e produzindo alimentos sem agrotóxicos.
 
2 - Valorizar as comunidades rurais e as pequenas cidades do interior. Dar apoio às pequenas empresas familiares, ao trabalho artesanal e manual, à produção em pequena escala, com tecnologia tradicional, que dá emprego e valoriza o ser humano, e que predomina nas pequenas cidades. Sustituir a adoração do que é 'instantâneo' e da rapidez sem significado por algo que é mais valioso: o respeito à vida.
 
3 - Em todas as cidades e no campo, colocar a alta tecnologia a serviço da vida. A informatização e as novas tecnologias não devem mais provocar desemprego. Podem, isto sim, aumentar a qualidade e reduzir o preço dos bens e serviços prestados. Irão reduzir a jornada de trabalho, naturalmente sem redução do salário dos trabalhadores. Com o aumento da produtividade do trabalho nas últimas décadas, os lucros dos investidores aumentaram de modo absurdo. A distorção deve ser corrigida reduzindo a jornada de trabalho.  Sindicatos e movimentos sociais devem ter a coragem de levantar essas questões. Os trabalhadores terão que aprender a usar bem o novo tempo de lazer ―  por exemplo em trabalho voluntário pela comunidade.
 
4 - Criar projetos habitacionais alternativos e voltados para a cidadania. O que nos impede, a final,  de organizar cooperativas habitacionais reunindo pessoas comprometidas com a construção de uma cidade fraterna?  Absolutamente nada, a não ser o nosso costume de esperar soluções centralizadas e de cima para baixo. Ora,  nenhum governante criará a cidade orgânica por decreto. Ela terá que surgir com a prática autônoma dos cidadãos através de pequenos "territórios livres", onde se vá acumulando a experiência do novo. Nesses novos empreendimentos, haverá graus diversos de socialização e ajuda mútua entre os vizinhos, reunindo-se as vantagens da vida comunitária com as vantagens na vida isolada.
 
5 -  Na questão de segurança, o guarda do quarteirão.  O policial ou guarda fica sempre no mesmo local, uma área de um ou dois quarteirões. Assim, ele conhece os moradores e o ritmo da vida das pessoas e facilmente percebe quando há algo estranho. Ele também pode ajudar em outras situações de emergência ou serviços básicos.
 
6 -  Administração participativa.  Reuniões por bairro e por quarteirão para discutir assuntos comuns e confraternizar. A experiência do orçamento participativo, em que cada bairro determina as prioridades de investimentos em sua área, é um precedente valioso para a cidade da nova era. Já teve êxito  em capitais como Porto Alegre e Brasília. Na medida em que se r esgate a ética social,  essas experiências tendem a voltar. 
 
7 - Redução da necessidade de viagens urbanas. A cidade e a atividade econômica devem ser planejadas de modo  que os meios de transporte possam ser menos usados. A  boa informação é útil neste ponto. Com a circulação mais fácil das informações via computador, telefone celular e internet, as pessoas podem trabalhar em casa, sem necessidade de provocar engarrafamentos e poluição atmosférica com automóveis. Isso  não significa que as pessoas não sairão mais de casa: a vida no bairro será mais intensa. A bicicleta ganhará importância. Com a jornada de trabalho  menor,  todo o mundo terá mais tempo para participar das questões comunitárias e conviver com a natureza. Cada cidadão atuará multidimensionalmen te, assumindo o papel de ativista social, ecologista, jogador de futebol, plantador de árvores ou jardineiro, além de pai, marido e amigo;  e preservará a saúde fazendo exercícios físicos moderados.
 
Esses sete pontos são exemplos. Há muitos outros por  serem desenvolvidos. Desse modo, a cidade voltará a respeitar sua alma. Cada casa será certamente um local mais pacífico e harmonioso, talvez um 'templo', como queria John Ruskin. A vida do cidadão ganhará um significado novo e mais profundo.  
 
Falta muito pouco para que isso seja uma realidade mais palpável.  Seguramente menos de um século.  Para que isso ocorre sem demora será suficiente o uso maior e mais confiante da nossa criatividade e da nossa inteligência espacial, localizadas no hemisfério cerebral direito.  Basta a decisão interna de fazer, vitoriosamente, aquilo que está a nosso alcance, dentro do quadro referencial da sociedade solidária. 
 
É possível que, enquanto não surgirem e amadurecerem novas práticas urbanas nas grandes cidades, muita gente continue transferindo residência para cidades menores ou para chácaras suburbanas, como ocorre hoje. Esta é  outra maneira válida de retomar contato com os ritmos naturais da vida. Aos poucos, cresce o número de cidadãos que se espalham por pequenas cidades de Goiás e outros Estados  do Centro-Oeste. Trabalham com terapias alternativas, agricultura orgânica ou pequenas casas comerciais e restaurantes. Vivem em paz, meditam, preservam a natureza e respiram livremente o ar puro. Outros fazem como determinada professora do Rio de Janeiro, na década de 1990.  Ao aposentar-se, ela foi viver na periferia de uma cidade pobre e violenta. Lá, com o apoio de amigos, abriu um centro de ação educacional para crianças e adolescentes pobres.  Vivia feliz, profissional e pessoalmente: trabalhava com arte ― e com alma.
 
É assim que se cria a cidade da nova era. Não só criticando ou lamentando o que está velho e em desagregação, mas construindo com audácia o novo que cresce inevitavelmente a cada dia, de modo silencioso e quase invisível.

 
 
Notas: 
[1] Veja "Viaje  a  Través  de Utopia",  Maria Luisa berneri, Editorial Proyección, Buenos Aires, 1962, 362 pp.; "Utopia", Thomas More, Ed. Europa-América, Lisboa, 1973, 141 pp.; "A Cidade do Sol", Tommaso  Campanella, Edições de Ouro, 157 pp. 
 
[2] "O Urbanismo", Françoise Choay, Ed. Perspectiva, SP, 1997, pp.350. Ver pp.62-63.
 
[3] "O Urbanismo", obra citada, pp. 236-237.
 
 
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PARA LER MAIS:
"A Cidade na História", Lewis   Mumford, Martins Fontes/UnB, 1982, 741 pp.; "Os Socialismos Utópicos, JeanChristian Petitfils, Ed. Círculo do Livro, 187 pp.;  "Viaje Por Icaria", E. Cabet, Ediciones Folio, Barcelona, Espanha, dois volumes.


terça-feira, 27 de julho de 2010

Cibercultura Punk - André Lemos

Fonte Revista Cult
O “faça você mesmo” punk, nascido há três décadas, pode ser traduzido pelas três leis da cibercultura: emissão, conexão e reconfiguração.

