quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ecologia Mental

O RESGATE DA DÍVIDA ECOLÓGICA

Há muitos tipos de dívida. A mais comum é a dívida econômica, que todos entendem. Há a dívida política, que é aquilo que o Estado e os portadores de poder deveriam ter feito em benefício do povo e não fizeram. Há a dívida econômico-política, que as potências colonialistas têm para com os países e povos que eles colonizaram, arrancando suas riquezas, destruindo seus ecossistemas e frustrando os projetos autônomos de liberdade e de construção de sua própria identidade. Há uma dívida cultural, que os estratos letrados e cultos da sociedade possuem para com o povo, deixado na ignorância e, muitas vezes conscientemente, mantido na alienação para permanecer resignado e não despertar para a sua libertação. Há uma dívida de evangelização, que as igrejas cristãs têm para com os pobres, os negros e os indígenas, pois não valorizaram suas culturas e suas religiões, mas impuseram o modo de ver e de rezar da cultura cristã, branca e ocidental. Há, por fim, uma dívida ecológica, que todos temos para com os ecossistemas e para com a Terra, pois os temos depredado e desrespeitado em sua autonomia e em sua relação para conosco.

Vamos nos deter apenas no pagamento desta dívida ecológica, que pesa onerosamente sobre todos, especialmente sobre os mais responsáveis pelo alarme ecológico que hoje soa alto e de forma dramática. Para entender bem o significado desta dívida, precisamos compreender o que é a ecologia.

O QUE É A ECOLOGIA

Há duas outras palavras aparentadas que nos ajudam a entender a ecologia: economia e ecumenismo. Todas elas possuem em comum a palavra grega oikos, que significa casa. Economia é a arte e a técnica de gerenciar as necessidades de uma casa, seja a casa entendida como família, como cidade, como país e como mundo. Ecumenismo, em seu sentido originário político, é a forma como se organizam os habitantes da casa para viverem em paz e colaboração. Posteriormente assumiu um caráter religioso: o de diálogo e convivência pacífica entre as religiões. Ecologia é a arte e a técnica de atendimento das necessidades comuns da casa comum que é o planeta Terra. Por isso, a ecologia pode ser chamada também de ciência doméstica.

Neste planeta Terra, não habitam apenas os seres humanos. Nele estão todos os demais seres, desde os microorganismos, vírus, bactérias e fungos (95% da vida) até os solos, as rochas, as águas, a atmosfera, os vegetais e os animais. Em outras palavras: na Terra se encontram todos os ecossistemas vivos e inertes, com seus devidos representantes. Como fazer para que todos possam continuar existindo, desenvolvendo-se, convivendo e satisfazendo suas necessidades básicas, em colaboração (sinergia) e em paz? Este é o propósito básico da ecologia. Para atingi-lo, faz-se mister preservar e fortalecer as relações que todos mantêm entre si. Por isso a ecologia, mais que se ocupar com cada um dos seres tomados isoladamente (as águas, as florestas, os animais e os seres humanos), preocupa-se com as relações que existem entre eles e de todos com os seus respectivos meio ambientes. Numa palavra: a ecologia se ocupa com a comunidade de vida. A ecologia vive de relações, pois entende que o universo, a comunidade planetária e todos os seres vivem uns pelos outros, com os outros e para os outros, pois tudo tem a ver com tudo em todos os momentos, em todos os lugares e em todas as circunstâncias.

AS VÁRIAS VERTENTES DA ECOLOGIA E SUAS DÍVIDAS

Depois de fundada como ciência, em l866, pelo biólogo alemão Ernst Haeckel, a reflexão ecológica ganhou vários aprofundamentos. Enfatizam-se atualmente quatro correntes da ecologia. Vamos expô-las sucintamente e considerar a dívida que cada uma contém.

