terça-feira, 6 de julho de 2010

O Mãgute Pataxó em vias de extinçâo - Thiago Mota Cardoso e Lilian Bulbarelli Parra

O Mãgute Pataxó em vias de extinção?



colares_de_semente_secando_no_fogao_a_lenha.jpg"Aqui é cozinhado brincadeira, se reuniam os meninos e as meninas, aí faziam aquele cozinhado debaixo do pé de mato, no ar fresco. Reuniam aqueles meninos e meninas e faziam aquelas casinhas de beira de chão de cachandó, uns iam pescar já da para fazer aquele cozinhado no outro dia". (Pataxó Retirinho)
Os Pataxó, povo do tronco linguístico macro-jê, habitante tradicional da zona costeira do extremo sul da Bahia, possuem, apesar da violência histórica que sofreram e da devastação de seu território e de sua cultura, uma diversificada culinária, proveniente de um sistema eco-gastronômico que interliga pessoas, artefatos e a bio e agrobiodiversidade ao saber-fazer alimentar, indo além da materialidade nutricional.
mãgute, como eles denominam o alimento e toda a dimensão simbólica e cognitiva dos saberes e sabores, representa para os Pataxó - tal como propõem Amon & Menasche (2008) -, uma dimensão comunicativa - e também identitária (Maluf, 2007) -, podendo contar histórias a partir da memória social daquele que narra. As narrativas, sementes e alimentos que circulam, seja no seio do ambiente doméstico ou em espaços comunitários ou inter-comunitários, são apropriados pelos sujeitos, que dão continuidade à produção dos saberes.
Inspirados em uma relação próxima com esta cultura alimentar indígena, após termos degustado o mãgute tradicional Pataxó e motivados pelo artigo Sabores em Risco, de Priscila Santos, publicado neste site do Slow Food Brasil , resolvemos escrever este breve artigo sobre a perspectiva cultural da alimentação, os principais itens alimentares tradicionais e os elementos contemporâneos que atentam contra sua integridade, podendo afetar a segurança alimentar deste povo.
familia_pataxo.jpgEste ensaio se tornou possível por nosso envolvimento num projeto de etnobotânica, mapeamento e zoneamento agroextrativista, promovido pelo Ministério do Meio Ambiente, Fundação Nacional do Índio e institucionalidades Pataxó, sob financiamento da FAO, num contexto de esforços para a sustentabilidade e segurança alimentar das aldeias Pataxó do Monte Pascoal.
Os Pataxó praticam uma agricultura tradicional em solos altamente degradados e com forte entrada de elementos do bem conhecido pacote tecnológico da revolução verde (sementes melhoradas, trator, adubo químico, fertilizantes, agroquímicos). As mandiocas brava e a mansa, em rotação com o milho e o feijão, são as espécies centrais das roças. Tanto o homem quanto a mulher cuidam deste espaço, manejando uma diversidade agrícola frágil, com poucas variedades tradicionais mantidas e muitas já extintas (como o milho). Pode-se afirmar que os quintais, espaço feminino por excelência, conformam ilhas de diversidade num mar de pastos e sapezais. Nesses espaços, é mantida alta diversidade de árvores frutíferas e madeireiras, plantas condimentares, ervas medicinais e mágicas, sementes para artesanato e toda a diversidade familiar de plantas denominadas de "lavoura branca" (feijões, milho e mandioca). Além desses espaços, os Pataxó costumam manter ou plantar em suas propriedades e em lugares especiais, como trilhas ou locais dos antigos, espécies de palmeiras, como o dendê e o coco-da-bahia, bem como frutíferas, como jaqueira e mangueira.