“A internet, o primeiro meio de comunicação de muitos para muitos, nos liberaria da tirania das mídias centralizadas e do consumismo rançoso que diz que somos meros receptores do que são os Grandes Negócios, inclusive a Grande Mídia…”(Dan Gillmor, em “We the Media: Grassroots Journalism by the People, for the People”, disponível em inglês na internet no endereçohttp://www.oreilly.com/catalog/wemedia/book/index.csp)
 O movimento punk surgiu na década de 1970 na Inglaterra tendo como mote principal o “do it yourself”, o “faça você mesmo”, ganhando expressões na música, na literatura, na moda. A cultura eletrônica contemporânea, a cibercultura, herda essa atitude em diversas formas de suas expressões atuais, como blogs ou podcasts. “Remixada” e atualizada, a cibercultura se apropria, à sua maneira, do lema punk. Agora, a máxima é “a informação quer ser livre”, “distribua, reutilize, misture conteúdo”, “crie, edite e divulgue informações”.
O movimento punk acabou, mas deixou marcas e influencia toda a sociedade da informação. A herança punk criou a microinformática nos anos 1970, o movimento de ficção ciberpunk nos anos 1980 e os ciberpunks reais (hackers, crackers, coders, geeks…). Hoje, nesse começo de século 21, surgem podcasts, blogs, sistemas peer to peer. Em todos esses exemplos, o “faça você mesmo” pode ser traduzido pelas três leis da cibercultura: emissão, conexão e reconfiguração.
Emita, distribua… Modifique!
A primeira lei é a liberação da emissão. Aqui o “faça você mesmo” significa “produza e distribua informação”. As diversas manifestações da cultura eletrônica mostram que o que está em jogo com a circulação planetária de informação é a emergência de vozes e discursos sem a necessidade de passar por “editores”. A máxima é “produza informação”. Exemplos não faltam: chats, Orkut, MSN, blogs, fotologs, vlogs, podcasts, peer to peer (p2p), softwares livres…
A segunda lei é o princípio de conexão. Não basta produzir sem circular. A máxima punk torna-se aqui: “compartilhe, misture (remix), colabore, distribua informação”. É o “tudo em rede”; a conexão generalizada (internet, Wi-Fi, RFID, bluetooth, celulares) em todos os lugares (ubiqüidade) e de homens, máquinas e objetos entre si.
Todos os produtos da era da informação são, ao mesmo tempo, liberação da emissão, difusão em rede e reconfiguração da cultura. Essa é a terceira lei: reconfiguração de práticas sociais, instituições e modalidades midiáticas. Aqui o mote punk atualiza-se em: “dê sua parcela para modificar a cultura vigente”. Essa modificação não é aniquilação nem simples substituição, mas reorganização e convivência de formatos midiáticos: jornal on-line e impresso, espaço urbano e redes, podcast e rádio, TV e web, amigos de bar e de MSN.
A emissão generalizada (primeira lei), distribuída em rede (segunda lei), cria novos formatos e modificam outros, alterando a cultura — novas formas de consumo de bens culturais, novas formatos de produção de bens simbólicos, novas visões sobre propriedade e autoria, personalização e massificação.
Microinformática e ciberpunk
Mistura de movimento punk e de contracultura, a revolução da microinformática constituiu-se como uma guerrilha (P. Breton em Une histoire de l’informatique [Seuil, 1990]) contra a informática das grandes empresas e do sistema militar.
Invenção de jovens californianos nos anos 1970, ela irá combater a centralização da informação, democratizar os computadores e expandir a participação popular. Foi provavelmente o surgimento dessa atitude (mistura de punk e new age), junto com as inovações técnicas (miniaturização e barateamento de componentes como chips e memórias), que deu origem ao desenvolvimento dos microcomputadores. A microinformática nasce como contestação, sendo um não ao Big Brother.
Nos anos 1980, a invenção do microcomputador (com interfaces gráficas interativas — mouse, ícones e janelas) alimenta e é alimentada pelo imaginário “no future” caótico da literatura e do cinema ciberpunk.
O termo tem origem no movimento homônimo de ficção científica cujos expoentes são Gibson, Sterling, Rucker e Cadigan, dentre outros. Os autores associam, nas suas obras, ambientes urbanos, caóticos e violentos, altas tecnologias (redes, ciborgues, realidade virtual etc.) a uma visão distópica do futuro.
Essa parte punk do gênero associava-se assim às novas tecnologias digitais e telemáticas, às tecnologias da cibernética. Filmes como Blade Runner (1982), Tron (1982) e Jogos de Guerra (1983) são ícones desse imaginário ciberpunk, hoje alimentado por filmes como Matrix (1999).
Mas nem tudo é ficção. Nos anos 1970-1980, surgiram diversos personagens, os chamados ciberpunks reais, figuras do underground da microinformática e das redes telemáticas. Eles invadem sistemas, produzem vírus, alertam para problemas de controle, segurança e vigilância, agregam-se em comunidades eletrônicas…
São os phreakers (piratas do telefone), os hackers, os cypherpunks, os zippies, os geeks…Os ciberpunks reais são os porta-vozes do “faça você mesmo”, formando uma emergente subcultura eletrônica que une antiautoritarismo punk e uso intensivo das tecnologias e redes digitais.
O trabalho é claramente político. O lema explícito em diversos manifestos é: “A informação deve ser livre; o acesso aos computadores deve ser ilimitado e total. Desconfie das autoridades, lute contra o poder; coloque barulho no sistema, faça você mesmo”.
Cibercultura punk?
A herança  punk parece ser evidente. Nos exemplos mostrados aqui, vimos como a máxima punk se propaga nas três leis da cibercultura; e isso do surgimento da microinformática, passando pela ficção científica ciberpunk, pelos ciberpunks reais, até chegar aos fenômenos atuais como os podcasts, os blogs, os sistemas p2p e os softwares livres.
Evidenciamos atitudes que buscam democratizar o acesso e facilitar a produção de informação, aumentar a circulação e o consumo dos bens culturais, reconfigurar as diversas práticas sociais e as estruturas da indústria cultural massiva.
Embora o punk não exista mais enquanto movimento, as três leis da cibercultura podem ser interpretadas como uma herança atualmente disseminada na cultura das redes telemáticas. Não são punks os que fazem podcasts, blogs etc. Trata-se hoje, com a morte dos grandes movimentos, de uma apropriação generalizada dessas tecnologias. Abrem-se assim novas possibilidades de liberação da emissão, de conexão em rede e de reconfiguração.
Para participar dessa cultura eletrônica, dessa cibercultura punk, não é necessário usar presilhas no nariz, cabelo estilo moicano ou roupas rasgadas. Basta plugar-se na rede.
Exemplos atuais de cibercultura punk
Podcast
Com os podcasts, trata-se de fazer e distribuir emissões sonoras. Essas duas ações (fazer e distribuir) vão reconfigurar a mídia “rádio”. O fenômeno mundial de emissões sonoras conhecido como podcast surgiu no final de 2004, sendo o nome um neologismo dos termos “iPod” (tocador de mp3 da Apple) e “broadcasting” (transmissão de rádio).