Ecologia ambiental: má qualidade de vida

Esta vertente trata do meio ambiente, isto é, daquelas condições físico-químicas, alimentares, atmosféricas etc. que garantem a existência e a sobrevivência dos seres de um ecossistema. Ela se preocupa com a preservação do equilíbrio dinâmico dos ambientes vitais, das espécies, com a regeneração de ecossistemas degradados e com a conservação de espécies em extinção. Particularmente importante hoje é a manutenção da mancha verde nas cidades, o cuidado para com as florestas, com os solos submetidos a forte quimicalização pela agroindústria, com a salubridade da água, com a despoluição atmosférica, com a diminuição do buraco de ozônio. A ação predatória do projeto industrialista montado nos últimos séculos tem exaurido importantes recursos naturais e modificado o equilíbrio físico-químico da Terra. A mentalidade militarista produziu uma máquina de morte com as cerca de sessenta mil armas atômicas, químicas e biológicas existentes, capazes de destruir toda a biosfera e comprometer a sobrevivência da humanidade. O efeito final é a baixa qualidade da vida humana.

Aqui há uma pesada dívida que os manejadores do projeto de desenvolvimento insustentável (o Estado liberal burguês, os empresários, os detentores de poder) acumularam para com a maioria da população. Não se teve cuidado com as terras, devastadas e erodidas, com as florestas abatidas (especialmente mais de 2/3 da Mata Atlântica), com as águas potáveis contaminadas, com os solos envenenados e com a atmosfera irrespirável em muitas partes das cidades. Multidões são obrigadas a morar em favelas de encosta, sem serviços básicos. A ausência de uma reforma agrária que, de direito, permitiria milhões de pessoas viverem e trabalharem no campo, representa um crime ecológico e uma dívida secular para com os sem-terra e sem-teto.

Ecologia social: desenvolvimento insustentável

Estamos cansados de “meio” ambiente. Precisamos do ambiente inteiro, da comunidade terrenal. Quer dizer: não é suficiente cuidar da natureza. Urge cuidar também do ser humano, parte e parcela essencial da natureza. Como são organizadas as relações entre as pessoas e suas instituições? Como são os serviços públicos? O sistema de saúde, de educação e de comunicação? Como a sociedade organiza a sua relação com a natureza? É de forma irresponsável e exploradora, ou respeitosa? Como são distribuídos os benefícios do trabalho e o acesso aos recursos naturais? Muitos administradores embelezam as cidades com praças, monumentos e parques, mas mantêm um péssimo sistema de segurança, abandonam os hospitais, descuidam do ensino de qualidade e não montam uma estrutura adequada de água e esgoto para a cidade. É um crime contra a ecologia social.

Na reflexão ecológica vigente e na linguagem oficial, fala-se com freqüência de desenvolvimento sustentável. Por desenvolvimento sustentável se entende aquele processo que atende às necessidades da geração atual sem sacrificar o capital natural, e ao mesmo tempo toma em consideração as gerações futuras que também têm o direito de desfrutar dos bens da Terra e da cultura. Este é um ideal irrealizável dentro do atual sistema de produção mundial de cunho capitalista e neoliberal, que visa a maximalizar os ganhos, não respeita a relativa autonomia da natureza e dos seres e explora as classes, os povos e a natureza. A grande maioria da humanidade não tem uma vida sustentável, pois passa fome e é vítima da exclusão, do desemprego e de toda sorte de doenças. O que se precisa não é de um desenvolvimento sustentável, mas de uma sociedade sustentável, quer dizer, uma forma de organização social e política na qual todas as pessoas possam caber e viver com um mínimo de dignidade, com participação, com habitação, educação, saúde e segurança. Mais da metade da humanidade não goza destes benefícios mínimos.

Com referência à ecologia social, há uma dívida histórica que a sociedade organizada deve ao povo brasileiro, condenado a ser massa, sobrevivente de mil tribulações, desprezado como jeca-tatu. As elites brasileiras contam-se entre as mais atrasadas e anti-sociais do mundo, sem compaixão e piedade face à miséria histórica dos brasileiros. Esta dívida se cobra mediante a organização social, comunitária, sindical e partidária, que impõe limites à dominação e disputa o poder político para ordenar a sociedade com mais justiça societária, democracia participativa e senso de colaboração entre todos.

