sábado, 7 de dezembro de 2013

"O Levante de junho: uma potentíssma bifurcação dentro da qual ainda estamos".Entrevista com Giuseppe Cocco

"Todas as “máscaras” do Estado já caíram. Hoje, segundo ele, não temos um Estado de Direito, mas um Estado de Polícia, de repressão e perda das liberdades democráticas", assevera o sociólogo.
“A forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas”, afirma Giuseppe Cocco. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o sociólogo critica a postura autoritária dos que se opuseram e se opõem às manifestações populares que ocorrem no Brasil, ainda que hoje com menos força, desde o meio do ano.
“Em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e ‘projeto’. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos?”, provoca ele. “Que projeto tem esses ‘deputados e senadores’, que não seja a mera ocupação do aparelho de poder assim como ele é? E qual seria o projeto dos partidos de esquerda?” Para ele, é justamente na falta de organização formal e na multiplicidade das singularidades que jaz a força das manifestações, “sem lideranças e, por isso, mais potentes”.
Cocco questiona o papel assumido hoje pelos partidos, que “parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas, grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco ‘republicanas’ a partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações, evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias”.
Nesta crítica, o sociólogo manifesta especial surpresa sobre a postura assumida pelas esquerdas do país, especialmente o governo, que ou batem de frente e repreendem as manifestações, ou maquiam suas próprias ações para dar a entender que são provedores das liberdades democráticas, ocultando ocorrências como a “Chacina da Maré” ou abusos como o caso do pedreiro Amarildo. Independente a isso, para ele, o povo continua lutando. “É a multidão que está na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar credibilidade à política, em particular junto aos jovens”, pondera. “O melhor da juventude brasileira está na rua”.




Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).





Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que as manifestações do chamado Outubro Brasileiro nos ensinam no que se refere às possibilidades efetivas da democracia direta?
Giuseppe Cocco - As manifestações de outubro são a continuidade e o desdobramento daquelas de junho. No conjunto elas ensinam muitas coisas, inclusive sobre as possibilidades efetivas de democracia direta. Antes de tudo, elas nos ensinam que a “democracia direta” só existe nos termos da radicalização democrática. O movimento não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias. Ou seja, o movimento teve a capacidade de mostrar para o Brasil e para o mundo as dimensões perversas do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um regime de terror de Estado que, por meio do regime discursivo sustentando pela mídia da elite neoescravagista, é tratado como se fosse “externo” e independente dos governos, até o ponto em que, no Rio de Janeiro, a solução seria seu aprofundamento por meio da chamada “pacificação”.
Seria irônico se não fosse o cúmulo do cinismo escravocrata. É que a forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas. Como sempre fez, desde junho, o poder multiplica os boatos sobre participação do narcotráfico nas mobilizações democráticas. Na senzala — ou seja, nas favelas, subúrbios e periferias — o terror anda a pleno vapor, quer a polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do PMDB. É um terror estatal com vieses classistas e, sobretudo, racistas. Os ventos de junho continuam soprando (não apenas em outubro, mas também em novembro), e o outono já virou uma primavera que anuncia o carnaval.
O levante de junho não foi uma explosão efêmera, mas uma potentíssima bifurcação dentro da qual ainda estamos. Nessa bifurcação, as possibilidades de democracia direta nos aparecem ao mesmo tempo potentes e ativamente bloqueadas, literalmente criminalizadas por um Ministro da Justiça que transforma em crime, com apoio entusiasta da imprensa hegemônica, os direitos constitucionais de manifestação e livre opinião. E isso com base em relatórios da Polícia Federal sobre atividades que não são crimes.
Ou seja, o Ministro da Justiça se transforma em Ministro de Polícia e o Estado faz cair sua máscara para aparecer explicitamente o que é: um Estado de Polícia. Confesso que fiquei espantado diante da “reação” (e quero enfatizar mesmo esse termo “reação”, pois é a raiz de outro termo: “reacionário”) da esquerda em geral, sobretudo da esquerda de governo, em particular do PT e de alguns dirigentes e até de alguns amigos. Meu espanto aumenta a cada dia. Se da Presidenta Dilma (que, como disse um viral na internet de um artista carioca, “Já foi Sininho e hoje virou Capitão Gancho ”) não esperava nenhuma sensibilidade, não digo “social”, mas sequer política, de outros esperava uma postura diferente, pelo menos progressista e esclarecida.
O fato é que a esquerda de poder e o PT (que me interessa) não fizeram, e não fazem, nenhum esforço para abrir os governos que lideram à nova demanda de participação e de “democracia real já”. Ao contrário, assistimos a uma postura arrogante e reativa, nos moldes do Ministro da Justiça se transformando docilmente em Ministro de Polícia. Essa postura enfatiza o que já sabíamos: que as brechas de transformação dos governos Lula foram definitivamente fechadas pela Dilma; que as experimentações em termos de orçamento participativo não apenas foram encerradas faz tempo, mas foram totalmente sobrevalorizadas. O OP (Orçamento Participativo) não deixou rastros políticos de nenhum tipo.
Democracia produtiva
De toda maneira, apesar desse vazio político desanimador, hoje é o horizonte inovador de uma democracia produtiva que temos diante de nós. Podemos apreender suas dimensões em três grandes níveis:
A) a ruptura— parcial e temporária, mas real — das dimensões totalitárias construídas em torno do consenso da “governabilidade”;
B) a multiplicação de assembleias (muitas delas chamadas de “populares”) e ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas em muitíssimas cidades; e
C) a forma produtiva do “movimento”.
As três dimensões fazem do levante de junho-outubro um momento constituinte. Num primeiro nível, pelo decreto de redução das tarifas de transportes (no caso do Rio Grande do Sul, o governo Tarso teve a coragem de promulgar oPasse Livre para os estudantes) e uma série de outros decretos da plebe. No Rio de Janeiro, tratou-se, sobretudo, do entorno do Maracanã e do recuo parcial do Prefeito (embora falso) nas políticas de remoções de favelas. No segundo nível, as ocupações de “parlamentos”, além de traduzir-se em decretos do tipo daqueles do primeiro nível (“recuos” pontuais dos governos) visaram transformar a crítica da representação no terreno concreto de um aprofundamento democrático, de invenção de novas instituições.
Recorrendo mais uma vez ao Rio de Janeiro, as sucessivas ocupações da Câmara dos Vereadores (e da praia do Leblon, em baixo da residência do Governador, sem contar o sem número de manifestações na frente do Palácio Guanabara, na frente da Alerj ou a breve ocupação na frente da residência do Prefeito Municipal) mostraram que o movimento de junho não era efêmero, mas capaz de abraçar as lutas mais difíceis como aquela contra a máfia dos ônibus (cobrando uma CPI transparente e democrática). Sendo que a luta contra a máfia dos ônibus não é apenas uma luta pela reforma urgente da gestão do sistema de transportes, mas também pela democracia: todo mundo sabe que esses “lobbies” se constituem nos maiores entraves ao sistema democrático, inclusive aquele representativo!
ocupação da Câmara do Rio mostrou toda sua potência de novo terreno de luta democrática quando passou a ser usada e renovada pelos professores da rede municipal. Não é por acaso que foi duramente reprimida: o poder não pode com certeza tolerar que a democracia real se instale. Seria um exemplo insuportável.
Enfim, com o outono virando primavera, a persistência do movimento nos mostra as dimensões produtivas e, nesse sentido, constitutivas do horizonte democrático que ele define. As mobilizações praticamente diárias, que se sucederam em julho, agosto e setembro até se massificarem novamente nos dias 7 e 15 de outubro, são o terreno de uma multiplicidade de iniciativas: advogados da OAB, grupos de advogados ativistas, grupos de primeiros socorros, coletivo projetação, autoformação nas ocupações, músicos e bandinhas, uma multidão de mídias produzindo desde inúmeros streamings e documentários passando por todos os tipos de registros fotográficos. A democracia que o movimento desenha é constitutiva e é mesmo produtiva. O fato de um processo de subjetivação que mostra toda a potência das redes e das ruas.
IHU On-Line - A ausência de um projeto político unificador das pautas dos manifestantes levou à dispersão e à imobilidade? Foi isso o que ocorreu após a redução do preço das passagens, principal pauta das manifestações de junho em várias cidades brasileiras?
Giuseppe Cocco - Parece que foi exatamente o contrário o que aconteceu: não houve dispersão, mas difusão e multiplicação de manifestações, reivindicações, assembleias e reuniões. Pelo menos no caso do Rio, não houve sequer um dia de “imobilidade”, mas uma mobilização diária, modulada em escalas diferentes. A multidão passou a fazer-se pela multiplicação difusa de iniciativas de lutas novas e antigas. O movimento de junho teve a capacidade de colocar pautas que eram tão urgentes como inalcançáveis até então, como na questão dos transportes urbanos. Claro, os esforços dos jovens do Movimento pelo Passe Livre (MPL) estão na base disso, mas é a primeira vez que a luta sobre o preço das passagens e a qualidade dos transportes se consolida nas ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas para que todo o sistema de gestão seja objeto de democratização.