Estima-se que há mais de 6 milhões de usuários no mundo. Com um computador doméstico e softwares gratuitos de edição de som e publicação, você faz sua emissão e difunde pela internet. Usuários comuns e gigantes da indústria cultural (BBC, por exemplo) produzem diariamente diversos tipos de emissão sob esse novo formato (noticiário, talk shows, guias de museus, leituras de livros clássicos…).
Com os podcasts, vemos a herança punk em ação: 1-Liberação da emissão (qualquer pessoa pode produzir uma emissão sonora); 2-Princípio de conexão (distribuição livre por indexação de sites na rede – RSS); 3-Reconfiguração dos formatos de emissão de conteúdos sonoros (rádio massiva, podcasts, audioblogs). 
Blogs
Com os blogs, outro fenômeno mundial, as mesmas leis estão em jogo. A máxima é: “produza e distribua você mesmo textos, sons, vídeos, fotos”. Blogs são formas de publicação na internet de que qualquer pessoa pode facilmente dispor e por meio das quais começar a emitir seu diário pessoal ou informações jornalísticas, em emissões tanto de áudio (audioblogs) e vídeos (vlogs) como de fotos (fotolog).
Os blogs podem ainda funcionar em comunidades onde usuários/leitores comentam e adicionam novas informações. Aparece claramente a liberação do pólo da emissão (qualquer um pode fazer seu blog), o princípio em rede (blogs estão em rede e fazem referência a outros blogs) e a reconfiguração: novos formatos de diários, de publicações jornalísticas, de emissões sonoras e imagéticas etc.
Um exemplo interessante é a Wikipedia (www.wikipedia.org), uma enciclopédia “faça você mesmo”, atualizada constantemente por qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo.
Hoje há a criação de um novo blog a cada segundo. A “blogosfera” dobra a cada seis meses, contando, segundo estatísticas, mais de 60 milhões de publicações. A liberação do pólo da emissão, o princípio em rede e a conexão têm servido como instrumentos para que vozes autênticas surjam, criando um contraponto à mídia clássica e à censura política. Os recentes problemas de corrupção no Governo brasileiro encontram nos blogs um instrumento de informação fora do esquema dos “mass media” (meios de comunicação de massa): cidadão comum para cidadão comum. Forma-se o que alguns chamam de “citizen media”, os meios de comunicação do cidadão.
Redes p2p e Software Livre
O sistema de compartilhamento de arquivos conhecido como redes peer to peer (p2p), como os atuais Kazaa, Limeware ou Gnutella, possibilita a troca mundial de arquivos de diversos formatos. A máxima punk transforma-se em: “o que eu tenho, eu compartilho”, legalmente ou independentemente de direitos ou propriedades.
Os sistemas p2p vão reconfigurar as indústrias fonográfica e cinematográfica, além de questionar noções como propriedade e direito de autor. Vejam, por exemplo, o sistema de venda de música iTunes da Apple ou o surgimento de licenças como GNU (softwares livres) ou Creative Commons mostrando possibilidades de criação de novos acordos de distribuição, de venda, de uso e de cópia.
No caso dos softwares de código aberto, emerge um novo formato de criação e de compartilhamento de inteligência no desenvolvimento de programas de computadores.
Trata-se de recombinações de linhas de códigos de forma aberta, livre e criativa, construindo um dos mais interessantes fenômenos da cibercultura. O lema punk aqui passa a ser: “faça você mesmo os seus programas, colabore, compartilhe e modifique códigos de forma a quebrar a hegemonia dos softwares proprietários”.
A liberação da emissão e o princípio em rede estão reconfigurando a indústria proprietária, reforçando a cultura do compartilhamento. Emerge aí a cultura “copyleft”, em oposição à lógica proprietária do copyright que dominou a dinâmica dos “mass media”.
O copyleft é um hacking do copyright. A atual revolução dos softwares não-proprietários deve-se a essa cultura do compartilhamento, potencializando a distribuição e a cooperação.
Estão em ação, também nesse exemplo, as três leis: a liberação da emissão (qualquer um pode trabalhar em códigos e programas), o princípio de conexão (trabalho cooperativo em rede) e reconfiguração da indústria dos softwares.
O Brasil é reconhecido com um líder na adoção desses softwares, tanto na sua administração direta como em projetos de inclusão digital.
*André Lemosé professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBa), Doutor em Sociologia pela Université René Descartes e Diretor do Centro Internacional de Estudos Avançados e Pesquisa em Cibercultura
bibliografia básica
 McNeil, Legs e McCain, Gillian. Mate-me, por favor -– L&PM, 1997 (relançado em dois volumes na coleção “L&PM Pocket” em 2004)
Por meio de depoimentos dos participantes do movimento punk de Nova Iorque (cronologicamente anterior ao punk inglês), conta como o gênero foi nascendo de forma espontânea, dando crédito também a bandas pré-punk como Velvet Underground, Stooges e New York Dolls, que atuaram no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Legs McNeil foi um dos fundadores da revista Punk.
Savage, Jon. England’s dreaming – Faber & Faber, 1991 (relançado na Inglaterra em 2005 pela mesma editora)
O mais completo e informativo relato sobre a explosão punk inglesa. O fio condutor é a história dos Sex Pistols. Mas o crítico Jon Savage recua aos antecedentes das biografias de Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, dá um panorama preciso da péssima situação política e econômica do Reino Unido nos anos 1970 e aponta todas as ramificações (moda, publicações xerocadas, artes plásticas, discos independentes etc.) motivadas pelo sucesso dos Pistols e pelo choque que causou na sociedade britânica.
Marcus, Greil. In the fascist bathroom: Punk in pop music, 1977-92 – Penguin, 1994 (relançado pela Harvard em 1999)
Compilação de artigos do renomado crítico Marcus, que, apesar de americano,
defende que o punk inglês tem uma representatividade social e musical que o dos EUA nunca alcançou.
Lydon, John; Zimmerman, Keith; Zimmerman, Kent. Rotten: No irish, no blacks, no dogs – Hodder & Stoughton, 1994 (relançado pela Plexus em 2003)
Curiosa e desbocada autobiografia de John Lydon, mais conhecido como Johnny Rotten, vocalista dos Sex Pistols. Crítico ácido e impiedoso, Lydon/Rotten dá sua versão do nascimento do punk.
Bivar, Antonio. O que é punk – Brasiliense, 1982 (Coleção Primeiros Passos)
(relançado em 2001)
Pioneira iniciativa brasileira, publicada quando o punk ganhava força no país com o festival O começo do fim do mundo (em São Paulo, no final de 1982). Apesar de veterano da geração hippie, o jornalista e escritor Antonio Bivar procurou se integrar à geração punk com boa vontade. 
Lançamentos recentes no Brasil:O’Hara, Craig. A Filosofia do punk: mais do que barulho – Radical Livros, 2005
O autor, um militante punk americano, defende nesse livro (que teve sua primeira edição em 1999) a visão de que o punk não morreu nem perdeu força depois de 1978. Dedicada defesa de todas as formas que o punk tomou nas últimas três décadas.
Parsons, Tony. Disparos do front da cultura pop – Barracuda, 2005
Oriundo da classe trabalhadora inglesa, esse crítico cobriu o choque punk de 1976/77 de muito perto. Vários artigos dessa época estão nessa coletânea (inclusive um testemunho do choque entre os Sex Pistols e a polícia em um barco no rio Tamisa).