mandioca_brava_descascada_em_trabalho_coletivo_para_elaboracao_da_farinha_de_puba.jpgOs Pataxó acessam diversos e parcos habitats florestais para coleta de resinas, fibras, sementes, frutas, óleos e lenha. Dos rios e córregos, quase secos pela total devastação da mata ciliar, ainda conseguem obter a água e os diversos e persistentes peixes que, capturados através de técnicas tradicionais, irão compor o cardápio da família. Dos ecossistemas costeiros, principalmente dos manguezais, são obtidos crustáceos, peixes e moluscos, deveras apreciados. Todas as aldeias aguardam ano após ano a "época da fartura" dos manguezais, quando os Pataxó que vivem na costa capturam esses animais para a alimentação e troca com os índios agricultores de regiões mais centrais. A criançada se esbalda e os adultos fazem festa! Do mar, vêm os peixes e os camarões, também muito apreciados e importantes na dieta e na culinária indígena. Dos recifes coralíneos obtém-se uma iguaria ímpar: o ouriço-do-mar, animal desprezado pelos moradores da cidade e desejado pelos nativos.
Essa fonte ecossistêmica fragilizada e historicamente violada, de biodiversidade e agrobiodiversidade, somada ao conhecimento indígena e os aprendizados com outros povos, gerou uma culinária ímpar, que resiste enquanto elemento identitário pataxó.
habitacao_pataxo.jpgFoi na aldeia Craveiro, na casa de Sr. José e Dona Maria, que tivemos acesso pela primeira vez à culinária tradicional Pataxó. Em uma manhã ensolarada, fomos ao sítio junto com esse gracioso casal e seus filhos e filhas. Colhemos aipim, comemos banana caturrinha e jaca diretamente do pé e deitamos uma rede para pegar um peixe. De tarde, Sr. José bateu grãos de café no pilão, enquanto Dona Maria preparava um dos pratos mais tradicionais dos Pataxó, servido em momentos especiais, quando há peixes: a Mukeka, ou o peixe assado na folha da patioba. Para nossos cozinheiros "Mukeka é tudo que faz caldo, feito com coco e com dendê".
A patioba é folha de uma palmeira ameaçada de extinção na Mata Atlântica, o pati (Syagrus botryophora). A folha, no momento do preparo da Mukeka, deve ser retirada de um pati jovem, pois a folha jovem é mais resistente ao calor intenso, e a mesma deve ser, quando na residência, esquentada no fogo, para murchar. É necessária, também, a coleta de coco e de dendê para a extração do leite e do óleo, respectivamente. Os peixes são pescados no mar ou nos rios. O peixe é limpo, salgado e temperado com urucum (cujo preparado em forma de pó recebe o nome, na culinária brasileira, de colorau) em uma bacia ou gamela (de madeira). Em seguida são acomodados na patioba, podendo ser temperados com leite de coco, azeite de dendê e, às vezes, pimenta do reino. Após este procedimento, o peixe é fechado na patioba, que é amarrada com fibra de embira para os peixes não caírem. Por fim, o peixe envolto na patioba é colocado a assar na brasa, num buraco na terra ou suspenso com duas estacas. Logo percebemos o porquê da preferência pela patioba, pois sua folha demora a queimar na brasa. E nossos cozinheiros ainda dão uma dica:
"Duas patiobas para cozinhar um peixe. Usam-se três palhas: a de baixo, a do meio e a de cima. As duas de baixo, é água pura. Na de cima, você tempera. Quando começar a queimar a segunda, o peixe já está cozido" e, arrematam, "Mukeka do Pataxó é na patioba e a mukeka da piaba é a boa".
farinha_de_puba_dividida_pela_mae_da_familia.jpgDepois de assada, a mukeka foi servida com farinha kwiúna ou de puba (massa obtida a partir da mandioca deixada por dias sob água corrente para amolecer, ou pubar). Fomos servidos à moda antiga. No chão da cozinha, as pessoas em roda, comida sendo servida pela mãe da família e cozinheira, Dona Maria. Cabia a ela dividir a comida entre todos. Os espinhos dos peixes eram colocados numa cuia e depois jogados para os cachorros. Observamos no livro de Kanátyo, Poniohom e Jassanã Pataxó (2001), que os velhos diziam que servir segundo as tradições é importante para não espantar as caças e os peixes da armadilha.