O movimento de junho foi se metamorfoseando numa constelação de movimentos e iniciativas, conectando entre elas as lutas mais diversas: desde aquelas dos favelados contra as remoções ou a violência policial, até aquelas dos usuários massacrados nos transportes todos os dias, passando pelos movimentos de categorias como a dos bancários, dos petroleiros e, sobretudo, dos professores.
Os professores do Rio de Janeiro encontraram no levante de junho e, principalmente, em sua persistência a inspiração para lutar. Os professores experimentaram, nas misturas com o Ocupa Câmara e os jovens da táticaBlack Bloc, novas formas de luta e organização, de tipo metropolitano: a forma sindical (o SEPE) saiu extremamente enfraquecida (e até objeto de críticas violentas) ao passo que, em sua última fase, o movimento foi experimentando formas embrionárias de organização territorial, algo como novas Câmaras do Trabalho Metropolitano que chegaram a viver nas conexões entre as diferentes acampadas. Não dá para saber com quanto fôlego, mas as acampadas doLeblon e da Câmara foram retomadas nesses dias.
A greve dos professores municipais não foi mais a tradicional greve absenteísta do setor público, mas uma luta sensacional de ocupação e resistência, inclusive diante da repressão policial. É isso que levou, no dia 1º de outubro, a uma batalha campal de horas e horas no centro do Rio de Janeiro (sendo a repressão policial a única argumentação usada pelo governo PMDB-PT para “negociar” com os grevistas) e, no dia 7 de outubro, à volta da multidão na Avenida Rio Branco.
Mais de 100 mil pessoas marcharam, numa repetição de junho que agora não tinha mais nenhum tipo de ambiguidade. Uma grande manifestação de esquerda, atravessada e enriquecida pelas diferenças e por milhares de jovens que aderiram — talvez pela primeira vez — à tática Black Bloc.
No dia 15 de outubro, novamente dezenas de milhares de pessoas ocuparam a Rio Branco. A multidão está na rua e persiste em seu fazer-se. Não uma massa homogênea e manipulada (aquela que a mídia neoescravagista gostaria de ver na rua) e sequer a identidade categorial e corporativa que os sindicatos (pelegos ou supostamente “radicais”) conseguem colocar, mas uma multiplicidade de singularidades, sem lideranças e por isso mais potentes. É a multidão que está na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar credibilidade à política, em particular junto aos jovens.
Projetos dos partidos
Lembremos que, em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e “projeto”. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos? Por um lado, é difícil defender que os diferentes partidos de governo tenham alguma organicidade. Eles parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas, grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco “republicanas” a partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações, evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias. Que projeto tem esses “deputados e senadores”, que não a mera ocupação do aparelho de poder assim como ele é? E, qual seria o projeto dos partidos de esquerda?
Aqueles que fazem oposição se confirmaram como fundamentais, em particular o PSOL do Rio de Janeiro. Contudo, a “esquerda de oposição” sai muito mal desses cinco meses de lutas. Quando ainda tem cidadania no movimento, isso não impede que o movimento os transponha totalmente. Por outro lado, é evidente que a “esquerda de oposição” não representa nenhuma alternativa eleitoral, e eu continuo convencido de que até o movimento mais radical precisa de algum momento eleitoral. Quanto ao PT, qual é seu projeto? Difícil dizer, pois não há nenhum, a não ser “continuar no governo”. É ainda pior se perguntamos: qual projeto a Presidenta Dilma implementou em seu mandato? Em termos de políticas públicas, não houve nenhuma inovação.
A marca da Dilma foi a volta do economicismo, e isso em torno de duas falácias: a primeira foi a aposta na economia material das commodities, dos megaeventos, das megaobras e dos global players (a grande indústria multinacional); a segunda — complementar a essa — foi a ideia de que a mudança de modelo econômico viria de cima para baixo, pela decisão-decreto de “baixar a taxa de juros”.
Quando Dilma fala que gosta de engenheiros e não de advogados, ela está sendo muito sincera, nos faz entender que ela é mesmo autoritária. Não se trata apenas de “jeito”, do gosto pelos engenheiros que fazem os cálculos das barragens ou dos estádios, diante dos “chatos” dos advogados que ajudam os índios e os pobres a desconstruir essas equações para mostrar os impactos ambientais e sociais. Trata-se mesmo de uma maneira de pensar a política como uma engenharia social, uma teleologia do progresso a ser implementada, inclusive pela força (a polícia, sem esquecer que se trata da polícia brasileira, que mata oficialmente cinco pessoas por dia), como fizeram Lenin eStalin com a “industrialização forçada”. Só que agora, o ridículo é que o totalitarismo é para permitir a qualquer custo que a Copa da FIFA aconteça nos moldes dos interesses da FIFA. O nacionalismo é sempre assim: em nome do interesse nacional, abrem-se avenidas para o neocolonialismo interno e, pois, externo.
Logo que foi eleita, Dilma mostrou a que veio: a destruição do Ministério da Cultura foi emblemática, mas também a afirmação de seu estilo autoritário, com a demissão de Pedro Abramovay, justamente por ter anunciado um elemento de projeto (a reforma — urgente e necessária — da política de repressão das drogas). Um episódio que mostra o caráter arrogante e autoritário da Presidenta e a submissão dócil de seus ministros — a começar pelo que deveria ter defendido o Pedro Abramovay, o Ministro da Justiça —, que praticamente não tomaram nenhuma iniciativa nestes três anos.
Nada foi produzido pelos ministros. Imaginem o que teria acontecido com Tarso Genro quando tomou a corajosa decisão de conceder refúgio ao Battisti . O fato é que os elementos originais do governo Dilma foram desastrosos e apagaram o pouco que havia de “esquerda” no pragmatismo “lulista”: no plano das megaempresas, temos a falência de Eike Batista — que envolve BNDES, CEF e FGTS — e as dificuldades pesadas da Petrobras que levaram aoLeilão de Libra (e levarão ao aumento do preço da gasolina porque a produção dos poços tradicionais caiu); os megaeventos se mostraram como impopulares justamente em junho, durante a Copa das Confederações — como se faz para gastar bilhões em embelezamento (no Porto Maravilha) quando milhões de pessoas ao lado convivem com rios de esgoto a céu aberto? Só mesmo por meio do conluio com a tradicional política de terror, essa sim mascarada por trás da clivagem de raça e classe, que mantém a senzala em “seu lugar”.
No plano da nova política econômica (a manutenção dos subsídios à grande indústria e a tentativa de baixar os juros), esta acabou reforçando as tendências inflacionistas que já estavam presentes. O levante de junho foi, inicialmente, a afirmação de que só uma mobilização democrática é capaz de romper a ciranda mortífera que liga as duas inflações: a dos juros e aquela dos preços! Tornando-se primavera, o outono é também a base para reafirmação da própria noção de projeto. O “projeto” que interessa é aquele que não é unitário, mas múltiplo, aquele que é aberto a outro processo de produção de subjetivação, aquele que não se separa do processo de sua constituição: o único jeito de a “política” voltar a ser ética (e crível para os jovens) é de manter a fonte e o resultado juntos num processo continuamente aberto. O único projeto que interessa é justamente aquele que não é projeto, ou seja, onde não há nenhuma teleologia totalitária, mas o máximo de constituição democrática.
IHU On-Line - Que relação pode ser feita entre aquelas primeiras manifestações e as mais recentes, que passaram a ser identificadas pelos atos de violência? Trata-se da continuação de um mesmo fenômeno ou são situações isoladas uma da outra?
