O Mãgute Pataxó em vias de extinção? |
![]() Os Pataxó, povo do tronco linguístico macro-jê, habitante tradicional da zona costeira do extremo sul da Bahia, possuem, apesar da violência histórica que sofreram e da devastação de seu território e de sua cultura, uma diversificada culinária, proveniente de um sistema eco-gastronômico que interliga pessoas, artefatos e a bio e agrobiodiversidade ao saber-fazer alimentar, indo além da materialidade nutricional. O mãgute, como eles denominam o alimento e toda a dimensão simbólica e cognitiva dos saberes e sabores, representa para os Pataxó - tal como propõem Amon & Menasche (2008) -, uma dimensão comunicativa - e também identitária (Maluf, 2007) -, podendo contar histórias a partir da memória social daquele que narra. As narrativas, sementes e alimentos que circulam, seja no seio do ambiente doméstico ou em espaços comunitários ou inter-comunitários, são apropriados pelos sujeitos, que dão continuidade à produção dos saberes. Inspirados em uma relação próxima com esta cultura alimentar indígena, após termos degustado o mãgute tradicional Pataxó e motivados pelo artigo Sabores em Risco, de Priscila Santos, publicado neste site do Slow Food Brasil , resolvemos escrever este breve artigo sobre a perspectiva cultural da alimentação, os principais itens alimentares tradicionais e os elementos contemporâneos que atentam contra sua integridade, podendo afetar a segurança alimentar deste povo. ![]() Os Pataxó praticam uma agricultura tradicional em solos altamente degradados e com forte entrada de elementos do bem conhecido pacote tecnológico da revolução verde (sementes melhoradas, trator, adubo químico, fertilizantes, agroquímicos). As mandiocas brava e a mansa, em rotação com o milho e o feijão, são as espécies centrais das roças. Tanto o homem quanto a mulher cuidam deste espaço, manejando uma diversidade agrícola frágil, com poucas variedades tradicionais mantidas e muitas já extintas (como o milho). Pode-se afirmar que os quintais, espaço feminino por excelência, conformam ilhas de diversidade num mar de pastos e sapezais. Nesses espaços, é mantida alta diversidade de árvores frutíferas e madeireiras, plantas condimentares, ervas medicinais e mágicas, sementes para artesanato e toda a diversidade familiar de plantas denominadas de "lavoura branca" (feijões, milho e mandioca). Além desses espaços, os Pataxó costumam manter ou plantar em suas propriedades e em lugares especiais, como trilhas ou locais dos antigos, espécies de palmeiras, como o dendê e o coco-da-bahia, bem como frutíferas, como jaqueira e mangueira. ![]() Essa fonte ecossistêmica fragilizada e historicamente violada, de biodiversidade e agrobiodiversidade, somada ao conhecimento indígena e os aprendizados com outros povos, gerou uma culinária ímpar, que resiste enquanto elemento identitário pataxó. ![]() A patioba é folha de uma palmeira ameaçada de extinção na Mata Atlântica, o pati (Syagrus botryophora). A folha, no momento do preparo da Mukeka, deve ser retirada de um pati jovem, pois a folha jovem é mais resistente ao calor intenso, e a mesma deve ser, quando na residência, esquentada no fogo, para murchar. É necessária, também, a coleta de coco e de dendê para a extração do leite e do óleo, respectivamente. Os peixes são pescados no mar ou nos rios. O peixe é limpo, salgado e temperado com urucum (cujo preparado em forma de pó recebe o nome, na culinária brasileira, de colorau) em uma bacia ou gamela (de madeira). Em seguida são acomodados na patioba, podendo ser temperados com leite de coco, azeite de dendê e, às vezes, pimenta do reino. Após este procedimento, o peixe é fechado na patioba, que é amarrada com fibra de embira para os peixes não caírem. Por fim, o peixe envolto na patioba é colocado a assar na brasa, num buraco na terra ou suspenso com duas estacas. Logo percebemos o porquê da preferência pela patioba, pois sua folha demora a queimar na brasa. E nossos cozinheiros ainda dão uma dica: "Duas patiobas para cozinhar um peixe. Usam-se três palhas: a de baixo, a do meio e a de cima. As duas de baixo, é água pura. Na de cima, você tempera. Quando começar a queimar a segunda, o peixe já está cozido" e, arrematam, "Mukeka do Pataxó é na patioba e a mukeka da piaba é a boa". ![]() Falamos de farinha kwiúna. Essa farinha, feita com variedades de mandioca pubada, é essencial para os Pataxó, que dizem ser essa a farinha de índio. Os Pataxó apreciam esta farinha em detrimento da "farinha de guerra" (o nome é atribuído a seu emprego, no século XVII, pelos bandeirantes, que em seu caminho arrancavam as ramas crescidas que haviam plantado em passagem anterior - as raízes raladas e secas ao sol davam origem à rústica "farinha de guerra"), fina, que eles produzem mais para a venda aos brancos. Em conversa