segunda-feira, 29 de novembro de 2010

‘Gaia sagrada’: as relações entre ecologia, feminismo e cristianismo. Entrevista com Anne Primavesi


Publicado em outubro 6, 2010 by HC
A hipótese Gaia, ou a Teoria de Gaia, propõe que a biosfera e as demais esferas físicas da Terra estão intimamente integradas de modo a formar um complexo sistema interagente estável. Na visão da teóloga inglesa Anne Primavesi, a partir de seus estudos conjuntos com o autor da Teoria de Gaia, James Lovelock, Gaia (ou Mãe Terra, Pachamama etc.) é sagrada, assim como suas inter-relações, que moldam aquilo que somos.
Uma valorização gaiana da criação vê as coisas como elas realmente são, como todos os seres vivos dependem uns dos outros tanto no tocante à possibilidade da vida quanto à sua qualidade”, afirma Primavesi. Por isso, na teologia coevolutiva, cada organismo é valorizado pelo que é em si mesmo.
Porém, a partir de uma perspectiva ecofeminista, a teóloga reconhece que “as mulheres e a natureza têm sido tradicionalmente rebaixadas e ignoradas numa concepção hierárquica do mundo”. A partir dessa concepção, “todos os seres não humanos podem ser usados e abusados para esse fim”, afirma ela, em entrevista gentilmente concedida por e-mail à IHU On-Line, em um delicado período de recuperação pós-operatório.
Nós agora temos de lidar com os efeitos do patriarcado e da desvalorização religiosa dos ‘corpos’ não só sobre as mulheres, crianças e povos indígenas, mas também sobre o corpo da Terra”. Isso exige uma “mudança no clima religioso”, defende. Nesse sentido, como resposta a uma das perguntas desta entrevista, Primavesi enviou à IHU On-Line, com exclusividade, seu “Manifesto pelo Ecofeminismo”, que aqui publicamos pela primeira vez em português. A tradução é de Luís Marcos Sander.
Anne Primavesi é teóloga inglesa, doutora em teologia sistemática, especializada em questões ecológicas. Membro do Centro de Estudos Interdisciplinares da Religião, do Birkbeck College, University of London, já lecionou na Bristol University. É autora de vários livros, incluindo Sacred Gaia (2000), Gaia’s Gift: Earth, Ourselves and God after Copernicus (2003) e Gaia and Climate Change: a Theology of Gift Events (2009). Em português, publicou Do Apocalipse ao Gênesis: Ecologia, Feminismo e Cristianismo (Paulinas, 1996). Após conhecer o cientista James Lovelock, criador da Teoria de Gaia, Primavesi colaborou com ele no primeiro curso do Schumacher College sobre a Teoria de Gaia, em 1991.
[Leia a entrevista na íntegra]IHU On-Line – Em seu livro Sacred Gaia (sem tradução para o português), a senhora discute a teologia a partir de uma perspectiva coevolutiva. A que se refere?
Anne Primavesi – A teologia tradicional classifica tudo numa hierarquia de importância, sendo que a parte superior dela está mais próxima de Deus, e a inferior, mais distante. Uma perspectiva coevolutiva surge de uma compreensão mais profunda e de uma valorização da forma como todos os seres vivos vêm a existir e mantêm sua existência através de uma interligação e interdependência ineludível.
Na teologia coevolutiva:
• cada organismo é valorizado pelo que é em si mesmo;
• o valor de cada organismo “importa” em relação ao todo;
• cada entidade é um ser singular e, por conseguinte, essencialmente inclassificável em graus;
• o valor intrínseco de cada uma se baseia na gratuidade do amor de Deus por ela;
• cada uma está presente e vívida na memória de Deus;
• o valor das criaturas não humanas não reside na forma como contribuem para a qualidade da vida humana; cada uma tem direito à sua própria qualidade de vida;
Como diz o poema, “eu pedi que a árvore me falasse sobre Deus, e ela floresceu”.
IHU On-Line – Ao analisar a relação entre as mulheres e a ecologia, a senhora apresenta as ideias de uma ordem hierárquica e de uma ordem “Gaiana”. Qual é a contribuição do feminino para o cuidado da Criação?
Anne Primavesi – Ao longo das últimas décadas, as ecofeministas expressaram claramente como as mulheres e a natureza têm sido tradicionalmente associadas ao serem rebaixadas e ignoradas numa concepção hierárquica do mundo.
Nessa concepção, os homens estão sujeitos a Deus, as mulheres sujeitas aos homens, os animais sujeitos a ambos, e a própria terra é, simplesmente, o lugar onde nós, seres humanos, realizamos nossa salvação e esperamos o céu. Numa concepção hierárquica, todos os seres não humanos podem ser usados e abusados para esse fim. Esse ordenamento hierárquico valida, conscientemente ou não, relações violentas.
Uma valorização gaiana da criação vê as coisas como elas realmente são, como todos os seres vivos dependem uns dos outros tanto no tocante à possibilidade da vida quanto à sua qualidade. Rotineiramente, talvez não estejamos conscientes do presentear essencial por parte dos muitos seres que possibilitam que nós tenhamos vida. Mas uma consciência mais profunda desse presentear nos refreará para não cometermos excessos de egoísmo e violência que prejudicam a terra, que é o lar de todos os seres vivos.
IHU On-Line – Qual é o impacto das mudanças climáticas sobre a fé e a prática das nossas igrejas hoje? Qual é o papel dos cristãos nesse contexto específico?
Anne Primavesi – A ciência que forma nossa compreensão da mudança climática mostra quão profundamente a humanidade afetou o equilíbrio da vida na terra. Além da perda da biodiversidade, ela adverte que a sobrevivência da própria humanidade corre risco. Isso desafia o pensamento e a prática das igrejas.
Em termos de pensamento, temos de aprender a:
• nos ver e expressar como parte de toda a comunidade da vida na terra;
• ver e tratar a terra como um lar;
• aprender e demonstrar compaixão e respeito por todas as criaturas;
• em encontros litúrgicos, responder com um agradecimento formal, gratidão e respeito pelas dádivas que nos são dadas por todos os seres vivos e tornam possível nossa vida.
Em termos de prática, temos de aprender a:
• descobrir e responder ao valor intrínseco de toda a Criação;
• resistir ao imperialismo, consumismo, colonialismo e violência em nosso pensamento;
• aprender a humildade ecológica, um reconhecimento de nossa dependência do trabalho das muitas criaturas não humanas que mantêm limpo o ar, potável a água e nos fornecem os alimentos que comemos.
IHU On-Line – Em sua opinião, por trás da crise climática, há também uma crise ética e espiritual? Perdemos a nossa capacidade de conviver com os demais seres vivos da Criação?
Anne Primavesi – Não podemos separar o espiritual do ético, ou o social do ecológico. Só podemos fazer essas separações na linguagem, não na realidade. Como pessoa, eu ajo a partir da totalidade de meu ser. As tarefas são as seguintes:
• falar sobre nós mesmas de maneiras que não pressuponham que essa espécie de separação linguística descreva as coisas assim como elas são;
• mediar entre as ideias e a ação, o abstrato e o real.
Por exemplo, quando comemos, não deveríamos simplesmente abençoar a comida. Deveríamos reconhecer que a comida abençoa a nós e responder dando graças por isso. Antes de agradecer a Deus pela comida, deveríamos identificar e estar conscientes daqueles e daquelas cujo trabalho e cuja vida tornam possível que comamos agora e agradecer a eles e elas. E isso não apenas em palavras, mas na forma como vivemos, esperando que eles e elas tenham espaço para vicejar e não os/as considerando simplesmente meios para nossos próprios fins humanos.
IHU On-Line – O “Tempo para a Criação” de 2010 está relacionado com a campanha 10:10:10, que será o dia com o maior número de ações positivas contra as ações climáticas. A partir de que motivações teológicas ou bíblicas essa relação entre fé e ecologia pode crescer ainda mais?
Anne Primavesi – Essas coisas devem ser descobertas e expressas por cada pessoa e cada comunidade. Espero ter notícias das formas de fazer isso que vocês venham a criar durante esse período! O que vocês nos disserem sobre o que encontraram será o presente que darão a todas e todos nós.
Penso que o Manifesto pelo Ecofeminismo (1) poderá ajudar nesse sentido.
Ecofeminismo
Definição
O termo “ecofeminismo” foi cunhado pela autora francesa Françoise d’Eaubonne e apresentado em seu livro Le féminisme ou la mort, publicado em 1974. Ela o usou para designar um tipo específico de movimento ecológico em que a consciência da opressão das mulheres é a principal força motriz.
Características
