segunda-feira, 31 de agosto de 2009

protopia

Um espaço de permanente compilação de referências libertárias. Uma nova proposta de transformação global, construindo o futuro hoje! Protopia é a virada da maré, uma estratégia de reterritorialização que busca antes de tudo a tomada de um papel ativo na construção de espaços libertários. Nada mais excitante que ser o propagador do incômodo daqueles que um dia se pensaram como senhores da história. A utopia enquanto impossibilidade de superação desse sistema e de todos os males sociais que nos cercam é uma mentira que durante muito tempo foi repetida por muitas bocas e ganhou ares de 'verdade'. O topo só é inalcançável quando desistimos de alcançá-lo. Protopia é a topia possível; uma proposta de escalada coletiva, simples, e ao mesmo tempo subversivamente complexa, destinada para aqueles já não se contentam mais em alardear que o rei está nu.(leia mais...)

Acervo Wiki de Escritos e Vídeos
Imagine um acervo conectando via Wiki uma infinidade de escritos e videos que de uma forma ou de outra constituem referências ao pensamento libertário. Navegar por textos clássicos e contemporâneos do anarquismo através de uma biblioteca em hipertexto, conhecer aprofundadamente um autor e ter igualmente acesso aos seus críticos. Construir e traduzir textos coletivamente em tempo real. Tudo isso tornou-se possível apenas nos últimos anos através da tecnologia Wiki. Esta é a proposta da biblioteca de escritos indispensáveis e a coleção de filmes substrutivos do Protopia que se pretende constituir através do esforço coletivo em um dos maiores bancos de textos libertários interconectados da língua portuguesa. Artigos, livros, filmes e ligações externas, tudo acessível de forma facilitada e rápida. Qualquer um pode adicionar novos conteúdos e criar ligações a um sem número de outras páginas. De que adianta criar outro blog com textos anarquistas em meio a milhões de blogs? Talvez seja hora de um esforço conjunto para fazer com que essas idéias conectadas em hipertexto possam finalmente dialogar, e assim libertamos a nós todos do preceito da leitura linear.
Uma proposta de transformação
Protopia, da forma como a pensamos, é a proposta estratégica mais efetiva nesse contexto histórico, gostaríamos de compartilhá-la com você. Não é algo inventado por nós, mas sim uma dinâmica que já está acontecendo em diferentes lugares - dos squats europeus aos municípios autônomos zapatistas - assumindo características próprias, se espalhando, dando forma à rede libertária ao redor do globo. Comunidades intencionais autônomas formadas por grupos das mais diversas inspirações libertárias. Algumas ocultas, outras nômades, mas todas elas agindo com o objetivo de libertar mais territórios (físicos e imaginais) nesta guerra da informação.
Participe do Protopia
Cabron! Esto es um llamado para la revolución de las ideas! Un verdadero revolucionario no tiene miedo de tomar las armas para luchar contra la ignorancia o contra la falsa ilusión del conocimiento!! Participe del Protopia publicando sus textos, libros o películas, tomando parte en las páginas de discusión o montando barricadas en las carreteras de la submisión!


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Vozes Contra a Globalização
Excelente série de 7 documentários produzida pela TVE espanhola, que aborda de maneira objetiva os efeitos nocivos da globalização do capital sobre as populações e o meio-ambiente. Das políticas neoliberais ao aquecimento global, da fome à extinção de espécies da fauna e flora, da desvalorização do trabalho à influência dos meios de comunicação....
Veja este documentário

Discurso sobre a Servidão Voluntária

Que nome se deve dar a esta desgraça? Que vício, que triste vício é este: um número infinito de pessoas não somente a obedecer, mas a servir, não governadas mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem filhos, sem vida a que possam chamar de sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só?
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sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Auto regulacão e Democracia do Cotidiano

Auto-regulação e Democracia do Cotidiano

Esther Frankel

Para mim o conceito de autoregulação está ligado a Eva Reich, a quem eu convidei para vir ao Brasil em 1980, quando eu estava grávida do meu primeiro filho. Eu devo a ela todo o meu interesse em respeitar o ritmo dos meus filhos (agora tenho tres filhos) quanto ao momento do nascimento, a amamentação, ao treinamento de limpeza, a necessidade deles de autonomia, etc. Isto também me ajudou muito a entender pessoas a quem eu atendo em terapia e a mim mesma.
Neste momento quero homenageá-la agradecendo-a por seus ensinamentos, sua simplicidade e amizade.

Uma questão que desde o princípio ocupou Reich é a prevenção da destruição do funcionamento da vida natural.. Na nossa civilização são os adultos (os caráteres mais neuróticos) que estabelecem os objetivos educacionais para as crianças e adolescentes, e em geral estes objetivos estão a serviço de sua própria conveniência e para perpetuar seus próprios preconceitos.

Reich estabeleceu a autoregulação como princípio básico da criação de crianças. O que ele queria dizer com isto era que as crianças deveriam ter a oportunidade de ter seus instintos primitivos e naturais satisfeitos da sua própria forma, sendo que assim não haveriam instintos secundários perversos. Para Reich era fundamental a aplicaçao de princípios de autoregulação na nossa civilização. Isto me afeta como mãe, como educadora e como psicoterapeuta.

Foi Tage Philipson, íntimo colaborador de Reich, quem escreveu em 1940 sobre a importância de tratar uma criança pequena como um indivíduo com direitos iguais aos adultos, e da necessidade dos pais manterem contato com seus sentimentos e permitirem sua expressão. Para ele era essencial que os ritmos orgânicos de funcionamento próprios da criança fossem respeitados e pudessem se desenvolver naturalmente. Disto se desenvolveu toda uma metodologia de criação de bebês, de forma que seus ritmos naturais pudessem ser preservados da melhor forma possível. Em certas funções, como no mamar naturalmente, era vital se permitir que o bebê regulassse a duração e a frequência das mamadas.

Da mesma maneira, em funções como eliminação, sono, brincadeira, lavar e vestir o objetivo mais importante para o educador era preservar e proteger o sentido natural de prazer corporal da criança, que é o alicerce de sua capacidade de se dar completamente em qualquer atividade com um envolvimento real. Segundo Philipson, se as necessidade fundamentais da criança são gratificadas, ela aceitará as frustrações e acomodações inevitáveis, implícitas no processo da vida, muito mais rapidamente que a criança que perdeu seu ritmo básico e aprendeu a reprimir seus sentimentos naturais. (Boadella, Nos caminhos de Reich, ed. Summus, p.215)

No seu artigo de agosto de 1991, David Boadella escreve sobre terapia e política: uma transformação ecológica profunda e orgânica. Segundo ele, Reich lutou pelos dois princípios. O princípio da liberdade para a pesquisa na prática clinica, a liberação da terapia dos velhos paradigmas com suas divisões rígidas entre corpo e mente e pela liberdade de trazer possibilidades de prevenção e tratamento da neurose para a população como um todo. A psicoterapia corporal nasce em 1920 e Reich diz que era uma parte do legado que ele deixava para as crianças do futuro. Naquele tempo tambem havia uma dissociação entre o trabalho terapêutico pessoal e o trabalho sócio-politico.

A medida que estamos reunidos aqui no Encontro Comemorativo do Centenário de Wilhelm Reich, comemorando os 100 anos do nascimento de Reich acho útil contribuir para essa reflexão tentando me apoiar num paradigma que faça uma ponte entre o social e o humano, que nos ajude a abrir fronteiras que dividem o mundo pessoal, social, e a relação com o meio-ambiente. Para isto é necessário trabalhar no nível de uma trandisciplinaridade. Um modelo que coloca a ênfase na qualidade de vida, relacionada com as necessidades humanas e a auto-regulação.

O economista chileno Manfred Max-Neef fala da ‘Democracia do Cotidiano’, acreditando que apenas redescobrindo a composição molecular do tecido social (micro-organizações, espaços locais, relações em escala humana) é que uma ordem política baseada numa cultura democrática seja possível. Segundo este autor, para evitar a atomização e exclusão da população, seja em termos políticos ou culturais, é absolutamente necessário gerar novos modos de conceber e praticar a política, aprofundando o papel dos atores sociais sem minimizar a importância do estado. Aqui estamos falando de autoregulação: como respeitar e encourajar a diversidade de uma população heterogênea e não como controlá-la.

Para refletirmos sobre a nossa atuação como psicoterapeutas corporais, proponho uma mudança de paradigma que seja coerente com os princípios reichianos Por isto mesmo não estamos apresentando um modelo e sim uma opçåo aberta ja que os seres humanos e aquilo que os rodeia såo parte de um fluxo permanente que não pode ser imobilizado por modelos rígidos e estáticos.

Para esta nova visão, desenvolvimento e necessidades humanas fazem parte da mesma equação. É uma nova forma de conceitualizar desenvolvimento. Nós estamos falando em desenvolvimento em escala humana orientada para a satisfação de necessidades lhumana que demanda uma nova forma de interpretar a realidade. Para nós psicoterapeutas corporais, seguidores de Reich, isto não deveria ser difícil. Para este efeito necessitamos de um indicador sobre o crescimento qualitativo das pessoas. O que é isto?

O crescimento qualitativo está ligado à melhoria da qualidade de vida das pessoas. A qualidade de vida depende das possibilidades que as pessoas têm de satisfazer adequadamente suas necessidades humanas fundamentais. Contrariamente ao que poderíamos supor, segundo este paradigma, as necessidades humanas são finitas e classificáveis e sáo as mesmas em todas as culturas e em todos os períodos históricos. O que muda com o tempo e de cultura para cultura é o modo ou os meios para que essas necessidades sejam satisfeitas, ou seja, os satisfatores dessas necessidades.

De acordo com Max Neef estas necessidades são: subsistência, proteção, afeto, compreensão, participação, lazer, criação, identidade e liberdade. Cada sistema adota diferentes métodos para a satisfação das mesmas necessidades humanas fundamentais. Em cada sistema estas necessidades humanas são satisfeitas ou não através da criaçao de diferentes 'satisfatores'. Nós podemos dizer que um dos aspectos que define a cultura é a escolha dos satisfatores. Uma pessoa que pertence a uma sociedade comunista e outra que pertence a uma sociedade asc´tica têm aa mesmas necessidades humanas fundamentais. O que muda é a escolha da quantidade e qualidade dos satisfatores. O que é determinado culturalmente não é as necessidades humanas fundamentais, mas of satisfatores dessas necessidades. Uma mudança cultural é o resultado to abandono de satisfatores tradicionais com o objetivo de adotar novos ou diferentes.

ós podemos utilisar essa Matrix de Necessidades para a reinterpretação do conceito de pobreza. O conceito de pobreza que geralmente usamos é limitado e economicista, se referindo às dificuldades das pessoas que vivem abaixo de um certo nível de renda. Através deste modelo falaremos de diferentes tipos de pobreza: cada necessidade fundamental humana não satisteita adequadamente revela uma pobreza humana. Por exemplo: pobreza de subsistência - devida a renda, a alimentação e a abrigo insuficiente, etc.; pobreza de proteção - devida a um sistema de saúde ruim, violência, corrida armamentista, etc.; pobreza de afeto - devida a autoritarismo. opressão, relações de exploração do meio-ambiente natural,etc.; pobreza de entendimento - devida à baixa qualidade da educação; e de identidade - devida à imposição de valores alienígenas sobre culturas locais e regionais, migração forçada, exílio político, etc.. Mas as pobrezas não são apenas pobrezas. Cada pobreza gera patologias. Este paradigma nos interessa por ser este o âmago do seu discurso.

Gostaria de terminar falando da coragem de Reich em ver a miséria humana e apontar soluções em sua época. Como dizia Nietshe? para sermos capazes de ver a miséria das situaçøes temos de ser visionários, impotentes. O que nos faz despertar é um afeto. Este tema afetou Reich, me afetou e espero que vos afete também.

Acão, Atualidade e Atualizacão

Textos Abordagem Rogeriana





TENDÊNCIA ATUALIZANTE

Ação, Atualidade e Atualização
na Abordagem Rogeriana e em Psicologia e Psicoterapia
Fenomenológico Existencial





Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.





Como sabemos, a concepção de tendência atualizante é um elemento central da concepção e metodologia da Abordagem Rogeriana. Está implícita na Gestalt Terapia; e é, certamente, fundamental em qualquer abordagem fenomenológico existencial de psicologia e psicoterapia. Na formulação rogeriana, a concepção teve e tem um importante papel na definição de uma prática humanista, fenomenológico existencial, de psicologia e de psicoterapia. O conceito tem, nessa formulação, um enfoque demasiadamente biologizante, deixando em falta a sua dimensão especificamente existencial. Para quem trabalha ao nível da psicoterapia, do trabalho com grupos, e do trabalho psicológico em geral, a questão não é simplesmente de potencialidades, no seu sentido genérico, biológico, mas de possibilidades existencialmente vividas, e do processo de sua atualização.



Somos, todos nós, ativos, nas dimensões mais originárias e essenciais da vivência de nós próprios; fenomenológico existenciais, ativos, precisamente, atualizantes, atuantes. Ou seja, somos seres que são, originariamente -- em sua vivência mais originária, mais essencial --, vivência fenomenológico existencial de força, potência, de força de possibilidade, de possível; que constantemente se desdobra, em vivência de ação, atu-ação, atu-aliz-ação.