Giuseppe Cocco - Não há diferença entre as primeiras manifestações e aquelas que persistiram ao longo desses meses: por exemplo, as primeiras manifestações no Rio de Janeiro, no início de junho, tinham muita pouca gente e já eram caracterizadas pela determinação de uma nova geração de jovens em resistir aos ataques da polícia e dar às manifestações algum nível de efetividade. Contrariamente ao que a mídia e os intelectuais ligados ao governo afirmam hoje, foi essa característica marcante das manifestações que as massificou. Ao passo que os governos achavam que o “rodo” policial teria afugentado os manifestantes, em particular aqueles politizados de classe média que — segundo seus cálculos obsoletos — deviam constituir o núcleo duro das mobilizações.
Não apenas isso não afugentou, mas massificou e, dentro da massificação, foi se construindo a capacidade de resistir e até de praticar ações diretas de tipo simbólico. Desde o início o poder da mídia e a mídia do poder tentaram impor a separação entre os manifestantes “ordeiros” e os “vândalos” e não funcionou. Não funcionou porque, apesar das mistificações seguidas da mídia, as práticas da autodefesa e das ações diretas respeitaram limites políticos precisos que não permitiram que a elas se colasse o discurso da violência e do medo.
A maioria da população, sobretudo da população jovem e pobre, passou a enxergar nessas práticas uma brecha de luta efetiva. Trata-se, pois, de uma continuidade e de um amadurecimento, como vimos na volta da multidão para aAvenida Rio Branco nos dias 7 e 15 de outubro. Contudo, podemos e precisamos sistematizar a questão da violência em três momentos de reflexão: a violência já existe e a novidade foi a brecha democrática; a questão da tática Black Bloc; e a repressão.
A violência
A mídia e o poder sempre tentam dizer que a violência vem do protesto, ou seja, da manifestação democrática. Trata-se de uma operação sistemática de mistificação que assistimos em suas formas explícita e assassina nos últimos eventos de São Paulo — ao passo que alguns jovens estão em prisão preventiva com a gravíssima acusação de “tentativa de homicídio” de um policial (que não sofreu nenhum ferimento grave), os policiais que assassinaram friamente dois adolescentes (em momentos diferentes e logo depois) são indiciados por “homicídio culposo”. Pior, jornais como O Globo (que tem uma longa e mortífera história de apologia do arbítrio policial) chegaram a fazer manchetes que invertiam propositalmente o sentido dos fatos: “Protesto contra morte de jovem termina em violência”. Ou seja, a justa indignação popular contra a violência assassina do Estado sofre uma inversão grosseira, até ofensiva à inteligência do leitor.
O que o movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo, o pedreiro torturado, assassinado e feito desaparecer na sede daUPP da PM da Rocinha do Rio de Janeiro. A mesma coisa aconteceu com os mais de 10 moradores assassinados na favela da Maré em junho, durante o movimento, pela “Tropa de Elite” da PM do Rio e em relação à qual sequer existe um procedimento disciplinar. O movimento mostrou que os moradores da senzala não têm cidadania nem direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado claro, genuinamente neoescravagista, aos pobres: vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão mortos. Essa é a democracia que vivemos: não nos grotões do Brasil remoto, mas na metrópole olímpica, o Rio de Janeiro. E isso num governo estadual do PT e do PMDB.
A tática Black Bloc
Porém, milhares de jovens pobres descobriram, em junho, que havia uma brecha para lutar. O Brasil dos megaeventos, das Copas e das Olimpíadas não pode repetir nas ruas e praças o que faz nas favelas, periferias e subúrbios todo santo dia. Não é por acaso que isso aconteceu durante a Copa das Confederações.
A luta foi contra, mas dentro: dentro e contra. Essa brecha é claramente democrática, pois por meio dela os jovens pobres (mesmo que na maioria sejam os mais dinâmicos — prounistas, reunistas, etc.) encontraram a possibilidade de lutar, fugindo ao duplo mecanismo racista e assassino que normalmente é usado para controlá-los: o arbítrio da polícia e aquele do narcotráfico, sendo que às vezes ele toma o nome de “milícia”.
Ao mesmo tempo, os jovens que encontraram essa brecha não acreditam na representação e querem muito mais e melhor. Não querem nenhuma bandeira que não seja aquela que eles mesmos afirmam e produzem em sua luta. Além disso, me parece, esses jovens, e mais em geral os jovens que decidiram entrar para a política em junho, pensam que o único modo de fazê-lo é conseguir certo nível de efetividade, ou seja, ficando nas ruas nas maneiras mais autônomas e determinadas possíveis.
Deve haver outras explicações que eu desconheço, mas olhando para o Rio de Janeiro, onde a tática Black Bloc se apresentou explicitamente (se eu não estiver errado) apenas no dia 30 de junho, nas manifestações de protesto durante a final da Copa das Confederações, creio que as bandeiras negras do anarquismo foram aquelas que a grande maioria desses jovens elegeu como sendo internas a uma luta que é, antes de tudo, uma luta contra a representação e afirma a necessidade de formas de organização radicalmente horizontais, sem liderança.
Eu nunca fui anarquista e não acredito no “anarquismo” porque penso que a luta é pela invenção de novas instituições. Mas não adianta querer que a “realidade” se encaixe nas nossas ideias. É preciso que as ideias se adéquem à realidade. A referência (global) à tática Black Bloc parece ter respondido ou correspondido a algumas inflexões totalmente brasileiras e cariocas.
A primeira é a necessidade desses jovens oriundos das periferias e dos subúrbios de se mascarar para poder lutar (há como que uma inversão: não usam máscaras por serem Black Blocs, mas se chamam de Black Bloc para poderem usar as máscaras e chegar mascarados nas manifestações do mesmo modo que as bandeiras pretas da anarquia lhe parecem as únicas — mas não exclusivas — que afirmam a horizontalidade radical de sua luta).
A explicitação da tática Black Bloc é também — e paradoxalmente diante do processo de criminalização do qual são objeto — a definição de uma ética da resistência e da ação direta, ou seja, de “limites” dentro dos quais manter essas duas práticas que o movimento de junho e seus desdobramentos, ao longo dos meses de julho, agosto, setembro e outubro, colocaram em pauta. A tática Black Bloc foi um sucesso midiático inesperado. São eles que chamam a atenção de todos os tipos de mídia. De onde vem esse “sucesso”? Da percepção de que nessa tática há uma brecha democrática capaz de colocar na rua a questão da paz e da justiça social: é essa tática que conseguiu dar o nome de Amarildo a todos os pobres sem nome massacrados arbitrariamente pelo Estado: cinco por dia, segundo as estatísticas publicadas pelo O Globo.
Contudo, parece que a tática Black Bloc tem uma dimensão estética que também pode funcionar como uma identidade e isso, a meu ver, é um problema. Em primeiro lugar porque pode servir para os desenhos da repressão que procura exatamente isolar fenômenos de organização que não existem. Em segundo lugar porque pode ingenuamente atribuir às dimensões estéticas da ação direta um peso político que na realidade não tem. Por exemplo, a quebra dos caixas eletrônicos se parece com a quebra dos relógios nas velhas revoluções do século XIX. Da mesma maneira que o proletariado industrial não conseguia com isso deter os ritmos do tempo do assalariamento, o proletariado metropolitano não conseguirá deter os fluxos das finanças quebrando os caixas eletrônicos dos bancos (aliás, nisso os Black Blocs estão sendo muito próximos da Dilma e de sua tentativa fracassada de deter as taxas de juros). Ficando nessa estética, a luta corre o risco de cair numa armadilha. Enfim, os adeptos da tática Black Bloc podem acabar “presos” nessa dimensão estética, repetindo-a sistematicamente e ingenuamente. Em suma, a dimensão estética corre o risco de sobredeterminar aquela política, e penso no mote deWalter Benjamin (o filósofo comunista alemão vítima do nazismo): a luta pela politização da arte continua atual.