Ecologia mental: crítica ao antropocentrismo

É muito importante ter um ambiente saudável e uma sociedade mais justa e participativa. Mas isto não basta. Importa avançar mais e descobrir que a agressão ecológica contra o ambiente e contra os seres em sociedade reside, em grande parte, na mente das pessoas. Há uma mentalidade distorcida, há visões do mundo, preconceitos históricos, discriminações arraigadas que reproduzem atitudes antiecológicas. Por exemplo, a maioria das pessoas tem um conceito reducionista e pobre da Terra. Imagina a Terra como algo morto, composto de uma parte sólida, que são os continentes e terras altas, e uma parte líquida, que são os rios, mares e oceanos. Ou considera a Terra como um baú de recursos do qual se pode tirar infinitamente matérias para uso indiscriminado do ser humano. A Terra não é isto. Como muitos cientistas mostraram, a Terra como planeta apresenta um equilíbrio de seus elementos físico-químicos, de salinização dos oceanos (4,3%), do nível de oxigênio (21%) e de nitrogênio (70%) e de densidade atmosférica, que somente um ser vivo pode apresentar. A Terra não possui apenas vida sobre ela. Ela mesma é um superorganismo vivo. Os modernos a chamam de Gaia (nome grego para a Terra como uma deusa viva). Os indígenas latino-americanos a denominavam Pacha Mama (Mãe Terra). A Terra é paisagem, é esplendor, é mãe fecunda que tudo gera. O ser humano é filho ou filha da Terra. Mais ainda: é a própria Terra que atingiu um estágio de poder falar, sentir, pensar, amar e venerar. Por isso, homem vem de humus, que significa terra fértil. Ou cada um é Adão, que significa terra fecunda (adamah, em hebraico). Devemos amar a Terra como o nosso próprio corpo. Aquilo que amamos, também respeitamos e não agredimos.

O maior pecado da ecologia mental é o antropocentrismo. Por antropocentrismo entendemos aquela atitude que coloca o ser humano no centro de tudo e imagina que todas as coisas e o próprio universo só têm razão de ser na medida em que se ordenam ao ser humano, tido como rei ou rainha da criação. Este pode dispor de todas as coisas a seu bel-prazer. Ora, o ser humano somente entrou na cena da história quando 98% da história do universo e da Terra já estavam concluídos. Ele não assistiu ao nascimento do universo. A imensa biodiversidade não dependeu do ser humano, que forma, como espécie homo – junto com outras espécies vivas –, uma grande comunidade planetária. Para viver, depende de uma rede de relações com os elementos da natureza, sem os quais não existiria nem se desenvolveria.

Ocorre que o antropocentrismo se esqueceu desta teia de dependências. Fez com que o ser humano rompesse a solidariedade para com os demais seres, dominasse a Terra, ameaçasse outros seres (a cada dia desaparecem definitivamente dez espécies de seres vivos, por causa da intervenção irresponsável do homem e de sua cultura energívora). Ele precisa de uma reconversão de sua mente para despertar dimensões de sua interioridade que o façam mais cooperativo que competitivo, mais sensível que dominador, mais compassivo com os seres que sofrem e menos explorador.

Os valores dominantes de nossa cultura vão numa outra direção. A televisão, o imaginário social e os discursos dominantes pregam a vitória do mais forte e não do mais solidário, anuncia a felicidade do que mais acumula – a custo do sofrimento dos trabalhadores e da pilhagem da natureza – do que daquele que se engaja na transformação necessária da sociedade. Apregoa a excelência do sucesso individual sem consideração pelos outros e pela sociedade.

Há uma dívida com referência à ecologia mental a ser paga pelo sistema escolar, que não soube educar as pessoas no cuidado para com a Terra e a alteridade de outras raças, culturas e religiões. Dívida a ser paga pelas filosofias de vida vigentes na sociedade, que criaram ou reforçaram uma hierarquia de valores centrada somente no ser humano e não no valor de todos os seres, no sistema da vida e na majestade do universo. Dívida a ser paga também pelas religiões e igrejas, que reforçaram a idéia errônea da centralidade do ser humano e da submissão dos demais seres aos interesses humanos, sem criar a consciência da solidariedade cósmica e da comunhão na mesma origem e no mesmo destino comuns no interior da única nave espacial azul-branca, o planeta Terra.