Tendemos, assim a esta atualização de possibilidades. À ação.

Secundariamente, esta ação nos constitui, constantemente. E constitui ao mundo que nos diz respeito.

Secundariamente, porque o nosso mundo, a nossa realidade, e o nosso ser/vir a ser identitário, são sub produtos da nossa vivência; fenomenológica, existencial, ativa; do processo de nossa atualização, da vivência de nosso núcleo, de nossa dimensão, de força, de potência, de possibilidade, em seu perene e potente desdobramento vivencial, ativo. No que chamamos de poiese.

Poiese é, assim, a produtividade, e resultantes, deste processo vivencial, ativo, atualizativo, no qual, enquanto consciência fenomenológico existencial, vivenciamos a constância desta dimensão de nosso ser possível, e vivenciamos a atualização, o desdobramento, de possibilidades.

Poiética, na verdade, é a ética da poiese. Ou seja, um modo de ser e de proceder que privilegia, como referência vital, a vivencia, e a expressividade, deste processo fenomenológico existencial, poiético, de ser/devir.

Para a poiética, a possibilidade, e a sua atualização, é mais importante do que a realidade.

Inúmeros são os poiéticos. Classicamente, podemos entender assim a Aristóteles e a seus peripatéticos, a Brentano, a Nietzsche, a Heidegger, aos fenomenológico existenciais, a Buber... Da mesma forma que assim podemos entender a Carl Rogers e a Fritz Perls.

Nos tempos de Aristóteles, a questão sobre o ser se colocava como resolvida pela perspectiva de que o ser é tudo que é... Aristóteles vem a colocar a questão do possível, do que pode vir a ser. Quando coloca que o ser não pode simplesmente ser tudo o que é; na medida em que, igualmente, existe o possível, e o seu devir, a sua atualização, o seu vir a ser. De fato, o ser é o que é, e o que pode se atualizar, o que pode vir a ser.

Com isso, Aristóteles introduz no pensamento ocidental o possível, e o movimento de sua atualização; a potência e o ato, a atualização. Dados na imediaticidade empírica da vivência de consciência fenomenológica, fenomenoativa.

Franz Brentano é o grande receptor e mediador moderno de Aristóteles e de suas perspectivas. Dentre as suas inúmeras e importantes contribuições, estão o desenvolvimento da Fenomenologia, e da psicologia fenomenológico existencial; talvez possa mesmo ser reconhecido como o iniciador da Psicologia da Gestalt.

O certo é que os formuladores da Psicologia da Gestalt foram seminalmente influenciados pelas concepções de Franz Brentano. Foram alunos do principal discípulo de Brentano, Carl Stumpf. Ainda quando Brentano era vivo.

Neste caso, entre os psicólogos da Gestalt, Kurt Goldstein.

As perspectivas e concepções de Brentano e de Aristóteles, vão aparecer de um modo importante nas concepções de Kurt Goldstein. Tais como as concepções de organísmico, de organismo, de auto regulação organísmica, de auto-atualização, de experiência organísmica... E as concepções de Kurt Goldstein vão ter uma influência fundamental no desenvolvimento das idéias, e na formulação da concepção e método da abordagem de Carl Rogers. Assim, concepções como as de auto-regulação organísmica, auto-atualização, experiência organísmica, tendência atualizante, são concepções que constam já do arcabouço conceitual da psicologia organísmica de Kurt Goldstein, e têm um lugar e papel essenciais em momentos básicos do sistema conceitual de Carl Rogers.

A concepção de tendência atualizante vai ser a pedra fundamental do paradigma rogeriano. Vai permitir a Carl Rogers desenvolver experimentalmente um interessante paradigma fenomenológico existencial de psicologia e de psicoterapia.

Este paradigma só vai depurando plenamente as suas características fenomenológico existenciais, livrando-se, em sua prática, dos resíduos de pressuposições metafísicas e teorizantes, na última, e qualitativamente produtiva, fase da vida de Carl Rogers. Quando o trabalho com grupos, em suas várias modalidades -- de grupos residenciais e não residenciais, com pequeno, médio ou grande número de participantes, de curta ou longa duração, e outras modalidades -- leva a uma assombrosa radicalização fenomenológico existencial do paradigma de Rogers, e da experimentação, por parte dele, e de seu grupo de colaboradores.

A radicalização é tal que, neste momento, toda a produção teórica anterior -- que já experimentara, durante anos, um intenso processo de mudança e de metamorfose -- parece, de um modo muito propriamente fenomenológico existencial, distante e supérflua, apenas relativamente necessária. Em privilégio de um logos metódico fenomenológico existencial empírico, que se ancora simplesmente na constação fenomenológica, e existencial, de nossa ontológica condição de sermos ativos, atualizativos; da condição ontológica básica de ativos dos grupos humanos, e das pessoas.

O conceito de tendência atualizante permanece um instrumento interessante. Tanto do ponto de vista da Abordagem Rogeriana, como do ponto de vista de um paradigma fenomenológico existencial de psicologia e de psicoterapia. Ainda que ele seja, no âmbito da abordagem rogeriana -- onde está melhor elaborado e mereceu maior atenção, na psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial -- um conceito vago, impreciso, freqüentemente equívoco. Em razão de uma precária elaboração. Em particular, em função de um viés abusivamente biologista na sua formulação.

O conceito sempre se referiu à tendência, e ao exercício da tendência dos seres vivos para atualizarem as suas potencialidades, e se constituir como espécimens adultos, maduros, socialmente ajustados e produtivos, no caso dos seres humanos. É conhecida a ilustração que Rogers faz de sua idéia lembrando os brancos brotos das batatas que cresciam nos estoques invernais do porão da casa de sua infância... Pálidos e obstinados, em sua tendência atualizante em direção à luz...

É impressionante, porque, em seguida, Rogers dá ainda um passo "atrás" -- do biológico ao cósmico --, ao vincular o que ele entende como tendência atualizante a uma tendência formativa do universo, usando idéias de Ilya Prigogine, muito vigentes na new age, para corroborar as suas próprias concepções.

Não é que não seja interessante considerar a tendência atualizante de suas potencialidades por parte dos seres vivos, no sentido biológico, e evolucionista... Ou indicar a tendência sintrópica que caracteriza a vida, em contraposição aos movimentos deletérios da entropia... Mas, direto, do cósmico, e do biológico, para o pessoal? Sem passar pela mediação da história? Sem passar pela mediação do cultural e do social? Sem passar pela mediação da existência, e do existencial?

Há, efetivamente, aí uma incontornável lacuna. Em especial para quem se remete aos humanos, e aos grupos humanos: no que diz respeito à relação história-pessoa, e no que diz respeito à concepção existência-pessoa, em termos da concepção de tendência atualizante.

É interessante observar que a vivência, a experimentação, e o desenvolvimento do modelo rogeriano, como seria de se esperar, vai se deslocando, e se tornando cada vez mais independente dos pressupostos teóricos, com o privilégio de uma vivência fenomenológico existencial empírica. A um ponto tal que a teoria prossegue reincidindo em crises, de crescimento, e, defitivamente, não acompanha os resultados da experimentação, quedando-se em níveis muito precários, no que concerne à rica fase final do trabalho de Carl Rogers, principalmente com relação ao seu modelo de trabalho com grupos, e às repercussões dos resultados da experimentação com grupos sobre o modelo de trabalho na relação interindividual[1].

Aí também presente, de modo importante, as confusões determinadas pela crise epistêmica decorrente:

1. Do fato de que a abordagem rogeriana, de cunho fenomenológico existencial empírico, cresceu no meio de um empirismo objetivista, avêsso à teorização. Com os praticantes da abordagem rogeriana ainda influenciados, de um modo significativo, por esse tipo de empirismo objetivista; condição associada ao pouco conhecimento das perspectivas da Fenomenologia no meio da abordagem rogeriana;

2. Dos mal-entendidos e confusões relativos à precária compreensão acerca de qual é o lugar da teoria numa abordagem que é, em sua vivência, não teorizante; ou seja, acerca de qual o lugar da teoria numa abordagem fenomenológico existencial empírica e experimental.

Aparentemente confundida, ainda, influenciada e desorientada pela aversão à teoria e à teorização da cultura anglo-saxã, a cultura da abordagem rogeriana se quedou, e se queda, inteiramente baratinada com relação à questão dos nexos entre a vivência experimental empírica, não teorizante, e a teoria, a teorização, e a crítica...

A teoria foi evoluindo para uma fértil crise de perspectivas epistemológicas e ontológicas, até que Rogers e os seus colaboradores mergulharam na intensa experimentação fenomenológico existencial empírica de seus referenciais, num contexto grupal, com uma teorização ainda incipiente, e freqüentemente pautada pelos referenciais do empirismo objetivista -- incompetente para dar conta da riqueza e da complexidade dos produtos e processos de sua experimentação. De fato, neste momento, o fato de que Rogers e colaboradores estavam ricamente imersos nas dimensões existenciais de um tal processo, e em suas densidades e complexidades teóricas, não permitia, ainda, um afastamento que possibilitasse uma reflexão e produção teórica. Sem dúvida, o pouco conhecimento no seu meio, e no meio da cultura da abordagem, dos referenciais da Fenomenologia e do existencialismo, dificultava sobremaneira esta empreitada teórica.

O momento posterior à morte de Rogers é um momento de paralisia teórica, pelo menos em termos paradigmáticos, em que a teoria vai sendo cada vez mais alienada e alienígena, ainda que a força da obra ensaística de Rogers permaneça fazendo adeptos. E que o empirismo fenomenológico existencial característico de seu paradigma possa ser compreendido e desenvolvido por profissionais competentes e criativos.

A concepçao de atualização, e mesmo de tendência atualizante -- esta importante contribuição de Aristóteles, Brentano e Goldstein, que Carl Rogers soube valorizar, conceitual e metodológicamente, em psicologia e psicoterapia -- permanecem assim como concepções básicas, do paradigma rogeriano, e da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial.

No caso da abordagem rogeriana, em particular, no sentido de sua reformulação e atualização. Isto porque são concepções que guardam a originalidade da formulação rogeriana, ao mesmo tempopermanacem como concepções atuais -- produtivas --, não só no contexto da abordagem rogeriana, como no contexto da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial.



A atualidade da concepção de tendência atualizante, em sua acepção fenomenológico existencial, em psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, advém do fato, simplesmente, de que, ainda que um conceito teórico, ela se remete à dimensão vivencial, especificamente experienciável. Eespecificamente existencial. Remete-se ao próprio processo humano de realização, e de superação. Dimensão ontológica humana fundamental, e fundamental para a concepção e vivência da psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, em específico da abordagem rogeriana, e da gestalt terapia, que são psicologias e psicoterapias do ato e da atualização, da atualidade. Abordagens poiéticas, estéticas.







[1] Vera Cury trabalhou esta última temática em sua tese de Doutoramento.
1

Autoregulacão Organismica e Movimentos da Alma

A GESTALT TERAPIA E A TERAPIA SISTÊMICA DE BERT HELLINGER

(Exposição realizada no II Congresso Nacional de Gestalt Terapia, Madrid, 25 a 28 de abril de 2002).

Autor: JOAN GARRIGA BACARDI
Diretor do Instituto Gestáltico de Barcelona

O principal objetivo de minha exposição consistirá em mostrar as equivalências entre a idéia de auto-regulação organísmica da Gestalt Terapia e a dos movimentos da alma do modelo de trabalho sistêmico de Bert Hellinger, denominado Constelações Familiares. Para tanto, vou me deter em explicar a noção da Auto-regulação Organísmica lançando algumas breves reflexões sobre a possibilidade de considerarmos a Gestalt Terapia um modelo relacional ou sistêmico, para, em seguida, explicar os fundamentos do modelo de Constelações, desembocando no conceito de Movimentos da Alma e, finalmente, extrair algumas conclusões.

A auto-regulação organísmica

Auto-regulação organísmica era um termo assíduo na boca de Fritz Perls, ao ponto de ser assimilado na cultura gestáltica como lugar comum e pressuposto óbvio do trabalho (que fazer) terapêutico. Ainda sem ser explicado em seu detalhe conceitual, tinha o efeito de sugerir uma evocação no funcionamento das pessoas, ou seja, uma confiança básica no ser único que somos e na natureza humana, a qual, entregue à própria sorte e livre de interferências, só poderia nos levar a um bom lugar, curador, um lugar de integração de todos os aspectos da personalidade.

A auto-regulação organísmica sugere um estar confiante nos processos espontâneos o que, citando Claudio Naranjo ( La vieja y la novísima Gestalt. Actitud y práctica. Ed. Cuatro Vientos), “ no es uma materia diferente sino una tradicción biológica de los existencial de ser uno mismo” e “va de la mano com lo que há autodenominado “hedonismo humanista”. Cláudio faz referência a um viver a partir de dentro mais que a um viver a partir de fora – por obediência à obrigação ou preocupação com a auto imagem. Diríamos então que as principais interferências ao processo espontâneo são o conjunto de obrigações interiorizadas, a auto imagem construída e sua conexão lógica, tudo aquilo de que não somos conscientes ou ignoramos para canalizar o cumprimento de referida obrigação ou manter a coerência de nossa auto imagem. Seguindo Claudio, parece que Fritz Perls se referia ao Tao quando mencionava a auto-regulação organísmica que vinha a ser: “um curso de ação apropriada ditada mais por uma profunda intuição que pela razão ( e envolvendo um ceder dionisíaco diante das preferências do que uma luta sartreana pelas opções).