A repressão
Chegamos assim à questão da repressão: o que está acontecendo — e em nível federal — é escandaloso. A Polícia Federal — a mando da Presidenta e do Ministro de Justiça — divulga na imprensa a existência de listas de “suspeitos” de praticarem atividades totalmente constitucionais: liberdade de opinião e de manifestação, articulações políticas e culturais internacionais. Não dá nem para acreditar.
Em junho, dirigentes do PT e do governo chamaram para o perigo do “golpe”, falaram de coxinhas e também de “fascismo e barbárie” nas manifestações. Tive um vivo debate com meu amigo Tarso Genro, na presença deBoaventura de Souza Santos, em Lisboa (em julho deste ano), durante o qual ele falava de fascismo e da “marcha sobre Roma”. Ora, o fascismo é um fenômeno estatal, nacionalista e identitário: totalmente o contrário dos discursos, das bandeiras e da estética destes garotos. Quem tem ares de fascismo é Vargas, ao qual Emir Sader comparou oPresidente Lula. Quem é ambíguo é o nacionalismo que circula na esquerda neodesenvolvimentista (inclusive, como vimos no Leilão de Libra, faz como o fascismo: retórica nacionalista e política entreguista).
Fascismo e xenofobia é fazer demagogia nos vistos (bem-vindos) para os médicos cubanos e deixar irregulares os milhares de trabalhadores bolivianos em São Paulo. Enfim, fascistas são as polícias de qualquer estado do Brasil que podem matar e torturar a rodo sem que o senhor Ministro de Justiça constitua força tarefa nenhuma. Fascismo e barbárie são as condições das prisões no Brasil, para onde o próprio Ministro disse que não gostaria de ir.
O fascismo é um fenômeno estatal, organizado e estruturado em torno da radicalização dos valores tradicionais: a nação, a família e até a raça (e o anarquismo diante disso — quer a gente goste ou não dele — é uma contradição nos termos). O fascismo já está presente e dominante no Brasil e não precisa de nenhum golpe, a não ser aquele que o próprio governo está dando na democracia. Quem colocou o exército na rua foi o governo federal para proteger o leilão das reservas estratégicas de petróleo. A quebra do Estado de direito aconteceu por obra do Estado do Rio (e surpreendente aprovação do Cardozo) na prisão indiscriminada e em massa de 200 pessoas com o único critério de estarem na escadaria da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, exercendo o direito constitucional de manifestação. Essa operação sim é de “tipo” nazista: prisão indiscriminada, em massa, por retaliação.
Não se trata apenas de dizer que nenhuma força-tarefa foi constituída entre o Ministro da Justiça e os Secretários de Segurança do Rio e de São Paulo para deter os assassinatos sistemáticos de pobres (os “Amarildo”) pelas PMs de todos os estados. Há uma outra evidência, terrível, que somente Cardozo e Dilma não querem ver: no Rio de Janeiro, ao longo de cinco meses de mobilizações de rua e enfrentamentos, a PM — como o próprio Secretário de Segurança José Mariano Beltrame disse — se “segurou” e o uso das armas letais foi extremamente limitado (embora preocupante no dia 15 de outubro). O que isso significa? Que o uso sistemático do ato de resistência para matar, torturar e dar sumiço nos pobres é uma prática que vigora por meio de uma autorização de fato por parte dos governos. No caso das manifestações, para manter sua imagem externa e evitar também uma revolta generalizada, os governos conseguiram fazer passar o “recado” para sua PM e que não querem fazer passar no que diz respeito à sua atuação na Maré, na Rocinha, nos subúrbios do Rio e nas periferias de São Paulo. Só mesmo esse Ministro de Polícia para não ver a enorme brecha para a paz que haveria, e abrir mesas de negociação. Só mesmo a arrogância potencialmente totalitária da Presidenta e dos setores majoritários do PT de não fazer autocrítica sobre 10 anos de (não) políticas da juventude. O melhor da juventude brasileira está na rua. O que foi feito nos governos Lula e Dilma? Alguém sabe?
IHU On-Line - Disso decorreria que as manifestações recentes estão permeadas por uma cultura do ressentimento?
Giuseppe Cocco - O único ressentimento que eu vi (e vejo) é o que se encontra nas análises desses “acadêmicos” que estão paradoxalmente desarmados teoricamente para entender o que acontece e aconteceu. Descobrem que as categorias que usavam não servem para nada e tentam desqualificar o que acontece e tentam exorcizar os trabalhos teóricos que os anteciparam. O caso mais triste é o da Marilena Chauí. Numa entrevista na Revista CULT, ela faz uma série de considerações infundadas sobre o pensamento de FoucaultAgamben e Negri e começa declarando “ter levado um susto quando descobriu que os meninos do MPL tinham usado as redes para chamar pelas mobilizações”. Como se as redes fossem uma opção e não a nova base material do trabalho e das lutas, a condição ontológica dentro da qual vivemos. Esse descolamento entre o pensamento e a análise material (ou seja, o fato de que quando ela fala de “classes” mobilize uma mistura estranha de sociologia marxista ortodoxa com moralismo psicológico que pouco tem a ver coma teoria spinozista dos afetos) explica talvez o fato de que ela não tenha se tocado quando criminalizou os jovens que estão na rua, logo para a máquina mortífera que é a PM do Rio (em agosto).
IHU On-Line - Como este quadro se relaciona com o conceito de multidão, de Antonio Negri?
Giuseppe Cocco - Totalmente. Os conceitos de trabalho imaterial e de multidão se mostram totalmente adequados diante do que está acontecendo e confirmam a dimensão pioneira dessas teorizações. O que temos nas ruas, sociologicamente, é o trabalho imaterial metropolitano que luta sobre a mobilidade e a democracia ao mesmo tempo. E essas lutas “fazem” multidão, constituem uma multidão de singularidades que cooperam entre si, se mantendo tais. A “multidão” não é positiva em si (como diz de maneira infundada a historiadora da filosofia falando de Negri), mas é afirmação, constituição. Fora disso, o que observamos é a fragmentação social, a perda de direitos. O movimento de junho nos mostra que não precisamos voltar às grandes massas fabris para lutar. Pelo contrário, “nunca antes na história deste país” houve um movimento tão forte e tão autônomo, muito mais do que o novo sindicalismo do qual veio Lula.
Do mesmo jeito, quando publicamos, em 2005, GlobAL: biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), dizíamos que os novos governos eram interessantes na medida que seriam atravessados pelos processos de subjetivação — quer dizer, pelas lutas — capazes de construir uma alternativa ao neoliberalismo e ao neodesenvolvimentismo. Dessa maneira, Negri e eu antecipamos, por um lado, que as brechas do governo Lulateriam produzido essa nova subjetividade e que esta não teria se reduzido ao lulismo. Por incrível que pareça, o regime discursivo hegemônico no PT foi aquele de comparar Lula a Vargas e, de maneira totalmente bipolar, de reduzir a mobilização social à mobilidade estatística (a emergência de uma Nova Classe Média). Pelo visto, quem é chamado a preencher esse vazio da teoria e da política hegemônica no PT e no governo é a Polícia Federal.
 Veja também:
  • Mobilização reflete nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles. Entrevista especial com Giuseppe Cocco, publicada nos Cadernos IHU Ideias nº 19 sob o título #VEMpraRUA - Outono brasileiro? Leituras, disponível em http://bit.ly/ihuid002