que tivemos com o biólogo Jean François-Timmers, que trabalha há muito tempo nesta região, soubemos que os Pataxó são um dos únicos grupos indígenas do Nordeste brasileiro que ainda mantém a farinha de puba. Ele ressaltou essa farinha possui uma forte conotação identitária para esse grupo indígena, pois são os únicos a utilizarem-na farinha de puba na região. O processamento da mandioca brava para a produção da farinha é muito parecido com o de outros povos indígenas no Brasil: após o plantio e a colheita, a mandioca é colocada na água para pubar, durante alguns dias; depois é retirada e misturada com massa não pubada; em seguida a massa é colocada na prensa e seu produto final é peneirado e posto no forno bem quente, para torrar. Além da farinha, a mandioca fornece diversos subprodutos, como a farinha moreninha, com coco e açúcar, beiju de puba, beiju melapança, beiju de rola, bolo e paçoca de aipim, paçoca. Os beijus só são feitos quando há grande quantidade de tapioca ou massa pubada. Quando a colheita é grande, são feitos diversos tipos de beiju,consumidos como base alimentar nos dias que se seguem. O kauim(produzido a partir da fermentação da mandioca) ainda é bebido e serve para dar força durante as manhãs. ![]() Já os caranguejos são comidos após serem cozidos em água, tempero e sal ou assados na brasa e comidos com Kwiúna. Os peixes podem, ainda, ser moqueados na beira da fogueira ou do forno e comidos com farinha. As caças já estão quase extintas na região e as poucas que existem têm sua captura proibida. Em termos de bebidas tradicionais, duas chamaram nossa atenção: o vinho do jatobá e o café tiririquim. Conhecemos o vinho rubro da deslumbrante arvore jatobá (Hymenaea courbaril) na aldeia pé-do-monte, com o Sr. Braga. Na aldeia trevo-do-parque, conhecemos uma rara semente do café tiririquim, quase extinto na região, depois da entrada do café industrializado. O tiririquim, segundo consta no livro de Apinaera Pataxó e Txahú Pataxó, é um café raro, que serve para dor de cabeça; a folha serve para benzer, a raiz para febre e a semente para o artesanato: "ele era um café que a gente utilizava sempre, sempre, sempre. O café que conhecíamos era esse, não conhecíamos o café de pacote, nem sabíamos usar, nem sabíamos se existia." Foi em uma mercearia da aldeia Pataxó de Boca da Mata que visualizamos e sentimos a pressão que a gastronomia Pataxó vem sofrendo. Identificamos a troca de belas cuias e gamelas tiradas da mata - quase inexistente - e vendidas a intermediários, por poucos sacos de arroz, feijão, macarrão ou sal. Muitas pessoas não podem viver da terra e apelam para o que resta da floresta. Perdem suas sementes e, com o tempo, os saberes e os sabores biodiversos (Cardoso, 2010). ![]() Este povo ressurgiu, num processo importante de etnogênese, que tem na retomada do território, na organização social e na valorização cultural (música, rituais, reconstrução da língua) suas maiores frentes de luta e conquistas visíveis. Os processos culturais ligados à alimentação também foram valorizados, em uma perspectiva de resistência mais íntima, mais cotidiana, no seio da família e por professores engajados em dar visibilidade e repassar, em sala de aula, conhecimentos sobre a cultura dos "antigos" para um maior número de crianças e jovens, resultando na produção, pelos alunos, de livretos como "Mãgute e Goyá Pataxó" e "Território e Cultura". ![]() Os Pataxó contam, nas rodas de fogueira e em seus livros didáticos, que antigamente havia muita fartura, associada a uma culinária rica, distribuída, compartilhada. Hoje, diante da escassez, lutam e resistem para manter suas tradições. ![]() Referências AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social.Sociedade e cultura, v. 11, n. 1, pp.13-21, 2008. Apinaera e Txahú Pataxó. Território e cultura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2007. CARDOSO, Thiago Mota. O saber biodiverso: práticas e conhecimentos na agricultura indígena do baixo Rio Negro. Manaus: EDUA, 2010. KANÁTYO, Poniohom e Jassanã Pataxó. Cada dia é uma história . Brasília: MEC, 2001. MALUF, Renato Sérgio. Padrões alimentares brasileiros: respeito à diversidade culinária. In: MIRANDA, Danilo S. e CORNELLI, Gabriele. (Org). Cultura e alimentação: saberes alimentares e sabores culturais. São Paulo: SESC, 2007. * Thiago Mota Cardoso ( thiago_txai@yahoo.com.br) é Etnobotânico, Mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, pesquisador associado ao projeto Populações Locais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados e pesquisador no Etnomapemento e Zoneamento Agroextrativista das aldeias Pataxó. * Lilian Bulbarelli Parra é Geógrafa, pesquisadora no Etnomapemento e Zoneamento Agroextrativista das aldeias Pataxó |
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