Em minha opinião a idéia de Auto-regulação Organísmica pressupõe ao menos quatro dimensões principais:

1. Existe uma fonte de vida misteriosa (que não pode ser cartografada intelectualmente) da qual emana algo bom e que intuitivamente podemos confiar que nos remete à realização de nossa potencialidade, como uma semente de carvalho conduz naturalmente ao crescimento e criação de um carvalho único;
2. Esta misteriosa fonte de vida abre caminho através de impulsos espontâneos aos quais devemos ceder e aceitar ao invés de impor a tirania da vontade e o controle como único sistema de orientação;
3. O que ajuda a não exclusão, o respeito, integração e boa acolhida de todos os aspectos e partes integrantes. Trata-se de uma força que renuncia a fazer diferenças.
4. A exclusão deriva de um extravio, pois aquele que foi excluído trata de abrir seu caminho e ser representado, às vezes de maneira problemática, como por exemplo, através de uma enfermidade física, psíquica e emocional.

No fazer concreto da terapia, a idéia de auto-regulação organísmica se torna eficaz e se traduz por “um dar lugar à vivência e ao reconhecimento” para tudo aquilo que já se tem internamente, e que geralmente tratamos de excluir, num negócio fatal de compromisso com a auto-imagem idealizada e a cadeia de identificações que tomamos como identidade nossa.

A Gestalt Terapia é uma terapia relacional, mas chega a ser sistêmica?

Uma forma de situar a Gestalt Terapia é mostrando um dos paradoxos mais difíceis. Por um lado possui a atmosfera do Tao e sintoniza com uma fonte (que mana) ou princípio indiferenciado em respeito ao qual todo o resto seriam suas manifestações e por outro lado enfatiza e agiganta um Eu que faz diferenças (recordemos-nos que Jean Marie Robine descreve o mecanismo de defesa específico da Gestalt Terapia como subjetivismo, e em clara alusão a esse paradoxo que descrevo, sugere uma passagem de uma egologia para uma ecologia). A própria oração da Gestalt de Fritz expressa de forma sucinta e direta através do diálogo, considera um “eu” e um “tu”, é relacional. Mais ainda, dá um passo importante como terapia de contato e de relação, e Fritz Perls fala de campo unificado entre organismo e ambiente, mantém claras reminiscências psicanalíticas orientadas aos mecanismos intrapessoais e ainda enfatiza o “eu” acima do contexto e do mundo interior próprio, assim como a regulação das experiências emocionais acima do poder dos sistemas e das redes de relacionamentos. Por um lado é uma terapia espiritual: confia em uma força misteriosa que regula de forma natural, por outro é uma terapia da identidade: o “eu” adquire um caráter de privilégio; e, ainda por outro lado, é uma insinuação sobre o relacional e portanto um primeiro esboço sistêmico. Se for certo que a Gestalt Terapia concebe a pessoa de um modo inseparável de seu ambiente, adicionalmente resolve a questão dialética com uma proposta de reforço e concessão de poder ao “eu”. O que creio, não está mal, apenas esquece-se de maneira descuidada de como a força do “eu” é pequena comparada às tramas invisíveis que regem a família e que, a miúdo determinam histórias de vida e destinos muito marcados; aí a solução se encontra não tanto no fortalecimento do “eu”, senão no esclarecimento nosso em relação à família que pertencemos e à rede de vínculos na qual estamos inseridos. Comparemos a título de diferenciação a Oração de Fritz com a contra oração de Thic Nhat Hanh ( que extraio do livro: “Llamádme por mis verdaderos nombres” editado por La Llave) que resultam em poéticas metáforas conceituais:

Oração de Fritz

Eu sou eu
Tu és tu
Eu faço o meu e
Tu fazes o Teu
Eu não estou no mundo para satisfazer tuas expectativas
Nem tu para satisfazer as minhas
Se nos encontramos por casualidade está bem
Se não, não há nada que fazer.

Contra oração de Thich Nhat Hanh

Tu és eu e eu sou tu
Não é evidente que ambos inter somos?
Tu cultivas a flor que há em ti
Para que eu seja formoso.
Eu transformo o lixo que há em mim
Para que não tenhas que sofrer
Eu te apoio
E tu me apóias
Eu estou neste mundo para oferecer-te paz;
Tu estás neste mundo para dar-me alegria.

A primeira enfatiza as diferenças e insinua a idéia de um eu e um tu que são livres demarcando com clareza suas próprias fronteiras. A segunda põe em manifesto o interdependente e o poder das relações, além de sugerir que de algum modo “todos somos um”.

O modelo sistêmico de Constelações Familiares de Bert Hellinger

No modelo de Bert Hellinger o cliente exterioriza sua imagem da família posicionando no espaço (físico) representantes para os distintos membros de seu sistema familiar. Baseando-se nesta configuração é possível detectar as dinâmicas que mantém os problemas e trabalhar com elas reorientando a imagem inicial para outra que manifeste impulsos de solução. A seguir, apresento as idéias básicas que fundamentam este trabalho.

Rede de Vínculos e Alma Familiar

O sistema que mais influencia a pessoa é a família e a rede de vínculos familiares à qual pertence e a hipótese sistêmica principal é aquela que sustenta que os estados psíquicos, vivências, problemas, histórias de vida e destino das pessoas se explicam e se resolvem encarando a posição que a pessoa ocupa no mesmo. Parece-me que intuitivamente é algo que sabemos e, em geral, concordamos em sentir a força do emaranhamento familiar como determinante de nossas possibilidades, limitações e vivências existenciais.

No modelo sistêmico de Bert Hellinger não se tem em vista a comunicação atual dos membros da família. Afasta-se dos modelos pragmáticos da comunicação atual entre as pessoas preferindo identificar as dinâmicas de fundo que permeiam as formas de comunicação atual. Assemelha-se em algumas reflexões ao modelo estrutural de Minuchin concedendo importância às hierarquias e ao ordenamento dos subsistemas familiares. No entanto, vai mais além e trás novidade no campo da psicoterapia. Para o modelo das Constelações Familiares de Bert Hellinger o mais importante e, portanto, aquilo que se busca é “o que vincula na alma” e o que vincula na alma é dado pela sexualidade e suas conseqüências e pela violência e suas conseqüências. Ou seja, vincula aquilo que desponta dos assuntos do viver e do morrer. Através da sexualidade se constitui o casal e vem a vida, e daí podem vir vínculos entre irmãos navegando numa corrente comum; além disso ter a vida nos assegura de perdê-la. A violência também ameaça a vida e a dignidade e, freqüentemente, leva à morte. Num nível mais profundo vibramos intensamente diante das forças que nos aproximam do viver e do morrer, e estas determinam implicações dinâmicas que tem um grande poder.

A alma familiar viria a ser uma força reguladora comparável à força reguladora que dirige os processos físicos de um organismo vivo para manter sua estabilidade. A alma familiar reúne e dirige os destinos das pessoas que permanecem vinculadas por laços de lealdade profundos e o faz de acordo com certas ordens e leis cuja transgressão acarreta conseqüências fatais em forma de enfermidades, tanto física como psíquica ou emocional e inclusive a morte. Pertencem a esta alma familiar os filhos junto com seus irmãos (também aqueles que nasceram mortos ou morreram prematuramente, ou inclusive os que não chegaram a nascer), os pais e os irmãos dos pais, os avós e tios das avós, os bisavós, e ainda mais atrás especialmente se houve destinos graves ou trágicos, também os que provocaram distanciamento para outros, por exemplo, a esposa ou marido de um primeiro casamento e respectivos avôs, e também aqueles que obtiveram vantagem à custa da desvantagem de outros ou vice-versa, por exemplo, quando alguém conservou sua vida à custa da vida de outro que a perdera. Na alma familiar atua um sentido de lealdade e amor profundo, muitas vezes cego e mágico que leva aos seus sucessores, e, portanto, menores, a assumir cargas e sacrifícios com a idéia mágica e inconsciente que outros antecessores mais velhos vão se beneficiar. Às leis que regem a alma familiar, que tem por princípio geral que todos os seus integrantes tenham um lugar de dignidade e de respeito, se ajustam as seguintes idéias:

1- A ordem deve ser respeitada para que o amor flua e aconteça.

Segundo Bert Hellinger, o Amor não basta, requer a Ordem. Muitos pais amam profundamente a seus filhos mas não compreendem como apesar disso estes possam ter problemas e não estarem bem. O que deve ser olhado é a ordem na família e a ordem é muito simples, assim exposto: que os pais sejam pais e somente pais e, portanto são maiores, que os filhos sejam filhos e somente filhos e, portanto são menores, que o marido seja marido e a esposa seja esposa e, além disso, que os pais dão e que os filhos recebem. Esta ordem está muitas vezes equivocada porque um filho captando as necessidades e prisões dos pais com respeito a sua família de origem, se vê levado de forma inconsciente a ser o par invisível de um dos pais ou a representar a algum dos progenitores dos pais, do qual se derivam importantes transtornos emocionais e terão conseqüências na construção do caráter e nos vínculos futuros dos filhos. Por exemplo, se de alguma maneira uma mãe rejeita a sua própria mãe e internamente diz: “o que vem dela não é bom, não o considero” sua filha será levada a representar sua mãe e na idade adulta terá dificuldades em seus relacionamentos afetivos porque ao não sentir-se filha de sua mãe não pode desenvolver-se como mulher.

2- A alma familiar não tolera as exclusões e impõe o princípio de igual direito ao pertencimento

O terapeuta que trabalha com o modelo de Constelações Familiares se pergunta sobre quem deve ser reintegrado ao sistema para que haja paz. A alma familiar tem como princípio inexorável a admissão de excluídos e esquecidos e, quando há esquecidos (quiçá pessoas que morreram e a dor foi encarada como esquecimento, ou pessoas que desafiaram as regras do sistema e foram afastados, etc.) se supõe que seus sucessores os representarão, muitas vezes, imitando seu destino. Por exemplo, quando um irmão morreu ainda menino e foi esquecido ou inclusive seu nome foi dado a outro irmão, configura-se um quadro onde outros irmãos, por lealdade ao irmão morto, cuidem em dar-lhe lugar tratando eles mesmo de morrer, sentindo atração pela morte ou impulsos suicidas, etc. Ou também, por exemplo, quando um dos pais é repelido pelo outro, o filho contrai uma solidariedade oculta com a parte rechaçada e sente um impulso de representá-la e fazer-se como ela numa tentativa desesperada em dar-lhe um lugar. Também comumente um filho de uma segunda relação representa a parte não reconhecida do casal.

3- Infortúnios dos quais devemos nos desprender para que haja liberdade. O equilíbrio entre o dar e o receber.

Poderíamos dizer que o principal tabu das pessoas é o da felicidade e ainda que em um plano ela seja ferrenhamente perseguida, em outro plano é difícil ser feliz sabendo-se que outros na família sofreram, foram infelizes ou tiveram destinos difíceis. Como disse Bert Hellinger “sofrer é fácil, atuar e desenvolver-se é que é difícil”. Profundos vínculos de solidariedade atuam nas famílias nos levando às limitações dos que nos antecederam e dificultando nossa própria superação em ir mais além. E ainda que vejamos nas Constelações, uma vez ou outra, que aqueles que sofreram infortúnios desejam que sua infelicidade seja respeitada e tomada como um destino pessoal sem que outros sejam envolvidos, também vemos, uma vez ou outra, como os que os sucederam, como por uma espécie de amor mágico, se empenham em libertá-los de sua desgraça fazendo-se a si mesmos desgraçados numa espécie de compensação negativa em que dizem: “se eu me sacrifico talvez você se saia melhor”. Assim se repetem destinos e se acumulam sacrifícios, sendo o resultado ainda mais infortúnios. Por exemplo, um filho percebendo que um dos pais adoece e deseja morrer, talvez seguindo a um antecedente com o qual se sinta ligado, se apresenta e diz internamente: “eu adoeço em seu lugar” ou “ eu morro em seu lugar” ou “ eu te sigo na desgraça ou na morte”, etc. Também existe na alma familiar uma profunda instância que trata de restaurar o equilíbrio entre o dar e receber e aí também vemos muitas vezes como os sucessores tratam de expiar culpas daqueles que lhes antecederam e foram prejudicados, imitando seus prejuízos. Como exemplo extremo citarei o de um filho cuja mãe perdeu a vida no parto. É um exemplo extremo porque a mãe dá o que é essencial: a vida e, neste caso, ao custo de sua própria vida, o que há de mais essencial. E para o filho é difícil tomar a vida a esse preço tão alto, afrontando esse grande desnível através de uma compensação negativa dizendo-se internamente: “A este preço tão alto não a quero e, portanto, não a assumo com plenitude e me limito”. Mas, desse modo, o que ganha a mãe? De novo atua esse amor cego que não consegue ver claramente o desejo da mãe que morreu, de que o filho tenha vida em plenitude e a desenvolva com felicidade e conquistas. Buda seria um exemplo de compensação positiva, atuando com grandes benefícios para todos em memória a sua mãe que morreu três dias após o parto e em conseqüência dele.

