domingo, 12 de dezembro de 2010

Economia baseada em recursos - Movimento Zeitgst


Traduzido a partir do site do Projeto Venus

Uma economia baseada em recursos é um sistema onde todos os bens e serviços estão disponíveis sem o uso de dinheiro, crédito, escambo ou qualquer outro sistema de débito ou servidão. Todos os recursos tornam-se patrimônio comum de todos os habitantes, não de apenas uns poucos selecionados. A premissa sobre a qual esse sistema é baseado é a de que a Terra seja abundante em recursos; nossa prática de racionamento de recursos através de métodos monetários é irrelevante e contraproducente à nossa sobrevivência.
A sociedade moderna tem acesso à tecnologias de ponta e pode disponibilizar comida, vestimenta, moradia e assistência médica; atualizar nosso sistema educacional; e desenvolver um suprimento ilimitado de energia renovável e não-poluente. Através da provisão de uma economia projetada de forma eficiente, todos podem desfrutar de um elevadíssimo padrão de vida com todas as amenidades de uma sociedade altamente tecnológica.
Uma economia baseada em recursos usaria os recursos existentes da terra e do mar, o equipamento físico, indústrias etc. para engrandecer a vida de toda a população. Numa economia baseada em recursos no lugar de dinheiro, poderíamos facilmente produzir todas as necessidades biológicas e fornecer um elevado padrão de vida para todos.
Considere os seguintes exemplos: No início da Segunda Guerra Mundial os EUA tinha apenas cerca de 600 aviões de combate de primeira classe. Nós rapidamente superamos esse suprimento limitado ao produzirmos mais de 90 mil aeronaves por ano. A questão no início da Segunda Guerra Mundial era: "nós temos os fundos suficientes para produzir os utensílios de guerra precisos?". A resposta era: "não. Não possuímos dinheiro, nem ouro o bastante; mas temos recursos de sobra". Foram os recursos disponíveis que possibilitaram aos EUA que alcançassem a alta produção e eficiência precisos para vencer a guerra. Infelizmente, isso é somente considerado em tempos de guerra.
Numa economia baseada em recursos, todos as recursos são tidos como patrimônio comum a todas as pessoas do planeta Terra, de forma a eventualmente transcender a necessidade de fronteiras artificiais que separam as pessoas. Esse é o imperativo unificador.
Devemos enfatizar que esta abordagem para um governo global não tem absolutamente nada em comum com os presentes objetivos da elite de formar um governo mundial dirigida por ela e pelas grandes corporações. Nossa visão de globalização autoriza todas as pessoas do planeta a ser as melhores que puderem, não a viver sobre submissão abjeta de um corpo governamental corporativo.
Nossas propostas não só contribuiriam para o bem-estar das pessoas, como também forneceriam a informação necessária para que elas participem em qualquer área de sua competência. O sucesso seria medido pela satisfação das atividades individuais em vez da aquisição de riqueza, propriedade e poder.
No momento, temos recursos materiais suficientes para prover um altíssimo padrão de vida para todos os habitantes da Terra. Apenas quando a população excede a capacidade de sustentação da terra é que muitos problemas como a ganância, o crime e a violência emergem. Ao superarmos a escassez, a maioria dos crimes e até as prisões da sociedade de hoje não seriam mais necessários.
Uma economia baseada em recursos possibilitaria o uso da tecnologia para superar a escassez de recursos ao aplicar fontes renováveis de energia, informatizar e automatizar a manufatura e o inventário, projetar cidades seguras e energeticamente eficientes e sistemas avançados de transporte, providenciar um serviço de saúde universal e uma educação mais relevante e, sobretudo, ao gerar um novo sistema de incentivo baseado na preocupação humana e ambiental.
Muitas pessoas acreditam que hoje exista muita tecnologia no mundo, e que essa tecnologia é a principal causa de nossa poluição ambiental. Não é esse o caso. É o abuso e o desuso da tecnologia que deve ser a nossa principal preocupação. Numa sociedade mais humana, em vez de as máquinas substituírem as pessoas elas reduziriam a jornada de trabalho, aumentariam a disponibilidade de bens e serviços, e prolongariam o período de descanso. Se usarmos novas tecnologias para elevar o padrão de vida de todas as pessoas, então a infusão da tecnologia mecânica deixaria de ser uma ameaça.
Uma economia mundial baseada em recursos também envolveria esforços completos para o desenvolvimento de novas fontes de energia, limpas e renováveis: geotérmica; de fusão controlada; solar; fotoelétrica; eólica, das ondas e das marés; e até combustível dos oceanos. Nós eventualmente seríamos capazes de possuir energia em quantidade ilimitada que poderia impulsionar a civilização por milênios. Uma economia baseada em recursos também deve se comprometer com o replanejamento de nossas cidades, sistemas de transporte e indústrias, permitindo que eles sejam energeticamente eficientes, limpos, e que sirvam de forma conveniente às necessidades de todas as pessoas.
No que mais um economia baseada em recursos implicaria? A tecnologia, inteligente e eficientemente aplicada, economiza energia, reduz o desperdício e proporciona mais tempo livre. Com um inventário automatizado numa escala global, podemos manter um equilíbrio entre a produção e distribuição. Somente alimentos nutritivos e saudáveis estariam disponíveis e a obsolescência planejada seria desnecessária e inexistente numa economia baseada em recursos.
Ao nos livrarmos da necessidade de profissões baseadas no sistema monetário, como por exemplo advogados, banqueiros, vendedores de seguro, equipes de marketing e publicidade, vendedores e corretores de valores, uma quantidade considerável de desperdício será eliminada. Quantias respeitáveis de energia também seriam poupadas ao se eliminar a duplicação de produtos competitivos como ferramentas, talheres, panelas frigideiras e aspiradores de pó. É bom poder escolher. Mas no lugar de centenas de diferentes fábricas e toda a papelada e pessoal necessários à produção de produtos similares, apenas uma pequena parcela da mais alta qualidade seria necessária para servir à população inteira. Nossa única deficiência é a falta de pensamento criativo e inteligência em nós mesmos e nos nossos líderes eleitos para resolver esses problemas. O recurso mais valioso e inexplorado hoje é a engenhosidade humana.
Com a eliminação da dívida, o medo de se perder o emprego deixará de ser uma ameaça. Essa segurança, combinada à educação sobre como se relacionar com os outros de um modo muito mais significativo, poderiam reduzir consideravelmente tanto o estresse mental como o físico e deixar-nos livre para explorar e desenvolver nossas habilidades.
Se a ideia de se eliminar o dinheiro ainda incomoda você, considere isto: se um grupo de pessoas com ouro, diamantes e dinheiro ficassem presos em uma ilha desprovida de recursos como comida, ar e água limpos, a riqueza deles seria irrelevante a sua sobrevivência. Somente quando os recursos são escassos é que o dinheiro pode ser usado para controlar sua distribuição. Não se pode, por exemplo, vendar o ar que respiramos ou a água que flui abundante da nascente de uma montanha. Apesar do ar e da água serem valiosos, quando abundantes, eles não podem ser vendidos.
O dinheiro só é importante em uma sociedade quando certos recursos para a sobrevivência devem ser racionados e as pessoas aceitam o dinheiro como meio de troca para recursos escassos. O dinheiro é uma convenção social, um acordo por assim dizer. Ele não é um recurso natural nem representa um. Ele não é necessário à sobrevivência, a menos que tenhamos sido condicionados a aceitá-lo como tal.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O concreto moldado pela mata - entrevista com Antonio Nobre