Falamos de farinha kwiúna. Essa farinha, feita com variedades de mandioca pubada, é essencial para os Pataxó, que dizem ser essa a farinha de índio. Os Pataxó apreciam esta farinha em detrimento da "farinha de guerra" (o nome é atribuído a seu emprego, no século XVII, pelos bandeirantes, que em seu caminho arrancavam as ramas crescidas que haviam plantado em passagem anterior - as raízes raladas e secas ao sol davam origem à rústica "farinha de guerra"), fina, que eles produzem mais para a venda aos brancos. Em conversa que tivemos com o biólogo Jean François-Timmers, que trabalha há muito tempo nesta região, soubemos que os Pataxó são um dos únicos grupos indígenas do Nordeste brasileiro que ainda mantém a farinha de puba. Ele ressaltou essa farinha possui uma forte conotação identitária para esse grupo indígena, pois são os únicos a utilizarem-na farinha de puba na região.
O processamento da mandioca brava para a produção da farinha é muito parecido com o de outros povos indígenas no Brasil: após o plantio e a colheita, a mandioca é colocada na água para pubar, durante alguns dias; depois é retirada e misturada com massa não pubada; em seguida a massa é colocada na prensa e seu produto final é peneirado e posto no forno bem quente, para torrar. Além da farinha, a mandioca fornece diversos subprodutos, como a farinha moreninha, com coco e açúcar, beiju de puba, beiju melapança, beiju de rola, bolo e paçoca de aipim, paçoca. Os beijus só são feitos quando há grande quantidade de tapioca ou massa pubada. Quando a colheita é grande, são feitos diversos tipos de beiju,consumidos como base alimentar nos dias que se seguem. O kauim(produzido a partir da fermentação da mandioca) ainda é bebido e serve para dar força durante as manhãs.
preparo_do_cafe.jpgFoi na aldeia mãe, a costeira Barra Velha, a mais antiga aldeia Pataxó, com outra querida Dona Maria, que aprendemos um pouco da culinária tradicional com o uso da fauna aquática. Do ouriço do mar, faz-se um delicioso catado. O ouriço é coletado e partido em bandas, retirando-se a gordura. Logo após, é temperado com óleo, sal, cheiro-verde e outros condimentos, e colocado a cozinhar. O segredo do sucesso desse prato é mexer o tempo todo, de preferência com colher de madeira. Do ouriço, também faz-se um belo de um assado. Basta colocar uns pedaços de casca de coco ou de palha seca do coqueiro em cima do ouriço e atear fogo, esperando apagar. Há relatos de que, em épocas remotas, quando a farinha de mandioca era insuficiente devido ao impedimento de abertura de roçados, a coleta do ouriço era muito frequente. A coleta do ouriço foi relatada por Dona Maria, que sempre fez questão de transmitir a seus filhos e netos seu conhecimento sobre o momento vivido e as técnicas de coleta e preparo, assegurando a sobrevivência dessas práticas.
Já os caranguejos são comidos após serem cozidos em água, tempero e sal ou assados na brasa e comidos com Kwiúna. Os peixes podem, ainda, ser moqueados na beira da fogueira ou do forno e comidos com farinha. As caças já estão quase extintas na região e as poucas que existem têm sua captura proibida.
Em termos de bebidas tradicionais, duas chamaram nossa atenção: o vinho do jatobá e o café tiririquim. Conhecemos o vinho rubro da deslumbrante arvore jatobá (Hymenaea courbaril) na aldeia pé-do-monte, com o Sr. Braga. Na aldeia trevo-do-parque, conhecemos uma rara semente do café tiririquim, quase extinto na região, depois da entrada do café industrializado. O tiririquim, segundo consta no livro de Apinaera Pataxó e Txahú Pataxó, é um café raro, que serve para dor de cabeça; a folha serve para benzer, a raiz para febre e a semente para o artesanato: "ele era um café que a gente utilizava sempre, sempre, sempre. O café que conhecíamos era esse, não conhecíamos o café de pacote, nem sabíamos usar, nem sabíamos se existia."