4- Consciência individual consciente, consciência coletiva inconsciente e movimentos da alma.

Depois de haver explicado de forma minimalista e sucinta os ingredientes indispensáveis ao modelo de Bert Hellinger, me aproximo do propósito de explicar os movimentos da Grande Alma e fazer uma comparação com o conceito de auto- regulação Organísmica para extrair algumas conclusões. Para isso devo explicar o assunto da Consciência, entendida aqui não tanto como precaução senão como Consciência ética ou moral, que regula de forma sutil nossas ações, nossas possibilidades e nossos limites.

Por um lado temos uma “consciência individual consciente” que se percebe na sensibilidade pela diferenciação mais básica nos seres humanos: agrado e desagrado, categorias que traduzidas à consciência moral viriam a ser: bom e mau. Até aqui nada distinto das idéias de Perls. Bom viria a ser: corresponde com o previsto no código do meu sistema familiar e respeitando-o asseguro meu direito a pertencer, fazendo-me sentir inocente, e mau significa: destoa do previsto e me arrisco a perder o direito a pertencer e experimento culpa. No fundo nada diferente também do que postula Perls no sentido de introjetar os valores importantes de nossos antecessores. Bert Hellinger concede um alto valor à necessidade profunda de pertencer ao grupo de referência e é óbvio que cada grupo determina um código de valores próprios aos quais tratamos de nos ajustar para não arriscar ao direito de pertencimento. Desde já isto também seria válido para outros grupos distintos ao grupo familiar, ainda que com menor peso e ligações profundas. Este tipo de consciência se fundamenta em fazer diferenças, a fundamental entre bem e mal, e para preservar nosso sentido de inclusão ajustamos nosso caminhar ao bem e estreitamos nosso marco de vida. Desenvolver-se e ir mais adiante frente a este tipo de consciência significaria assumir culpa e talvez solidão, renunciando ao encantamento daquilo que consideramos bom e nos proporciona inocência. Desenvolver-se aqui significaria compreender profundamente que “todos somos um, nem melhores nem piores, renunciando aos julgamentos e diferenças sobre bom e mau”, compreender claramente “em um plano real todos somos iguais, e nos esquecemos, por si a morte sés encarrega de equiparar-nos em um destino inequívoco”.

Por outro lado temos a “consciência coletiva inconsciente”, a qual corresponde uma instância sistêmica que leva as pessoas a assumir posições de um modo invisível pra ajustar-se aos imperativos da ordem de representação de excluídos e esquecidos ou de restauração do equilíbrio entre dar e receber. Esta trama invisível pode ser mostrada no trabalho de Constelações e novamente a pessoa para desenvolver-se pode renunciar ao sentimento de inocência que é sustentado na trama do sistema familiar e talvez assumir a culpa de ser feliz ao mesmo tempo em que respeita e dá um lugar a todas as pessoas da sua rede de vínculos. Em resumo, colocar-se em sintonia com a realidade tal como ela é e como ela há sido sem atribuir-se a tarefa de melhorá-la. Neste âmbito os elos são muito fortes, viscerais e nem sempre a pessoa pode renunciar ao seu próprio sacrifício por amor e lealdade e isto deve ser respeitado também.

Por último teríamos os “movimentos da alma” que se experimenta ao superar os limites da consciência e vem de uma força maior, da alma profunda, e trazem soluções muito particulares aos problemas apresentados. Estes movimentos assomam espontaneamente às pessoas que representam aos familiares numa Constelação e são regidos por uma instância que não faz diferenças, ou seja, por uma consciência indiferenciada que tende a dar um lugar de respeito, reconhecimento e dignidade a todos os pertencentes, saindo da margem estreita entre bons e maus. Trata-se de uma consciência profunda que não distingue entre bons e maus, sãos e doentes, vítimas e vitimados, felizes e sofredores, loucos e cordatos e concede a todos um bom lugar no coração, aceita os destinos de cada um e a realidade como ela é e dá força à pessoa para olhar a vida em toda a sua plenitude.

Conclusões

Poderíamos dizer que os “movimentos da alma” pressupõem igualmente à “auto-regulação organísmica”, algumas dimensões que os convertem em seu equivalente sistêmico:

1) Existe uma instância superior profunda que supera a consciência estreita e não faz diferenças, da qual emanam movimentos que nos orientam a nos colocar em consonância com a vida tal como ela é;

2) Estes movimentos se mostram de maneira espontânea no trabalho das Constelações, e, ante isto, é melhor ceder que reafirmar um “eu” que pretende inocência;

3) O que ajuda a dar um bom lugar a todos àqueles que pertencem a nossa rede de vínculos, sem exclusões;

4) Já que a exclusão deriva em perturbação uma vez que os excluídos serão representados por outros seguindo ou imitando suas trajetórias, a miúde em forma de graves patologias e destinos

Quero terminar minha exposição realçando a idéia principal: quando em Terapia Gestalt nos entregamos à auto-regulação espontânea dos processos porque abrem e dão espaço à verdade integrando todas as partes da pessoa e superando os limites do auto conceito, no trabalho de Constelações Familiares nos entregamos aos movimentos espontâneos da Alma porque superam a consciência que faz diferenças e também abrem e dão espaço a profundas verdades integrando a todas as pessoas que pertencem e fazem parte. E ambas as coisas supõem também uma confiança e uma fé em algo superior que opera por aprovação e concordância com a vida e não por oposição e interferência.

Claro que no desenvolvimento das pessoas isto é um fruto, um lugar de chegada, mas a graça é que se manifesta esponêamente quando a terapia cria as condições propícias.

Texto traduzido do espanhol para o português por Maria de Fátima Thomé.

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Principios de Gestalt

Estraído da pág. apresentacão do site Centro de gestalt do Rio Grandedo Sul



A - Personalidade

Como teoria de personalidade podemos falar de interdependência ecológica; o campo organismo / ambiente.

A personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais.

Quando o ser humano chega ao mundo precisa necessariamente do calor de braços humanos, de contato cheio de ternura. Precisa sentir-se seguro de que será protegido, de que foi desejado, de que alguém acalmará sua sede e fome.

Uma criança depende dass experiências dos pais e de seu meio ambiente.

O homem vive a unidade solidária de seu destino individual com o destino da comunidade a que pertence, não pode ter êxito ou fracasso por sua conta. O problema do ser define-se então como possibilidade.

A ação do homem no seu ser-no-mundo é desdobrada pela possibilidade originária de ser-com-os-outros, não é jamais individual.

Os homens não se dirigem direta e simplesmente as coisas em sua mera presentidade, mas por uma trama de significados em que as coisas vão podendo aparecer.

Para o organismo, antes que se possa denominá-lo de algum modo personalidade e, na formação da personalidade, os fatores sociais são essenciais.

B - O Mundo Fenomenal

É organizado pelas necessidade do indivíduo.

O passado reflete as experiências anteriores transformadas pelas experiências posteriores, que simbolizam as lembranças hoje.

"Para cada momento a vida nos oferece infinitas possibilidades de escolha. Muita necessidade é a de escolher apenas uma. Meu poder é de buscar escolher com consciência sabedoria e amor."(Loeci Maria Pagano Galli)

Futuro são expectativas, objetivos, metas que dirigem as escolhas de hoje e que poderão ou não se concretizarem. O futuroinspira o presente.

O presente é a única possibilidade, a única realidade. É a forma de atenção sobre a forma possível.

Pela expressão fenômeno deve reter-se o seguinte: o-que-se-mostra-em-si-mesmo. Fenômenos são então a totalidade do que há na luz do dia ou que pode ser trazido a luz. Fenômeno é igual a aparência.

Fenomenologia significa primeiramente uma concepção metodológica, não caracteriza o porque mas o como dos objetos.

O objetivo da exploração fenomenológica da gestalt é a awareness. Um fenomenólogo estuda a awareness pessoal e também a awareness do próprio processo.



Passado

Experiências anteriores

Temos uma hierarquia de necessidade, que continuamente se desenvolvem, e organizam as figuras de experiência e desaparecem . A auto-regulação organísmica confia nosso bem estar ao cuidado de um ser interno que se esforça inerentemente por ser saudável.


Futuro

Expectativas

A auto-regulação organísmica inclui três fenômenos: percepção, aceitação do que existe e consciência da necessidade dominante. Aceitação da realidade possível, que é a realidade que ela pode contatar.



Presente


Única realidade possível



C - E o pensamento torna-se a experiência

Compreenda as ações arquetípicas.

Pense num evento que esteja em harmonia com as ações / natureza arquetípicas.

Novos caminhos de mínima ação podem desenvolver-se guiando sua percepção para aquela harmonia.

E o pensamento torna-se experiência!

Cada minúsculo “ato de observação” reduz à polifonia dos caminhos a um só ponto de um dos caminhos. A partir dele são possíveis novos caminhos de mínima ação vindos do passado e indo para o futuro. Tudo se passa como se a memória do universo recebesse um leve solavanco, que a fizesse esquecer da maneira como ela trouxe este objeto até esse determinado ponto do espaço e do tempo. Se estivermos “ “dependurados” no passado. Escolheremos ver o futuro como víamos o passado. Se alterarmos nossa percepção do agora, nossa visão alterada mudará o futuro.

D - Hermenêutica

A hermenêutica é uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas, estamos sempre confrontados como indivíduos situados dentro de uma determinada cultura.

A objetividade própria da hermenêutica ao escutar alguém ou realizar uma leitura não se trata de não levar em conta os próprios pré-juízos ou negar suas próprias opiniões, mas sim se estar aberto a opinião do outro ou do texto.

Tal receptividade não pressupõe neutralidade. A compreensão se move numa dialética entre a pré compreensão e a compreesão do momento.

A fenomenologia do ser é hermenêutica.

A hermenêutica é esta incomoda verdade, que não é nem verdade empírica e nem uma verdade absoluta, mas uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem. Não há grau zero no início da investigação, pois sempre estamos confrontados como indivíduos situados historicamente dentro de uma determinada cultura. A ciência é construída sobre o mundo vivido e ela só pode ser vista enquanto resultado da experiência do mundo. Segundo Gadamer há um "perpetuum movile".

Segundo Heidegger o método fenomenológico é um método pelo qual devemos dar conta sempre de dois aspectos na investigação: o aspecto da singularidade (fenômeno) e o aspecto da universalidade (logos). Fenomenologia já contém a idéia de uma espécie de análise constante dos aspectos da singularidade e da universalidade. O método fenomenológico trata daquilo que se esconde sob o logos, que é a singularidade que tenta se expressar no logos, mas que o logos sempre oculta. É o elemento hermenêutico.

E - Awareness

É uma forma de atenção sobre a forma, uma reflexão da forma em si mesma. Temos uma hierarquia de necessidades que continuamente se desenvolvem e organizam. A awareness não é estática, é um processo de orientação que se renova a cada instante.

Entrar em contato com o mundo é o reconhecimento do ambiente. Processo de estar em vigilante contato com os eventos mais importantes do campo indivíduo- ambiente.

Experiência de estar em contato com a própria existência. Aceitação da realidade possível, realidade que ela pode contatar.

A awareness é eficaz apenas quando fundamentada e enrgizada pela necessidade atual dominante do organismo. Sem energia, entusiasmo e emocionalismo do organismo, sendo investido na figura emergente, a figura não tem significado, poder ou impacto.

Expandir-se é estar consciente do que se passa dentro e fora de si no momento presente, em nível mental, corporal e emocional.

Representa o autoconhecimento. A pessoa consciente sabe que tem alternativas e escolhe a melhor para o momento.

É aceitação da realidade possível, realidade que ela pode contatar.

F - O universo físico não existe independentemente do pensamento dos participantes

O universo físico não existe sem os nossos pensamentos sobre ele. Sem nossas observações e sem nossos pensamentos um objetivo se dispersaria no esquecimento. Imagine-se isto para a confirmação da pessoa. O princípio da incerteza: é impossível você conhecer, simultaneamente a posição e a trajetória de um objeto em movimento. Se você determina um destes atributos com excelente precisão será sempre às expensas do outro. Por isto, mesmo que você faça uma observação tão boa quanto possível, o mundo será, sempre, um pouco incerto.O que denominamos realidade é construído pela mente. O Mundo não é o mesmo sem você.


* *



G - Contato

O limite no qual o indivíduo e o meio se tocam, em Gestalt-terapia denomina-se "limite de contato", e neste limite ocorre o intercâmbio vivo entre indivíduo e meio.