10/12/2010 - 07h12

Por Dal Marcondes, da Envolverde especial para Carta Verde

Segundo Antonio Nobre, sem a floresta São Paulo seria um deserto.

Antonio nobre é um dos mais respeitados nomes entre os especialistas em clima e serviços ambientais no Brasil. Seus estudos mostram que a Amazônia não é apenas uma mancha verde nos mapas da América do Sul, mas é responsável pela umidade que coloca as regiões Sul e Sudeste do Brasil entre as mais férteis do mundo. Nobre quantificou a água que a Amazônia bombeia para o Sul: são 20 bilhões de toneladas, mais do que os 17 bilhões de toneladas que o Rio Amazonas despeja no Atlântico diariamente. Por suas contas, esse rio voador é o maior do mundo, resvala nos Andes, preenche de vida o Pantanal e irriga as terras férteis do Brasil e de países vizinhos.  Observador atento da realidade, vê riscos no avanço desordenado sobre a floresta e aponta como argumento o mapa-múndi, onde, na linha do Trópico de Capricórnio – que atravessa São Paulo – existem desertos na África, na Oceania e na margem oriental da América do Sul (o Atacama, no Chile, é uma das regiões- mais secas do mundo). Só a Amazônia explica por que o Sudeste brasileiro não é, também, uma das regiões mais áridas do planeta. Nesta entrevista a CartaVerde, Nobre fala sobre a importância de se compreender a relação entre os serviços prestados pela natureza e a economia humana. Para ele não há como a humanidade sobreviver, caso seja rompido o equilíbrio entre a o uso dos recursos naturais e a capacidade- de regeneração do ambiente.

CartaVerde:  O que significam de fato os serviços ambientais e qual a sua relação com a capacidade de o Brasil ser esta economia complexa que é?

Antonio Nobre: 
 A noção de serviços ambientais é bastante simples: sem eles não existiria vida. Um paralelo que se pode fazer é das células do corpo humano. Sem a especialização de cada uma das células não seria possível ao organismo funcionar. A relação da Amazônia com o resto do Brasil e da América do Sul é igual. Cada bioma presta serviços ambientais importantes para o equilíbrio do clima e do sistema hídrico da região. A umidade que a Amazônia -capta no oceano serve para manter a vida e as atividades econômicas do Sul e Sudeste. Sem esse fluxo não haveria a riqueza gerada pelo agronegócio e não seria possível ter as indústrias. A biosfera, que é a região que alimenta e mantém a vida, é muito pequena e frágil em relação às outras forças que agem sobre a dinâmica do planeta. É um engano acreditarmos que podemos substituir os serviços ambientais que interagem na biosfera por processos tecnológicos. Não daria certo.

CV:  E como se dá a interação desses elementos que formam os serviços ambientais?

AN:  
A vida tem um elemento interessante e único. Para fazer um chip de silício capaz de funcionar em processos de comunicação é preciso muita energia. Quase 3 mil graus para purificar e formar o chip, enquanto as células vivas fazem a mesma coisa a custo quase zero de energia, processando energia solar ou de alimentos orgânicos. Com outra vantagem fantástica: as células se reproduzem e nunca se ouviu falar de um iPhone que teve um filhotinho. E as células têm um sistema adaptativo absolutamente fantástico, capaz de mudar de acordo com as circunstâncias. A comunicação na natureza significa basicamente coordenação entre os muitos atores e fatores ambientais. A tecnologia humana normalmente não interage com o entorno, ao contrário dos elementos vivos, que têm relação sistêmica com o ambiente.

CV: Como assim?

AN: 
 Na Amazônia, por exemplo, uma onça que come uma paca está ajudando as árvores. A paca pega o fruto ou a semente e não fica comendo debaixo da árvore porque sabe que pode ter onça de tocaia. A onça sabe o que a paca come. Com isso, as sementes das árvores são largadas longe da árvore-mãe, disseminando a espécie. Em quase todas as sinergias dos organismos vivos existe uma relação de causa e efeito e de colaboração. No caso da chuva na Amazônia, existe uma ligação entre as nuvens e a floresta, uma troca de informações e de microelementos. Quando as cinzas das queimadas poluem o ar da floresta, impede-se essa troca. Assim, cria-se um círculo vicioso, onde queima porque não chove e não chove porque queima. Por isso, quando entramos em um ciclo de seca e queimada, como no inverno deste ano, demora para romper essa relação e retomar a normalidade.

CV: Não dá para induzir os serviços ambientais da floresta?

AN:
  A Amazônia é uma gigantesca bomba d’água. A evaporação precisa do sol para acontecer. Calculamos quanta energia seria necessária para evaporar toda aquela água. De quantas Itaipus precisaríamos para evaporar um dia de água da Amazônia? Precisaríamos de 50 mil Itaipus a plena carga. Ou seja, não há tecnologia humana capaz de fazer isso. No entanto, essa é a mesma água que possibilita a produção nos imensos campos de soja, e que não contabiliza os custos desses serviços ambientais. Uma vez, questionei o ex-governador Blairo Maggi, de Mato Grosso, e perguntei se ele sabia que a floresta era responsável pelo principal insumo do agronegócio, a água. A resposta me surpreendeu: “Os cientistas já provaram isso?” Essa é a atitude que compromete o futuro em benefício de resultados imediatos. Os serviços ambientais são de graça, não porque não têm valor, mas porque essa economia cartesiana que ainda acredita em sistemas infinitos simplesmente ignora o que não é explícito. Quando o sistema não funciona mais, o custo para fazer com tecnologia é extremamente caro.