domingo, 25 de julho de 2010

COMO OPERAR A TRANSIÇÃO DO VELHO PARA O NOVO PARADIGMA - Leonardo Boff*




Damos por já realizada a demolição crítica do sistema de consumo e de produção capitalista com a cultura materialista que o acompanha. Ou o superamos historicamente ou porá em grande risco a espécie humana.
A solução para a crise não pode vir do próprio sistema que a provocou. Como dizia Einstein:"o pensamento que criou o problema não pode ser o mesmo que o solucionará". Somos obrigados a pensar diferente se quisermos ter futuro para nós e para a biosfera. Por mais que se agravem as crises, como na zona do Euro, a voracidade especulativa não arrefece.

O dramático de nossa situação reside no fato de que não possuimos nenhuma alternativa suficientemente vigororosa e elaborada que venha substituir o atual sistema. Nem por isso, devemos desistir do sonho de um outro mundo possível e necessário. A sensação que vivenciamos foi bem expressa pelo pensador italiano Antônio Gramsci:"o velho resiste em morrer e o novo não consegue nascer".

Mas por todas as partes no mundo há uma vasta semeadura de alternativas, de estilos novos de convivência, de formas diferentes de produção e de consumo. Projetam-se sonhos de outro tipo de geosociedade, mobilizando muitos grupos e movimentos, com a esperança de que algo de novo poderá eclodir no bojo do velho sistema em erosão. Esse movimento mundial ganha visibilidade nos Fórums Sociais Mundiais e recentemente na Cúpula dos Povos pelos direitos da Mãe Terra, realizada em abril de 2010 em Conchabamba na Bolivia.

A história não é linear. Ela se faz por rupturas provocadas pela acumulação de energias, de idéias e de projetos que num dado momento introduzem uma ruptura e então o novo irrompe com vigor a ponto de ganhar a hegemonia sobre todas as outras forças. Instaura-se então outro tempo e começa nova história.

Enquanto isso não ocorrer, temos que ser realistas. Por um lado, devemos buscar alternativas para não ficarmos reféns do velho sistema e, por outro, somos obrigados a estar dentro dele, continuar a produzir, não obstante as constradições, para atender as demandas humanas. Caso contrário, não evitaríamos um colapso coletivo com efeitos dramáticos.

Devemos, portanto, andar sobre as duas pernas: uma no chão do velho sistema e a outra no novo chão, dando ênfase a este último. O grande desafio é como processar a transição entre um sistema consumista que estressa a natureza e sacrifica as pessoas e um sistema de sustentação de toda vida em harmonia com a Mãe Terra, com respeito aos limites de cada ecossistema e com uma distribuição equitativa dos bens naturais e industriais que tivermos produzido. Trocando idéias em Cochabamba com o conhecido sociólogo belga François Houtart, um dos bons observadores das atuais transformações, convergimos nestes pontos para a transição do velho para o novo.

Nossos paises do Sul devem em primeiro lugar, lutar, ainda dentro do sistema vigente, por normas ecológicas e regulações que preservem o mais possível os bens e os serviços naturais ou trate sua utilização de forma socialmente responsável.

Em segundo lugar, que os paises do grande Sul, especialmente o Brasil, não sejam reduzidos a meros exportadores de matérias primas, mas que incorporem tecnologias que dêem valor agregado a seus produtos, criem inovações tecnologias e orientem a economia para o mercado interno.

Em terceiro lugar, que exijam dos paises importadores que poluam o menos possível e que contribuam financeiramente para a preservação e regeneração ecológica dos bens naturais que importam.

Em quarto lugar, que cobrem uma legislação ambiental internacional mais rigorosa para aqueles que menos respeitam os preceitos de uma produção ecologicamente sustentável, socialmente justa, aqueles que relaxam na adaptação e na mitigação dos efeitos do aquecimento global e que introduzem medidas protecionistas em suas economias.

O mais importante de tudo, no entanto, é formar uma coalizão de forças a partir de governos, instituições, igrejas, centros de pesquisa e pensamento, movimentos sociais, ONGs e todo tipo de pessoas ao redor de valores e princípios coletivamente partilhados, bem expressos na Carta da Terra, na Declaração dos Direitos da Mãe Terra ou na Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade (texto básico do incipiente projeto da reinvenção da ONU) e no Bem Viver das culturas originárias das Américas.

Destes valores e principios se espera a criação de instituições globais e, quem sabe, se organize a governança planetária que tenha como propósito preservar a integridade e vitalidade da Mãe Terra, garantir as condições do sistema-vida, erradicar a fome, as doenças letais e forjar as condições para uma paz duradoura entre os povos e com a Mãe Terra.

Julho 2010
(Envolverde/O autor)
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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Ecoformação: Um caminho necessário para a Cidadania Planetária - *Nicole Roitberg