a) O discurso ecofeminista reúne visões feministas e política ecológica, com base na percepção de que há ligações entre a dominação de pessoas e a dominação da natureza não humana. Ele toma a crítica feminista das relações humanas e a coloca lado a lado com uma análise das relações entre seres humanos e não humanos.
b) As ecofeministas usam uma perspectiva ecológica para apontar em direção à ausência de hierarquia na Natureza e contrapor isto à presunção cultural, comumente aceita, de que uma espécie, a humana, tem o direito de dominar todas as outras.
c) O fato é que nós, seres humanos, não temos condições de viver à parte do resto da Natureza. Cada um de nós está internamente relacionado com todos os aspectos de nosso meio ambiente, e essa relação faz parte do que somos. Inspirando o ar, nós recebemos. Expirando-o, devolvemos. As ciências naturais nos deram informações sobre o meio ambiente global mais amplo: sobre a camada de ozônio, a chuva ácida, o desmatamento e a desertificação e as emissões de dióxido de carbono na atmosfera. Essas informações mostram não só que a Natureza poderia viver inteiramente feliz sem nós, e de fato seria muito mais feliz sem nossa interferência nela. Ao mesmo tempo, estamos ficando cada vez mais conscientes de que o inverso não é verdade: nós não podemos viver fora dos sistemas naturais que sustentam a vida.
d) As descrições culturais masculinas de nós mesmos como seres que estão “fora de” ou “no controle”, não só do meio ambiente, mas também de outros seres vivos nele, foram, entrementes, contestadas, porém não eliminadas. Ao longo de toda a histórica humana ocidental, as mulheres foram rotineiramente classificadas como escravas e tratadas como tais. Isto veio à tona com o movimento público pela emancipação das mulheres. Ele começou nos Estados Unidos com o movimento pela emancipação dos escravos, com a luta por seus direitos a seu próprio corpo, a seus filhos e à propriedade que viessem a adquirir. Então as mulheres se deram conta de que elas também não tinham esses direitos.
Esta lição foi compreendida claramente em 1840, na Convenção Mundial contra a Escravidão realizada em Londres. Elizabeth Cady Stanton e Lucretia Mott, junto com outras delegadas americanas, foram relegadas às galerias na condição de “observadoras”. Indignadas, elas realizaram uma conferência em 1848, em Seneca Falls, para tratar “da condição e dos direitos sociais, civis e religiosos das mulheres”. Os povos indígenas também não têm tido esses direitos. Até 1967, os aborígenes australianos eram juridicamente classificados como “flora e fauna”, isto é, como incapazes de passar da natureza para a cultura.
e) Essa desvalorização das mulheres e dos povos indígenas aconteceu numa cultura secular dominada por uma imagem dos seres humanos (ou, mais precisamente, dos homens) como “mentes”, e numa cultura religiosa dominada por homens que entendiam que seu “espírito” e sua mente controlavam não só seus próprios corpos, mas também, por extensão, os corpos das mulheres, das crianças, dos povos indígenas e, naturalmente, de toda a Natureza material. Isto remonta ao mito da criação de Platão, o Timeu. Sua desvalorização da corporalidade se arraigou no ensino cristão e atingiu seu ápice no conceito do pecado supostamente corporificado em Eva. A mentalidade platônica e a cristã se juntam numa passagem do Apocalipse (lida na festa do dia de Todos os Santos) a respeito dos 144 mil que serão salvos (Apocalipse 7, 1ss.; 14, 1-5). A passagem de Apocalipse 14, 4 sintetiza o ideal a que todos e todas nós deveríamos supostamente aspirar! Entretanto, sabemos que o espiritual só está vivo em nós onde o espírito e a matéria, a mente e o corpo fazem todos parte do mesmo organismo vivo. Nenhum aspecto tem precedência sobre outro, pois eles só podem funcionar juntos como um todo vivo.
f) Há um outro fator nessa história, “a regra dos fisicamente mais fortes”, que liga a sujeição das mulheres com a sujeição da Terra até o presente. Eu o chamo de “militarismo econômico”. Bismarck estava descrevendo o militarismo quando disse que a única realidade política prática é o poder e a única fonte do poder é a força física, ou seja, a capacidade de matar e ferir. Essa “capacidade” era e é um importante e ainda crescente produto de exportação dos países do Norte econômico para os do Sul econômico, a maioria dos quais são ex-colônias. Pois ela era a força física que estava por trás da colonização europeia de outros continentes e sua concomitante cristianização. Atualmente assume a forma de um complexo militar-industrial que continua a crescer, a consumir recursos em todos os sentidos e a deixar a destruição ambiental em sua esteira. Mais uma vez, as mulheres, as crianças, os povos indígenas, os pobres e suas terras são as principais vítimas. O Conselho Mundial de Igrejas, em sua preparação para a Cúpula das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, estabeleceu ligações explícitas entre essas questões em seu programa Justiça, Paz e Integridade da Criação. As ligações delas com a Terra foram ignoradas no programa católico romano Justiça e Paz.
g) Em termos religiosos, o modelo do domínio dos mais fortes é apoiado pelo conceito de hierarquia ou “domínio sagrado”, que é endêmico no cristianismo e nas instituições culturais do Ocidente. De forma literal ou figurada, ele assume a forma de uma pirâmide ou da “Grande Cadeia do Ser”. Em ambas, o Espírito, Deus ou Inteligência não material (mas masculino!) constitui o pináculo e a fonte do poder. O poder flui dele para os homens, e deles para as mulheres, as crianças e os povos indígenas. “Debaixo” de todos esses seres e sujeita a todos os “de cima” está a Terra.
h) As sociedades e instituições hierárquicas valorizam os seres de acordo com a posição que ocupam na pirâmide ou cadeia: Deus/Espírito/Inteligência no topo, e as mulheres, as crianças e a Terra na parte de baixo. Elas estão sujeitas, em termos religiosos e institucionais, ao poder vindo “de cima”, exercido em nome de um Deus todo-poderoso.
Implicações
Todas as características descritas acima ainda podem ser discernidas em nossa atual cultura secular e religiosa. Elas causam impacto sobre nossa autocompreensão e sobre o que é tido como opiniões e comportamentos aceitáveis. Uma conhecida afirmação de Dom Helder Câmara serve como forma de ilustrar esse efeito. Disse ele: “Se dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Se pergunto por que os pobres não têm comida, chamam-me de comunista/marxista”.
Isso pode servir de base metodológica para as críticas ecofeministas:
• se trabalho pelos direitos das mulheres, sou uma militante em defesa dos direitos humanos. Se pergunto por que as mulheres, as crianças e os escravos não têm esses direitos, sou uma filósofa feminista;
• se crio refúgios para mulheres vítimas de maus-tratos ou para vítimas da guerra, sou uma assistente social. Se pergunto por que os abrigos são necessários, sou uma filósofa ética feminista;
• se estudo a posição das mulheres ao longo da história do cristianismo, sou uma historiadora da Igreja. Se pergunto por que elas foram mantidas nessa posição, sou uma teóloga feminista;
• se estudo as inter-relações entre mulheres, povos indígenas e movimentos ecológicos, sou uma cientista social. Se pergunto por que essa inter-relação se baseou na desvalorização e na violência para com os corpos das mulheres e dos povos indígenas e contra o corpo da Terra, sou uma filósofa ecofeminista;
• se faço todas essas perguntas e pergunto que papel o cristianismo desempenhou nisso, sou uma teóloga ecofeminista.
O patriarcado, o domínio dos Pais [Padres], não foi acrescentado à formulação da doutrina cristã. Ele foi introduzido na formulação das próprias doutrinas.
Nós agora temos de lidar com os efeitos do patriarcado e da desvalorização religiosa dos “corpos”, não só sobre as mulheres, crianças e povos indígenas, mas também sobre o corpo da Terra. Esses efeitos são o que passamos a conhecer como “mudança climática”. Eles também exigem uma mudança no clima religioso.
Nota:
1.- O texto, de autoria de Anne Primavesi, foi apresentado na conferência anual da European Network Church on the Move, em Londres, 2009. O manifesto é inédito no Brasil e foi enviado pela autora à redação da IHU On-Line (Nota da IHU On-Line).
(Ecodebate, 06/10/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