CV: Mas há cientistas que pensam diferente…

AN:
 Sim, têm cientistas que trabalham para a Exxon. Também há políticos como o senhor Aldo Rebelo que querem retirar a floresta. E a esses tem sido dedicado um espaço maior do que merecem. Os custos disso ficam depois para a sociedade. Esses argumentos foram utilizados pela indústria do tabaco, quando se perguntava se fumar faz mal ou não para a saúde. Como se enfrenta o poder econômico de uma Exxon? No Brasil, a Petrobras vai gastar 300 bilhões de dólares para tirar do fundo do mar uma energia do século XIX. Com esse dinheiro poderíamos ter uma energia limpa de alta qualidade, e não estou falando de álcool combustível, que também não resolve. Poderíamos desenvolver uma nova sociedade, com base em energia solar. Têm cientistas que agem por má-fé, mas também tem má ciência.

CV:  Há duas correntes científicas sobre os serviços ambientais da Amazônia. Uma delas diz que a umidade vem do Atlântico, atravessa a floresta e irriga o Sul-Sudeste por meio dos ventos alísios. É parte da dinâmica de ventos do planeta. Outra, que o senhor defende, é que a floresta tem um papel vital como bomba hidrológica e que sem ela quase todo o Sul-Sudeste se transformaria em deserto.

AN:
 A meteorologia não considera o fato de que a condensação de água na floresta gera sucção. É uma ciência muito contaminada pela parte empírica observacional. É por isso que os modelos estão falhando, porque não são modelos baseados na física; a maior parte é estatística. A Amazônia é um paradoxo: como o vento pode soprar continuamente de uma superfície quente para outra mais fria? Isso viola a termodinâmica. Estudos físicos feitos por cientistas russos mostram que há dados que os meteorologistas não dimensionaram e não estão sendo capazes de aceitar a novidade. Eu professo um compromisso com a verdade, e não com versões que interessam a este ou àquele. A pesquisa física mostra que a evaporação na floresta cria energia latente e não calor latente. Os meteorologistas dizem que é calor latente, e isso é um dogma. Se fosse calor, o processo de condensação nas nuvens liberaria calor, o que não é verdade, libera pressão. Isso mostra o papel de bomba hidrodinâmica da Amazônia, e que pode ser interrompida se as forças em ação se desequilibrarem. Os climatologistas têm uma medição estatística do clima, sem comprovação física.

CV: O que teria de mudar para se construir uma economia mais amigável com o meio ambiente?

AN:
 A principal coisa a mudar deveriam ser as próprias pessoas. É muito mais barato preservar as condições ambientais de forma a evitar tragédias do que remediar e ter de reconstruir infraestruturas e patrimônios. No entanto, as pessoas não pensam em garantir o bem-estar da sociedade como um todo, mas, sim, em garantir apenas seus bens particulares. Um exemplo disso é o seguro que cada um faz de seu carro. Costumo ouvir que essa é uma forma de preservar algo que lhes pertence, enquanto gastar com a preservação dos serviços ambientais é pagar pela garantia de bens comuns, que não têm dono, portanto, não sendo de ninguém. Enquanto acreditarmos que bens comuns não são de ninguém e que serviços ambientais não valem nada e, consequentemente, não têm preço, não vamos mudar a forma como a economia age. Os serviços ambientais não têm preço, porém, a falta deles é profundamente catastrófica para qualquer modelo de economia que se tenha.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Elementos para a busca do bem viver - Sumak Kawsay


“O 'buen vivir' supera as dicotomias cartesianas, entrelaça o tempo linear com o tempo circular e a objetividade da produção com a subjetividade da mãe terra.”


O artigo é do teólogo Paulo Suess, assessor do Conselho Indigenista Missionário – Cimi em artigo publicado no sítio Cimi, 02-11-2010.

Eis o artigo.
Na construção do “bem viver”, dois eixos são sumamente importantes: o “bem viver” para todos, quer dizer, o combate contra uma sociedade de classes e privilégios, e o “bem viver” para sempre, que é o “bem viver” com memória histórica, o bem viver não apenas dos sobreviventes e vencedores, mas o bem viver que dá voz e ouvido aos vencidos.

Sem essa dimensão de resgate histórico e horizonte escatológico é impossível pensar o bem viver para sempre. Portanto, o bem viver tem uma dimensão que perpassa o tempo (diacronia), uma dimensão transhistórica, e uma dimensão contemporânea e simultânea (sincrónica), que enfoca o aqui e agora do indivíduo e da sociedade. O bem viver não é construído em Spá nem em estúdio de wellnes, mas num laboratório no qual se entrelaçam ação política e gratuidade.

Ser feliz, como indivíduo, e viver bem, como ser social em família e sociedade são duas tarefas conjuntas que procuramos solucionar a vida inteira. Parecem duas tarefas contraditórias. No centro da primeira está a felicidade própria do indivíduo, o núcleo da segunda são costumes e prescrições culturais, a moral, a virtude e a lei da sociedade.

Temos exemplos históricos, que mostram que é possível esmagar o indivíduo pelo coletivo como temos exemplos do contrário que nos mostram como o indivíduo, com seus anseios de igualdade e liberdade, se impõe à coletividade através de privilégios herdados ou prestígios sociais conquistados. Numa sociedade de grandes desigualdades não há felicidade, nem para as elites nem para os pobres. A partir de certa disparidade entre ricos e pobres, falta a base material para o bem-estar espiritual da maioria da população. Não reduzimos a felicidade ao bem-estar material nem separamos o bem estar material do bem-estar espiritual.

Praticamente todas as lutas sociais representam tentativas de equilibrar felicidade individual e moral social, ou, como se diz no mundo andino, são buscas de harmonia, de harmonia sociocultural entre o individuo e o coletivo, e harmonia entre os seres humanos e a natureza da qual são parte integrante.

Essa busca de harmonia se transformou em lutas políticas. A harmonia não é dada. Ela é uma conquista que exige vigilância permanente. Nas declarações de independência procurou-se derrubar o poder do colonizador. Na Revolução Francesa, o novo cidadão procurou derrotar os nobres e o clero com seus privilégios e nas revoluções socialistas procurou-se destituir o burguês privilegiado pela classe operária.

Hoje, o capitalismo, essa nova colonização pelo capital, pela ideologia do desenvolvimento, pelo consumo e pela competição, procuramos curar as patologias do desequilíbrio que se manifesta pela acumulação, pelo crescimento desenfreado e pela aceleração. Procuramos novos conceitos de propriedade e desenvolvimento para construir novas realidades. Procuramos bem-estar sem crescimento. No meio de lutas pela redistribuição dos bens (terra, água, ar) e pelo reconhecimento do outro procuramos desvincular o bem-estar do crescimento predatório (agrotóxicos, expansão sobre a propriedade dos outros, consumo autodestrutivo). Percebemos que o capitalismo não tem patologias. Ele é a patologia.