Ecologia integral: somos parte de um Todo maior

Esta vertente prolonga a ecologia mental. Nem o ser humano nem a Terra são o centro. Somos todos parte integrante de um todo cósmico que nos desborda por todos os lados. Somos um momento do mistério da criação divina que ainda está em curso de fazimento. Esta ecologia integral surgiu a partir da visão da Terra lá de fora da Terra. É a visão dos astronautas: de sua nave espacial, ou mesmo da Lua, eles vêem a Terra como um frágil e pequeno planeta, o terceiro do sistema solar, de um Sol que é um entre outros cem bilhões de sóis de nossa galáxia (Via Láctea) e a 27 mil anos luz de seu centro, galáxia que é uma entre outras cem bilhões de galáxias do universo, universo este que pode ser um entre outros inumeráveis universos paralelos ao nosso. Todos viemos do mesmo coração do Pai/Mãe de bondade, marcados com os sinais do Filho e animados pela força do Espírito que tudo penetra e orienta para a frente, para cima e para dentro.

Ecologia, aqui, é mais que uma forma de gestão da Terra, de seus recursos e de estreitamento das interdependências de todos com todos. É uma visão do mundo, uma forma de comportar-se e de realizar uma missão do ser humano no conjunto dos seres. O ser humano se sente arrebatado pela grandiosidade do universo, fascinado pela complexidade de todas as relações e maravilhado pela sinfonia de todas as coisas, apesar das dizimações e dos momentos caóticos pelos quais possa ter passado. Sua missão não é a de dominar, mas de conviver, de ser o jardineiro deste incomensurável Éden, de cuidar, de completar com seu engenho a obra deixada propositalmente incompleta pelo seu Criador para que pudesse evoluir e, nela, o ser humano pudesse exercer sua criatividade com responsabilidade, no sentido das leis cosmogênicas que regem o curso das coisas e nunca contra elas.

Esta ecologia integral procura integrar tudo, re-ligar todas as coisas com sua Fonte divina, viver a re-ligião como força re-ligadora das criaturas com o Criador, do eu consciente com o eu profundo, da pessoa com a natureza e da natureza com o restante do universo. O ser humano sente-se, não como o centro de tudo, mas como aquele ponto onde o próprio universo se sente, se pensa, se ama e se abre à louvação do Criador e do Ordenador de todas as coisas, com aquele Amor que move o céu, todas as estrelas e os nossos corações.

Também com referência a esta vertente ecológica há dívidas a serem pagas pelas diversas culturas, escolas, caminhos espirituais e religiões que negaram ao ser humano uma iniciação ao mistério e ao encantamento do mundo, que não souberam falar de Deus ligado ao universo e habitando no coração de cada ser, que não ensinaram a linguagem do louvor, que não ensaiaram a dança celeste de alegria e festa diante do teatro da glória da criação e de seu Criador. O ser humano ficou privado de uma fonte inesgotável de sentido, de leveza e de enlevo que poderia encher sua vida de magia e de sacralidade.

Conclusão: a ecologia como o contexto de todas as questões

Mais e mais cresce a consciência de que a ecologia se transformou no contexto de todas as questões. Só uma mentalidade ecológica que educa o ser humano para conviver ternamente em seu belo e radiante planeta junto com todos os demais seres vivos e inertes, numa imensa comunidade terrenal e cósmica, poderá garantir um futuro esperançador para a vida humana e para a própria Terra. A ecologia não é um tema a mais que se agrega aos já existentes. É um eixo novo que redefine todos os demais temas. Em que medida cada questão, cada saber, cada forma de poder, cada caminho espiritual ajuda a preservar a Terra, a salvaguardar o Criado em justiça e paz, a aliviar a dor dos que sofrem e a facilitar o cumprimento da missão do ser humano, qual seja, a de ser o anjo da guarda bom da Terra e de todos os seus habitantes?

Pela discussão ecológica passa o futuro da humanidade e do planeta Terra. Importa sermos filhos e filhas do arco-íris, aquele símbolo que Deus colocou no céu como expressão de uma aliança imorredoura com sua criação: nunca mais o dilúvio, nunca mais a devastação, mas a convivência em fraternidade, em respeito e veneração entre todas as criaturas que o arco-íris benfazejamente cobre.

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