Contato é o processo básico do relacionamento, é a consciência de si como um ser com. Toda experiência do indivíduo podem sofrer alterações conforme o campo em um dado momento. Experiência é contato. Contato é função do campo e obedece as leis que regem o campo. Posso estar contigo, unicamente se estou seguro de que tu és, não eu e que existimos como entes separados. Contato é o processo básico do relacionamento. O diálogo é que emerge quando eu e você buscamos o contato de forma autêntica. O diálogo não é você mais eu, ao contrário, ele surge da interação. O contato humano é um processo mútuo de duas pessoas separadas, movendo-se em ritmo de união e separação

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H - Figura-Fundo

Na subjetividade da percepção a escolha pode ser consciente ou inconsciente do que para aquela pessoa aparece como figura ou fundo.

O processo de formação de figura-fundo é dinâmico, o organismo seleciona e desenvolve formas próprias de auto-conservação. Qualquer fenômeno observado nunca é uma realidade objetiva em si.

A figura depende do fundo sobre o qual aparece; o fundo serve como uma estrutura ou moldura em que a figura está enquadrada ou suspensa, e por conseguinte, determina a figura.

Vir ao mundo significa poder partilhar, com os outros, o seu modo de ser. Mas o ser sem que me pertencesse isoladamente, me anularia como individualidade; porém o ser que me define em minha individualidade, me abre a coexistência e determina uma esfera infinita em que substituem possibilidades infinitas de encontro, de comunicação, de compreensão entre o eu e o outro.

Nenhum olhar é meramente individual, ainda que seja sempre o indivíduo que vê. Isto porque o indivíduo é um ente coexistente.

O homem é plural. Os outros não são aqueles com quem o indivíduo convive, nem aqueles que o completam; os outros constituem-no. sem o outro o indivíduo não é.

Nunca estamos acabados como algo presente, estamos sempre abertos para o futuro no sentido de conduzir a nossa vida.

Quando o ser é compreendido na sua impermanência, no seu aparecer, desaparecer, é a existência humana mesma, entendida como coexistência (singularidade e pluralidade) em seus modos de ser no mundo.

Qualquer escolha é aquilo que pode redespertar, ou colocar em movimento o que já vive em nós, por isso nos desperta atenção. Por esse motivo a tendência de me identificar com algumas pessoas.

I - O Espaço é uma Construção do Pensamento

O meu "agora" não é o seu "agora", a não ser que estejamos nos movendo à mesma velocidade e no mesmo sentido. Se não estivermos, nossos "agoras" não serão os mesmos. Todo o universo pede estar num ponto menor que este (para um observador situado em nosso nível).
E nós poderíamos, ainda assim, experimentar o espaço como o conhecemos.

*

J - Teoria de Campo

Kurt Lewin (1890-1947) nasceu na Alemanha, doutor em psicologia, estudou a interdependência entre a pessoa e o seu meio social.

O comportamento é uma função do campo, do qual ele é parte, ele não depende nem do passado e nem do futuro, mas do campo presente. Este campo presente tem uma determinada dimensão tempo, inclui o passado psicológico, o presente psicológico e o futuro psicológico, que constituem uma das dimensões do espaço de vida exixtindo num determinado momento. (Lewin, 1965. p.32)

Na abordagem de campo da Gestalt-terapia tudo é visto como vir a ser, movendo-se, nada é estático. O campo é a pessoa no seu espaço de vida. A realidade é sempre relacional e é assim que precisa ser compreendida.

K - Teoria Organísmica

Kurt Goldstein (1878-1965)

O indivíduo é um todo unificado, como um campo integrado em sentimentos, sensações, emoções, imagens. O corpo e a mente não são entidades separadas. O organismo é uma só unidade.

Uma verdadeira compreensão da condição individual só é alcançada se considerarmos o indivíduo como parte da totalidade da natureza e em particular da sociedade humana a que pertence.

O todo não pode ser compreendido pelo estudo das partes isoladas. O todo é regido por leis que não se encontram nas partes. O todo é o seu próprio princípio regulador.

O homem possui um impulso dominante de auto-regulação pelo qual é permanentemente motivado. Tem dentro de si potencialidades que regulam seu próprio crescimento.

O organismo se expressa ora como figura, ora como fundo. Uma figura, embora destacada do fundo, mantém-se ligada a ele e recebe dele sua origem e explicações.

L - Psicopatologia Fenomenológica

Precisamos compreender um sintoma como um estilo de ser-no-mundo, no modo que este ser se dá existencialmente. Não há sentimento, comportamento ou qualquer outro modo de ser de uma pessoa, que exista isoladamente, pois o ser-no-mundo reflete a inseparabilidade. O sofrimento que pensamos estar só dentro, também está fora.
Podemos entender conflitos interiores como conflitos entre a existência do organismo e o social, num ajuste permanente e criador, visando o reequilíbrio constante do organismo.
Se uma flor for atingida por uma forte geada fora da estação, ela não se abrirá, a pessoa da mesma forma. A dinâmica da personalidade fica danificada. O que é chamado de neurose ou psicose, nós gestalt-terapeutas, chamamos de ajuste criativo. Estar encoberto é uma realidade existencial, não é um estado patológico.
O reconhecer deste existencial compartilhado é que permite a consciência com responsabilidade.



M - Assim, afinal de contas, por que estamos aqui?

O espaço tempo está aqui exatamente para se ter alguma coisa a fazer. Assim, jogamos o jogo. Dançamos a dança. A alegria está na mudança, no processo, não na conquista. Não podemos, nunca, experimentar completamente o além do espaço-tempo dançamos, contudo, rumo a ele.

*

Conforme nos voltamos para o nosso interior compreendemos: eu afeto diretamente os universos, eu assumo a responsabilidade direta; não espere pelo guru, não espere pelo messias, não espere pela segunda vinda. O "eu" real está aqui e agora - no íntimo. Acorde e sinta o aroma do café.

*

E Agora ?

Compreenda:
todo evento no indefinido número de universos é influenciado por você.


Compreenda:
Há vida em todas as coisas.


Compreenda:
Você não é aquilo que ensinaram a você.


Permita à consciência unir-se com você.

Desenhos: Ricardo Waldaman

* exceto indicados, extraídos de:

Toben, Bob e Wolf, Fred Alan. Espaço-Tempo e Além. São Paulo:Cultrix, 1999.

Cuidado de Si

por CELUY ROBERTA HUNDZINSKI DAMASIO

Doutoranda em Literatura na Sorbonne e em Filosofia na
Université de Marne-la-Vallée



Michel Foucault e o cuidado de si



Michel FoucaultNa primeira hora do curso do dia 20 de janeiro de 1982, Michel Foucault evidencia a transformação pela qual o “cuidado de si” passou desde Alcebíades, de Platão, até o início dos séculos I e II de nossa era, caracterizada por ele como “uma verdadeira idade de ouro na história do cuidado de si” (P. 79)[1] [2].

Segundo o filósofo, esta transformação influenciou claramente as culturas posteriores, sobretudo a moral sexual européia moderna, com o regime de aphrodisia[3], entendida como uma experiência greco-histórica dos prazeres, a substância ética da moral antiga, diferente da experiência cristã da carne e da experiência moderna da sexualidade.

Seu objetivo era de destacar as relações subjetividade/verdade de uma maneira mais geral, colocando-as na dimensão histórica e, sobretudo, mostrar que, com a evolução, o cuidado de si tornou-se um verdadeiro fenômeno cultural como princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que queria obedecer ao princípio da racionalidade moral. Não se ignorando que ele sofreu uma série de outras transformações no cristianismo primitivo, medieval, no Renascimento e no século XVII.

O autor considera que existem dois preceitos: o epimeleia heautou que é o cuidado de si-mesmo, a preocupação consigo-mesmo, etc.; e a prescrição délfica da gnôthi seauton – fórmula fundadora da questão das relações entre sujeito e verdade – que quer dizer conhece-te a ti mesmo[4]; que em certo número de textos platônicos se conjugam, como, por exemplo, em Apologia a Sócrates. Em Alcebíades, no entanto, o gnôthi seauton sempre teve uma espécie de subordinação ao epimeleia heautou, como uma maneira de aplicação concreta da regra geral de ocupar-se de si-mesmo.

Encontramos, em Alcebíades, três condições que determinavam, ao mesmo tempo, a razão de ser e a forma do cuidado de si: 1- aqueles que deveriam se ocupar de si mesmos eram jovens destinados a exercer o poder; 2 – o objetivo era o bom exercício do poder; 3 – a forma exclusiva onde ocupar-se de si é conhecer a si próprio.

Em Platão, estas três condições, que Foucault chama, também, de “determinações” ou “limitações”, desapareceram. Primeiramente, os que deveriam ocupar-se de si não eram mais, exclusivamente, jovens políticos, mas todos poderiam fazer isso, sem importar-se com a idade ou o status[5]. Em seguida, não existia mais o único objetivo de bem governar os outros, mas o cuidado tem o fim em si mesmo: em Alcebíades o objeto do cuidado era o próprio cuidado, mas o fim era a cidade, mais tarde, o “si” torna-se objeto e fim. A característica exclusiva do cuidado de si se atenua e torna-se coextensivo à vida, em um conjunto mais vasto, o que podemos chamar de conversão, epistrophê – conhecer o verdadeiro, liberar-se – um movimento que pode nos conduzir deste mundo para outro[6].

Foucault separa os gêneros de expressão em quatro famílias: 1 – os atos do conhecimento: cuidar-se de si, voltar seu olhar para si, examinar-se a si próprio,...; 2 – a idéia de movimento: conversão do olhar, vigilância necessária a si, “movimento global da existência que é levada, convidada a girar, de alguma maneira, sobre ela mesma e a se dirigir ou voltar-se para si.” (P. 82); 3 – o vocabulário médico, jurídico e religioso: cuidar-se, sarar-se, amputar-se, abrir seus próprios abscessos, reivindicar-se a si mesmo, liberar-se, render-se culto, honrar-se,...; 4 – a relação de controle: dar prazer a si mesmo, satisfazer-se, etc.

Com Alcebíades, o momento de se ocupar de si mesmo era a idade da passagem da adolescência à fase adulta, em que o moço deveria passar do erótico ao político. Após Platão, o cuidado deveria ser permanente. Mesmo antes do século I, Epicuro escreveu:

Quando se é jovem, não se pode evitar de filosofar e, quando se é velho, não se deve cansar de filosofar. Nunca é muito cedo ou muito tarde para cuidar de sua alma. Aquele que diz que não é ainda, ou que não é mais tempo de filosofar, parece àquele que diz que não é ainda, ou não é mais tempo de atingir a felicidade. Deve-se, então, filosofar quando se é jovem e quando se é velho, no segundo caso (...) para rejuvenescer ao contato do bem, pelas lembranças dos dias passados, e no primeiro caso (...) afim de ser, ainda que jovem, tão firme quanto um velho diante do futuro. (P. 85)



Assim sendo, filosofar é cuidar de si e isto é uma felicidade (encaixando-se na última família de expressões que vimos acima) pois o objetivo é ser feliz na presença de si próprio. A vida, sobretudo na velhice, torna-se mais feliz. Esta nova forma é, para todos os jovens, uma preparação para ser velho e, para os velhos, uma forma de revigorar-se com o bem.

Esta mudança faz do cuidado de si um corretor, além de formador. A formação que se seguiu mudou de forma: no lugar da formação profissional teve-se a formação para que se suporte, adequadamente, os problemas da vida; é um mecanismo de segurança. No final da adolescência (no caso de Alcebíades) é necessária, preferencialmente, a formação, e na idade adulta (em que, segundo Sêneca[7], o mal está no interior do homem) é preciso a correção, a crítica.

Em seguimento, há uma aproximação da medicina marcada, primeiramente, pelo regrupamento conceitual entre a medicina e a filosofia, onde a paixão evolui como uma doença até o vício; em seguida, pela prática de si concebida como uma operação médica. Havendo três definições para therapeuein[8]:



Therapeuein quer dizer, evidentemente, fazer um ato médico cuja função é curar, cuidar, mas, therapeuein, também, é atividade do servidor que obedece às ordens et que serve a seu mestre; enfim, therapeuein é render culto. Ora, therapeuein heauton há de querer dizer, ao mesmo tempo, cuidar-se, ser de si mesmo seu próprio servidor, e render um culto a si mesmo. (P.95).

Segundo Marco Aurélio[9], citado por Foucault, este culto consiste em guardar-se puro de paixão. A partir disso, tivemos a escola de filosofia como um dispensário da alma que fez com que Epiteto[10] dissesse: “Não se deve, quando se sai da escola de filosofia, ter tido prazer, mas ter sofrido.” (P. 96).

O corpo, torna-se, também, objeto de preocupação; ocupar-se de sua alma é ocupar-se de seu corpo. Tanto no “ocupar-se” como no “preocupar-se” o fim deve ser a alma. Finalmente, tem-se o conceito de velhice que deixa de ser somente o casal sabedoria/fraqueza para ser definida como a recompensa de toda a vida (diferentemente do cristianismo, onde a recompensa está além da vida).

Pode-se concluir que, depois de ter mostrado como o cuidado de si tornou-se coextensivo à vida individual, ou seja, ao percurso da adolescência até a idade adulta ou, ainda, ao laço entre a idade adulta e a velhice, Foucault esclarece que, neste período da filosofia, ele não tinha uma relação privilegiada com a medicina, sendo apenas um começo onde seguir-se-ia uma intrincação psíquica e corporal que seria, mais tarde, o centro do cuidado de si.