1. Um olhar rápido sobre a história do “bem viver”
Um olhar histórico nos mostra, como o bem viver pode ser truncado por estruturas de uma sociedade aristocrática, por um sistema colonial ou pelo próprio capitalismo patológico.

1. Em sua “Ética a Nicómaco”, Aristóteles (384-322 a.C.) tece um fio condutor para seu filho e a sociedade do bem e feliz viver. Os fundamentos desse bem viver são: língua, política, razão e moralidade. Mas o bem viver de Aristóteles não é para todos. É a ética de uma República Aristocrática que precisa de escravos para realizar seu bem viver. O “bem viver” numa sociedade aristocrática, que não questiona a escravidão, é o “bem viver” das elites às custas dos escravos.

2. “A primeira nova crônica e bom governo” de Felipe Guamán Poma de Ayala (1535-1616?) representa a tentativa indígena de descrever, através de um “bom governo”, a possibilidade do “bem viver”. Guamán Poma se declara descendente da linhagem incaica e cristão. Em busca do “buen Govierno” e do “buen vivir”, que são conversíveis, ele denuncia profeticamente a traição do Evangelho e dos princípios de um bom governo através de inúmeros desenhos e poucas palavras [n.1]. No sistema colonial, ambas as culturas, a cristã e a andina se autodestruíram. O bem viver é insustentável em ilhas do sistema colonial [n.2]. O bem viver envolve a humanidade em lutas antiescravagistas e anticoloniais.

3. A Independência dos países latino-americanos nem sempre foi um avanço em direção do bem viver. Os mecanismos da colonização e de uma sociedade escravocrata podem também continuar em países independentes. As elites mestiças, crioulas e brancas que assumiram os governos ditos independentes, muitas vezes reproduziram os mecanismos de dominação no interior de seus países. No Brasil, a escravidão continuou. Nos países emancipados, afro-americanos e indígenas, geralmente, não participaram do “bem viver” pós-colonial.

2. Desafios ao “bem viver” hoje
O sistema capitalista é incapaz de produzir o bem viver de todos os cidadãos. Consumismo e fome são expressões desse desequilíbrio na distribuição dos bens da terra. Crescimento, expansão e aceleração se tornaram palavras mágicas, apoiadas por tecnologias cada vez mais sofisticadas a serviço da substituição de trabalhadores. No atual projeto, na aceleração da produção e na acumulação do capital, não se trata apenas de uma manipulação de objetos mortos. Capital e produção representam relações sociais mediadas por exploração, alienação e coisificação. A relação utilitarista “custo-benefício” não é uma mera relação comercial com sua lógica própria. Nela está embutida uma relação social.

Quem produz mais barato é aquele que se submete a condições de um trabalho penoso, que a máquina e os computadores ainda não conseguem resolver. Esse trabalho penoso, em geral de curta duração, é acompanhado de um salário indigno, sem garantia de direitos sociais, de educação dos filhos ou aposentadoria. Consequência desta nova configuração do trabalho são os mal empregados, os desempregados, os migrantes em busca de melhores condições de sobrevivência.

O que está em questão é coesão e solidariedade social interna das sociedades. Essa solidariedade é atropelada pela concorrência do mercado globalizado que vive da exclusão e não da integração dos cidadãos. Redistribuição, integração social pelo trabalho e participação do lucro se tornaram direitos humanos. O poder judiciário está despreparado para garantir esses direitos.

A exploração irracional atinge não só operários, indígenas ou migrantes, mas também a nossa irmã natureza. A devastação de florestas e da biodiversidade, “coloca em perigo a vida de milhões de pessoas”, em especial a vida dos “camponeses e indígenas, que são expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem amontoados nos cinturões de miséria” (DAp 473).

O que está em questão é o “atual modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos” (DAp 473). O “bem viver” está também ameaçado por uma crise cultural profunda que se manifesta como crise de sentido, como fundamentalismo político-religioso e como consumismo. A dissolução do sentido da história humana numa mera história natural e a afirmação da verdade única como negação do reconhecimento do outro e do pensamento diferente representam um potencial permanente de guerra e violência, inclusive no interior das religiões.

Depois de guerras para a implantação da democracia, hoje essa democracia liberal está numa profunda crise estrutural pela confusão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e pela ética. A democracia liberal não permite a participação satisfatória do povo, sobretudo dos pobres, dos excluídos e dos povos indígenas, especialmente quando são minoria.

A justiça em nossos países tornou-se uma justiça formal, morosa e caríssima, que atua, muitas vezes, longe dos lugares onde acontecem as injustiças, e não serve aos pobres, que desconhecem os trâmites legais e não conseguem pagar advogados competentes para garantir seus direitos básicos. O aparato policial não traz segurança à população e as condições inumanas das nossas cadeias fazem delas verdadeiras escolas do crime.

Acreditamos que um outro mundo é possível, porque o atual tripé crescimento econômico, segurança social e democracia política não oferece perspectivas do bem viver universal. Não entramos no jogo de alternativas perversas: democracia com fome e miséria, ou bem-estar material sem participação, sem liberdade política e sem horizonte de sentido, ou prosperidade econômica do país com ditadura e fome.

A construção do bem viver é uma construção cultural (não natural). Quem quer construir o bem viver, é contracultural. Essa construção significa:

- descolonizar as instituições políticas,
- desmercantilizar os saberes, a fé, a escola, saúde,
- desprivatizar o que deve ser de domínio público,
- na patologia da aceleração somos o freio de emergência.

3. Uma luz no túnel: sumak kawsay
Enquanto o Brasil está competindo com os países com economias fortes, nas discussões constitucionais da Bolívia e do Equador irrompeu uma proposta que procura superar as políticas alinhadas com os projetos de hegemonia competitiva. Essa proposta, de origem kechwa, se articula em torno de um novo paradigma do “bem viver”, em kechwa, “sumak kawsay”. O “sumak kawsay” é uma utopia política não muito distante da utopia do Reino. Ambos são precedidos ou representam um pachakuti, uma reviravolta social. O pachakuti restabelece o equilíbrio perdido e abre o caminho para “viver em plenitude”.

Na “Conferencia de los Pueblos sobre El Cambio Climático y los Derechos de La Madre Tierra”, num “Acordo dos Povos” do dia 22 de abril em Cochabamba, o “sumak kawsay” foi novamente consagrado como paradigma planetário.

3.1. A proposta do “viver bem” equatoriano
Em oposição à lógica do capitalismo neoliberal que propõe “viver melhor” com mais mercadorias que ameaçam o equilíbrio ecológico e social, o conceito do “sumak kawsay” propõe repartir os bens para que todos possam “viver bem”. A vida humana de todos em harmonia com a natureza é o eixo central dessa proposta.