sábado, 27 de novembro de 2010

CULTURA GEA - Um manifesto por Marko Pogacnik da Eslovênia

CULTURA GEAUm manifesto por Marko Pogacnik da EslovêniaArtista da Terra, Professor Espiritual e Autor de "Espíritos da Natureza e Seres Elementais"".
www.markopogacnik.com
marko
A Humanidade está casada com Gea, a alma da Terra. Em certo sentido, nós compartilhamos da mesma cama com ela. E, entretanto, nós não cultivamos o nosso amor por ela e com ela. Poderia não ser esta a razão por trás da razão, explicando por que estamos experienciando múltiplas catástrofes, ocultas sob o cenário das Mudanças na Terra?
O conhecimento geomântico que poderia nos ajudar a compreender quão intimamente o corpo do ser humano está relacionado com o corpo da Terra, está quase perdido em nossa cultura. Entretanto, pouco a pouco, estamos reconquistando a experiência dos sistemas vitais da energia que permeiam não somente o corpo humano, mas também o organismo das paisagens da Terra. Ainda mais, estamos nos conscientizando de que a inteligência da natureza é uma e a mesma inteligência que capacita os seres humanos a pensar, a expressar a emoção e a criar interiormente as condições do mundo materializado.
Ainda mais importante é o destino comum que compartilhamos com Gea, dada a realidade de que as nossas evoluções respectivas têm estado entrelaçadas. Como podemos esperar que Gea não mudasse, dada a liberdade que os seres humanos têm como co-criadores no planeta? Não se esperaria que os humanos permanecessem os mesmos seres espirituais após receberem o presente de encarnar na Terra e se experienciarem como seres vivos ancorados na matéria.
É óbvio que o profundo relacionamento e conexão que existem entre Gea e os seres humanos mantêm uma dimensão fatídica que não pode ser "controlada" somente por medidas formais baseadas em conceitos racionais, por exemplo, abordagens atuais ecológicas e econômicas que tratam do aquecimento global. Nós precisamos criar todo um espectro de ferramentas e abordagens, incluindo o desenvolvimento de todos os aspectos de nossa consciência, de modo que possamos renovar o relacionamento entre a humanidade e Gea e nos relacionarmos com a essência da alma da Terra.
Nas últimas décadas estivemos testemunhando as seguintes etapas feitas a nível global em direção a uma cultura sintonizada com a essência da Terra:
1 ) Uma nova consciência e movimento ecológicos representam o primeiro passo básico, sinalizando a vontade da humanidade de mudar a sua atitude em relação ao planeta Terra.
2 ) O próximo passo envolve diversos esforços para criar uma consciência de natureza multidimensional da Terra e sua criação, incluindo seres humanos como parte do cosmos de Gea. Sem estes esforços a arte e a ciência experimental da geomancia estão se desenvolvendo como uma forma de ecologia holística. O objetivo da geomancia é proporcionar a nossa cultura moderna, métodos de compreensão do fluxo das forças da vida, e métodos de perceber as dimensões menos conhecidas da existência.
3 ) A atual crise ecológica e econômica que confronta a nossa civilização exige um terceiro passo, para avançar mais ainda nesta jornada e criar um tipo de cultura associada no planeta. Nós precisamos redescobrir e cultivar as dimensões baseadas no amor que se conectam com os seres humanos e com Gea - e manifestá-las na vida diária. Nós precisamos criar um novo tipo de cultura na Terra que capacitará o desenvolvimento adicional da raça humana, assim como o da Terra, incluindo todos os seus seres e dimensões. Vamos chamar esta cultura futura já evoluída de Cultura de Gea.
Para que sejamos capazes de desenvolver esta Cultura de Gea, precisamos transformar primeiro os nossos conceitos dogmáticos e baseados racionalmente sobre quem é a Terra e quem somos enquanto seres humanos - e mudarmos as nossas normas culturais de acordo com:
1 ) Durante os últimos dois séculos, a humanidade esteve (dolorosa e lentamente) aprendendo a como superar a segregação racial. Mas, tomem cuidado! Não é possível viver em paz com a Terra, contanto que nos relacionemos e tratemos outros seres da Terra como inferiores. Plantas, animais e minerais, incluindo a sua consciência elemental, não estão destinados a ser nossos escravos. Eles representam facetas diferentes da vida, através da qual a nossa parceira, a Terra, está tentando colaborar conosco. Eles representam as faces de Gea, através das quais ela quer se comunicar com a nossa cultura global. Ao invés de instituições democráticas que funcionem somente entre humanos, precisamos criar novas atitudes e estabelecer regras que incluam uma família ampliada e proporcione a cada membro da geocultura emergente, um espaço respeitoso e protegido dentro da comunidade global.
2 ) Não é possível desenvolver uma parceria nova e satisfatória entre a cultura humana e a Terra se nós, seres humanos, não nos esforçarmos em nos tornarmos quem verdadeiramente somos no relacionamento com a nossa essência. O caminho em direção ao auto-conhecimento é o primeiro passo. Aprender a manter permanentemente a paz interior, o centro e a ancoragem, é o segundo objetivo. Nós não hesitaríamos em assumir um terceiro esforço - desenvolver uma prática pessoal baseada eticamente para nos orientar no encontro de desafios diários de nosso mundo global em transição.
3 ) A divisão entre o céu e a Terra, entre o reino do espírito e o reino da vida material, está se tornando insuportável. Há muito que a Terra deixou de ser uma criança imatura do mundo espiritual. A Terra, Gea, deveria ser aceita como um cosmos autônomo, completa em si mesma, incluindo as suas próprias dimensões espirituais. Ao próximo nível de existência, o cosmos da Terra representa então uma unidade holográfica do universo maior.
4 ) Não é possível desenvolver uma parceria nova e satisfatória entre a cultura humana e a Terra, se não há vontade em transformar as concepções religiosas tradicionais que negam a essência divina da Terra e da criação de Gea. O ser humano amadureceu ao ser capaz de uma decisão responsável e livre sobre como se conectar com a essência divina do universo, assim como de se reconectar com ela ou com a sua própria essência. Nós precisamos também nos comprometermos com o segundo passo e encontrar meios de nos relacionarmos com a sacralidade da Terra e com todos os seres de Gea, tanto espiritualmente quanto praticamente. A vontade de se comunicar, de abrir o coração e a mente, e de compartilhar a presença com outros seres, é a base desta jornada sagrada.
5 ) É inevitável que devemos nos engajar criativamente, transformando os nossos sistemas existentes de educação. A sensibilidade natural da criança no relacionamento com todas as dimensões e níveis diferentes da existência, deveria ser protegida e cuidada. A evolução das capacidades racionais pode ter um status secundário. Os seres humanos cuja sensibilidade em relação as diferentes facetas da vida tem sido encorajada e desenvolvida, tornar-se-ão parceiros amorosos da Terra e habitantes co-criativos do cosmos da Terra. Uma clareza evoluída e fortalecida da consciência é parte desta sensibilidade.
6 ) A Terra é um planeta amado de extraordinária fertilidade e abundância vital. Se uma grande parte da humanidade está morrendo de fome, os recursos da Terra não estão sendo administrados apropriadamente. Para mudar esta trágica situação não podemos simplesmente modificar os princípios nos quais a nossa economia global funciona. Como seres humanos, como uma cultura global, precisamos reunir a coragem e a sabedoria para nos abrirmos aos diferentes níveis da Terra multidimensional. Estas dimensões representam as reservas inexauríveis da força da vida acumuladas por Gea. Para fazer isto, naturalmente, devemos superar os bloqueios e preconceitos baseados racionalmente, em relação as assim chamadas dimensões sutis da realidade. Vamos apoiar os esforços em estabelecer um novo paradigma científico que honre a pluridimensionalidade da natureza, da Terra e dos seres humanos.
7 ) A Terra é um planeta consciente com o seu próprio destino e a sua própria tarefa dentro do universo. Gea, a alma da Terra, não é capaz de sustentar e de preservar a vida na superfície da Terra se os seus focos de força da vida e da consciência elemental, ocorrendo em muitas paisagens e locais através do planeta, não forem livres para respirar e operar de acordo com o seu projeto. ( A ignorância da nossa civilização destes aspectos da vida de Gea tem prejudicado e impedido o funcionamento apropriado de muitos destes lugares.) A arte e a ciência da geomancia está sendo desenvolvida de modo que a cultura humana possa adquirir insights na importância crucial do organismo de energia vital, a consciência elemental da Terra e as suas sagradas dimensões com a vida do planeta. Mas todo este conhecimento recentemente descoberto é de pouco uso se não colocado em prática - o que significa primeiramente:
- Desenvolver, perceber e reconhecer a consciência e a essência anímica da natureza, da Terra e dos seus seres.
- Proteger estes lugares na Terra que são de importância decisiva para a vida do planeta e para celebrar a sua sacralidade.
- Apoiar as etapas que Gea, a essência da Terra, está empreendendo para criar um novo espaço da realidade, e ao assim fazer, evitar o colapso destrutivo dos sistemas da vida no planeta.
15 de Fevereiro de 2009, Marko Pogacnik
Editado por Leslie Luchonok