Com relação à velhice, percebe-se que é necessário haver um momento preciso para ocupar-se de si, a hora exata, a importância desse kairos não é mais pedagógica, que ocorre na passagem da adolescência para a vida adulta. Para a tradição pitagórica, esse tempo foi alargado da seguinte forma: os vinte primeiros anos considerados como infância, dos vinte aos quarenta como adolescência, dos quarenta aos sessenta como juventude e após os sessenta a velhice. O kairos ocorreria, então, aos sessenta, onde já se tem experiência; na idade da maturidade dos que têm por objetivo a velhice, fazendo de todo o percurso da vida, uma preparação para isso:

Por conseqüência, se a velhice é bem isso – esse ponto desejável -, é preciso compreender (primeira conseqüência) que a velhice não deve ser, também, percebida como sendo uma fase na qual a vida se encontra mediocrizada. A velhice deve ser considerada, ao contrário, como um objetivo, e como um objetivo positivo da existência. É preciso voltar-se para a velhice, não se deve resignar-se a ter que afrontá-la um dia. É ela, com suas formas, que deve polarizar todo o curso da vida. (P. 106).

Foucault acabou, nestes cursos, por se desvencilhar do filósofo moderno não espiritual para mostrar os traços de espiritualidade que seus colegas da antiguidade apresentavam. Cuidar de si, de sua alma seria a condição para o cuidado do próximo, o que se tornará, no início da era cristã, uma obrigação de toda a existência.



__________

[1] Todas as citações deste texto foram traduzidas por nós e têm como fonte: FOUCAULT, 2001 – Cf. bibliografia.

[2] Foucault ressalta, no entanto, que ele não situa neste período todos os fenômenos e a emergência de todos os fenômenos que ele tentou descrever nos cursos, mas que ele representa “um cume em uma evolução que foi, sem duvida, longa, durante o período helenístico.” (P. 122).

[3] Busca do prazer que dá ao homem uma maior liberdade.

[4] Para bem explicitar, o filósofo cita Roscher: “conhece-te a ti mesmo…, cuida, então de ti mesmo e do saber que precisas.” (P. 5-6).

[5] Foucault, anteriormente, mostra que a coisa não era tão simples assim, pois, para cuidar de si mesmo eram necessárias algumas condições, como por exemplo: fazer parte de movimentos religiosos ou ter a capacidade de praticar o lazer cultivado. Surge, então, a idéia de universalidade do chamado e da raridade da salvação, empregada, mais tarde, no cristianismo.

[6] diferente da conversão – metanoia – que deve transformar o ser [si] para ser capaz de aceder à verdade da espiritualidade cristã, desenvolvida, mais rigorosamente, no ascetismo e no monaquismo, à partir dos séculos III e IV, como a completude de uma filosofia antiga e pagã.

[7] Lucius Annaeus Sêneca (4 a. C. – 65 d. C.): primeiro representante do estoicismo romano.

[8] Tradução mais Próxima : terapia.

[9] César Marco Aurélio Antônino Augusto (121 – 180): Imperador Romano.

[10] Epiteto (50 - 115 d.C.) - filósofo estóico grego.

por CELUY ROBERTA HUNDZINSKI DAMASIO




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Fonte:

FOUCAULT, Michel. L’herméneutique du sujet – cours au Collège de France. 1981 – 1982. Gallimard le Seuil, Paris, 2001.


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quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O espaco relacional da construcão do conhecimento

Uma publicação do Centro de Ciências de Educação e Humanidades - CCEH

Universidade Católica de Brasília - UCB

Volume I - Número 2 - Novembro 2004 - ISSN 1807-538X

Sumário



Humberto Maturana e o espaço relacional da construção do conhecimento

Adriano J. H. Vieira

Introdução

Muitas são as definições que pretendem explicar o que seja o conhecimento. Certamente, cada uma delas apresenta avanços e limites neste intento. Merecem atenção, entretanto, as definições que, em sua estrutura, histórico de pesquisa e vivência englobam mais amplamente as áreas da vida humana. Atualmente, o pensamento de Humberto Maturana parece ser um dos mais significativos na procura pelo fenômeno do conhecimento. Para este biólogo chileno, o conhecimento é uma construção da linguagem. A noção de linguagem trabalhada pelo autor é a referenciada e construída nas relações, que, por sua vez, são emocionadas. Nos parágrafos seguintes apresento alguns tópicos do pensamento de Maturana a fim de compreender sua inserção no cenário mais amplo da educação e, em particular, na contribuição que oferece à organização do conhecimento que, no espaço escolar, considere a formação do sujeito numa perspectiva mais inteira em sua constituição como tal.

Maturana e sua trajetória

Em seus primeiros estudos de Medicina, no Chile e depois na Inglaterra, Maturana foi mapeando uma compreensão dos seres vivos como “entes dinâmicos autônomos em contínua transformação em coerência com suas circunstâncias de vida”.[1] A busca aprofundada desse desejo de compreender melhor a dinâmica do ser vivo levou-o a estudar Biologia em 1956, quando inicia seu doutorado em Harvard. Inicialmente sua busca perquiritória residia na neuroanatomia e fisiologia da visão. Ao longo de seu caminho investigativo foi traçando um quadro mais amplo de seu interesse biológico: o modo de operar sistêmico da neurobiologia e a organização sistêmica dos seres vivos. Mais tarde, suas pesquisas levaram-no à tese de que o visto é especificado pelo operar da retina, e não uma simples abstração do objeto material no qual a visão bate. Começou a por em xeque a noção absoluta da objetividade real. Maturana pauta-se por uma noção da biologia em que as emoções possuem um papel fundamental no desenvolvimento do sistema biótico. Acentuando o papel das emoções no viver humano, foi descobrindo o operar do sistema na construção do conhecimento como ação biológica. Propõe a emoção como o grande referencial do agir humano.

Na pesquisa do sistema nervoso foi formulando sua idéia de ser vivo como sistemas de organização circular nos quais o que se conserva é a circularidade. Inaugura a concepção de autonomia do ser vivo, a autopoiése. Pensar o conhecimento a partir da autopoiése só é possível se entendemos cada vivente como sistema fechado [2], auto-organizado e auto-organizável. Para Maturana isso só é possível porque cada ser é em relação. O que determina, em última análise, a organização do vivo é sua própria autopoiése. Mas o que desencadeia é a relação que se estabelece entre vivo-meio-vivo. O organismo se autogere, mas só o faz na relação com outros organismos. Isso quer dizer que não é possível determinar quais as ações subseqüentes num processo autopoiético. Mas é possível saber que o vivo age e re-age diante das circunstâncias, já que vai organizando seu conhecer a partir do próprio ato de viver. Prefaciando uma das obras de Maturana, Rabelo comenta a idéia do autor:

Viver e conhecer são mecanismos vitais. Conhecemos porque somos seres vivos e isso é parte dessa condição. Conhecer é condição de vida na manutenção da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio (Rabelo, 1998b, p. 08).

Os estudos de Maturana explicitam o sinônimo entre conhecer e viver. A noção de viver-conhecer está diretamente vinculada com o modo de relacionar-se e de organizar-se nessa relação. Não se trata de adaptação ao meio. O viver-conhecer na relação significa, ao mesmo tempo, a criação/recriação desse espaço relacional, e de outros, e a criação/recriação do sistema em relação. Pode incluir, em algum momento, a adaptação, mas vai além dela.

Nessa relação criativa, meio-sistema, é que emerge o social. E o social é entendido como domínio de condutas relacionais fundadas na emoção originária da vida: o amor. Para Maturana: “A emoção fundamental que torna possível a história da hominização é o amor” (Maturana, 1999, p. 23). Ao falar de emoção o autor não se refere ao que convencionalmente tratamos como sentimento. Emoção, neste caso, “são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos” (Maturana, 1999, p. 15). Assim entendida, a emoção fundante do social - o amor - é elemento estrutural da fisiologia humana. Maturana afirma que o amor é a emoção fundante do social porque:

O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social (Maturana, 1998b, p. 23).

Pensada por esta via, a convivência, que é este espaço/tempo das relações dos sistemas, é “lugar” de perene criação/recriação da vida, na medida em que se constitui como social na perspectiva acima mencionada. O viver-conhecer, nesta convivência, é constante atualização do sistema. Decorre daí a possibilidade de pensar o processo educativo do sujeito como construção de uma autonomia relacionada. No sentido de que cada qual é tido como um legítimo outro no conviver. Por isso: “toda história individual humana é a transformação de uma estrutura inicial hominídea fundadora, de maneira contingente com uma história particular de interações que se dá constitutivamente no espaço humano” (Maturana, 1998b, p. 28). É nessa consideração do humano como autônomo nas relações que Maturana encaminha uma noção de educação como vivência das relações mesmas dos indivíduos, nos presentes históricos de cada qual, capaz de recriar sistema(vivo-humano)-meio.

Os espaços educativos constituem-se em fenômenos sociais que manifestam, com fundamento nas emoções, os pensamentos, os conceitos e os objetivos dos grupos sociais, num processo histórico e relacional, criando realidades que, nesta interação constante, recria os sujeitos dela participantes. Para Humberto Maturana, este agir humano nas relações é cooperativo. Para entendermos essa posição do autor convém uma olhada, ainda que rápida, do cenário que desafia pensadores como Maturana a buscarem alternativas viáveis para a educação que resgate as distintas dimensões do ser humano em sua cultura.

Cooperar ou competir?

Michelle Horovits
Núcleo de Fotografia UCB Captura

Uma das características que compõe o cenário da argumentação crítica da segunda metade do século XX, e que pode ajudar nesta reflexão, é a relação estabelecida entre habitante e habitat, entre ser humano e seu planeta. A crítica a noção de progresso como algo que cinde ser humano e natureza encaminha para a valorização das culturas tidas e ditas como primitivas. Não se trata de sobrepor uma cultura à outra. A questão situa-se na forma de relacionar-se e produzir de um modo sistêmico valorativo. Isso quer dizer que, nesses modos de operar, estas culturas não lidam com o esgotamento da fonte produtora dos bens de subsistência, nem convivem com a distinção dos modos de operar dos processos de integração na cultura. Ou seja, o aprender, o trabalhar, o brincar, fazem parte do mesmo fenômeno de relação do ser humano com seu espaço vital. Repito que não se trata de idealizar esta forma de viver como solução para os problemas que vivemos em nosso modo de operar. No entanto, é preciso observar nessas culturas – que são ecossistêmicas - a inexistência de depredação, no sentido de irreversibilidade do sistema biótico do meio, e as mudanças atinentes ao desenvolvimento. A noção de desenvolvimento não é progressiva, no sentido de que uma ação tenha de sobrepujar outras para ser considerada válida para o grupo social, mas reciclável e integrativa, por trabalhar a relação ser humano e natureza como modo de operar imbricados. Em outras palavras, é preciso observar nessas culturas um modo de desenvolvimento auto-sustentável. Decorre daí um processo educativo também integrado a esta intencionalidade.

É isso que podemos estudar/observar, (im)pressionados pela contribuição da "bio-cognição-emocionada" de Maturana. Ao estudá-las, não se pretende padronizar seus critérios para o conjunto da sociedade ocidental, mas, antes, pode-se re-estudar e re-perspectivar os caminhos ocidentais de constituição da subjetividade humana e também da noção de evolução progressiva.

Numa noção de progresso como produção e consumo, na naturalização do acúmulo, da propriedade privada e do bem estar, o Ocidente foi refutando, por este critério, toda produção cultural de um sem número de grupos humanos. A partir de uma visão mercadológica abriu mão da escuta e do diálogo com estas civilizações, com sua História e impôs uma ditadura do padrão de consumo e da competição.

Para Maturana a educação para a competição não se constitui em um exercício de caráter natural/biológico, em sua constituição, mas é algo construído culturalmente. Para ele: “a competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro (...) A competição é um fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico” (Maturana, 1998b, p. 13).

A partir daí, por decorrência óbvia, os processos educativos competitivos e, por derivação, que ensinam a competição, são processos que afastam o ser humano da natureza. E o fazem não somente porque, do ponto de vista social, exclui o outro de determinado processo, mas porque desconsidera o outro como legítimo outro, já que estabelece o espaço pelo qual compete como a única possibilidade de manifestação de alguém como sujeito. Alijando-o não somente de determinado espaço eleito como digno, mas de sua condição de quem pode dizer sua palavra.

A educação para Maturana

Acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e desafia-nos a buscar uma educação que resgate a bio-centralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.

Um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim.

A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar. Para Maturana isso se dá de uma forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas ralações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões. Por isso afirma que:

Nós, seres vivos, somos sistemas determinados em nossa estrutura. Isso quer dizer que somos sistemas tais que, quando algo externo incide sobre nós, o que acontece conosco depende de nós, de nossa estrutura nesse momento, e não de algo externo (Maturana, 1998b, p. 27).