Publicado pela http://www.adital.com.br

Ao longo da história, a percepção equivocada de separação entre o ser humano e a natureza, potencializada por um pensar fragmentado e pelo modelo econômico, trouxe sérias conseqüências. Vivemos em uma economia que tem como pilar principal, o crescimento patológico do consumismo.
As nações têm se vangloriado do crescimento das instituições escolares, do aumento do PIB e do desenvolvimento e modernização de suas cidades. No entanto, nos encontramos com menos solo fértil, menos florestas, menos água limpa, menos saúde. Estamos padecendo como nossas florestas e nossas terras têm adoecido, colocando em risco não apenas a vida de nossa espécie, mas de toda a comunidade da vida nesse planeta.
É um momento oportuno, diante desse perplexo (e contraditório) cenário, fazer algumas reflexões, pois o tumulto e a crise de nossos tempos oferecem uma oportunidade de fazermos mudanças fundamentais e de reavaliar nossos pressupostos e padrões habituais de vida. Poderíamos atrever-nos com as seguintes perguntas: como estamos instruindo nossos jovens e preparando as gerações vindouras? Que valores e interesses estão envolvidos no processo de educar? Para que educamos? O que vale a pena ser ensinado?
Se queremos efetivamente mudar os padrões auto-destrutivos que criamos, devemos começar pela transformação de todo sistema educacional. William James escreveu:"A maior revolução do nosso tempo é a de que os seres humanos, ao mudarem as atitudes internas de suas mentes, podem mudar os aspectos externos de suas vidas". Isto é, mude a ótica, e teremos uma nova ética.
As escolas de hoje fazem pouco para exercitar a imaginação, motivar ou criar sistemas democráticos. Nossa pedagogia é tecnicista, linear e antropocêntrica, favorece a neutralidade científica, a lógica, a análise dos fatos e a exclusão da emoção na aprendizagem. Privilegiamos o individualismo, a competição, os títulos, o poder aquisitivo.
As instituições e governos devem reconhecer, primeiramente, que toda a educação é ambiental, pois somos parte do mundo natural. Devemos reconhecer a falha da educação em perceber nossa inextricável ligação com sistemas naturais, e da incapacidade de unir intelecto, afeição e lealdade às ecologias das bioregiões. A educação não pode somente ocorrer dentro da sala de aula. Achar que o único aprendizado válido é aquele encontrado entre quatro paredes por via de um currículo cristalizado é um grande equívoco.  A mais profunda educação ocorre nos bairros, em casa, no trajeto para a escola, nas experiências humanas.  Não nos livros didáticos.
Para evoluirmos nas questões de justiça social, sustentabilidade, saúde integral e cultura de paz, há a necessidade de abrir um espaço para um saber-e-fazer que ligue o que foi separado, que respeite o diverso, e ao mesmo tempo, reconheça a unidade na diversidade e a interdependência das partes. Nessa ecologia, onde a consciência e o mundo estão entrelaçados, não serão mais as identidades nacionais que farão a diferença, e sim, a inteligência coletiva, como afirma Pierre Levy. O conhecimento para o lucro deve tornar-se o conhecimento para a totalidade e plenitude do ser. Deve haver o resgate de valores e comportamentos como a compaixão, a generosidade, a confiança, o respeito mútuo, a responsabilidade, o compromisso, a solidariedade e a iniciativa.
A nova educação abre caminhos para a Ecoformação, que, através da educação transdisciplinar e biocêntrica (centrada na vida), é fundamentada na afetividade da vida, no compartilhar e na construção coletiva de experiências, sentimentos e saberes. É uma educação que tem em vista a ampliação da consciência para uma ética de cuidado e solidariedade com o outro e com a natureza.
Assim como o movimento das ecovilas surge como uma resposta consciente ao problema complexo de mover o planeta em direção a uma sociedade sustentável, pensamos na formação de "ecovilas pessoais" simbólicas. Inspirando-nos nas palavras de Pierre Levy: a Ecoformação acolhe uma visão celebrativa da vida surgindo como "um canto de amor ao mundo contemporâneo e ao futuro que ele traz em seu seio".
O processo estratégico da Ecoformação auxilia no desenvolvimento de valores e habilidades, orientando a transição para a sustentabilidade ambiental, o protagonismo social e a cultura de paz.


* Nicole é coordenadora do Curso de Ecoformação: Rumo à Prosperidade Sustentável e à Cultura de Paz,




Co-fundadora da Floresta dos Unicórnios. Graduada em antropologia pela Bryn Mawr College, nos EUA, e pela Universidade de Harare, Zimbabwe. Pós-graduada em Desenvolvimento Humano e Transdisciplinaridade pela Universidade Internacional da Paz. Nos últimos seis anos, pesquisa conceitos e projetos de sustentabilidade em diversas áreas. Passou 2004 na Índia, colhendo experiências de comunidades e projetos de desenvolvimento sustentável. Teve a oportunidade de trabalhar nos Himalaias, junto a comunidades budistas e documentar os impactos da globalização na cultura e sociedade Ladakhi. Em 2006, fundou a Metta Olhar, empresa dedicada à criação de documentários sócio-ambientais para a disseminação de conhecimentos e experiências na área de sustentabilidade e espiritualide
Segue convite e programa:
Caros amigos e amigas da Floresta,
Mais uma vez convidamos vocês a estarem conosco neste instigante curso com enorme potencial de transformação!
 


Cronograma e Conteúdo Programático
Módulos de imersão: Abertura e encerramento: Sexta às 14h - Domingo, às 18h.  
Módulo de imersão Bioarquitetura:  Quinta às 19h – Domingo, às 18h
Demais módulos: Sábados e domingos, das 9h às 18h


MÓDULO I: Evolução do Cosmos, Evolução Humana e Ecosofias.  
20, 21, 22 de Agosto 2010 (imersão)
Local: Espaço Arco-Íris – São Roque.
Facilitadores: Diogo Alvim, Paulo Varella, Sandra Taiar
Conteúdo Programático: Evolução humana, crise socioambiental e suas causas; História do ambientalismo; Ecosofias, teorias e princípios ecológicos.

MÓDULO II: Uma Nova Escuta: Universos e Ciclos nos Ecossistemas Humanos e Ambientais
11 e 12 de Setembro 2010
Local: Floresta dos Unicórnios – Granja Viana.
Facilitador: Peter Webb 
Conteúdo Programático: Os ecossistemas como guias: impermanência, regeneração, equilíbrio e biodiversidade; Investigação e experiências das árvores; Conexões e qualidades invisíveis das plantas e humanas; Ciclos de vida e morte; Ecopsicologia.

MÓDULO III: Culturas Colaborativas e Redes Sociais
23 e 24 de Outubro 2010
Local: Floresta dos Unicórnios - Granja Viana.
Facilitadores: Lourdes Alves, Camila Bianchi e Nina Orlow, Vivianne Amaral. 
Conteúdo Programático: Culturas colaborativas, redes de solidariedade, Cultura de Aprendizagem: Competitiva e Colaborativa; Perspectivas de Desenvolvimento a partir da formação de Redes Sociais; O movimento digital colaborativo: Softwares livres, Wickipedia, Creative Commons, Copy Left; Redes da Agenda 21; técnicas de diálogo.

MÓDULO IV: Consumo Solidário e Alimentação Sustentável.
20 e 21 de Novembro
Local: Floresta dos Unicórnios - Granja Viana.
Facilitadores: Maluh Barciotte, Instituto Alana, Dr. Alberto Peribanez Gonzalez, Claudia Mattos
Conteúdo Programático: Consumo Crítico e Solidário, Padrões e impactos do consumo atual, Consumo Infantil, Alimentação limpa, justa e sustentável.

MÓDULO V: Alianças e Cooperação para um Futuro Sustentável: Governança, Socioeconomia Solidária e Empreendedorismo sustentável 
11 e 12 de Dezembro 2010
Local: Floresta dos Unicórnios - Granja Viana.
Facilitadores: Felipe Bannitz, Marcelo Linguitte
Conteúdo Programático: Ações, relações e modos de organização da vida e da produção humana; Socioeconomia solidária e moedas sociais.  As dimensões exterior e interior das relações de troca. Evolução da participação das empresas com questões sociais e ambientais: da filantropia à sustentabilidade; Conceitos de Responsabilidade Social e Sustentabilidade empresa; Os grandes desafios da sustentabilidade para as empresas.