Tradução: Regina Drumond - reginamadrumond@yahoo.com.br

Do que falamos ao falarmos de felicidade. Artigo de Serge Latouche

É preciso remontar à segunda metade do século XVII para encontrar as origens do pensamento econômico que faz coincidir o "bem-estar" [benessere] estatístico com o "bem-ter" [ben avere], embora, no mesmo período, o iluminista napolitano Antonio Genovesi destacou a necessidade de uma economia fundada na busca do bem comum. Temas que são repropostos hoje com grande urgência e que requerem a elaboração de novos códigos e regras.
Publicamos aqui a análise do economista, sociólogo e antropólogo francês Serge Latouche, professor de Ciências Econômicas da Universidade de Paris-Sul e presidente da Associação Linha do Horizonte.
Eis o texto.
Para conceber e construir uma sociedade de abundância frugal e uma nova forma de felicidade é necessário desconstruir a ideologia da felicidade quantificada da modernidade. Em outras palavras, para descolonizar o imaginário do PIB per capita, devemos entender como ele se enraizou.
Às vésperas da Revolução Francesa, quando Saint-Just declara que a felicidade é uma ideia nova na Europa, é claro que não se trata da bem-aventurança celeste e da felicidade pública, mas de um bem-estar material e individual, antessala do PIB per capita dos economistas. Efetivamente, nesse sentido, trata-se justamente de uma ideia nova que surge um pouco em todos os lugares da Europa, mas principalmente na Inglaterra e na França.
A Declaração de Independência do dia 4 de julho de 1776 dos Estados Unidos da América, país em que se realiza o ideal do Iluminismo em um campo considerado virgem, proclama como objetivo: "A vida, a liberdade e a busca da felicidade". Na passagem da felicidade para o PIB per capita, verifica-se uma tripla redução suplementar: a felicidade terrestre é assimilada ao bem-estar material, com a matéria sendo concebido no sentido físico do termo. O bem-estar material é reconduzido ao "bem-ter" estatístico, isto é, à quantidade de bens e serviços comerciais e afins, produzidos e consumidos. A estimativa da soma dos bens e dos serviços é calculada sem descontos, ou seja, sem levar em conta a perda do patrimônio natural e artificial necessária para a sua produção.
O primeiro ponto está formulado no debate entre Robert Malthus e Jean Baptiste Say. Malthus começa comunicando-lhe a sua própria perplexidade: "Se a pena que nos dá por cantar uma canção é um trabalho produtivo, por que os esforços que são feitos para tornar uma conversa divertida e instrutiva e que seguramente oferecem um resultado bem mais interessante deveriam ser excluídos do grupo das produções atuais? Por que não se deveriam incluir nisso os esforços que devemos fazer para moderar as nossas paixões e para nos tornarmos obedientes a todas as leis divinas e humanas que são, sem possibilidade de desmentir, os bens mais preciosos? Por que, em substância, devemos excluir uma ação qualquer cujo fim é o de obter o prazer ou de evitar a dor, seja no momento ou no futuro?".
Materiais e imateriais
Certo, mas é o próprio Malthus depois que observa que essa solução levaria diretamente à autodestruição da economia como campo específico. "É verdade que, de tal modo, poderiam ser incluídas nisso todas as atividades da espécie humana em todos os momentos da vida", nota com justiça. Por fim, adere ao ponto de vista redutivo de Say: "Se depois, junto com Say", escreve Malthus, "desejamos fazer da economia política uma ciência positiva, fundada na experiência e capaz de dar resultados precisos, devemos ser particularmente precisos na definição do termo principal do qual ela se serve (isto é, a riqueza) e compreender nele somente aqueles objetos cujo aumento ou diminuição sejam tais que possam ser avaliados. E a linha mais óbvia e útil a ser traçada é a que separa os objetos materiais dos imateriais".
De acordo com Jean-Baptiste Say, que define assim a felicidade do consumo, há não muito tempo, Jan Tinbergen propunha que se rebatizasse o PNB [Produto Nacional Bruto] simplesmente como FNB [Felicidade Nacional Bruta]. Na realidade, essa pretensão arrogante do economista holandês é só um retorno às fontes.
Se a felicidade se materializa em bem-estar, versão eufemizada do "bem-ter", qualquer tentativa de encontrar outros indicadores de riqueza e de felicidade seriam vãos. O PIB é a felicidade quantificada. É fácil condenar essa pretensão de equiparar felicidade e PIB per capita, demonstrando que o produto interno ou nacional mede só a "riqueza" comercial.
Com efeito, do PIB, são excluídas as transações fora do mercado (trabalhos domésticos, voluntariado, trabalho informal), enquanto, pelo contrário, os custos de "reparação" são contadas positivamente, e os danos gerados (externalidades negativas) não são deduzidos, nem a perda do patrimônio cultural. Diz-se ainda que o PIB mede os outputs ou a produção, não os outcomes ou os resultados. É apropriado lembrar o belíssimo discurso de Robert Kennedy (escrito provavelmente por John Kenneth Galbraith), pronunciado alguns dias antes do seu assassinato: "O nosso PIB (…) inclui a poluição do ar, a publicidade dos cigarros e as corridas das ambulâncias que recolhem os feridos nas ruas. Inclui a destruição das nossas florestas e o desaparecimento da natureza. Inclui as napalms e o custo da estocagem dos rejeitos radioativos. Em compensação, o PIB não contabiliza a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação, a alegria dos seus jogos, a beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos matrimônios. Não leva em consideração a nossa coragem, a nossa integridade, a nossa inteligência, a nossa sabedoria. Mede qualquer coisa, mas não aquilo pelo qual a vida vale a pena ser vivida".
A sociedade econômica do crescimento e do bem-estar não realiza o objetivo proclamado pela modernidade, isto é: a maior felicidade para o maior número de pessoas. Constatamos isso claramente: "No século XIX, nota Jacques Ellul, a felicidade está ligada essencialmente ao bem-estar, obtido graças a meios mecânicos, industriais, e graças à produção. (…) Uma tal imagem da felicidade nos levou à sociedade do consumo. Agora que sabemos por experiência que o consumo não faz a felicidade, conhecemos uma crise de valores".
O fato é que, na redução economicista, como observa Arnaud Berthoud, "tudo aquilo que faz a alegria de viver juntos e todos os prazeres do espetáculo social onde cada um se mostra aos outros em todos os lugares do mundo – mercados, laboratórios, escolas, administrações, ruas ou praças públicas, vida doméstica, lugares de diversão... – são removidos da esfera econômica e colocados na esfera da moral, da psicologia ou da política. A única felicidade que ainda se pode esperar do consumo está separada da felicidade dos outros e da alegria comum". (...)
O projeto de uma "economia" civil ou da felicidade desenvolvido principalmente por um grupo de economistas italianos (representado principalmente por Stefano Zamagli, Luigino Bruni, Benedetto Gui, Stefano Bartolini e Leonardo Becchetti) se reconecta à tradição aristotélica e traz sua origem de uma crítica ao individualismo. A construção de uma tal economia ressuscita a "felicidade pública" de Antonio Genovesi e da escola napolitana do século XVIII que o triunfo da economia política escocesa rejeitou.
A felicidade terrestre, à espera da bem-aventurança prometida aos justos no além, gerada por um governo reto (bom governo) que busca o bem comum, era, com efeito, o objeto de reflexão dos Iluministas napolitanos. Integrando o mercado, a concorrência e a busca por parte do sujeito comercial de um interesse pessoal próprio, eles não repudiavam a herança do tomismo. Esses teóricos da economia civil são perfeitamente conscientes do "paradoxo da felicidade" redescoberto pelo economista norte-americano Richard Easterlin. "É lei do universo – escrevia Genovesi – que não se pode fazer a nossa felicidade sem fazer a dos outros".
Foram necessários dois séculos de destruição frenética do planeta graças ao "bom governo" da mão invisível e do interesse individual elevado a divindade para redescobrir essas verdades elementares. (...)
Mercadorias fictícias
Como Baudrillard havia visto bem em seu tempo, "uma das contradições do crescimento é que ele produz bens e necessidades ao mesmo tempo, mas não os produz no mesmo ritmo". Resulta disso aquilo que ele chama de "uma pauperização psicológica", um estado de insatisfação generalizada, que, diz, "define a sociedade de crescimento como o oposto de uma sociedade da abundância".
A frugalidade reencontrada permite reconstruir uma sociedade da abundância com base naquilo que Ivan Illich chamava de "subsistência moderna". Isto é, "o modo de vida em uma economia pós-industrial dentro da qual as pessoas conseguiram reduzir sua própria dependência com relação ao mercado e fizeram isso protegendo – com meios políticos – uma infraestrutura em que técnicas e instrumentos servem, essencialmente, para criar valores de uso não quantificado e não quantificável pelos fabricantes profissionais de necessidades".
Trata-se de sair do imaginário do desenvolvimento e do crescimento e de reencaixar o domínio da economia no social por meio de uma Aufhebung (remoção/superação).
Porém, sair do imaginário econômico implica em rupturas muito concretas. Será necessário fixar regras que enquadrem e limitem a explosão da avidez dos agentes (busca do lucro, do sempre mais): protecionismo ecológico e social, legislação do trabalho, limitação da dimensão das empresas e assim por diante. E, em primeiro lugar, a "desmercantilização" daquelas três mercadorias fictícias que são o trabalho, a terra e a moeda.
Sabe-se que Karl Polanyi via na transformação forçada desses pilares da vida social em mercadoria o momento fundante do mercado autorregulador. A sua retirada do mercado mundializada marcaria o ponto de partida de uma reincorporação/reenxerto da economia no social.
Paralelamente a uma luta contra o espírito do capitalismo, será oportuno, portanto, favorecer as empresas mistas em que o espírito do dom e a busca da justiça mitiguem a aspereza do mercado. Certamente, para partir do estado atual e alcançar a "abundância frugal", a transição implica em novas regras e hibridizações, e, nesse sentido, as propostas concretas dos altermundialistas, dos defensores da economia solidária até às exortações à simplicidade voluntária podem receber o apoio incondicional dos partidários do decrescimento.
Se o rigor teórico (a ética da convicção de Max Weber) exclui os compromissos do pensamento, o realismo político (a ética da responsabilidade) pressupõe o compromisso pela ação. A concepção da utopia concreta da construção de uma sociedade de decrescimento é revolucionária, mas o programa de transição para alcançá-la é necessariamente reformista. Muitas propostas "alternativas" que não reivindicam explicitamente o decrescimento podem, assim, felizmente, encontrar lugar dentro do programa.
O espírito do dom
Um elemento importante para sair das aporias da superação da modernidade é a convivialidade. Além de enfrentar a reciclagem dos rejeitos materiais, o decrescimento deve se interessar pela reabilitação dos marginalizados. Se o melhor descarte é aquele que não é produzido, o melhor marginalizado é aquele que a sociedade não gera. Uma sociedade decente ou convivial não produz excluídos.
A convivialidade, cujo termo Ivan Illich toma emprestado do grande gastrônomo francês do século XVIII Brillat Savarin ("A fisiologia do gosto. Meditações sobre gastronomia transcendental") visa justamente a refazer o laço social desfeito pelo "horror econômico" (Rimbaud). A convivialidade reintroduz o espírito do dom no comércio social ao lado da lei da selva e retoma assim a philia (amizade) aristotélica, lembrando ao mesmo tempo o espírito da ágape cristã.
Essa preocupação se reconecta plenamente à intuição de Marcel Mauss que, em seu artigo de 1924, "Apreciação sociológica do bolchevismo", defende, "sob o risco de parecer antiquado", que se deve voltar "aos velhos conceitos gregos e latinos de caritas (que hoje traduzimos tão mal com caridade, de philia, de koinomia, dessa 'amizade' necessária, dessa 'comunidade', que são a essência delicada da cidade".
É importante também desconjurar a rivalidade mimética e a inveja destrutiva que ameaçam toda sociedade democrática. O espírito do dom, fundamental para a construção de uma sociedade de decrescimento, está presente em cada uma dos Rs que formam o círculo virtuoso proposto para dar vida à utopia concreta da sociedade autônoma. Principalmente no primeiro R, reavaliar, já que indica a substituição dos valores da sociedade comercial (a concorrência exacerbada, o cada um por si, o acúmulo sem limites) e da mentalidade predadora nas relações com a natureza, com os valores de altruísmo, de reciprocidade e de respeito ao ambiente.
O mito do inferno de longos tridentes com o qual se abre a segunda parte do livro "La scommessa della decrescita" [A aposta do decrescimento] é explícito: a abundância combinada ao "cada um por si" produz miséria, enquanto a divisão, mesmo na frugalidade, gera satisfação em todos, até alegria de viver.
O segundo R, reconceitualizar, insiste, pelo contrário, na necessidade de repensar a riqueza e a pobreza. A "verdadeira" riqueza é feita de bens relacionais, aqueles fundados justamente na reciprocidade e na não rivalidade, no saber, no amor, na amizade. Pelo contrário, a miséria é principalmente psíquica e deriva do abandona na "multidão solitária", com a qual a modernidade substituiu a comunidade solidária. (...)
É imperativo reduzir o peso do nosso modo de vida na biosfera, reduzir a pegada ecológica cujos excessos se traduzem em empréstimos pedidos às gerações futuras e ao conjunto do cosmos, mas também ao Sul do mundo. Portanto, temos a obrigação de dar em troca aquilo que se encontra no centro da maior parte dos outros três Rs: redistribuir, reduzir, reutilizar, reciclar.
Redistribuir remete à ética da divisão. Reduzir (a própria pegada ecológica), à recusa da predação e do acúmulo. Reutilizar, ao respeito pelo dom recebido. E reciclar, à necessidade de restituir à natureza e à Gaia aquilo que foi tomado de empréstimo delas.
Autor: Serge Latouche
Fonte: Il Manifesto e Unisinos

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Desenvolvimento Sustentável: É possível? Por Marcus Eduardo de Oliveira*,




*para a Adital


Em seu mais recente livro "Cuidar da Terra, Proteger a Vida", Leonardo Boff assevera que: "Em 1961, precisávamos de metade da Terra para atender às demandas humanas. Em 1981, empatávamos: precisávamos de uma Terra inteira. Em 1995 ultrapassamos em 10% sua capacidade de reposição, mas era ainda suportável".

No entanto, os alarmes disparados continuaram anunciando a expansiva agressão sofrida pela Terra. O calendário marcava o dia 23 de setembro de 2008 vaticinado pelos estudiosos como o Earth Overshoot Day, ou seja, o dia da ultrapassagem da Terra. A partir dessa data constatou-se, em escala universal, que a Terra ultrapassou em 30% sua capacidade de suporte e reposição.

A partir disso, o que pensar, o que fazer? Continuar de forma desenfreada a exploração/dilapidação dos recursos naturais sem limites ou fazer a reversão de forma rápida? Continuar priorizando o mercado que exige mercadorias diversificadas a todo instante ou olhar com respeito e atenção redobrada para a qualidade de vida? Continuar com a prédica traçada desde os trabalhos seminais das ciências econômicas que pontuam que crescimento econômico é remédio eficaz para a cura dos males sociais ou fazer com que essa mesma ciência esteja submetida ao projeto de vida, cuja essência é a qualidade e não a quantidade?