Foi em uma mercearia da aldeia Pataxó de Boca da Mata que visualizamos e sentimos a pressão que a gastronomia Pataxó vem sofrendo. Identificamos a troca de belas cuias e gamelas tiradas da mata - quase inexistente - e vendidas a intermediários, por poucos sacos de arroz, feijão, macarrão ou sal. Muitas pessoas não podem viver da terra e apelam para o que resta da floresta. Perdem suas sementes e, com o tempo, os saberes e os sabores biodiversos (Cardoso, 2010).
preparacao_para_awe.jpgOs Pataxó foram tidos, por Darci Ribeiro, como extintos em 1900, tendo passado por décadas de massacres, destruição e expulsão de seu território tradicional, com a chegada de fazendeiros e madeireiros e com a criação do Parque Nacional do Monte Pascoal. Tais eventos resultaram em um processo de perda territorial e ambiental, dispersão, fechamento das pessoas e perda de elementos da biodiversidade terrestre, da água doce e da água do mar, bem como da agrobiodiversidade, afetando severamente a cultura gastronômica, como um todo.
Este povo ressurgiu, num processo importante de etnogênese, que tem na retomada do território, na organização social e na valorização cultural (música, rituais, reconstrução da língua) suas maiores frentes de luta e conquistas visíveis. Os processos culturais ligados à alimentação também foram valorizados, em uma perspectiva de resistência mais íntima, mais cotidiana, no seio da família e por professores engajados em dar visibilidade e repassar, em sala de aula, conhecimentos sobre a cultura dos "antigos" para um maior número de crianças e jovens, resultando na produção, pelos alunos, de livretos como "Mãgute e Goyá Pataxó" e "Território e Cultura".
roca_de_mandioca.jpgNo entanto, a relativa invisibilidade da tradição alimentar, em âmbito cultural, econômico e ambiental fez com que esse elemento da vida indígena sofresse um importante revés com a chegada do aparato tecnológico e ideológico da revolução verde, nos anos 1990. As máquinas, sementes, adubos e agrotóxicos, que chegaram pelas mãos do Estado, consolidam-se. Ao mesmo tempo, dá-se a entrada de alimentos padronizados de baixa qualidade, cerceando o sistema alimentar.
Os Pataxó contam, nas rodas de fogueira e em seus livros didáticos, que antigamente havia muita fartura, associada a uma culinária rica, distribuída, compartilhada. Hoje, diante da escassez, lutam e resistem para manter suas tradições.
tiririquim_conhecido_como_falso_cafe.jpgCada povo tem o direito de preservar suas práticas tradicionais de produção e consumo de alimentos, pois tais práticas constituem-se em patrimônio cultural, conformando-se como elementos identitários dessas coletividades e dos indivíduos que pertencem a elas. Esses aspectos são marcados no sistema alimentar e integram o saber-fazer culinário e os sabores que teimam em permanecer no ser Pataxó.

Referências
AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da memória social.Sociedade e cultura, v. 11, n. 1, pp.13-21, 2008.
Apinaera e Txahú Pataxó. Território e cultura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2007.
CARDOSO, Thiago Mota. O saber biodiverso: práticas e conhecimentos na agricultura indígena do baixo Rio Negro. Manaus: EDUA, 2010.
KANÁTYO, Poniohom e Jassanã Pataxó. Cada dia é uma história . Brasília: MEC, 2001.
MALUF, Renato Sérgio. Padrões alimentares brasileiros: respeito à diversidade culinária. In: MIRANDA, Danilo S. e CORNELLI, Gabriele. (Org). Cultura e alimentação: saberes alimentares e sabores culturais. São Paulo: SESC, 2007.

Thiago Mota Cardoso ( thiago_txai@yahoo.com.br) é Etnobotânico, Mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, pesquisador associado ao projeto Populações Locais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados e pesquisador no Etnomapemento e Zoneamento Agroextrativista das aldeias Pataxó.
Lilian Bulbarelli Parra é Geógrafa, pesquisadora no Etnomapemento e Zoneamento Agroextrativista das aldeias Pataxó 

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