Quando Maturana fala em sistema determinado está se referindo a uma construção estrutural que vem se constituindo historicamente no próprio processo vital do sistema, enquanto linhagem e enquanto indivíduo. Ao dizer que os sistemas vivos são determinados não quer dizer pré-determinados. O que ocorre é a constante autogeração do sistema em relação com suas circunstâncias. Como o processo de determinação estrutural é constante, é ele, enquanto sistema, que determina, no momento em que uma ação incide sobre ele, sua própria ação.

Autonomia não significa isolamento. Quando afirma que, pela autopoiése, é o próprio sistema que determina a ação não está afirmando que este agir seja isolado de outras intervenientes. Ao contrário, para Maturana, a ação é congruente. É de acordo com a relação estabelecida, mas, a ação como tal, particular, não é determinada por ela.

Essa relação do sistema com o meio cria a linguagem. O autor vê a linguagem não como uma estrutura cerebral, mas como construto das relações do ser humano com os outros. “Reconheço também que a linguagem não se dá no corpo como um conjunto de regras, mas sim no fluir em coordenações consensuais de conduta” (Maturana, 1998b, p. 27). Aponta, assim, para um caminho que valoriza os processos de relacionamento em detrimento de uma concepção cristalizada e fixa de linguagem, e do conhecimento construído a partir dela, como elaborações acabadas do cérebro humano.

As relações consensuais de conduta não se tratam de paridades conceituais dos envolvidos na ação como elaboração verbal, da fala, mas se trata da construção de compreensões em torno de um fenômeno comum que vai se interpretando de acordo com a própria história construída em torno dele e da história estrutural do sistema interpretante. Por isso, a linguagem como relação possui uma singular importância nos processos educativos. Estes, por sua vez, deixam de ser atividades depositadoras de informações passando a constituir-se em exercício de conversa. Entendo, assim, a conversa como forma inclusiva e extensiva do diálogo.

Para Maturana a conversa, na ação educativa, é elemento central na relação que produz o conhecimento. Para ele: “A palavra conversa vem da união de duas raízes latinas, ‘cum’, que significa ‘com’, e ‘versare’, que significa ‘dar voltas’, de maneira que conversar, em sua origem, significa ‘dar voltas com’ outro” (Maturana, 1998a, p. 80). A conversa constitui-se, assim, em um espaço relacional por excelência na ação educativa.

Se entendermos a importância do processo relacional na ação educativa, se a formação do outro como totalmente outro se constitui como objetivo da educação, então é preciso repensar as interações em que o educando possa confrontar-se como autônomo nas ações relacionais e construa sua autoconsciência, que se exercita na relação. Para Maturana:

A autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço relacional que se constitui na linguagem. A operação que dá origem à autoconsciência está relacionada com a reflexão na distinção do que distingue, que se faz possível no domínio das coordenações de ações no momento em que há linguagem. Então a autoconsciência surge quando o observador constitui a auto-observação como uma entidade ao distinguir a distinção da distinção no linguajar (Maturana, 1998b, p. 28).

A autoconsciência aparece aqui mais abrangente do que uma concepção de autoconsciência como consciência de si enquanto si mesmo. Passa a ser uma consciência de si na relação, já que na relação é que se estabelece a identificação do outro como legítimo outro. O conhecimento passa a ser compreendido como organização do vivo nas relações que vai vivenciando, como fenômenos. O próprio ato de conhecer-viver se constitui em uma leitura da relação cognoscente-vivente. Por isso, nesta perspectiva, o conhecer-viver é elemento fundamental no processo de conscientização.

Nessa responsabilidade autônoma-relacional do sistema como construtor de si mesmo se estabelece uma novidade perene nas ações interativas na linguagem. Por isso “o futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem” (Maturana, 1999, p. 29). Tal perspectiva ancora uma educação continuamente criada e criadora do conhecimento-vida. Para Maturana:

O educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de convivência (Maturana, 1998b, p. 29).

O pressuposto da afirmação da centralidade do conviver no processo educativo reside no fato de este conviver não constituir-se simplesmente em estado. No sentido de ter dois ou mais sujeitos intocáveis e refratários um ao lado do outro. Trata-se de uma relação, no sentido de um ser tocar o outro ser nesse contato. Porque há relação há, por conseguinte, modificação, mais ou menos perceptível, dos sujeitos envolvidos nela. A congruência reúne os modos de proceder nessa relação que tornem as ações compreensíveis aos integrantes desse lugar de convívio e que, em aspectos centrais, possuem um fim comum. A congruência, portanto, se dá na linguagem.

Faz-se necessário aqui lembrar a concepção de linguagem não mais como sistema cerebral. Considero aqui linguagem como espaço construído por ações que se tornam comuns. Repito, em outras palavras, que esta comunicação não se trata da aceitação de mesmos conceitos. Trata-se de estabelecer o espaço de ações que, por lidarem com elementos comuns da linguagem, são consensuais. A noção corrente de linguagem lida com os pressupostos da racionalidade e da estrutura cerebral lingüística como lugar de leitura e interpretação dos signos. Para Maturana não é mais a razão que fundamenta e embasa as ações e a comunicação, mas sim a emoção, que não pode ser abarcada pela linguagem enquanto construção racional, mas pela linguagem construída nas coordenações de ações consensuais.

O educar deixa de ser entendido como um ato da fala enquanto apresentação de quem domina certas informações pronunciadas como verdades e passa a constituir-se em comunicação de sistemas viventes nas ações comuns. Na primeira o acento se dá no aspecto doutrinal da pronúncia. Na visão de Maturana, da educação como convívio, a congruência, que é a comunicação mais possível inteira do ser humano, é que vai construindo os critérios de validade para a maior qualidade do conviver. Não se trata de negar a autoridade de quem fala, mas, ao contrário, possibilitar-lhe pleno sentido porque a fala passa a ser, no conviver, a ação do dizer desde a autoridade, portanto, uma autoria.

Outro aspecto importante a considerar é a permanência do processo educativo. Não existe intervalo no ato de educar no conviver. O ato pedagógico é assim entendido como toda ação que alguém realiza no conviver. Ao contrário de dispensar a especificidade pedagógica esta perspectiva pretende tornar os espaços artificiais de educação mais plenos das experiências do conviver. Os espaços artificiais de educação são aqueles criados pelo grupo social para além do convívio do núcleo familiar ou tribal próprios do ser humano. Valorizar e possibilitar a plenificação do conviver nos espaços educativos é caminho para existencializar o conhecer-viver e assumir a cultura como uma das dimensões do convívio de tal modo que se torne – ela, cultura – cada vez mais humanizante, já que, ao mesmo tempo, é comunicada aos sujeitos e transformada por eles na congruência. Nesse sentido, no processo educativo, “ocorre como uma transformação estrutural contingente com uma história no conviver, e o resultado disso é que as pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura de acordo com o conviver da comunidade em que vivem” (Maturana, 1998b, p. 29).

No conviver como processo educativo, a transformação estrutural se dá a partir da compreensão sistêmica do estrutural. Em vista disso, qualquer ação comunicada interfere na totalidade do sujeito. Por isso a mudança é estrutural. É contingente porque não nega a circunstancialidade, ao contrário, apropria-se dela para transformar-se e transformá-la. E, além disso, não despreza o acúmulo que as experiências anteriores do conviver lhe ofereceram, pelo contrário, as considera como elementos constitutivos no novo ato do conviver.

À guisa de conclusão

Conceber o conhecer-viver nas relações, no convívio, como produto/produtor de novos conheceres-viveres e do espaço das relações onde este se dá implica em pensar a organização do ensino de modo que privilegie o convívio como espaço denso desse viver-conhecer. No agir comum da sociedade contemporânea, que guarda a noção de organização como sinônimo de compartimentalização, esta organização que pressupõe autorias no ato de conhecer-viver pode parecer um tanto difícil. Num primeiro momento a noção de autoria pode parecer-se com espontaneísmo. A primeira concebe o sujeito como virtuoso no seu dizer sobre o mundo. A segunda considera, simplesmente, qualquer dizer como válido por si, incorrendo no mesmo equívoco do absolutismo.

Essa mirada diferente sobre os processos educativos compreende uma complexidade de fatores que intervem no momento mesmo do conhecer e do sistematizar esse conhecimento. A história do/s observador/es que olham o fenômeno; a história do fenômeno até o momento mesmo da observação/compreensão de quem o observa; a história, as condições e circunstancias do educador que propõe o processo de encontro entre o conhecedor e o fenômeno. Para Maturana “os educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao ser educados no educar” (Maturana, 1999, p. 29). Em vista disso o educador/a também é um auto-observador constante de si e suas ações na ação educativa.

Assim compreendida a educação deixa de ser uma seqüência de atos estanques, sem significados por si mesmos, e passa a ser uma ação contínua, durante toda a vida. O que requer pensar os tempos/espaços pedagógicos.



Presentación. Discurso proferido por Maturana por ocasião do recebimento do Prêmio Nacional de Ciências 1995. Universidade do Chile. (voltar)
Ao falar em “sistema fechado” o autor se refere aos seres vivos. Esta noção de sistema está imbricada com a autopoiese. A autopoiese é a qualidade do ser vivo em “especificar e produzir continuamente sua própria organização através da produção de seus componentes” (Maturana, 1997, p. 71). Usa o termo “fechado” no sentido de que as relações de componentes “que a definem (a máquina autopoiética) sejam continuamente regeradas pelos componentes que produzem” (Maturana, 1997, p. 71). Num sentido bio-materialista o sistema (vivo) é fazedor do sistema mesmo. Isto é: refeito, o sistema é, num plano interativo, mais complexo. Não se trata de uma contraposição a “aberto”, no sentido de relações com o meio, mas fechadas são as macro condições dessa relação. Fechado quer dizer que o sistema mesmo é dotado de mecanismos de autosustentação, protosustentação e retrosustentação. (voltar)

Saiba mais

MATURANA, R. Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Psy, 1995.

____. Da biologia e psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998a.

_____. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998b.

_____. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

_____.De máquinas e seres vivos, autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997a.

_____. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1997b.

MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima Nisis de. Formação humana e capacitação. Petrópolis: Vozes, 2000.

Prof. MSc. Adriano J. H. Vieira é professor da Universidade Católica de Brasília. (lattes)

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Artigo

Ecologia Mental

O RESGATE DA DÍVIDA ECOLÓGICA

Há muitos tipos de dívida. A mais comum é a dívida econômica, que todos entendem. Há a dívida política, que é aquilo que o Estado e os portadores de poder deveriam ter feito em benefício do povo e não fizeram. Há a dívida econômico-política, que as potências colonialistas têm para com os países e povos que eles colonizaram, arrancando suas riquezas, destruindo seus ecossistemas e frustrando os projetos autônomos de liberdade e de construção de sua própria identidade. Há uma dívida cultural, que os estratos letrados e cultos da sociedade possuem para com o povo, deixado na ignorância e, muitas vezes conscientemente, mantido na alienação para permanecer resignado e não despertar para a sua libertação. Há uma dívida de evangelização, que as igrejas cristãs têm para com os pobres, os negros e os indígenas, pois não valorizaram suas culturas e suas religiões, mas impuseram o modo de ver e de rezar da cultura cristã, branca e ocidental. Há, por fim, uma dívida ecológica, que todos temos para com os ecossistemas e para com a Terra, pois os temos depredado e desrespeitado em sua autonomia e em sua relação para conosco.

Vamos nos deter apenas no pagamento desta dívida ecológica, que pesa onerosamente sobre todos, especialmente sobre os mais responsáveis pelo alarme ecológico que hoje soa alto e de forma dramática. Para entender bem o significado desta dívida, precisamos compreender o que é a ecologia.

O QUE É A ECOLOGIA

Há duas outras palavras aparentadas que nos ajudam a entender a ecologia: economia e ecumenismo. Todas elas possuem em comum a palavra grega oikos, que significa casa. Economia é a arte e a técnica de gerenciar as necessidades de uma casa, seja a casa entendida como família, como cidade, como país e como mundo. Ecumenismo, em seu sentido originário político, é a forma como se organizam os habitantes da casa para viverem em paz e colaboração. Posteriormente assumiu um caráter religioso: o de diálogo e convivência pacífica entre as religiões. Ecologia é a arte e a técnica de atendimento das necessidades comuns da casa comum que é o planeta Terra. Por isso, a ecologia pode ser chamada também de ciência doméstica.

Neste planeta Terra, não habitam apenas os seres humanos. Nele estão todos os demais seres, desde os microorganismos, vírus, bactérias e fungos (95% da vida) até os solos, as rochas, as águas, a atmosfera, os vegetais e os animais. Em outras palavras: na Terra se encontram todos os ecossistemas vivos e inertes, com seus devidos representantes. Como fazer para que todos possam continuar existindo, desenvolvendo-se, convivendo e satisfazendo suas necessidades básicas, em colaboração (sinergia) e em paz? Este é o propósito básico da ecologia. Para atingi-lo, faz-se mister preservar e fortalecer as relações que todos mantêm entre si. Por isso a ecologia, mais que se ocupar com cada um dos seres tomados isoladamente (as águas, as florestas, os animais e os seres humanos), preocupa-se com as relações que existem entre eles e de todos com os seus respectivos meio ambientes. Numa palavra: a ecologia se ocupa com a comunidade de vida. A ecologia vive de relações, pois entende que o universo, a comunidade planetária e todos os seres vivem uns pelos outros, com os outros e para os outros, pois tudo tem a ver com tudo em todos os momentos, em todos os lugares e em todas as circunstâncias.