Respostas a essas dúvidas estão soltas por aí, embora haja mais dissenso que consenso em matéria de se pensar a intrincada relação economia - natureza -recursos - desejos - produção - consumo.

Eric Hobsbawn, um dos maiores intelectuais do século XXI, a esse respeito já se posicionou: "Ou ingressamos num outro paradigma ou vamos de encontro à escuridão". Por outro paradigma, o renomado historiador quer dizer que não basta fazer mudanças no sistema, é preciso mudar o sistema.

Destruir a natureza em troca dos apelos da voracidade do mercado de consumo é, antes disso, destruir as teias que sustentam a vida. O mercado, assim como toda a economia, depende de algo que está acima de tudo isso: a natureza. A economia, como atividade produtiva, é apenas um subproduto do ambiente natural e depende escandalosamente dos mais variados recursos que a natureza emana. Nós, seres humanos, como todos os seres vivos, somos partes e não o todo desse ambiente natural que contempla a riqueza do viver.

É forçoso ressaltar que não estamos na Terra; somos a Terra. Não ocupamos a natureza como meros partícipes dela; somos a própria natureza a partir do fato de sermos feitos de poeira estelar. Dependemos da natureza, das terras agricultáveis, da água, do ar, do sol, da chuva, do fitoplâncton (algas microscópicas unicelulares) e dependemos das estrelas. Isso não é prosa nem verso; é fato! São as estrelas, com uma capacidade ímpar de brilhar e, por isso, com o poder de nos afastar o medo da noite, que convertem hidrogênio em hélio pela fusão nuclear e, dessa combinação, permite-se aflorar o potássio, o oxigênio, o carbono, o ferro que vão se localizar nos aminoácidos (unidades químicas que compõem as proteínas) e nas proteínas (que formam os músculos, os ligamentos, os tendões, as glândulas, enfim, que permitem o crescimento ósseo). Sem isso a vida não seria possível. Somos natureza ainda por razões filológicas (estudo científico de uma língua). Não por acaso, somos originários do Adão bíblico (Adam, em hebraico, significa "Filho da Terra"), ainda que isso seja puramente metafórico. Somos natureza quando nos damos conta ainda de que pelo aspecto filológico a palavra homem/humano vem de "húmus", cujo significado é "terra fértil".

Cada vez que percebemos avançar esses assuntos, mais ainda vamos aprofundando a importância do tema. As preocupações ecológicas, vistas num passado não muito distante como apenas retóricas românticas, hoje, para nossa felicidade, ocupam a agenda das principais lideranças governamentais.

Em certa medida, parece ser consenso que estamos falando de uma perspectiva que envolve, na essência, a manutenção da vida pelos íntimos laços que temos para com a mãe Terra, também chamada Gaia.

Isso é do interesse de todos e de todas, e não mais dos praticantes da militância verde - os primeiros a chamar a atenção para esses graves assuntos.

Nesse pormenor, é oportuno resgatarmos a argumentação do educador canadense Herbert M. McLuhan (1911-1980): "Na espaçonave Terra não há passageiros. Todos somos tripulantes".

A economia, sendo um espaço de conhecimento das ciências humanas, não pode prescindir de ajudar na disseminação de um discurso em prol da vida, e não a favor do deus mercado como tem sido freqüente desde o surgimento da Escola Clássica no século XVIII.

Discutir desenvolvimento pelas lentes das ciências econômicas é, antes de mais nada, pensar em aspectos qualitativos, e não na atual dimensão econômica dos projetos que apontam, unicamente, para o aspecto quantitativo. Perceber a economia apenas pela quantidade de coisas produzidas é um erro abissal que somente tem feito provocar ainda mais a cultura do desperdício e da falta de parcimônia em matéria de regular a atividade produtiva, ao passo que aprofunda o consumismo, essa chaga do sistema capitalista.

Ainda hoje, mesmo diante dos mais contundentes e acirrados discursos sobre a grave crise ambiental que se estabelece, apresenta-se como sendo uma boa política econômica aquela capaz de fazer o PIB subir, independente se esse crescimento se dará nas bases da exploração/destruição ambiental.

Esquecem ou ignoram os apedeutas que tudo que cresce muito, ou explode ou esparrama. Explodir, esparramar, significa, grosso modo, perdas, desperdícios. Crescer por crescer é a base das células cancerígenas. A economia não pode mais trilhar esse caminho. Isso leva à morte. Ora, isso não é solidificável; é altamente destrutível. O caminho de qualquer economia que apenas prioriza e faz de tudo para atender aos ditames do mercado que clama por mais produção e consumo, atingindo picos de crescimentos inimagináveis, é por todos conhecido: destruição, desmatamento, poluição, escassez, extinção das espécies.

É em nome desse modelo perverso e criminalmente responsável por mortes que o mercado é abastecido enquanto a natureza é descapitalizada, ao passo que a vida é posta em risco. Uma hora qualquer - e que não seja tarde demais - alguém irá perceber que as palavras do cacique Seatlle ditas ao governante norte-americano em 1854 estavam pontualmente certas: "(...) Eles vão perceber que não dá para comer dinheiro".

Para o bem de todos é necessário aludir que não se pode medir crescimento de uma economia quando se derruba uma árvore, se polui um rio, se contamina uma nascente. Isso tem outro nome: insanidade.

Não há economia que prospere sustentavelmente nas bases dessa patologia. Para atenuar esse discurso, os economistas modernos criaram a expressão desenvolvimento sustentável. No entanto, não são poucos os que cometem outro equívoco na vã esperança de que essa palavra mágica (sustentável) seja de fato algo aplicável.

Todavia, resta-nos indagar: sustentável para quem? Como? Quando? Onde? A continuar a exploração desenfreada, não é possível sustentar esse crescimento. Logo, a expressão é, por si, falaciosa. Num projeto de desenvolvimento que se pauta pelas linhas mestras da competição, não é factível que seja algo sustentável, uma vez que essa competição, feita pelos mecanismos conhecidos, apenas produz exclusão à medida que uns poucos ganham e triunfam sobre a derrota de centenas de milhões de pessoas.

Se milhares são (e serão cada vez mais) os que engrossam (e vão engrossar) as fileiras da miséria e da penúria, como é possível afirmar se tratar de desenvolvimento sustentável? Só há sustentabilidade quando todos/todas participam, sem exclusão. Exclusão é conceito que não combina com a abrangência do termo sustentabilidade.

Ademais, argumenta-se, insistentemente, que o desenvolvimento sustentável é exeqüível, pois, um belo dia, a natureza irá responder pelas demandas dos recursos renováveis. Esquecem-se os que assim argumentam que o universo é finito; não aumentará de tamanho. Os recursos, muitos deles, vão acabar; muitos não são renováveis.

Assim, uma vez mais é oportuno chamar a atenção de que o termo "sustentável" é pouco confiável. L. Boff refletindo sobre isso no livro citado no início dessas palavras pondera que "(...) sustentabilidade deve ser garantida, primeiramente, à Terra, à humanidade como um todo, à sociedade e a cada pessoa". A economia (ciência) em seus poucos mais de 230 anos precisará avançar muito ainda para englobar com primazia esse termo em seus predicados. Exclusivamente pelas raias da competição nada se conseguirá.

De toda sorte, a escala de valores que deve predominar então, caso queiramos priorizar a vida, deve incluir a cooperação, a partilha, a solidariedade, a comunhão, o compartilhamento. Definitivamente, o projeto econômico precisa estar à serviço da vida em suas dimensões, incluindo, principalmente, a perspectiva ecológica. Urge pensarmos na perspectiva de que o modelo aí posto está errado e já passou da hora de propor alternativa. A vida tem pressa e o relógio do tempo passa rápido demais.

* Economista brasileiro, especialista em Política Internacional. Articulista do site "O Economista", do Portal EcoDebate e da Agência Zwela de Notícias (Angola)
IMAGEM
Crédito: 
Jarbas Domingos de Lira Jr.

(Envolverde/Adital)


Os paradoxos do consumo - Isleide A. Fontenelle*








*Professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas. E-mail: isleide.fontenelle@fgv.br

Resenha:

A FELICIDADE PARADOXAL: ENSAIO SOBRE A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO
De Gilles Lipovetsky
São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 402 p.
Os textos do filósofo francês Gilles Lipovestky estão disponíveis aos leitores brasileiros há duas décadas. Desde o final dos anos 1980, com a publicação de seu excelente livro O império do efêmero (Companhia das Letras, 2ª edição, 1989) – um estudo da moda como fenômeno ocidental moderno –, o autor aborda fenômenos como a moda, o luxo, o lazer, a mídia, a publicidade, o consumo, que servem de fio condutor para a teorização sobre o individualismo, a alienação, a liberdade, a felicidade. Polêmico por propor uma leitura mais tolerante da cultura de consumo, defende que a lógica sedutora da mercadoria manipula, mas também pode ser um mecanismo de emancipação dos sujeitos. Já foi classificado por seus críticos como um autor pós-moderno por, de fato, ter tomado esse conceito como categoria explicativa para uma nova condição social e histórica das sociedades ocidentais. Entretanto, em seus últimos escritos, como em Os tempos hipermodernos (BARCAROLLA, 2004), assume que o pós-moderno foi um estágio passageiro da hipermodernização do mundo, ou seja, de uma intensificação de fenômenos que sempre caracterizaram a modernidade, tais como o individualismo.
Seu mais recente livro remete-nos aos paradoxos da felicidade. Contudo, o subtítulo revela mais claramente a essência do texto: uma reflexão sobre a constituição da sociedade de hiperconsumo; e sobre a possibilidade ou não de realização da promessa moderna de felicidade, caracterizada como ideal supremo de nossa época. Na aparência, essa sociedade não difere muito da sociedade de consumo da segunda metade do século XX, denominada pelo autor "civilização do desejo"; mas o olhar atento de Lipovetsky capta e discute os sinais, funcionamento e impacto de uma nova etapa.
Para caracterizar o atual estágio de consumo, Lipovetsky reconstitui a história das diferentes fases do capitalismo de consumo. O primeiro ciclo, iniciado por volta dos anos 1880, avança até a Segunda Guerra Mundial. Trata-se da constituição da produção e do consumo de massa, da invenção do marketing e da construção do consumidor moderno, surgindo o consumo-sedução e o consumo-distração, dos quais ainda somos herdeiros fiéis.
O segundo ciclo começa por volta de 1950 e se consolida ao longo das três primeiras décadas do pós-guerra. Chamado período áureo do capitalismo keynesiano, é considerado por Lipovetsky como o modelo mais puro da sociedade de consumo de massa. Nele, ocorrem a revolução comercial sem precedentes e o início das novas estratégias do marketing de segmentação de mercado, baseadas em fatores demográficos e socioculturais. Aqui, Lipovetsky demonstra a relação que pretende estabelecer entre felicidade e consumo, considerando que essa sociedade é guiada pela idéia de progresso como sinônimo de melhoria das condições de vida. Por sua vez, a felicidade liga-se a um cotidiano confortável, em função dos objetos de consumo. Para Lipovetsky, o esgotamento desse ciclo dá lugar a uma nova fase na história do consumo: a do hiperconsumo.
A sociedade do hiperconsumo caracteriza-se pela amplificação da mentalidade de consumo das etapas anteriores, chegando aos espaços até então considerados não mercantilizáveis – tais como a família, a escola, a ética etc. Trata-se do estágio de erosão de qualquer referência institucional e da emergência de um novo tipo de consumo subjetivo, emocional ou experiencial, muito mais voltado para a satisfação do eu do que para a exibição social e a busca de status, anseios que teriam caracterizado a segunda fase.
Assim é que o objetivo do hiperconsumidor é "tornar a existência materialista mais qualitativa e mais equilibrada", sem abrir mão das vantagens do mundo moderno. Não há nada de ascético na nova espiritualidade new age. Pelo contrário, "os ideais de renúncia ao mundo foram trocados pelas técnicas de auto-ajuda que supostamente proporcionam a uma só vez êxito material e paz interior, saúde e confiança em si [...], em outras palavras, a felicidade interior, sem que seja preciso renunciar ao que quer que seja de exterior (conforto, sucesso profissional, sexo, lazeres)" (p. 351). Paradoxos, enfim...
Emergem, também, as novas formas de consumo "responsável". A recusa a um "consumismo sem consciência" é um exemplo claro do hiperindividualismo que caracteriza essa terceira fase do consumo em que vivemos. O "consumo consciente" significa consumir melhor, com mais qualidade e de forma mais responsável para com o meio ambiente, representando uma "forma de suspeita em relação às grandes instituições, à reflexividade dos comportamentos individuais, às buscas qualitativas" (p. 345). Isto é, consome-se, aspirando à autonomia subjetiva – traduzida como um direito de escolha e de responsabilização pessoal por essas escolhas – e negando-se a imagem do "fantoche-consumidor" alienado da primeira e segunda fases da sociedade de consumo.
Mas, nessa pretensa autonomia, há uma dependência do consumidor com relação à dimensão imaginária das marcas, devido ao poder que essas teriam em direcionar as escolhas dos nossos objetos de consumo. As marcas assumem o lugar de uma "autoridade" sobre a desorientação e as dúvidas com relação a que escolhas fazer em um tipo de sociedade na qual os estilos de vida e os medos de perigos reais se multiplicam, tais como os riscos de uma hecatombe ambiental, as formas de violência urbana, dentre outros. Trata-se, em suma, de mais um paradoxo apontado pelo autor, pois o hiperconsumidor que adquire a autonomia e a responsabilidade pelos seus atos de consumo, também deve se haver com a impotência sobre o controle do próprio corpo ou do meio em que vive, prova da multiplicação de marcas e especialistas em nos dizer como devemos conduzir melhor nossas mais íntimas escolhas.
Na segunda parte do livro, questionam-se os paradoxos de uma época na qual nunca se teve tanto acesso às benesses do consumo e, portanto, à felicidade que sempre esteve a ele atrelada, ao mesmo tempo em que também emergem tipos inéditos de conflitos, sob a forma de ansiedades, depressões, pânicos, carências de auto-estima. Aqui, as "pílulas da felicidade" assumem lugar central para a solução dos nossos problemas, e a busca da felicidade "se abriga sob a égide da intervenção técnica, do medicamento, das próteses químicas" (p. 57). O autor nos faz ver que, muitas vezes, essas formas de consumo acabam por ocultar ou negar o enfrentamento dos nossos reais problemas.
Lipovetsky chega mesmo a reconhecer a positividade presente na superficialidade consumista ao admitir que o consumo representa uma fonte real de satisfação, mesmo não sendo sinônimo de felicidade. Daí a idéia de uma "felicidade paradoxal". Como esclarecer tal paradoxo? O autor retorna à utopia da felicidade para demonstrar que a "ideologia do capitalismo de consumo" constituiria apenas uma etapa tardia da crença no alcance da felicidade pelo progresso técnico. Assim, a sociedade do hiperconsumo também teria se desenvolvido em nome da busca da felicidade.
É como se o autor dissesse que o problema não estaria no consumo em si. Esvaziada de valores, resta à sociedade depositar no consumo os ideais de moralidade, ética, solidariedade, enfim, de felicidade. Tratar-se-ia, portanto, de não demonizar o consumo, mas de desinvesti-lo de um ideal fadado ao fracasso. Afinal, "quem fala da felicidade com freqüência tem os olhos tristes", já dizia o poeta francês Louis Aragon. Embora não dê razão ao poeta, Lipovetsky escorrega em seus próprios paradoxos, ao admitir que haja algo de impossível, de sofrido, de inconsciente, de incontrolável na experiência da felicidade.
Se a promessa de felicidade da sociedade de hiperconsumo se impõe como nosso horizonte único, por que não a aceitar como "um complexo de mitos, de sonhos, de significações imaginárias que, impulsionando objetivos e confiança no futuro, favorece a reoxigenação de um presente muitas vezes esgotado..." (p. 339) por todas as promessas não cumpridas da modernidade?
Trata-se de uma aposta paradoxal, que requer escolhas e riscos. Dilemas, sem dúvida, próprios de uma sociedade de hiperconsumo.
 