MÓDULO VI: Ecodesign, Bioarquitetura e o Saber-Fazer Humano.
27 a 30 de Janeiro 2011 (imersão)
Locais: Espaço Arco-Íris – São Roque.
Facilitadores: Francisco Lima e Guilherme Castagna, Sandra Taiar.
Conteúdo Programático: Panorama Atual da produção de construção civil e do Design Humano; Crises e suas causas na construção e no design; Princípios de Ecodesign e Design Regenerativo; A Natureza como inspiração; Construindo com técnicas de bioarquitetura e materiais naturais; A valorização do saber-fazer e o sagrado no vernacular; A casa como metabolismo: água e energia.

MÓDULO VII: Cultura de Paz, Comunicação Não-Violenta e Justiça Restaurativa.
26 e 27 de Fevereiro 2011
Local: Floresta dos Unicórnios - Granja Viana.
Facilitadores: Dominic Barter e Egberto Penido
Conteúdo Programático: Comunicação Não-Violenta e Justiça Restaurativa.

MÓDULO VIII: Ecovilas e Modelos de Assentamentos Sustentáveis
19 e 20 de Março 2011
Local: Floresta dos Unicórnios - Granja Viana/Morada da Floresta – São Paulo
Facilitadores: Edson Hiroshi (a confirmar), Claudio Spinola e Ana Paula Silva.
Conteúdo Programático:  Assentamentos Sustentáveis e Ecovilas; Simplicidade voluntária, práticas de modelos econômicos e sociais sustentáveis, Ecotécnicas (minhocário, aquecedor solar, desidratador solar). Permacultura Urbana.

MÓDULO IX: Ciência e Espiritualidade: Medicina e Cura no Mundo Transdisciplinar.   
16 e 17 de Abril 2011
Local: Floresta dos Unicórnios – Granja Viana.
Facilitadores: Clara Pelaez, Dr. Eliezer Berenstein, Kaka Werá Jecupé
Conteúdo Programático: Ciência e Espirtualidade como caminho para uma cultura de paz; Novas abordagens do feminino no mundo: a Gino-ecologia e a feminologia; Física quântica, complexidade e neurociência: novas fronteiras da consciência e evolução humana; A medicina da floresta e a ancestralidade; a natureza e o poder da cura.

MÓDULO X: Ética e estética: Ritos de passagem e celebração humana.
13 a 15 de Maio 2011 (imersão) 
Local: Espaço Arco-Íris – São Roque.
Facilitadores: Ana Figueiredo, Sandra Taiar, José Romão Trigo de Aguiar, Jose Roberto Bueno
Conteúdo Programático: Corpo e experiência: mudanças e o processo vivo; Ética e Estética, Cultura de Paz, Rituais de Passagem; Ação do corpo e universo; Pele, Vestimenta e Morada da Terra, através do Corpo, Rito e Imagens.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Buscadores & Polinizadores 3a. versao - Augusto de Franco