AS VÁRIAS VERTENTES DA ECOLOGIA E SUAS DÍVIDAS

Depois de fundada como ciência, em l866, pelo biólogo alemão Ernst Haeckel, a reflexão ecológica ganhou vários aprofundamentos. Enfatizam-se atualmente quatro correntes da ecologia. Vamos expô-las sucintamente e considerar a dívida que cada uma contém.

Ecologia ambiental: má qualidade de vida

Esta vertente trata do meio ambiente, isto é, daquelas condições físico-químicas, alimentares, atmosféricas etc. que garantem a existência e a sobrevivência dos seres de um ecossistema. Ela se preocupa com a preservação do equilíbrio dinâmico dos ambientes vitais, das espécies, com a regeneração de ecossistemas degradados e com a conservação de espécies em extinção. Particularmente importante hoje é a manutenção da mancha verde nas cidades, o cuidado para com as florestas, com os solos submetidos a forte quimicalização pela agroindústria, com a salubridade da água, com a despoluição atmosférica, com a diminuição do buraco de ozônio. A ação predatória do projeto industrialista montado nos últimos séculos tem exaurido importantes recursos naturais e modificado o equilíbrio físico-químico da Terra. A mentalidade militarista produziu uma máquina de morte com as cerca de sessenta mil armas atômicas, químicas e biológicas existentes, capazes de destruir toda a biosfera e comprometer a sobrevivência da humanidade. O efeito final é a baixa qualidade da vida humana.

Aqui há uma pesada dívida que os manejadores do projeto de desenvolvimento insustentável (o Estado liberal burguês, os empresários, os detentores de poder) acumularam para com a maioria da população. Não se teve cuidado com as terras, devastadas e erodidas, com as florestas abatidas (especialmente mais de 2/3 da Mata Atlântica), com as águas potáveis contaminadas, com os solos envenenados e com a atmosfera irrespirável em muitas partes das cidades. Multidões são obrigadas a morar em favelas de encosta, sem serviços básicos. A ausência de uma reforma agrária que, de direito, permitiria milhões de pessoas viverem e trabalharem no campo, representa um crime ecológico e uma dívida secular para com os sem-terra e sem-teto.

Ecologia social: desenvolvimento insustentável

Estamos cansados de “meio” ambiente. Precisamos do ambiente inteiro, da comunidade terrenal. Quer dizer: não é suficiente cuidar da natureza. Urge cuidar também do ser humano, parte e parcela essencial da natureza. Como são organizadas as relações entre as pessoas e suas instituições? Como são os serviços públicos? O sistema de saúde, de educação e de comunicação? Como a sociedade organiza a sua relação com a natureza? É de forma irresponsável e exploradora, ou respeitosa? Como são distribuídos os benefícios do trabalho e o acesso aos recursos naturais? Muitos administradores embelezam as cidades com praças, monumentos e parques, mas mantêm um péssimo sistema de segurança, abandonam os hospitais, descuidam do ensino de qualidade e não montam uma estrutura adequada de água e esgoto para a cidade. É um crime contra a ecologia social.

Na reflexão ecológica vigente e na linguagem oficial, fala-se com freqüência de desenvolvimento sustentável. Por desenvolvimento sustentável se entende aquele processo que atende às necessidades da geração atual sem sacrificar o capital natural, e ao mesmo tempo toma em consideração as gerações futuras que também têm o direito de desfrutar dos bens da Terra e da cultura. Este é um ideal irrealizável dentro do atual sistema de produção mundial de cunho capitalista e neoliberal, que visa a maximalizar os ganhos, não respeita a relativa autonomia da natureza e dos seres e explora as classes, os povos e a natureza. A grande maioria da humanidade não tem uma vida sustentável, pois passa fome e é vítima da exclusão, do desemprego e de toda sorte de doenças. O que se precisa não é de um desenvolvimento sustentável, mas de uma sociedade sustentável, quer dizer, uma forma de organização social e política na qual todas as pessoas possam caber e viver com um mínimo de dignidade, com participação, com habitação, educação, saúde e segurança. Mais da metade da humanidade não goza destes benefícios mínimos.

Com referência à ecologia social, há uma dívida histórica que a sociedade organizada deve ao povo brasileiro, condenado a ser massa, sobrevivente de mil tribulações, desprezado como jeca-tatu. As elites brasileiras contam-se entre as mais atrasadas e anti-sociais do mundo, sem compaixão e piedade face à miséria histórica dos brasileiros. Esta dívida se cobra mediante a organização social, comunitária, sindical e partidária, que impõe limites à dominação e disputa o poder político para ordenar a sociedade com mais justiça societária, democracia participativa e senso de colaboração entre todos.

Ecologia mental: crítica ao antropocentrismo

É muito importante ter um ambiente saudável e uma sociedade mais justa e participativa. Mas isto não basta. Importa avançar mais e descobrir que a agressão ecológica contra o ambiente e contra os seres em sociedade reside, em grande parte, na mente das pessoas. Há uma mentalidade distorcida, há visões do mundo, preconceitos históricos, discriminações arraigadas que reproduzem atitudes antiecológicas. Por exemplo, a maioria das pessoas tem um conceito reducionista e pobre da Terra. Imagina a Terra como algo morto, composto de uma parte sólida, que são os continentes e terras altas, e uma parte líquida, que são os rios, mares e oceanos. Ou considera a Terra como um baú de recursos do qual se pode tirar infinitamente matérias para uso indiscriminado do ser humano. A Terra não é isto. Como muitos cientistas mostraram, a Terra como planeta apresenta um equilíbrio de seus elementos físico-químicos, de salinização dos oceanos (4,3%), do nível de oxigênio (21%) e de nitrogênio (70%) e de densidade atmosférica, que somente um ser vivo pode apresentar. A Terra não possui apenas vida sobre ela. Ela mesma é um superorganismo vivo. Os modernos a chamam de Gaia (nome grego para a Terra como uma deusa viva). Os indígenas latino-americanos a denominavam Pacha Mama (Mãe Terra). A Terra é paisagem, é esplendor, é mãe fecunda que tudo gera. O ser humano é filho ou filha da Terra. Mais ainda: é a própria Terra que atingiu um estágio de poder falar, sentir, pensar, amar e venerar. Por isso, homem vem de humus, que significa terra fértil. Ou cada um é Adão, que significa terra fecunda (adamah, em hebraico). Devemos amar a Terra como o nosso próprio corpo. Aquilo que amamos, também respeitamos e não agredimos.

O maior pecado da ecologia mental é o antropocentrismo. Por antropocentrismo entendemos aquela atitude que coloca o ser humano no centro de tudo e imagina que todas as coisas e o próprio universo só têm razão de ser na medida em que se ordenam ao ser humano, tido como rei ou rainha da criação. Este pode dispor de todas as coisas a seu bel-prazer. Ora, o ser humano somente entrou na cena da história quando 98% da história do universo e da Terra já estavam concluídos. Ele não assistiu ao nascimento do universo. A imensa biodiversidade não dependeu do ser humano, que forma, como espécie homo – junto com outras espécies vivas –, uma grande comunidade planetária. Para viver, depende de uma rede de relações com os elementos da natureza, sem os quais não existiria nem se desenvolveria.

Ocorre que o antropocentrismo se esqueceu desta teia de dependências. Fez com que o ser humano rompesse a solidariedade para com os demais seres, dominasse a Terra, ameaçasse outros seres (a cada dia desaparecem definitivamente dez espécies de seres vivos, por causa da intervenção irresponsável do homem e de sua cultura energívora). Ele precisa de uma reconversão de sua mente para despertar dimensões de sua interioridade que o façam mais cooperativo que competitivo, mais sensível que dominador, mais compassivo com os seres que sofrem e menos explorador.

Os valores dominantes de nossa cultura vão numa outra direção. A televisão, o imaginário social e os discursos dominantes pregam a vitória do mais forte e não do mais solidário, anuncia a felicidade do que mais acumula – a custo do sofrimento dos trabalhadores e da pilhagem da natureza – do que daquele que se engaja na transformação necessária da sociedade. Apregoa a excelência do sucesso individual sem consideração pelos outros e pela sociedade.

Há uma dívida com referência à ecologia mental a ser paga pelo sistema escolar, que não soube educar as pessoas no cuidado para com a Terra e a alteridade de outras raças, culturas e religiões. Dívida a ser paga pelas filosofias de vida vigentes na sociedade, que criaram ou reforçaram uma hierarquia de valores centrada somente no ser humano e não no valor de todos os seres, no sistema da vida e na majestade do universo. Dívida a ser paga também pelas religiões e igrejas, que reforçaram a idéia errônea da centralidade do ser humano e da submissão dos demais seres aos interesses humanos, sem criar a consciência da solidariedade cósmica e da comunhão na mesma origem e no mesmo destino comuns no interior da única nave espacial azul-branca, o planeta Terra.

Ecologia integral: somos parte de um Todo maior

Esta vertente prolonga a ecologia mental. Nem o ser humano nem a Terra são o centro. Somos todos parte integrante de um todo cósmico que nos desborda por todos os lados. Somos um momento do mistério da criação divina que ainda está em curso de fazimento. Esta ecologia integral surgiu a partir da visão da Terra lá de fora da Terra. É a visão dos astronautas: de sua nave espacial, ou mesmo da Lua, eles vêem a Terra como um frágil e pequeno planeta, o terceiro do sistema solar, de um Sol que é um entre outros cem bilhões de sóis de nossa galáxia (Via Láctea) e a 27 mil anos luz de seu centro, galáxia que é uma entre outras cem bilhões de galáxias do universo, universo este que pode ser um entre outros inumeráveis universos paralelos ao nosso. Todos viemos do mesmo coração do Pai/Mãe de bondade, marcados com os sinais do Filho e animados pela força do Espírito que tudo penetra e orienta para a frente, para cima e para dentro.

Ecologia, aqui, é mais que uma forma de gestão da Terra, de seus recursos e de estreitamento das interdependências de todos com todos. É uma visão do mundo, uma forma de comportar-se e de realizar uma missão do ser humano no conjunto dos seres. O ser humano se sente arrebatado pela grandiosidade do universo, fascinado pela complexidade de todas as relações e maravilhado pela sinfonia de todas as coisas, apesar das dizimações e dos momentos caóticos pelos quais possa ter passado. Sua missão não é a de dominar, mas de conviver, de ser o jardineiro deste incomensurável Éden, de cuidar, de completar com seu engenho a obra deixada propositalmente incompleta pelo seu Criador para que pudesse evoluir e, nela, o ser humano pudesse exercer sua criatividade com responsabilidade, no sentido das leis cosmogênicas que regem o curso das coisas e nunca contra elas.

Esta ecologia integral procura integrar tudo, re-ligar todas as coisas com sua Fonte divina, viver a re-ligião como força re-ligadora das criaturas com o Criador, do eu consciente com o eu profundo, da pessoa com a natureza e da natureza com o restante do universo. O ser humano sente-se, não como o centro de tudo, mas como aquele ponto onde o próprio universo se sente, se pensa, se ama e se abre à louvação do Criador e do Ordenador de todas as coisas, com aquele Amor que move o céu, todas as estrelas e os nossos corações.

Também com referência a esta vertente ecológica há dívidas a serem pagas pelas diversas culturas, escolas, caminhos espirituais e religiões que negaram ao ser humano uma iniciação ao mistério e ao encantamento do mundo, que não souberam falar de Deus ligado ao universo e habitando no coração de cada ser, que não ensinaram a linguagem do louvor, que não ensaiaram a dança celeste de alegria e festa diante do teatro da glória da criação e de seu Criador. O ser humano ficou privado de uma fonte inesgotável de sentido, de leveza e de enlevo que poderia encher sua vida de magia e de sacralidade.

Conclusão: a ecologia como o contexto de todas as questões

Mais e mais cresce a consciência de que a ecologia se transformou no contexto de todas as questões. Só uma mentalidade ecológica que educa o ser humano para conviver ternamente em seu belo e radiante planeta junto com todos os demais seres vivos e inertes, numa imensa comunidade terrenal e cósmica, poderá garantir um futuro esperançador para a vida humana e para a própria Terra. A ecologia não é um tema a mais que se agrega aos já existentes. É um eixo novo que redefine todos os demais temas. Em que medida cada questão, cada saber, cada forma de poder, cada caminho espiritual ajuda a preservar a Terra, a salvaguardar o Criado em justiça e paz, a aliviar a dor dos que sofrem e a facilitar o cumprimento da missão do ser humano, qual seja, a de ser o anjo da guarda bom da Terra e de todos os seus habitantes?

Pela discussão ecológica passa o futuro da humanidade e do planeta Terra. Importa sermos filhos e filhas do arco-íris, aquele símbolo que Deus colocou no céu como expressão de uma aliança imorredoura com sua criação: nunca mais o dilúvio, nunca mais a devastação, mas a convivência em fraternidade, em respeito e veneração entre todas as criaturas que o arco-íris benfazejamente cobre.

SER(ES) AFINS