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A Economia do Dom e a visão de Marcel Mauss - Paulo Henrique Martins

A economia do dom e a visão de Marcel Mauss

Alternativas para uma outra economia

Por: IHU Online


Marcel Mauss (1872 - 1950) foi um sociólogo e antropólogo francês, nascido quatorze anos mais tarde e na mesma cidade que Émile Durkheim, de quem é sobrinho. É considerado como o "pai" da antropologia francesa.
No próximo evento Alternativas para uma outra economia, as teorias e idéias de Marcel estarão em discussão. A palestra A economia do dom e a visão de Marcel Mauss será ministrada pelo professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, Paulo Henrique Martins de Albuquerque. O evento acontece no dia 10-10-2006. O professor concedeu uma entrevista por e-mail à IHU On-Line.

O dom de Marcel Mauss 

Paulo Henrique Martins realizou seu Doutorado de Sociologia na Universidade de Paris I, Sorbonne entre 1988 e 1992. Esteve como pesquisador visitante na London School of Economics and Politics Science (LSCI), em 1995 e realizou atividades de pós-doutoramento na Universidade de Paris X, Nanterre, entre 2000 e 2001. Nos últimos anos, tem se dedicado a repensar as políticas públicas no contexto da mundialização, da crise do Estado e da emergência de uma sociedade civil complexa, da família como fato associativo. Tem, igualmente, contribuído para a consolidação dos estudos de Sociologia da Saúde no Brasil e para a reforma do Estado e das políticas públicas mediante a produção de reflexos, participação em palestras e oferta de cursos sobre o tema. Algumas publicações recentes atestam os interesses de pesquisa. Escreveu os livros: A dádiva entre os modernos : discussão sobre os fundamentos e as regras do social (organizador).  Petrópolis: Vozes, 2002; Revista Sociedade e Estado : Dádiva e solidariedades urbanas (organizadores : Martins e Ferreira), Departamento de Sociologia da UNB,  Brasília, 2002; Contra a desumanização da medicina : crítica sociológica das práticas médicas modernas. Petrópoils : Vozes, 2003; Economia popular e solidaria, questões teóricas e práticas (Organizadores : Martins e Medeiros). Recife :  Bargaço, 2003; A nova ordem social : perspectivas da solidariedade contemporânea (organizadores : Martins e Ferreira). Brasília : Paralelo 15 , 2004; Redes sociais e saúde : novas possibilidades teóricas (organizadores : Martins e Fontes). Recife : Editora da UFPE, 2004 ; Abordagem ecosistêmica em saúde (organizadores : Giraldo, Carneiro e Martins), Recife, Editora da UFPE, 2005; Redes, práticas associativas e gestão pública (organizadores: Martins e Fontes). Recife: Editora da UFPE, 2006; Polifonia do dom (organizadores: Martins e Campos). Recife: Editora da UFPE, 2006;
IHU On-Line - O que é a economia do dom? Quais os valores básicos no qual essa economia se assenta?

Paulo Henrique Martins
 – Para falar da economia do dom temos que diferenciar duas questões: o que disse Mauss sobre a matéria e o que dizem hoje aqueles autores que se filiam direta ou indiretamente à herança maussiana, entre os quais podemos relacionar, em primeira mão, Alain Caillé, diretor geral da Revue du MAUSS e Jean-Louis Laville, que coordena várias ações de economia solidária. Limitando-nos a Mauss, temos que, primeiramente, entender que as reflexões dele sobre o tema - conforme esclarece David Graeber num artigo intitulado O comunismo de Marcel Mauss, que faz parte de uma coletânea que estamos lançando e intitulada Polifonia do dom (Editora da UFPE, Recife, 2006) -, estão conectadas com a sua constatação sobre a impossibilidade do bolchevismo na Rússia (país que ele visitou) de eliminar o mercado. Diante dessa constatação, Mauss buscou reinterpretar e ressituar o mercado como técnica de decisões e não como um avatar (imagem repassada maliciosamente pelos economistas neoliberais), apoiando-se nesta desconstrução teórica em estudos etnográficos relativos às funções diferenciadas do mercado nas sociedades tradicionais e numa crítica socioantropológica consistente sobre seu caráter e uso na contemporaneidade. Isso ele o fez no seu célebre Ensaio sobre a dádiva de 1924. A partir daí, Mauss busca relocalizar o mercado dentro de um sistema mais amplo de trocas que se definem tradicionalmente por elementos morais, religiosos, culturais e políticos. Além do mais, Mauss procurou desnaturalizar a idéia de uma "economia de mercado" baseada nas preferências e utilidades dos indivíduos como sendo a condição primeira da vida social. Demonstra Mauss que a naturalização da economia de mercado se funda numa ideologia utilitarista que elege o homo economicus como a condição natural do ser humano. Mauss desenvolve, então, a teoria da dádiva para mostrar que, se o egoísmo existe (o caráter do homo economicus), constitui apenas uma forma de expressão de um sistema de motivações mais amplo que envolve o interesse por si e também o interesse pelo outro, o interesse livre mas também a ação por obrigação (mesmo que o ator haja sem interesse). Enfim, Mauss propõe que o sistema da dádiva é a forma arcaica sobre a qual se apoiou o desenvolvimento dos mecanismos de escambo, as trocas e os contratos ontem e hoje.
IHU On-Line - É possível essa economia, efetivamente, tornar-se uma alternativa no mundo de hoje?

Paulo Henrique Martins
 – Resgatar uma economia do dom é restaurar o valor da pessoa e a qualidade da relação entre indivíduos e grupos. O dom é um manifesto contra a banalização do ser humano que vem sendo feita pelo projeto neoliberal e a favor da dignidade do ser humano. Apenas pelo resgate da força simbólica contida nas práticas sociais e pela consciência do risco que significa se relacionar com outro ou outros (pela doação, pela recepção e pela retribuição) podemos realçar a atualidade de temas como confiança, reconhecimento, auto-estima, caráter e solidariedade. A emergência de um paradigma da dádiva, sobre a qual se assenta a economia do dom, deve ser vista como expressão de uma reação que se faz lentamente a favor de uma reumanização que recoloque a inovação tecnológica, a riqueza e o poder a serviço de um ser humano compreendido na sua totalidade biossocial e política.
IHU On-Line - Qual é a visão do sociólogo Marcel Mauss?

Paulo Henrique Martins –
 Mauss foi um intelectual ligado ao movimento associacionista do início do século XX, assim como Émile Durkheim, seu tio. Foi admirador e colaborador de Jean Jaurés, líder da SFIO (Seção Francesa da Internacional dos Trabalhadores), tendo escrito e colaborado para os periódicos da esquerda, na época. Além do mais, no plano acadêmico, suas idéias influenciaram enormemente autores como Lévi-Strauss (fundador da antropologia estrutural), George Bataille, Claude Lefort, e mais recentemente Maurice Godelier, Alain Caillé, Jacques Godbout entre outros ilustres intelectuais que vêm trabalhando sobre o dom em diversos domínios.
IHU On-Line - Como entende a condução da economia pelo governo Lula? Houve uma abertura para uma outra alternativa de economia?