  1. O auto-didatismo e a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente & 
  2. O alter-didatismo e as comunidades de aprendizagem na emergente sociedade em rede 
  3. PROVOCAÇÃO INICIAL Terceira Versão (20/02/10) Augusto de Franco 
  4. Roteiro para um livro que estaria sendo escrito coletivamente na Escola-de-Redes, mas tal esforço articulado ainda não começou.
  5. Introdução 
  6. Não é novidade para ninguém que, no mundo atual, qualquer pessoa que saiba ler e escrever e tenha acesso à Internet pode aprender muito mais do que podia há dez anos. Sim, isso é fato. Uma criança com noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Diz-se agora que, se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de matemática na solução de problemas cotidianos e… banda larga, qualquer um vai sozinho. A novidade é que isso não depende, nem apenas, nem principalmente, da tecnologia stricto sensu e sim de novos padrões de organização social que estão se configurando na contemporaneidade. Uma sociedade em rede está emergindo e, progressivamente, tornando obsoletos as instituições e os processos hierárquicos da velha sociedade de massa, inclusive as instituições e processos educacionais. Novas tecnologias de informação e comunicação – que permitem a interação horizontal ou entre pares (pessoa-com-pessoa) em tempo real – estão acelerando esse processo. Mas novas tecnologias sociais, tão ou mais importantes do que essas (chamadas TICs), também estão contribuindo para mudar radicalmente as condições de vida e convivência social neste dealbar do século 21. Tudo isso vai mudar, em parte já está mudando, a maneira como executamos as nossas atividades empresariais, governamentais e sociais. Vai mudar a maneira como nos organizamos para produzir e comercializar, governar e legislar e conviver com as outras pessoas na sociedade. E – como não poderia deixar de ser – isso também está mudando a forma como aprendemos. O problema é que as instituições e os processos educativos que foram pensados para um tipo de sociedade que está deixando de existir (à medida que emerge uma nova sociedade cuja morfologia e dinâmica já são, em grande parte, as de uma rede distribuída) ainda remanescem e continuam aplicando seus velhos métodos. Em que pese o papel fundamental que cumpriram nos últimos séculos, essas instituições e processos já começam hoje a ser obstáculos à criatividade e à inovação. 2
  7. O que tivemos, pelo menos nos dois últimos séculos, foi, em grande parte, uma educação massiva e repetitiva, voltada para enquadrar as pessoas em um tipo insustentável de sociedade (instalando nas suas mentes programas maliciosos, elaborados para infundir noções de ordem, hierarquia, disciplina e obediência) e para adestrar a força de trabalho, para que os indivíduos pudessem reproduzir habilidades requeridas pelos velhos processos produtivos e administrativos e executar rotinas determinadas. Agora estamos, porém, vivendo a transição para outra época, para uma nova era da informação e do conhecimento, na qual as capacidades exigidas são outras também. Nesta nova sociedade do conhecimento, o que se requer é que as pessoas sejam capazes de criar e de inovar, mudando continuamente os processos de produção e de gestão para descobrir maneiras melhores de fazer e organizar as coisas. E isso elas só conseguirão na medida em que tiverem autonomia para aprender o que quiserem, da forma como quiserem e quando quiserem e para se relacionar produtivamente com outras pessoas de sua escolha, gerando cada vez mais conhecimento – o principal bem, conquanto intangível, deste novo mundo que já está se configurando. Faz-se necessário, pois, libertar o processo educativo das amarras que tentam normatizá-lo de cima para baixo, em instituições organizadas igualmente de cima para baixo, hierarquizadas, burocratizadas e fechadas, desenhadas para guardar em caixinhas o suposto conhecimento a ser transferido, de uma maneira pré- determinada, para indivíduos que preencherem determinadas condições (e, não raro, à revelia do que eles próprios desejariam de fato aprender). Ora, já se viu que o conhecimento é uma relação social e não um objeto que possa ser estocado, transportado, transferido ou transfundido de um emissor para um receptor. O processo de geração e compartilhamento do conhecimento ocorre na sociedade e torna-se cada vez mais difícil, custoso e improdutivo quando tentamos parti-lo em pedaços para arquivá-lo nos escaninhos de uma organização separada da sociedade por paredes opacas e impermeáveis. O que de tão importante se descobriu nos últimos anos é que, em última instância, quem é educadora é a sociedade, a cidade, a localidade onde as pessoas vivem e se relacionam. Na verdade, foi uma redescoberta democrática: Péricles, no século 5 a. E. C., já havia percebido este papel educador da polis enquanto comunidade política, quando declarou – segundo Tucídides – na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso, “que a cidade inteira é a escola da Grécia e creio que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos mais distintos aspectos, 3
  8. dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo, de encanto pessoal”. Portanto, sistemas educativos devem ser, sempre, sistemas sócio- educativos configurados em localidades, em sócio-territorialidades, quer dizer, em redes sociais que se conformam como comunidades compartilhando agendas de aprendizagem. Ensino e aprendizagem Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da aprendizagem. Em termos lógicos: ensino => aprendizagem; donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Nada disso. O ensino surgiu - como instituição – de certo modo, contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de poder. Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de) estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição. Os primeiros professores foram os sacerdotes. A primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento). Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na separação de corpos entre docentes e discentes. 4
  9. O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do aprendizado. O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores que foram instalados para verticalizar a "rede-mãe". O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso”. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a que foi submetido. Como twittou Pierre Levy, as universidades não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento, mas retêm em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma. O autodidatismo e a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando pudermos dizer: “eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito”. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). 5
  10. O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente. Todos seremos autodidatas Na sociedade que está vindo, todos seremos, em alguma medida, autodidatas. Uma criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata. Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será necessário. Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet em casa e noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e… banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios. Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra. Quem organiza o conhecimento é a busca Em uma sociedade conectada (melhor dizendo, em um Highly Connected World), quem organiza o conhecimento é a busca. Mas os 6
  11. caras ainda insistem em querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo). Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional. Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (e é isso, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing). Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos para você”. Em uma sociedade cada vez mais em rede, onde as pessoas conectadas têm múltiplos caminhos para acessar o conhecimento que lhes interessa, quem organiza o conhecimento é a busca. E a busca 7
  12. semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas devem conhecer. Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes da nova sociedade que está florescendo. Dentro em breve, toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) será regulada por meio de outros processos em rede. Só para dar um exemplo, em 10 minutos de funcionamento, o Twitter Tracker é capaz de fornecer – dependendo do tema – mais notícias inovadoras sobre determinado assunto do que os esforços de organização de uma equipe especializada, dedicada a essa tarefa durante uma semana. O autodidata é um buscador: mas quem busca é a pessoa O autodidata é um buscador. Mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um ambiente educativo. Colecionadores de diplomas Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo seguida pelo candidato. Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma 8
  13. pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem autorização para acessar e licença oficial para interpretar tais dados. Cada pessoa terá a sua própria wikipedia. Ao invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um - o arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final. Qualquer um vai sozinho? De certo ponto de vista, qualquer um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Para reprogramar a educação básica deveríamos começar perguntando o que é necessário para que um indivíduo e uma comunidade possam fazer o seu próprio roteiro de aprendizagem. Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): 1 – Estabelecer conexões 2 – Reconhecer padrões 3 – Linguagear e conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas noções). A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um sentido ampliado): 9
  14. 1) a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e escrever e interpretar o que leu: no caso, em português); e as outras “alfabetizações”: 2) em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); 3) matemática (dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana); 4) lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples); 5) digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas digitais de inserção, articulação e animação de redes). Esses são os requisitos e as ferramentas contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo. No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor, ninguém pode caminhar sozinho. Aprender a aprender está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a primeira expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos). O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) requer mais duas “alfabetizações”: 6) em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário); e 7) democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Essas “alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem. Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, 10
  15. inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem). É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser agentes comunitários de educação. Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer um vai sozinho e se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseia os sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada. O alterdidatismo e as comunidades de aprendizagem na emergente sociedade em rede Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: “eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que vive. Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente. 11