Você tem que se decidir: a árvore ou o PIB? Entrevista com Devinder Sharma


Publicado em novembro 26, 2010 by admin
O “Chomsky Verde” não poupa palavras para alertar sobre a crise invisível da fome. Claro e incisivo em suas opiniões, Devinder Sharma é o tipo de entrevistado que coloca o editor numa situação complicada. Pinçar o mais importante entre tantas colocações cruciais torna-se um desafio técnico.
Devinder Sharma, 55 anos, é jornalista, escrevendo e mantendo colunas em um punhado de jornais editados em diferentes línguas indianas – e freqüentemente é solicitado para foros de debate e entrevistas, inclusive pela rede americana CNN. Sharma mantém seu blog “Ground Reality”, Realidade Nua e Crua, numa tradução livre, focado no debate sobre políticas para alimentação, agricultura e fome (http://devinder-sharma.blogspot.com/) – visitado por dezenas de milhares de internautas em todo o mundo, sobretudo formadores de opinião.
Sharma mora em Nova Deli, onde dirige uma iniciativa independente chamada Foro para a Biotecnologia e Segurança Alimentar. Autodefine-se como um “analista sobre políticas para alimentação e comércio”. Tem formação agronômica, sendo reconhecido estudioso e pensador sobre o desenvolvimento, a sustentabilidade e a fome, tema de livros que tem publicado. Chomsky Verde foi o apelido que ganhou do semanário indiano The Week no ano passado pela similaridade de sua postura crítica ampla e aguda com a do famoso lingüista e pensador americano Noam Chomsky. Devinder Sharma ainda encontra tempo para constantes visitas e debates em comunidades rurais de seu país.
A passagem recente pelo Brasil aprofundou sua análise sobre o país. As conclusões são pouco lisonjeiras. Confessa-se “assombrado diante do modo como as empresas de agronegócio, incluindo gigantes internacionais, controlam a economia brasileira”, sem entender como o Brasil, com todo o “vasto celeiro de biodiversidade e riqueza genética que possui”, prefere um modelo de desenvolvimento rural que “marginaliza as comunidades rurais e deixa rastros profundos de destruição ecológica”.
Em tempos de crise financeira mundial e emergências globais, Sharma denuncia o aumento da fome no mundo e acentua o protagonismo popular na superação das crises, lembrando Ghandi – “Ele nos disse que se faz necessário um sistema de produção pelas massas e não para as massas”. Não faz por menos, detona em série com os modelos atuais de desenvolvimento – “a ‘economia do crescimento’ que as economias emergentes perseguem é, na realidade, nada mais que economia da violência”; com o endeusamento do PIB – “é uma cortina de fumaça para que o rico explore o pobre”; com o capitalismo wallstreetiano – “levará o mundo na direção da extinção da espécie humana”; com a democracia tal como se apresenta hoje no mundo, com a ONU, sobrando ainda para os economistas.
Apresentado por colega comum de rede de discussão ao jornalista free lancer baiano Eduardo Almeida, Sharma concedeu a entrevista pela internet.
O senhor esteve por sete dias no Brasil recentemente. Esse país tem estado em evidência em temas contraditórios que são objeto de suas preocupações: a luta contra a fome e o agronegócio de grande escala com elevado apetite por desmatamento e organismos geneticamente modificados (OGMs). O que mais lhe chamou a atenção no Brasil?
Devinder Sharma: Eu vim ao Brasil a convite da AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, ONG brasileira dedicada à agroecologia e agricultura familiar) para participar de uma conferência internacional, no Rio de Janeiro, sobre alimentos e lavouras geneticamente modificados. A conferência congregou ativistas, especialistas, ONGs, representantes governamentais e de organizações de produtores da Índia, Brasil e África do Sul – nações que formam o IBSA –, além de outros países. Em certo sentido, o evento foi focado em fortalecer o movimento anti-transgênicos no Brasil. Sabendo que o Brasil vem adotando crescentemente lavouras geneticamente modificadas, e já tomou o lugar da Argentina como país com maior área de lavouras GM (geneticamente modificadas) na América do Sul, foi importante ter um uma compreensão, em primeira mão, das razões que estão por trás dessa crescente difusão das lavouras GM, e, ao mesmo tempo, conhecer a luta das pessoas contra esse tipo de agricultura.
Além disso, na semana em que estive no Brasil, busquei informações sobre duas outras áreas de meu interesse. Uma se relaciona ao Programa Fome Zero, que o presidente Lula lançou entre 2003 e 2004, e a outra diz respeito à formidável reviravolta que o Brasil realizou em desenvolver gado puro de algumas raças indianas e ainda se tornando importante exportador dessas raças para a América Latina, África e Ásia. Essas raças bovinas proporcionam rendimentos em leite comparáveis às raças Jersey e holandesa, enquanto suas primas pobres na Índia são tachadas de ‘improdutivas’, com capacidade de produção de leite muito baixa.
As crescentes ações do Brasil em outros países tropicais, especialmente da África e América Latina, difundem tecnologias para produções de grãos e carne em larga escala, ao estilo “revolução verde”, em pacotes que freqüentemente incluem transgênicos, química pesada e pouco cuidado com o meio ambiente. O senhor acha que a dita “estória de sucesso do moderno agronegócio brasileiro” é um bom espelho para países tropicais em desenvolvimento?
Devinder Sharma: Este é um motivo para grave inquietação. A guinada deliberada do Brasil, de uma agricultura sustentável, utilizando o vasto celeiro de biodiversidade e riqueza genética que possui, para a agricultura industrial, que é ecologicamente destrutiva e leva ao aquecimento global, vem não apenas resultando na marginalização das comunidades rurais como também deixando rastros profundos de destruição ecológica, cujos custos serão assumidos pelas gerações futuras. A dívida ecológica que o Brasil tem criado no processo supera o ganho econômico de curto prazo que ele visa. Como não há jeito de medir o rastro de destruição ecológica em termos econômicos, o Brasil parece inteiramente despreocupado.
Eu fico assombrado diante do modo como as empresas de agronegócio, incluindo gigantes internacionais, controlam a economia brasileira. O agrobusiness prospera na destruição das florestas originais, no envenenamento dos solos, minando as águas subterrâneas e contaminando a cadeia alimentar. Estudos recentes evidenciam que os pequenos produtores são os mais atingidos, e acabam migrando em massa para as cidades. Não obstante, o ministro da Agricultura, assim como o (da Indústria e) do Comércio, parece simplesmente facilitar a encampação empresarial da agricultura e, assim, almejam políticas agrícolas e comerciais que não projetam nem protegem os interesses de produtores e do meio de vida, não apenas do Brasil, mas também de outros países em desenvolvimento.
Que papel o senhor espera que Estados Democráticos como a Índia e o Brasil podem desempenhar na construção de uma Nova Ordem Mundial livre da fome, com agricultura sustentável, respeito pela biodiversidade, com justiça social e comércio justo? Sendo o seu país considerado a maior democracia do Mundo e tendo o senhor uma abordagem crítica sobre a relutância do governo indiano em prevenir situações de opressão social, qual o problema com a Democracia? Falhando em garantir poder real ao povo em tantos países, deve a Democracia ser aprofundada e redesenhada?
Devinder Sharma: Houve um tempo em que Abraham Lincoln afirmou que “a democracia é do povo, pelo povo e para o povo”. Hoje, as propaladas democracias ao redor do mundo, incluindo a Índia, o Brasil e os Estados Unidos, tornaram-se “da indústria, pela indústria e para a indústria”. Gigantes democráticos do mundo em desenvolvimento – Brasil, Índia, África do Sul – estão ocupados criando uma nova ordem mundial onde o interesse empresarial reine supremo. Os governos em todos esses países perderam o contato com as massas e seguem um modelo econômico que não enxerga nada além de negócios, comércio e indústria.
Na Índia, que reivindica o título de maior democracia do mundo, não há justificativa plausível para o fato de que um terço da população de 1,2 bilhões de pessoas esteja vivendo com fome. Com quase 47% das crianças com idade inferior a seis anos subnutridas, e com 55% da população classificada pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) como afetada pela pobreza, a Índia projeta-se a si mesma como uma superpotência emergente. Nos anos recentes, desde que a Índia se antecipou na liberalização econômica, as disparidades econômicas têm apenas aumentado. Os ricos se tornaram mais ricos e os pobres vêm sendo empurrados contra a parede. O gradual apossamento dos recursos naturais pela indústria tem criado um sentimento de desesperança entre as comunidades tribais. O aprofundamento da desconfiança, entre os mais pobres das regiões mais pobres do país, em relação às políticas de governo é de tal ordem que quase um terço do país, principalmente o rico cinturão mineral (estados do Nordeste e Centro-Norte da Índia), enfrenta rebeliões lideradas pelos maoístas.
Eu me admiro como a Índia pode ser uma orgulhosa democracia se sucessivos governos têm falhado em satisfazer as aspirações da maioria da população. Como fome e pobreza podem existir em escala tão dramática numa democracia? A projeção do crescimento econômico, onde se reivindica ter a segunda maior taxa de crescimento econômico, pouco se espelha nas realidades. Os governos perderam o contato com as massas e o poder real está nas mãos do empresariado. Tanto é assim que a maioria dos representantes populares eleitos para o Parlamento agora são milionários. Você não pode vencer uma eleição se não for rico. A verdadeira essência da democracia, conseqüentemente, se perdeu. A democracia se tornou uma ‘Empresariocracia’. Acredito fortemente que é chegado o tempo de uma revisão sobre o significado de democracia.
Na medida em que se submetem ao controle empresarial, as democracias perdem essência e comprometem o papel para o qual foram concebidas por nossos antepassados. Quero dizer, o mundo dos negócios, certamente, não vai nos propiciar equidade e justiça.
O senhor tem sustentado que os mercados de capitais são os principais protagonistas do esgotamento dos recursos naturais em escala planetária e na manutenção da fome e da injustiça. O neoliberalismo disseminou a idéia de que o capitalismo ainda é o grande propulsor do desenvolvimento e, de fato, países emergentes, como Índia, China e Brasil, têm crescido a altas taxas em parte devido a grandes influxos de capital. Acredita em caminhos alternativos ao desenvolvimento que beneficiem as maiorias e minorias excluídas de modos social e ambientalmente sustentáveis?
Devinder Sharma: Não há outra inovação – se você não gosta do termo invenção – nos tempos recentes que não apenas influenciou, mas acelerou o processo do consumo desenfreado do que a emergência de Wall Street. De fato, os economistas podem se recusar a aceitar isso agora e por razões óbvias, mas os mercados de capitais levarão o mundo na direção da extinção da espécie humana, como nos alertou o cientista australiano Frank Fenner.
Eu fico impressionado com a maneira como opera o mercado de capitais. Esses mercados transformaram tudo em commodity. Grande parte dos males ambientais do mundo é conseqüência direta do mercado de capitais. Os mercados de capitais sugarão cada gota d’água – ou outro recurso natural – do planeta. Há um preço para tudo, incluindo o ar que você respira.
A ‘economia do crescimento’ que as economias emergentes perseguem é, na realidade, nada mais que economia da violência. Ela desencadeia violência contra os recursos naturais, contra o clima, contra a natureza e também contra o próximo, o ser humano. Ela retira os recursos naturais, físicos e também financeiros das mãos dos pobres para os bolsos dos ricos e das elites. Dizem-nos freqüentemente que os 20% de providos da população mundial controlam e usam os recursos dos 80% dos desprovidos. A globalização reforça ainda mais esse monopólio e amplia as disparidades já existentes. Tira recursos das mãos dos pobres para adicionar à fortuna dos ricos.
Muitos pensadores e economistas de sensibilidade social têm argumentado que é inevitável primeiro alavancar o PIB por todos os meios e somente depois implementar políticas de distribuição de rendas. Como o senhor concebe o desenvolvimento no quadro internacional atual?
Devinder Sharma: Os economistas são uma raça esperta. Eles conceberam o PIB como um indicador de crescimento. Eles o moldaram com tanta destreza que nós aceitamos um indicador de riqueza pessoal como um ponteiro para o desenvolvimento nacional.