Plano Nacional Para El Buen Vivir (2009-2013) do Equador resume bem a proposta do paradigma do “viver bem”. O significado profundo desse Plano está na ruptura conceitual do Consenso de Washington (1989, era neoliberal) e dos conceitos ortodoxos do desenvolvimento de hoje (crescimento, rapidez, exportação). O paradigma do “viver bem” representa a busca, em longo prazo, de um novo pacto social, que é construído continuamente.

Rupturas necessárias
a) A ruptura constitucional e democrática, para sentar as bases de uma comunidade política inclusiva e reflexiva, que aposta na capacidade do país para definir outro rumo como sociedade justa, diversa, plurinacional, intercultural e soberana. Para o projeto do “viver bem” é indispensável a construção de uma cidadania radical, que estabelece as condições materiais de um projeto nacional inspirado na igualdade em diversidade.

b) A ruptura ética para garantir a transparência, a prestação de contas e o controle social que favorecem o reconhecimento mútuo entre as pessoas e a confiança coletiva.

c) A ruptura econômica, produtiva e agrária para superar o modelo de exclusão herdado e para orientar os recursos do Estado para a educação, saúde, investigação científica, tecnologia, para o trabalho e a reativação produtiva, em harmonia e complementaridade entre zonas rurais e urbanas. Essa ruptura deve concretizar-se através da democratização do acesso à água e terra, ao crédito e conhecimento.

d) Ruptura social para que, através de uma política social articulada a uma política econômica inclusiva e mobilizadora, o Estado garante os direitos fundamentais.

Identidade ética do “buen vivir”
A definição do Buen Vivir implica reconhecer que se trate de um conceito complexo, vivo, não linear, porém historicamente construído, e que está em constante resignificação. Por Buen Vivir os autores entendem “a satisfação das necessidades, o alcance de uma qualidade de vida e morte dignas, a convivência social e ecológica em harmonia. O Buen Vivir pressupõe ter tempo livre para o lazer, e que as liberdades, oportunidades e capacidades reais dos indivíduos sejam ampliados.

Medidas práticas
Precisamos um novo modo de geração de riquezas e redistribuição numa sociedade pós-petrolífero:

a) Democratização dos meios de produção, redistribuição das riquezas e diversificação da propriedade;
b) Aumento de produtividade real e diversificação das exportações;
c) Inserção estratégica e soberana no mundo e na América-Latina;
d) Conectividade e telecomunicações para construir a sociedade da informação;
e) Mudança da matriz energética;
f) Bien Vivir no marco de uma macroeconomia sustentável;
g) Sustentabilidade, conservação, conhecimento do patrimônio natural;
h) Desenvolvimento e ordenamento territorial, desconcentração e decentralização;
i) Poder cidadão e protagonismo social.

3.2. Proposta do Bien Vivir boliviano
O “buen vivir” é um conceito de vida longe dos parâmetros do crescimento econômico, longe do individualismo, da relação custo-benefício, da relação utilitarista entre os seres humanos e a natureza, longe da mercantilização de todas as esferas da vida e da violência culturalmente não mais controlada.

O “sumak kawsay” propõe a incorporação da natureza na história, não como fator produtivo nem como força produtiva, mas como parte inerente ao ser social. Os seres humanos fazem parte da natureza. O “buen vivir” supera as dicotomias cartesianas, entrelaça o tempo linear com o tempo circular, o mito com a história e a objetividade da produção com a subjetividade da “mãe terra”.

“Buen vivir”, que é possível quando o ser humano vive em comunidade com a natureza, representa uma re-união “fraternal” entre a esfera da política e a esfera da economia. No “buen vivir” o valor de uso da mercadoria está acima do valor de troca (fraudado pela mais-valia expropriada). O ser individualizado da modernidade tem que reconhecer a existência ontológica de outros seres que têm direito a existir e viver com sua alteridade.

Em entrevista recente, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia e especialista em cosmovisão andina, David Choquehuanca, elencou como essência do “viver bem”:

a) Priorizar a vida e os direitos cósmicosViver Bem significa buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida com mais simplicidade possível. Viver bem signnifica dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos. É mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos.

b) Construção do consensoViver Bem significa buscar o consenso entre todos. Na hora de conflitos se procura chegar a um ponto de neutralidade em que todos coincidam. Procura-se aprofundar a democracia para que não haja submissão. Submeter a minoria à maioria não é “viver bem”.

c) Respeitar as diferençasPara viver em harmonia é necessário respeitar a diferença. O respeito se estende a todos os seres que habitam o planeta (animais, plantas). O respeito vai além da tolerância. Aceitar a diferença significa também aceitar a semelhança.

d) Ver na diferença a complementaridadeNas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, a terra com a água, a humanidade com os vegetais.

e) Equilíbrio (não-exclusão dos opostos)Bem Viver significa levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade e com a natureza. Vivemos atualmente num projeto que exclui. Democracia, justiça, meios de comunicação, terra, natureza – em tudo se mostram mecanismos de exclusão

f) Valorizar a identidadeViver bem significa valorizar e recuperar a identidade. Esta identidade tem como base valores que resistiram mais de 500 anos e que foram transmitidos pelas famílias e nas comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.

g) Saber comer, beber, dançar, trabalharEm tudo prevalece o equilíbrio e os aprendizados ancestrais. O trabalho é algo comunitário e festivo e não produção de mais-valia.

h) Saber se comunicarBem Viver é saber se comunicar. Rezar significa comunicar (cacique Babau). O diálogo é o resultado desta boa comunicação ancestral nas comunidades (oralidade!).

i) Escutar os anciãosBem Viver significa ler as rugas dos avós para poder continuar o caminho. “Nossos avós são bibliotecas ambulantes”.

Colonização e civilização não venceram o discurso do “bem viver”. O sumak kawsay (“buen vivir”) emerge novamente como tarefa, imperativo e salva-vidas; faz parte daquela sabedoria divina que a humanidade recebeu por muitos caminhos. Ela age, como a sabedoria do Reino, como cunha nas rachaduras da sociedade alienada.

4. Construção do “bem viver” como crítica, ascese e solidariedade
Como cristãos podemos compreender o bem viver como vida em plenitude e como sabedoria do reino, sem privilégios, sem prestígio. O bem viver no horizonte da solidariedade não é para nós, é para os outros: “A outros Ele ajudou, para si mesmo não sabe fazer nada”. Lutamos como servos para que ninguém precise ser servo.

