sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Auto regulacão e Democracia do Cotidiano

Auto-regulação e Democracia do Cotidiano

Esther Frankel

Para mim o conceito de autoregulação está ligado a Eva Reich, a quem eu convidei para vir ao Brasil em 1980, quando eu estava grávida do meu primeiro filho. Eu devo a ela todo o meu interesse em respeitar o ritmo dos meus filhos (agora tenho tres filhos) quanto ao momento do nascimento, a amamentação, ao treinamento de limpeza, a necessidade deles de autonomia, etc. Isto também me ajudou muito a entender pessoas a quem eu atendo em terapia e a mim mesma.
Neste momento quero homenageá-la agradecendo-a por seus ensinamentos, sua simplicidade e amizade.

Uma questão que desde o princípio ocupou Reich é a prevenção da destruição do funcionamento da vida natural.. Na nossa civilização são os adultos (os caráteres mais neuróticos) que estabelecem os objetivos educacionais para as crianças e adolescentes, e em geral estes objetivos estão a serviço de sua própria conveniência e para perpetuar seus próprios preconceitos.

Reich estabeleceu a autoregulação como princípio básico da criação de crianças. O que ele queria dizer com isto era que as crianças deveriam ter a oportunidade de ter seus instintos primitivos e naturais satisfeitos da sua própria forma, sendo que assim não haveriam instintos secundários perversos. Para Reich era fundamental a aplicaçao de princípios de autoregulação na nossa civilização. Isto me afeta como mãe, como educadora e como psicoterapeuta.

Foi Tage Philipson, íntimo colaborador de Reich, quem escreveu em 1940 sobre a importância de tratar uma criança pequena como um indivíduo com direitos iguais aos adultos, e da necessidade dos pais manterem contato com seus sentimentos e permitirem sua expressão. Para ele era essencial que os ritmos orgânicos de funcionamento próprios da criança fossem respeitados e pudessem se desenvolver naturalmente. Disto se desenvolveu toda uma metodologia de criação de bebês, de forma que seus ritmos naturais pudessem ser preservados da melhor forma possível. Em certas funções, como no mamar naturalmente, era vital se permitir que o bebê regulassse a duração e a frequência das mamadas.

Da mesma maneira, em funções como eliminação, sono, brincadeira, lavar e vestir o objetivo mais importante para o educador era preservar e proteger o sentido natural de prazer corporal da criança, que é o alicerce de sua capacidade de se dar completamente em qualquer atividade com um envolvimento real. Segundo Philipson, se as necessidade fundamentais da criança são gratificadas, ela aceitará as frustrações e acomodações inevitáveis, implícitas no processo da vida, muito mais rapidamente que a criança que perdeu seu ritmo básico e aprendeu a reprimir seus sentimentos naturais. (Boadella, Nos caminhos de Reich, ed. Summus, p.215)

No seu artigo de agosto de 1991, David Boadella escreve sobre terapia e política: uma transformação ecológica profunda e orgânica. Segundo ele, Reich lutou pelos dois princípios. O princípio da liberdade para a pesquisa na prática clinica, a liberação da terapia dos velhos paradigmas com suas divisões rígidas entre corpo e mente e pela liberdade de trazer possibilidades de prevenção e tratamento da neurose para a população como um todo. A psicoterapia corporal nasce em 1920 e Reich diz que era uma parte do legado que ele deixava para as crianças do futuro. Naquele tempo tambem havia uma dissociação entre o trabalho terapêutico pessoal e o trabalho sócio-politico.

A medida que estamos reunidos aqui no Encontro Comemorativo do Centenário de Wilhelm Reich, comemorando os 100 anos do nascimento de Reich acho útil contribuir para essa reflexão tentando me apoiar num paradigma que faça uma ponte entre o social e o humano, que nos ajude a abrir fronteiras que dividem o mundo pessoal, social, e a relação com o meio-ambiente. Para isto é necessário trabalhar no nível de uma trandisciplinaridade. Um modelo que coloca a ênfase na qualidade de vida, relacionada com as necessidades humanas e a auto-regulação.