  16. Aprender a conviver Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, disso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não apenas trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade. De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede. Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos… Educandos da interação comunitária Nosso desafio é elaborar e testar metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my friends” - Karen Stephenson), baseadas na idéia de cidade educadora (reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem) e aproveitando experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, como, por exemplo, alguma coisa assemelhada ao método Kumon (expandido, porém, com novos conteúdos e adaptado às novas 12
  17. formas de interação educativa extra-escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do unschooling) e o conectivismo como nova teoria da aprendizagem (daí as redes sociais, que constituem o padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem capazes de disseminar as ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem). Seremos todos aprendentes Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede, a educação não será nada disso que andam falando. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando pudermos dizer: “nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente” (em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes. Sociedades desescolarizadas Sociedades em que as redes são as escolas serão sociedades desescolarizadas, como queria o visionário Ivan Illich. A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que fique claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando da cidade educadora (*), ou, mais precisamente ainda, das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede. Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistadas dentro da sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, é a própria sociedade (local, no sentido ampliado) que educa, por meio das comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio. Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. 13
  18. Nota (*) Já havia, desde que surgiu o conceito de cidade educadora, a visão de que “as cidades sempre foram educadoras, assim como o foram também os habitats considerados não-urbanos. Em todas as épocas e lugares a convivência social gerou processos de socialização de seus membros como elementos básicos da própria existência humana em sociedade”. Com o tempo, porém, foi ficando mais claro que nem toda cidade que prioriza políticas públicas, programas e ações governamentais e não- governamentais de educação (ou voltadas à educação) pode ser considerada uma cidade educadora. Se fosse assim, não haveria necessidade de construir um novo conceito. Ou seja, foi se impondo a necessidade de identificar os elementos distintivos a partir dos quais se poderia caracterizar uma cidade como educadora. Assim, foi ficando mais claro que o que é propriamente educador na cidade educadora é o ambiente favorável à interação educadora. Isso não significa que não são importantes as políticas, os programas e as ações governamentais de educação. Nem que não sejam importantes as escolas e universidades. Nem que não sejam importantes os programas e ações de educação não-governamentais. Tudo isso é importante, mas a sinergia entre essas diversas ações, processos e instituições formais, não-formais ou informais, depende de como elas interagem virtuosamente para produzir um efeito sistêmico. O ambiente educador, portanto, é a chave da questão. Esse conceito de cidade educadora, que apareceu no início dos anos 90, em Barcelona, não levava em consideração a nova dinâmica da sociedade em rede que está emergindo. Desse ponto de vista ele deve hoje ser tensionado para revelar que as cidades são educadoras na medida em que se configuram como redes de comunidades. Os 10 pontos seguintes tentam fazer esse tensionamento: 1 - Somente seres humanos podem educar seres humanos, ou seja, a educação é o resultado de uma interação entre humanos. Cabe identificar quais os novos arranjos sociais capazes de favorecer tais interações, ensejando a multiplicação de atividades educadoras na cidade. 2 - Toda cidade é educadora na medida em que seu tecido urbano é composto por múltiplas redes sociais que aprendem e promovem interações educativas entre as pessoas conectadas nessas redes. São essas redes que educam em uma cidade educadora. Para além dos necessários programas formais e das estruturas educativas, são essas redes que conformam o ambiente propício à função educadora do processo democrático. São essas redes que educam a própria cidade para que ela possa ser caracterizada como uma cidade educadora. 3 - A proposta de cidade educadora implica a existência de novas institucionalidades educadoras na cidade. Essas novas institucionalidades serão de várias naturezas: governamentais, empresariais e sociais. Parte significativa delas deverá ser pública, em um sentido mais amplo do que aquele compreendido pelo Estado. Deverão ser formadas por parcerias 14
  19. entre setores governamentais, empresariais e sociais para buscar extrair sinergias da interação entre esses diversos tipos de agenciamento. 4 - Cidade educadora não é uma cidade escolarizada. Ao focalizar prioritária e exclusivamente as escolas como instrumentos ou espaços educativos, pode-se estar contribuindo para uma indesejável escolarização da sociedade ao invés de promover uma necessária socialização das escolas e diminuindo a importância dos ambientes sociais coletivos que deveriam caracterizar uma cidade educadora. Cidades educadoras são cidades nas quais proliferam, além de um sistema escolar eficiente e inclusivo, ambientes educadores extra-escolares. 5 - O mais importante, porém, é a cidade como espaço de aprendizagem. Cidade educadora, antes de ser uma cidade-que-ensina é uma cidade-que- aprende e enseja a aprendizagem contínua de seus cidadãos. Assim, antes de perguntar o que é uma ‘cidade educadora’, deveríamos perguntar o que é uma ‘cidade que aprende’. Uma cidade não pode ser educadora se não for, antes, uma cidade capaz de aprender ou uma cidade-que-aprende. 6 - Diz-se que cidades educadoras promovem a educação, transformando-a numa força da cidade na conquista de inclusão, equidade e direitos para todos. Todavia, a idéia de inclusão social não pode ser adequadamente expressada somente como o direito dos cidadãos a receberem algo do Estado. As pessoas devem fazer alguma coisa a mais em favor da sua própria inserção, além de exigirem os seus direitos do Estado protestando, demandando e monitorando as políticas governamentais. As pessoas devem assumir por si próprias responsabilidades com a promoção da sua real inclusão social. Isso faz parte do aprendizado dos cidadãos e do aprendizado da cidade como um todo, sem o qual a cidade não poderá se caracterizar como uma cidade educadora. Ao lado da noção de igualdade, sempre enfatizada quando falamos sobre as necessidades de inclusão social, também deve ser enfatizada a noção de liberdade para inovar, criar, arriscar e empreender e propor ações coletivas que resultem em uma maior participação democrática da sociedade para promover, por via de suas iniciativas endógenas, a inclusão dos excluídos. 7 - As tendências atuais indicam que em um mundo cada vez mais interconectado culturalmente, terão uma inserção mais adequada às experiências de miscigenação (cultural) do que de multiculturalismo. Multiculturalismo sem interculturalidade não é desejável. O que é desejável, do ponto de vista das cidades educadoras, é uma relação entre pessoas e coletivos culturalmente diferenciados que implique a promoção sistemática e gradual de espaços e processos de interação positiva capazes de generalizar relações de confiança, reconhecimento mútuo, comunicação efetiva, diálogo e debate, aprendizagem e intercâmbio, regulação pacífica dos conflitos, cooperação e convivência. Iniciativas de prevenir conflitos (sejam estes de caráter distributivo, inter-geracional, inter-étnico ou inter- religioso) devem articular-se por meio da aplicação de políticas urbanas e iniciativas de instaurar modos democráticos de regulação de conflitos na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. 15
  20. 8 - Péricles, talvez o principal expoente da democracia grega, afirmou – segundo Tucídides, na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso – que “a cidade inteira é a escola da Grécia e creio que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos mais distintos aspectos, dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo, de encanto pessoal”. Tal relação entre a educação e a vida democrática da polis, está na raiz do conceito de cidade educadora. Essa visão pode ser apresentada em termos contemporâneos, pois continua válida em essência. Poder-se afirmar hoje que o investimento na educação do indivíduo para melhorar a sua vida depende do investimento em ambientes coletivos favoráveis à boa governança, à prosperidade econômica e à expansão de uma cultura cívica capaz de melhorar suas condições de convivência social. No conceito fundante de Péricles, quem educa não é propriamente a Cidade-Estado e sim a koinomia (a comunidade) política (democrática). Na ausência de democracia (mesmo que limitada aos mecanismos e processos formais de representação, isto é, como regime político ou forma de administração do Estado), uma cidade não pode alcançar a condição de cidade educadora. 9 - Cidades educadoras ensejam o surgimento de novos atores públicos para além dos atores estatais ou governamentais. O cidadão conectado em redes de participação cidadã pode, como tal, fazer política pública. A política pública não é mais monopólio do Estado, mas inclui também os atores sociais que operam com um sentido público. A sociedade civil pode, como tal, tomar iniciativas públicas coletivas, aumentando o seu protagonismo e o seu empreendedorismo. E nada disso constitui privilégio das formas de organização tradicionais e burocráticas (da chamada “sociedade civil organizada”). Os cidadãos desorganizados (segundo os antigos padrões de organização), porém conectados horizontalmente uns com outros em prol de objetivos comuns, podem participar da composição de uma nova esfera pública não-estatal. 10 - Se cidades podem aprender, como elas podem aprender? Eis a grande questão colocada pela contemporaneidade para as cidades educadoras. Quem aprende na cidade não são apenas os cidadãos, individualmente, mas também as redes sociais nas quais tais cidadãos estão conectados. Podemos dizer que a comunidade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo. Quando se diz que a cidade educa, o que se está dizendo, a rigor, é que são as diversas comunidades de aprendizagem, de prática e de projeto que se formam dentro da cidade que estão aprendendo. Apenas estruturas complexas que apresentam a morfologia e a dinâmica de rede podem aprender. Uma cidade será cada vez mais educadora na medida em que for também, cada vez mais, uma cidade-rede. 

SER(ES) AFINS