Alguns leitores, talvez possam perguntar: Não existe nenhuma possibilidade de nós sermos também os construtores do nosso bem viver? Você não oferece nenhuma fatia pequena da teologia de prosperidade para nós? O nosso bem viver é resultado do bem viver do outro, e não como compensação transcendental, mas no aqui e agora. Os respingos da felicidade do outro podem iluminar nossa vida, como as dores do outro nos mantém no caminho e na luta.

O contexto político-cultural de hoje dificulta assumir publicamente o conflito social como motor para a construção do bem viver. Quem fala em luta de classe parece não ter compreendido as mudanças de época. Mas um novo modelo de sociedade e desenvolvimento não vai emergir gratuitamente. Por causa dos pobres somos obrigados de nos fazer presentes nessas lutas, evangelicamente responsáveis e socialmente relevantes. Através de pequenas compensações e através de uma legalidade formal, o capital conseguiu impor um contentamento superficial.

Pobres e lideranças dos movimentos sociais foram cooptados por cestas básicas de comida e medidas de mitigação que representam o prato enfeitado daquele que é levado à forca. A “ação afirmativa” substituiu a “ação crítica”. A luta com a espada é reduzida à alfinetadas, à produção de documentos, ao profetismo em off. Num contexto de alienação generalizada e de silêncios comprados, temos a tarefa de “desafinar o coro dos contentes” (Torquato Neto) e desgovernar a nau dos adaptados que se contentam com o pouco que o gozo regressivo à fase oral e anal (Freud) oferece de maneira destrutiva via consumo e acumulação. O bem viver para todos e sempre significa puxar o freio de emergência do projeto acelerado e desgovernado em curso e propor outro projeto civilizatório.

A vida dos cristãos é atravessada pela cruz que assumimos por causa do bem viver dos outros e pela gratuidade. Anunciamos o Reino de Deus como libertação da servidão, nos fazendo servos de todos. A radicalidade da encarnação (e inculturação) tem o nome de solidariedade (cf. Gaudium et spes, 32).

Solidariedade, hoje, significa despojamento e ascese. Ascese para nós é libertação do supérfluo, para que todos possam ter o necessário para o bem viver. A ascese é o protesto contra nossa humilhação como consumidores. O consumo é a regressão à fase oral da nossa primeira infância. A ascese é protesto contra a exploração, a exclusão e a fome dos outros. O motivo profundo de uma vida que incorpora a ascese é solidariedade e participação.

Ascese, em sua forma individual, pode significar conversão; e ascese, em sua forma comunitária e sociopolítica, significa ruptura sistêmica e solidariedade. O bom é o inimigo do melhor e do mais. Precisamos aprender a viver melhor com menos.

No horizonte evangélico de uma igualdade radical não existe lugar para a apropriação privada da vida boa, nem da fé, da esperança e do amor. A fé nos foi dada por causa dos desacreditados. A esperança nos foi dada por causa dos desesperados. O amor nos foi dado por causa dos desprezados. Tudo que recebemos pertence aos necessitados.

Vida boa para todos e para sempre! A dimensão da cruz é a dimensão da ruptura. Ela nos coloca no meio dos grandes conflitos. Nosso equilíbrio está na articulação entre luta e contemplação. O bem viver, no horizonte de todos e para sempre, existe somente no horizonte da ressurreição, que é justiça definitiva para todos e insurreição contra o absurdo!

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1- POMA DE AYALA, Felipe Guamán, El primer nueva corónica y buen gobierno, México, Siglo Veintiuno, 1980, n. 15.
2 - Cf. FARÍAS, Fernando Amaya. Indio y Cristiano em condiciones coloniales. Lectura teológica de la obra de Felipe Guamán Poma de Ayala: Nueva Crónica y Buen Gobierno.