O economista chileno Manfred Max-Neef fala da ‘Democracia do Cotidiano’, acreditando que apenas redescobrindo a composição molecular do tecido social (micro-organizações, espaços locais, relações em escala humana) é que uma ordem política baseada numa cultura democrática seja possível. Segundo este autor, para evitar a atomização e exclusão da população, seja em termos políticos ou culturais, é absolutamente necessário gerar novos modos de conceber e praticar a política, aprofundando o papel dos atores sociais sem minimizar a importância do estado. Aqui estamos falando de autoregulação: como respeitar e encourajar a diversidade de uma população heterogênea e não como controlá-la.

Para refletirmos sobre a nossa atuação como psicoterapeutas corporais, proponho uma mudança de paradigma que seja coerente com os princípios reichianos Por isto mesmo não estamos apresentando um modelo e sim uma opçåo aberta ja que os seres humanos e aquilo que os rodeia såo parte de um fluxo permanente que não pode ser imobilizado por modelos rígidos e estáticos.

Para esta nova visão, desenvolvimento e necessidades humanas fazem parte da mesma equação. É uma nova forma de conceitualizar desenvolvimento. Nós estamos falando em desenvolvimento em escala humana orientada para a satisfação de necessidades lhumana que demanda uma nova forma de interpretar a realidade. Para nós psicoterapeutas corporais, seguidores de Reich, isto não deveria ser difícil. Para este efeito necessitamos de um indicador sobre o crescimento qualitativo das pessoas. O que é isto?

O crescimento qualitativo está ligado à melhoria da qualidade de vida das pessoas. A qualidade de vida depende das possibilidades que as pessoas têm de satisfazer adequadamente suas necessidades humanas fundamentais. Contrariamente ao que poderíamos supor, segundo este paradigma, as necessidades humanas são finitas e classificáveis e sáo as mesmas em todas as culturas e em todos os períodos históricos. O que muda com o tempo e de cultura para cultura é o modo ou os meios para que essas necessidades sejam satisfeitas, ou seja, os satisfatores dessas necessidades.

De acordo com Max Neef estas necessidades são: subsistência, proteção, afeto, compreensão, participação, lazer, criação, identidade e liberdade. Cada sistema adota diferentes métodos para a satisfação das mesmas necessidades humanas fundamentais. Em cada sistema estas necessidades humanas são satisfeitas ou não através da criaçao de diferentes 'satisfatores'. Nós podemos dizer que um dos aspectos que define a cultura é a escolha dos satisfatores. Uma pessoa que pertence a uma sociedade comunista e outra que pertence a uma sociedade asc´tica têm aa mesmas necessidades humanas fundamentais. O que muda é a escolha da quantidade e qualidade dos satisfatores. O que é determinado culturalmente não é as necessidades humanas fundamentais, mas of satisfatores dessas necessidades. Uma mudança cultural é o resultado to abandono de satisfatores tradicionais com o objetivo de adotar novos ou diferentes.

ós podemos utilisar essa Matrix de Necessidades para a reinterpretação do conceito de pobreza. O conceito de pobreza que geralmente usamos é limitado e economicista, se referindo às dificuldades das pessoas que vivem abaixo de um certo nível de renda. Através deste modelo falaremos de diferentes tipos de pobreza: cada necessidade fundamental humana não satisteita adequadamente revela uma pobreza humana. Por exemplo: pobreza de subsistência - devida a renda, a alimentação e a abrigo insuficiente, etc.; pobreza de proteção - devida a um sistema de saúde ruim, violência, corrida armamentista, etc.; pobreza de afeto - devida a autoritarismo. opressão, relações de exploração do meio-ambiente natural,etc.; pobreza de entendimento - devida à baixa qualidade da educação; e de identidade - devida à imposição de valores alienígenas sobre culturas locais e regionais, migração forçada, exílio político, etc.. Mas as pobrezas não são apenas pobrezas. Cada pobreza gera patologias. Este paradigma nos interessa por ser este o âmago do seu discurso.

Gostaria de terminar falando da coragem de Reich em ver a miséria humana e apontar soluções em sua época. Como dizia Nietshe? para sermos capazes de ver a miséria das situaçøes temos de ser visionários, impotentes. O que nos faz despertar é um afeto. Este tema afetou Reich, me afetou e espero que vos afete também.

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