Paulo Henrique Martins
 – O Brasil ainda está vivendo uma fase de transição entre três imaginários de modernização: um primeiro imaginário centrado na ação do Estado como agente central da modernização - o desenvolvimentismo -, que foi hegemônico entre os anos cinqüenta e oitenta. Trata-se de uma tendência conservadora, originariamente fundada na transição do rural para o urbano, assentada na grande propriedade e que, recentemente, foi colonizada pela lógica especulativa do capitalismo financeiro. Desse modo, os desenvolvimentistas nutrem um discurso ambivalente entre a bandeira de uma economia nacional (centrada na força do poder central) e a simpatia às políticas especulativas (que favorecem o enriquecimento fácil) desde que não signifiquem enfraquecimento do poder estatal. Uma segunda tendência, abertamente aliada do projeto neoliberal, se situa contra o centralismo do Estado, propondo a minimização das funções do Estado para favorecer o neoliberalismo e o atrelamento do Brasil aos Estados Unidos (tendência presente em vários setores do PFL e do PSDB). Uma terceira tendência, ainda minoritária, que procura um novo paradigma, baseado na solidariedade e no dom, que supere as duas tendências anteriores é favorável à descentralização, à municipalização com consciência dos cidadãos locais, às práticas associativas e comunitárias locais, enfim, à criação de mecanismos descentralizados em forma de redes horizontais que favoreçam a democracia participativa, a democracia da vizinhança e uma nova esfera pública mais transparente. A economia do dom que se manifestar em movimentos de economias plurais, é fundamental para se recriar a economia a partir de um novo valor, o da relação, que deve se impor sobre os valores do uso para consumo ou de troca para acumulação. No governo Lula, o programa que vem apresentando características mais próximas ao ideal de uma economia do dom é o bolsa-família, que procura escapar de uma lógica meramente assistencialista de doação de dinheiro (reforçando a dependência e o clientelismo) para introduzir uma lógica de reciprocidade, pela qual as pessoas beneficiadas pelo programa se vejam como co-responsáveis pela produção da cidadania no plano local. Mas, certamente, esta idéia tem que ser mais bem discutida à luz do paradigma do dom.
IHU On-Line - O que o senhor espera do próximo Presidente da República com relação à economia brasileira? Quais os maiores desafios?

Paulo Henrique Martins
 – O novo presidente tem como primeiro desafio resgatar a dignidade dos humilhados e excluídos. Não se pode assegurar a universalidade da democracia numa sociedade fundada em fortes desigualdades. Em segundo lugar, o novo presidente tem que colocar limite na ambição desenfreada dos mais ricos de ganharem cada vez mais sem preocupações com a pobreza. O que justifica que os bancos tenham percentuais de lucros exorbitantes, que introduzam sempre novas taxações sobre os usuários sem a mínima consideração pelo sofrimento que isso provoca em pessoas que vivem com recursos em geral tão limitados? Por que não existe uma legislação que ponha limite sobre o ganho especulativo desenfreado que constitui uma ameaça à ordem econômica nacional ampliando a desigual distribuição de renda? Certamente, no que toca aos bancos, não me parece que nem Lula nem Alckmin desejem enfrentar a situação. Mas, não há dúvidas de que, no que diz respeito a enfrentar a pobreza, o governo Lula avançou muito com relação aos governos anteriores, em particular o de Fernando Henrique.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

John Holloway: “Nossa força depende da capacidade de dizermos não”