O ponto crítico da Civilização - Lester Brown


8 de setembro de 2009
O texto abaixo, curto e simples, resume bem a dimensão dos desafios presentes no esforço de ampliação das redes de mobilização social em torno dos problemas mais críticos no nosso horizonte de médio prazo; atenta também para a necessidade de gestão de um certo senso de urgência sobre as medidas consideradas. Recentemente o publicamos em inglês original, diponibilizamos agora a versão traduzida ao português pelo Mercado Ético.
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Por Lester Brown, agosto de 2009
Tem aumentado a preocupação com os pontos críticos da natureza. Cientistas já questionam, por exemplo, a capacidade de recuperação das espécies em risco de extinção. Biólogos marinhos, por sua vez, estão preocupados com o fato de que a pesca excessiva dará início ao colapso dessa indústria.
Sabemos que existiram pontos críticos em civilizações antigas, pontos em que a população foi dominada pelas forças naturais que as ameaçavam. Por exemplo, em algum ponto, o acúmulo de sal relacionado à irrigação do solo esgotou a capacidade agrária dos Sumérios. Com os Maias, os efeitos danosos do desmatamento associados à perda da fertilidade do solo tornaram-se irreversíveis.
Porém, os pontos críticos que levam ao declínio e ao colapso de uma sociedade nem sempre são facilmente previstos. De forma geral, os países desenvolvidos podem lidar com novas ameaças de forma mais efetiva do que os países em desenvolvimento. Por exemplo, enquanto os governos de países industriais têm sido capazes de manter os índices de infecção do HIV entre adultos abaixo de 1%, muitos governos de países em desenvolvimento têm falhado nesse controle e agora estão lutando com altos índices de infecção. Isto é mais evidente em alguns países sul-africanos, onde 20% ou mais adultos estão infectados.
Uma situação semelhante existe com o crescimento populacional. Enquanto a taxa se mantém estável em quase todos os países industrializados, exceto os Estados Unidos, observa-se o contrário em quase todos os países da África, Oriente Médio e do subcontinente indiano – onde a taxa populacional é crescente. Esses 80 milhões de pessoas a mais no mundo por ano nascem, exatamente, em países onde os sistemas naturais já estão se deteriorando, em face da excessiva pressão populacional. Nestes países, o risco de falência do Estado também está crescendo.
No entanto, alguns assuntos parecem superar até mesmo as habilidades de governança das nações mais avançadas. Quando alguns poucos países detectaram a redução nos níveis de água dos lençóis subterrâneos, era lógico esperar que seus governos rapidamente elevassem a eficiência racional do recurso e estabilizassem o crescimento da população, para estabilizar os aqüíferos. Infelizmente, nenhum país – desenvolvido ou em desenvolvimento – o fez. Dois Estados em falência, onde o resultado da extração excessiva da água soma-se à falta de uma política de segurança hídrica, são o Paquistão e o Iêmen.
Embora a necessidade de cortar as emissões de carbono seja evidente já há algum tempo, nenhum país conseguiu se tornar uma nação “carbono-neutra”. Até mesmo as sociedades tecnologicamente mais avançadas enfrentam muita dificuldade política para isso. Poderiam, assim, os crescentes níveis de dióxido de carbono na atmosfera, provarem-se tão incontroláveis para a nossa civilização quanto os níveis de sal no solo foram para os Sumérios no ano 4.000 A.C.?
Outro ponto de pressão sobre os governos é a redução da oferta de combustível fóssil. Embora a extração mundial de petróleo tenha excedido, em 20 anos, a descobertas de novas reservas, somente a Suécia e a Islândia possuem algo que remotamente assemelhe-se a um plano para lidar efetivamente com uma retração da oferta.
Este não é um inventário exaustivo de problemas não resolvidos, mas apresenta uma noção da quantidade deles. Analiticamente, o desafio é avaliar os efeitos de pressionar cada vez mais o sistema natural global. O resultado desse estresse ficou evidente na atual questão da segurança alimentar, o ponto fraco de muitas civilizações antigas que entraram em colapso.
Além da dificuldade de adaptação ao crescimento constante da demanda por alimentos, várias tendências convergentes estão tornando as coisas ainda mais difíceis para agricultores ao redor do mundo. Os pontos críticos delas são a queda dos níveis dos lençóis freáticos, o uso indevido de terras cultiváveis e ocorrências climáticas extremas, incluindo ondas de calor, secas e enchentes. Como os problemas não resolvidos se acumularam, os governos mais fracos estão começando a sucumbir.
Para agravar a situação, os Estados Unidos, maiores produtores mundiais de trigo, aumentaram dramaticamente sua participação na safra de grãos utilizando o etanol como combustível – saltando de 15%, em 2005, para mais de 25% em 2008. Esse esforço mal orientado para reduzir a dependência do petróleo ajudou a conduzir os preços mundiais de grãos a elevações constantes até meados de 2008, criando uma insegurança alimentar mundial sem precedentes.
Os riscos desses problemas acumulados (e suas conseqüências) dominarão cada vez mais os governos, levando à falência generalizada do Estado e, finalmente, ao fim da civilização. Os países que estão no topo da lista de Estados em falência não são particularmente uma surpresa. Incluem, por exemplo, Iraque, Sudão, Somália, Chade, Afeganistão, República Democrática do Congo e o Haiti. E a lista cresce cada vez mais a cada ano, levantando questões perturbadoras: quantos Estados em falência serão submetidos a isso antes do fim completo da civilização? Ninguém sabe a resposta, mas é uma pergunta que precisamos fazer.
Estamos numa corrida entre os pontos críticos da natureza e nossos sistemas políticos. Podemos desativar poderosas usinas de carvão antes que o derretimento da calota de gelo da Groelândia se torne irreversível? Podemos reunir vontade política pelo fim do desmatamento na Amazônia antes que as crescentes queimadas cheguem a um ponto sem retorno? Podemos ajudar os países a estabilizarem a população antes que se tornem Estados em falência?
Temos tecnologias para restaurar os sistemas naturais de suporte da Terra, para erradicar a pobreza, para estabilizar a população, para reestruturar a economia energética mundial e o clima. O desafio agora é construir vontade política para fazê-lo. Salvar a civilização não é um esporte para espectadores. Cada um de nós possui um papel de liderança a representar.
Adaptado do Capítulo 1, “Entering a New World”, Lester R. Brown, Plano B 3.0: Mobilizing to Save Civilization (Nova Iorque: W.W. Norton & Company, 2008), disponível para download gratuito e para compra no site do Earth Police Institute.
*Tradução: Leticia Freire, do Mercado Ético
Lester R. Brown é considerado um dos mais influentes pensadores mundiais. Formado em ciências agrícolas, dedica-se à pesquisa e ao debate dos grandes temas ambientais e econômicos desde os anos 70, quando fundou o World Watch Institute. É também fundador do Earth Policy Institute.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Apropriação indébita: como os ricos estão tomando nossa herança comum Ladislau Dowbor