Quanta ilusão de crescimento eles criaram. Eles fizeram com que tudo, incluindo o clima global, se pareça com uma commodity a ser vendida e explorada. Quanto mais você explora, mais o PIB sobe. Você pode destruir um país numa guerra, e então você o reconstrói e o PIB se eleva. Isso é o que aconteceu com o Iraque.
O PIB, para o leigo, significa o montante de dinheiro que troca de mãos. Se você compra um carro, o PIB sobe. Se você corta uma árvore, o PIB sobe. Mas se você preserva a árvore, o PIB pode não crescer. Agora você tem que decidir se precisa da árvore ou do PIB.
Se você visualizar globalmente, o aumento no PIB não tem levado a desenvolvimento integral. Mesmo nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, a fome quebrou um recorde de 14 anos. Hoje, uma em cada 10 pessoas passa fome. A menos que a gente reverta essa prescrição deformada de crescimento econômico, nós nunca teremos a renda sendo distribuída razoavelmente em qualquer população. Vale lembrar, o PIB não é a pedra de toque do desenvolvimento. Ele é uma cortina de fumaça para que o rico explore o pobre.
No contexto da atual crise econômica e seu impacto sobre a agricultura e a segurança alimentar, que diretrizes e abordagens, em sua opinião, devem ser adotadas por países em desenvolvimento no sentido de prevenir desastres e retomar o desenvolvimento social sustentável?
Devinder Sharma: O colapso econômico atual trouxe globalmente US$ 20 trilhões em pacotes de ajuda. Esses pacotes beneficiaram bancos e firmas de investimento que, na verdade, deveriam ter sido penalizadas por levar a economia mundial à beira do precipício. Ao invés disso, eles receberam aplausos e honrarias pelo crime econômico que cometeram com toda impunidade.
A questão que precisa ser colocada é: por que o mundo injetou tanto dinheiro em bancos e empresas de investimento? A resposta é que o objetivo é manter o fluxo financeiro, que permitirá aos governos manter o ritmo do crescimento econômico. Eu tenho perguntado constantemente onde está o objetivo subjacente dessa generosidade. A resposta que obtenho é de que o objetivo é reduzir a fome e a pobreza ao proporcionar oportunidade de renda e meios de vida. Se não há crescimento não haverá oportunidades para criação de meios de vida. Isso é certamente divertido, com jeito de arrogância intelectual beirando a estupidez.
O que está sendo camuflado é que o mundo necessita apenas de US$ 1 trilhão para eliminar a fome, doenças e pobreza da face do planeta. Nós não temos dinheiro para isso. Mas nós temos US$ 20 trilhões para socorrer os corruptos e escroques dos negócios e da indústria.
Superar as barreiras políticas, econômicas e ideológicas estruturais ao desenvolvimento social e sustentável, incluindo zerar a fome, certamente não é tarefa fácil. Como poderemos lidar, nessa luta, com os desafios extras representados pelas chamadas emergências globais, como aquecimento global, mudanças climáticas, perda de biodiversidade e crise energética?
Devinder Sharma: As barreiras estruturais ao desenvolvimento social e sustentável, incluindo combater a fome, estão, na verdade, entremeadas nas políticas neoliberais equivocadas. Os desafios extras das mudanças climáticas, aquecimento global, perda de biodiversidade e da sempre crescente crise energética são também resultados do paradigma do crescimento.
Deixe-me fazer uma pergunta. Se a prescrição econômica para a economia global que o mundo vem seguindo é tão boa, por favor, me diga por que o mundo chegou a essa beira de precipício? Por que os recursos naturais do planeta foram poluídos e pilhados? Por que os rios estão fluindo sujos, e por que as fontes de água limpa estão todas secando?
Por que a biodiversidade tem desaparecido a um ritmo tão alarmante, trazendo o mundo mais próximo da extinção? Por que motivo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, promovido pela ONU) chega ao ponto de nos alertar que, se não procedermos a uma mudança radical no modo em que o mundo progride, não haverá tempo suficiente para evitar um colapso da população humana? Essa é uma clara denúncia das políticas econômicas que o mundo foi levado a seguir. As emergências que você menciona são o resultado de um pensamento econômico grosseiramente falho.
A resposta está no que Mahatma Gandhi nos falou. Ele disse que a Terra tem o suficiente para a necessidade de cada um, mas não para a ganância. Ele também nos disse que se faz necessário um sistema de produção pelas massas e não para as massas. Esse, em essência, é o fundamento do conceito de soberania alimentar de que a sociedade civil fala. Ao invés de fomentar o livre comércio, usando a OMC (Organização Mundial do Comércio) como agente policial para basicamente disponibilizar mercado à produção agrícola altamente subsidiada dos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, ou “Clube dos Países Ricos”), o mundo deve voltar-se ao atendimento da auto-suficiência alimentar. Tornar os países dependentes de importações de alimentos é uma receita para o desastre, mas certamente soma para o PIB e, o que não é dito, quanto mais comércio, mais aquecimento global.
Contudo, você se surpreenderá em saber que nos últimos 30 e poucos anos, desde que o Banco Mundial e o FMI começaram os programas de ajustes estruturais, 105 dos 149 países do Terceiro Mundo se tornaram importadores de alimentos. Se a Rodada de Doha, da forma como tem sido concebida, chegar a uma conclusão em breve, escreva o que estou dizendo, o restante dos países do Terceiro Mundo também se tornará importador de alimentos a qualquer momento. E não se esqueça: importar alimentos é como importar desemprego. Os alimentos se tornarão, então, a mais forte das armas políticas.
Como o senhor avalia o papel exercido pelas Nações Unidas e seu Sistema (PNUD, FAO e outras) no esforço para enfrentar os principais problemas da Humanidade? A ONU estabeleceu os Objetivos do Milênio (ODM) a serem atingidos em 2015. Isso irá funcionar?
Devinder Sharma: Os Objetivos do Milênio não vão dar certo. Lembro que quando a Cúpula Mundial sobre Alimentação, em 1996 (em Roma), anunciou que é criminoso observar 24.000 pessoas sucumbindo ante a fome todos os dias e os dirigentes internacionais manifestavam urgência no enfrentamento da fome, prometendo reduzir em 50% as estimadas 842 milhões de pessoas famintas até 2015, eu reagi com choque e desgosto. Disse, então, que isso é um caso clássico de desonestidade política.
Pelo tempo que o mundo promete reduzir à metade o número de famintos, considerando que 24.000 pessoas morrem de fome todos os dias em algum lugar, 128 milhões de pessoas podem ter sucumbido apenas pela fome. Como isso pode ser classificado como emergência? Não seria isso um crime contra a Humanidade?
Os ODM meramente reiteraram a promessa da Cúpula Mundial sobre a Alimentação. E, como sabemos hoje, o número de famintos na verdade aumentou: de 842 milhões em 1996 para 1,1 bilhão em 2010. A ONU pode com certeza se vangloriar, se mostrar satisfeita com sua ‘grande’ missão humanitária. Mas a realidade é que a ONU não é nada melhor que o Banco Mundial. A linha fronteiriça entre a ONU e o Banco Mundial foi borrada com o passar dos anos.
Quais as suas visões sobre Cooperação Sul-Sul? Países como Índia e Brasil compartilham condições similares em muitos aspectos, mas continuam mantendo relativamente fracos comércio e intercâmbio técnico-científico. Velhos vínculos Norte-Sul, heranças estruturais do colonialismo, parecem colidir com a perspectiva de os países do Terceiro Mundo se associarem no enfrentamento de desafios comuns. O que o senhor acha que Índia e Brasil poderiam fazer em conjunto pelo avanço da luta contra a fome e pelo desenvolvimento sustentável em seus respectivos países e em outros?
Devinder Sharma: Cooperação Sul-Sul soa agradável. Os acadêmicos têm usado isso em resposta ao “fator NHA” (não há alternativa). Eu sempre acho graça quando ouço falar em cooperação Sul-Sul. Eu não conheço nenhum país do Sul que não almeje imitar o Norte. O que quer que os líderes políticos possam dizer, eles se sentem honrados quando convidados a se alinhar para a foto nas cúpulas do G20. Os acadêmicos fazem o mesmo; os economistas, claro, extrapolam. Se você observa os currículos, lá está a menção orgulhosa de universidades do Norte que eles visitaram ou onde realizaram trabalhos.
Mesmo quando o presidente Lula e o primeiro-ministro Manmohan Singh falam em colaboração bilateral, no mais das vezes é para promover o mesmo sistema que eles tomam emprestado dos países ocidentais. Na verdade, a cooperação Sul-Sul, quando existe, é construída sobre os mesmos princípios de exploração. O ‘big brother’ faz exatamente o mesmo, com seu primo menor, que os Estados Unidos fazem com a Índia e o Brasil.
Isso não significa que a cooperação Sul-Sul não seja possível. Tudo que ela precisa como ponto de partida é confiança e respeito. Isso só é possível se o líder do país mais desenvolvido exibe estadismo político e se abstém do papel de peixe grande que come o peixe menor. Tenhamos esperança de que, algum dia, alguém mostre sagacidade política e uma nova ordem possa então surgir.
A título de exemplo, está sendo anunciado na África um programa ambicioso, o AGRA – Aliança para a Revolução Verde na África (Alliance for Green Revolution in África) -, com o objetivo de incrementar a produção agrícola. Kofi Annan (ex-Secretário Geral da ONU) está à frente desta iniciativa. Lamentavelmente, esse programa é baseado em agricultura industrial e incentiva o domínio empresarial da agricultura.
A AGRA não é o que a África precisa. Nesse caso, melhor teria sido a África buscar cooperação Sul-Sul com países em desenvolvimento, apostando em sistemas agrícolas que não matam os agricultores. A África precisaria aprender as lições do fiasco da revolução verde na Índia. Mais de 200 mil camponeses cometeram suicídio nos últimos 15 anos na Índia, essencialmente porque a equação da revolução verde deu errado.
Estou certo de que os líderes africanos não desejam que seus camponeses morram. Portanto a África não precisa da AGRA, mas sim da ‘SAGRA’ – Agricultura Sustentável para a África (Sustainable Agriculture for Africa).
No começo de setembro, Moçambique foi palco de agitações populares. Sete pessoas foram mortas quando manifestantes se mostraram inconformados com o aumento do preço do pão. O senhor acha que isso pode indicar uma nova crise de alimentos mundial como se esboçou em 2007-2008?
Devinder Sharma: As manifestações por comida em Moçambique e as crescentes tensões no Paquistão, Egito e Rússia siberiana por causa da espiral altista de preços de alimentos evidenciam a crise mundial de alimentos e suas vulnerabilidades. Apesar de a FAO-ONU mostrar preocupações – mas não o receio de repetição da crise de 2007-2008 –, não se vê nenhuma iniciativa em superar os desequilíbrios do sistema de gerenciamento dos alimentos que ocasionam a crise. Enquanto o mundo assiste a agitações populares por alimentos em 37 países, os estoques de grãos de empresas multinacionais e de tradings deram um salto.
Não se vê nenhum aprendizado com a débâcle que aconteceu em 2007-2008. Na verdade, o G-20 tem encorajado uma repetição do problema. Ele tem orientado seus países membros a remover tudo que impeça investimentos estrangeiros diretos em varejo de alimentos e, ao mesmo tempo, pressiona agressivamente os países em desenvolvimento a removerem todas as barreiras comerciais nos Acordos de Livre Comércio e outros tratados regionais. Os países em desenvolvimento, portanto, têm se tornado cada vez mais importadores de alimentos. Observemos que Moçambique teve suas manifestações populares quando a Rússia impôs proibição à exportação de trigo por mais um ano após uma seca severa e incêndios no campo.
O que aconteceu em Moçambique nesse setembro é algo que pode se repetir em qualquer lugar nos anos vindouros. A menos que o mundo incentive os países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos a se tornarem auto-suficientes em grãos alimentares, a ameaça iminente de distúrbios continuará sobre a cabeça das nações como espadas de Dâmocles. Entretanto, como o assunto afeta os interesses dos gigantes do agronegócio, o G-20 prefere encarar de outra maneira.
Eduardo Almeida é jornalista.
Contato: almeidaedu{at}uol.com.br
Entrevista originalmente publicada no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
EcoDebate, 26/11/2010
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