Para autor de Fissurar o capitalismo, é preciso construir outras formas de se viver cotidianamente
Por Adriana Delorenzo
Holloway: “Ser anticapitalista é a coisa mais comum do mundo. Todos sabemos que o capitalismo é um desastre, o problema é que não sabemos como sair daqui, como criar um mundo digno” (Reprodução)
Romper com o mundo como ele é e criar um diferente. Esse é o objetivo de muitos militantes e ativistas. Mas como fazer para construir uma realidade em que não haja Gaza nem Guantánamo nem poucos bilionários e 1 bilhão de pessoas morrendo de fome? O cientista político irlandês, radicado no México, John Holloway traz esse desafio em seu novo livroFissurar o capitalismo (Editora Publisher Brasil). São 33 teses que explicam como criar rupturas no sistema para não continuar a reproduzi-lo. Do idoso que cultiva hortas verticais em sua sacada como forma de revolta contra o concreto e a poluição que o cerca. Do funcionário público que usa seu tempo livre para ajudar doentes com aids. Da professora que dedica sua vida contra a globalização capitalista. São diversos exemplos trazidos pelo autor, de pessoas comuns que recusam a lógica do dinheiro para dar forma a suas vidas. No entanto, após a rejeição, é preciso tentar fazer algo diferente. É aí que surge o problema. “As fissuras são sempre perguntas, não respostas.”
Professor da Universidade Autonôma de Puebla, o trabalho de Holloway tem influência do zapatismo, movimento que há quase 20 anos vem tentando construir esse outro fazer. No México, essas fissuras têm sido criadas, sem que se espere por uma revolução futura. Como trazido em seu primeiro livro traduzido no Brasil, Mudar o mundo sem tomar o poder, Holloway acredita que pensar em revolução hoje é multiplicar essas fissuras. “Uma revolução centrada no Estado é um processo altamente autoantagonista, uma fissura que se expande e se engessa ao mesmo tempo”, diz o autor na obra recém-lançada. Nesta entrevista à Fórum, Holloway fala sobre os novos movimentos que vêm tomando as ruas em diversos países do mundo, inclusive no Brasil.
Leia também:
Ótima hora para Fissurar o capitalismo
Fórum – Em seu novo livro, traduzido no Brasil como Fissurar o capitalismo, o senhor propõe que, por meio da recusa do capitalismo, sejam criadas fissuras dentro do próprio sistema. Poderia dar exemplos de atividades que criam essas “rupturas” no capitalismo?
John Holloway – Os distúrbios das últimas semanas [junho e julho] no Rio de Janeiro, São Paulo, Istambul, Estocolmo, Sofia, Atenas, começaram por razões diferentes, mas acho que, em todas as ruas do mundo, todos estão dizendo o mesmo canto: “O capitalismo é um fracasso, um fracasso, um fracasso!” Ser anticapitalista é a coisa mais comum do mundo. Todos sabemos que o capitalismo é um desastre, que está destruindo a humanidade. O problema é que não sabemos como sair daqui, como criar um mundo digno. Os velhos modelos de revolução não servem, temos de pensar em novas maneiras de conseguir uma mudança revolucionária.
Não é uma questão de inventar um programa, mas de observar como as pessoas já estão rejeitando o capitalismo e tratando de construir outras formas de viver, formas mais sensatas de se relacionar. Há tentativas de uma beleza espetacular, como a dos zapatistas em Chiapas, que há 20 anos estão dizendo: “Nós não vamos aceitar a agressão capitalista, aqui vamos construir outra forma de viver, outra maneira de nos organizarmos.”
Podemos pensar também nas muitas lutas atuais contra mineradoras na América Latina, onde as pessoas estão dizendo claramente: “Nós não vamos aceitar a lógica do capital, vamos defender uma vida baseada em outros princípios, vamos defender a comunidade e a nossa relação com a terra”. Ou mesmo podemos pensar em um grupo de estudantes que concordam em não querer dedicar suas vidas a serem explorados por uma empresa e vão caminhar no sentido contrário, se dedicando a fazer outra coisa, criando um centro social, uma horta comunitária ou qualquer outra coisa.
Podemos pensar nesses diferentes exemplos como rachaduras ou fissuras, como rupturas na estrutura de dominação. Quando nos concentramos nisso, percebemos que o mundo está cheio de fissuras, cheio de revoltas. Todas são contraditórias, todas têm seus problemas, mas a única maneira que eu penso a revolução, hoje, é em termos de criação, expansão, multiplicação e confluência dessas fissuras, desses espaços ou momentos em que dizemos: “Nós não aceitamos a lógica do capital, vamos criar outra coisa”.
Fórum – Em seu primeiro livro publicado no Brasil, Mudar o mundo sem tomar o poder, o senhor critica o estadocentrismo de parte da esquerda. Como é possível provocar mudanças sem tomar o poder do Estado?
Holloway – A maneira mais óbvia para alcançar a mudança é por meio do Estado, e, sim, houve mudanças nos atuais governos de esquerda na América Latina. O problema é que o Estado é uma forma específica de organização que surgiu com o capitalismo e que tem tido a função, nos últimos séculos, de promover a acumulação do capital. O Estado, por seus hábitos e detalhes de seu funcionamento, exclui as pessoas, limitando a sua participação, no caso das democracias, no ato simbólico de votar a cada quatro ou seis anos.
Então, se queremos realizar mudanças dentro do capitalismo, o Estado é uma forma adequada, nada mais.  Sabemos muito bem que o capitalismo é uma dinâmica suicida para a humanidade. Se quisermos ir além do capitalismo, não tem sentido escolher uma forma de organização especificamente capitalista, que exclui sistematicamente as pessoas. É por isso que os movimentos de revolta se organizam de forma diferente, de forma includente, pelas assembleias, conselhos, comunas, formas de organização baseadas na tentativa de articular as opiniões e desejos de todos. A única maneira de romper com o capitalismo é por meio dessas formas anticapitalistas.
Fórum – Do livro Mudar o mundo sem tomar o poder para Fissurar o Capitalismo, o que mudou? Houve algum processo ou movimento que o influenciou?
Holloway – Não houve nenhum movimento específico. Creio que depois de 2001/2002, na Argentina surge uma questão. E agora? Para onde vamos? Como manter o ritmo?
E se tornou mais evidente que não é suficiente gritar nas ruas e derrubar governos. Se depois das manifestações do fim de semana temos que voltar a vender nossa força de trabalho na segunda-feira – ou tentar vendê-la –, não haverá mudado muito.
A nossa força depende da capacidade de dizermos “não”, não só para os políticos, mas também para os capitalistas, que eles vão para o inferno.
Para isso, precisamos desenvolver uma vida que não dependa deles. Parece irreal, talvez, mas é o que as pessoas estão fazendo por todos os lados, por opção ou necessidade. Nas fissuras.
Fórum – Recentemente, vêm ocorrendo muitos protestos no Brasil que questionaram as tarifas dos transportes públicos e os gastos públicos na construção dos estádios para a Copa do Mundo, enquanto as cidades têm vários problemas. O senhor fala em seu livro das fissuras espaciais nas cidades. Por que as cidades seriam um campo fértil para essas fissuras?
Holloway – É a obscenidade do mundo de hoje. Começa com as tarifas de transportes públicos ou gastos públicos, ou corrupção ou destruição de um parque – como em Istambul –, mas o que explode é realmente uma raiva contra um mundo obsceno, um mundo de injustiças grotescas de violência que ultrapassa a compreensão, de destruição sistemática da natureza, um mundo que nos ataca em nossos interesses, mas que também nos insulta como seres humanos. Essas explosões que temos visto nos últimos meses ocorrem mais facilmente em cidades onde a obscenidade do sistema se impõe de forma muito agressiva. Mas o grande desafio é como ir construindo espaços para um mundo não obsceno, que vão contra e para além do capitalismo. Esta luta por um mundo digno é o que chamamos normalmente vida, ou amor, ou revolução.
Fórum – Também vimos vários movimentos que questionam a democracia representativa (os 99% contra os 1%), como Occupy e o 15-M na Espanha.
Holloway – Os movimentos dos indignados e os Occupy são parte da mesma explosão de cansaço e raiva. Temos aceitado este sistema que está nos matando por tanto tempo, mas já basta! É o grito da revolta zapatista de 1994 que está ecoando em um lugar após o outro. Basta! O sistema representativo é parte deste sistema obsceno, não faz nada para mudá-lo, só dá mais força. A desilusão segue na eleição de qualquer governo “progressista” (Lula, Dilma, os Kirchner, Obama), abre nos melhores casos outras perspectivas, as pessoas percebem que a mudança não pode ser feita por meio do Estado e começam a pensar na política de outra maneira.
Fórum – No livro, o senhor aborda a questão do tempo abstrato ou o tempo da futura revolução. Como as novas tecnologias mudam a relação entre o presente e o futuro, aqui e agora, e também do trabalho? Por exemplo, qual é o efeito da transmissão dos protestos em tempo real através da internet?
Holloway – O “Basta!”  rompe com o conceito tradicional que coloca a revolução no futuro. Antes se falava da paciência revolucionária como uma virtude: tinha que ir construindo o  movimento, preparando-se para o grande dia, no futuro, o grande dia que nunca chegou, ou se chegou não foi o que pensávamos que seria. Agora, está claro que não podemos esperar, temos de quebrar o sistema atual, aqui e agora, onde podemos. Temos de quebrar os relógios, rejeitar a homogeneidade, a continuidade e disciplina que eles incorporam. Creio que o uso das novas tecnologias para transmitir os protestos é importante, mas não produz o “Basta”, pode dar uma força contagiante que impressione.  F
Serviço
Fissurar o capitalismo
272 páginas
R$ 35
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SER(ES) AFINS