Adital -
A concentração de renda e a destruição ambiental continuam sendo os nossos grandes desafios. São facetas diferentes da mesma dinâmica: na prática, estamos destruindo o planeta para a satisfação consumista de uma minoria, e deixando de atender os problemas realmente centrais. Como explicar que, com tantas tecnologias, produtividade e modernidade, estejamos reproduzindo o atraso? Em particular, como a sociedade do conhecimento pode se transformar em vetor de desigualdade?
O prêmio Nobel Kenneth Arrow considera que os autores de "Apropriação indébita: como os ricos etão tomando a nossa herança comum", Gar Alperovitz e Lew Daly, "se baseiam em fontes impecáveis e as usam com maestria. Todo mundo irá aprender ao ler este livro". Eu, que não sou nenhum prêmio Nobel, venho aqui contribuir com a minha modesta recomendação, transformando o meu prefácio em instrumento de divulgação. Mania de professor, querer comunicar o entusiasmo de boas leituras. E recomendação a não economistas: os autores deste livro têm suficiente inteligência para não precisar se esconder atrás de equações. A leitura flui.
A quem vai o fruto do nosso trabalho, e em que proporções? É a eterna questão do controle dos nossos processos produtivos. Na era da economia rural, os ricos se apropriavam do fruto do trabalho social, por serem donos da terra. Na era industrial, por serem donos da fábrica. E na era da economia do conhecimento, a propriedade intelectual se apresenta como a grande avenida de acesso a uma posição privilegiada na sociedade. Mas para isso, é preciso restringir o acesso generalizado ao conhecimento, pois se todos tiverem acesso, como se cobrará o pedágio, como se assegurará a vantagem de minorias?
Um argumento chave desta discussão é, naturalmente, a legitimidade da posse. De quem é a terra, que permitia as fortunas e o lazer agradável dos senhores feudais? Apropriação na base da força, sem dúvida, legitimada em seguida por uma estrutura de heranças familiares. Uma vez aceito, o sistema funciona, pois na parte de cima da sociedade forma-se uma aliança natural ditada por interesses comuns.
Na fase industrial, um empresário pega um empréstimo no banco -e para isso ele já deve pertencer a um grupo social privilegiado- e monta uma empresa. Da venda dos produtos, e pagando baixos salários, tanto auferirá lucros pessoal como restituirá o empréstimo ao banco. De onde o banco tirou o dinheiro? Da poupança social, sob forma de depósitos, poupança esta que será transformada na fábrica do empresário. Aqui também, vale a solidariedade dos proprietários de meios de produção, e o resultado de um esforço que é social será em boa parte apropriado por uma minoria.
Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical, relativamente aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm proprietário, são bens "rivais". No caso do conhecimento, trata-se de um bem cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém, continuamos com ele, não perdemos nada, e como o conhecimento transmitido gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação do conhecimento para o bem de todos torna-se, portanto, poderosa.
A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte principal de Alperovitz e de Daly, neste pequeno estudo, é de deixar claro o mecanismo de uma apropriação injusta -Unjust Deserts- que poderíamos explicitar com a expressão mais corrente de apropriação indébita. Ao tornar transparentes estes mecanismos, os autores na realidade estão elaborando uma teoria do valor da economia do conhecimento. A força explicativa do que acontece na sociedade moderna, com isto, torna-se poderosa.
Para dar um exemplo trazido pelo autor, quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou estes avanços. "O que eles nunca levam em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a doenças poderia ter sido desenvolvida -todas as publicações, pesquisas, educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento e, então, passados adiante e incorporados também por uma força de trabalho de técnicos e cientistas- tudo isto chega à empresa sem custo, um presente do passado" (55). Ao apropriar-se do direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um pedágio sobre o esforço dos outros. Unjust Deserts.
Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular do conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma jóia a este respeito é um texto 1813 de Thomas Jefferson:
"Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia... Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolentemente desenhado pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade". (1)
O conhecimento não constitui uma propriedade no mesmo sentido que a de um bem físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na medida em que resulta de um esforço social muito amplo, e constitui um bem não rival, obedece a outra lógica, e por isto não é assegurado em permanência, e sim por vinte anos, por exemplo, no caso das patentes, ou quase um século no caso dos copyrights, mas sempre por tempo limitado: a propriedade é assegurada por sua função social -estimular as pessoas a inventarem ou a escreverem- e não por ser um direito natural.
O merecimento é para todos nós um argumento central. Segundo as palavras dos autores, "nada é mais profundamente ancorado em pessoas comuns do que a idéia de que uma pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços produziram".(96) Mas na realidade, não são propriamente os criadores que são remunerados, e sim os intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação comercial que se apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em contratos de exclusividade, e fazem fortunas de merecimento duvidoso. Não é a criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: "Se muito do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de contribuições históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma pessoa possa dizer que "ganhou merecidamente" no processo, agora ou no futuro."(97)
As pessoas, em geral, não se dão conta das limitações. Hoje 95% do milho plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre acesso às obras de Paulo Freire apenas a partir de 2050, 90 anos depois da morte do autor. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de Aids, e as empresas farmacêuticas (o Big Pharma) proíbem os países afetados de produzir o coquetel, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente construído durante sucessivas gerações.
Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando insustentável, entender o mecanismo de geração e de apropriação desta riqueza é fundamental. Os autores não são nada extremistas, mas defendem que o acesso aos resultados dos esforços produtivos devam ser minimamente proporcionais aos aportes. "A fonte de longe a mais importante da prosperidade moderna é a riqueza social sob forma de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada", o que significa que "uma porção substantiva da presente riqueza e renda deveria ser realocada para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou no mínimo, no sentido de promover maior igualdade".(153)
Um livro curto, muito bem escrito, e, sobretudo, uma preciosidade teórica, explicitando de maneira clara a deformação generalizada do mecanismo de remuneração, ou de recompensas, que o nosso sistema econômico gerou. Trata-se aqui de um dos melhores livros de economia que já passaram por minhas mãos. Bem documentado, mas sempre claro na exposição, fortemente apoiado em termos teóricos, na realidade o livro abre a porta para o que podemos qualificar de teoria do valor, mas não da produção industrial, e sim da economia do conhecimento, o que Daniel Bell qualificou de "knowledge theory of value". A Editora Senac tomou uma excelente iniciativa ao traduzir e publicar este livro. Vale à pena. (www.editorasenacsp.com.br)
Nota:
(1) Citado por Lawrence Lessig, The Future of Ideas: the Fate of the Commons in an Connected World - Random House, New York, 2001, p. 94.
[Autor de Democracia Econômica e de Da propriedade Intelectual à Sociedade do Conhecimento, disponíveis em http://dowbor.org.
Gar Alperovitz and Lew Daly - Apropriação Indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum - Editora Senac, São Paulo 2010, 242 p.].

* Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas

Por uma economia a serviço da vida - Frei Betto *




Adital -
A vida, dom maior de Deus, tem base econômica. Para sobreviver, o ser humano é capaz de prescindir de muitos bens, exceto comida e bebida. Por isso, Jesus ensinou a oração com dois refrões: "Pai Nosso" e " pão nosso". Deus é verdadeiramente Pai nosso, de todos, se o pão - símbolo dos bens essenciais à existência - é partilhado entre todos.
Hoje, os bens da Terra e os frutos do trabalho humano não são partilhados entre todos. Apenas 20% da população mundial, concentrados na parte ocidental do hemisfério Norte, detêm 80% da riqueza do planeta. No Brasil, basta sair à rua para se deparar com a miséria - que, além de ser um problema econômico, deveria ser, para todos, um desafio ético. Nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Se não padecemos necessidades básicas é por mero acaso da loteria biológica.
No mundo, de cada três nascidos vivos, dois vêm à luz na pobreza ou na miséria. Portanto, nossa condição de vida digna não deveria ser encarada como um privilégio, e sim como dívida social. Injusto é existir a loteria biológica num planeta que produz alimentos para 12 bilhões de bocas e é habitado por pouco mais da metade.
Nossos avós, antes de iniciarem a labuta diária, consultavam a Palavra de Deus. Nossos pais, o serviço de meteorologia. Nós, os índices do mercado financeiro... A quem as pessoas de fé dão, hoje, mais importância? Aos preceitos divinos ou às suas contas bancárias?
Economia - palavra que deriva do grego oikos+nomos, "administração da casa" - não deveria ser encarada pela ótica da maximização do lucro, e sim do bem-estar da coletividade. Em outras palavras, se todos os aspectos de nossas vidas se relacionam à economia, como fazer de conta que ela prescinde de valores éticos e princípios evangélicos?
É preciso sensibilizar a sociedade sobre o valor sagrado de cada pessoa; criticar o consumismo e superar o individualismo; enfatizar a relação entre fé e vida, através da prática da justiça; ampliar a democracia firmada em metas de sustentabilidade; fortalecer a globalização da solidariedade, de modo a criar uma nova alternativa de sociedade na qual o que há de mais sagrado - a vida humana - esteja acima da idolatria do dinheiro.
A ONU informa que, em 2009, foram investidos US$ 18 trilhões para socorrer bancos e empresas ameaçados de quebra devido às dificuldades econômicas e financeiras. De onde surgiu esta imensa quantia de dinheiro? A pergunta é pertinente, pois até então se dizia não haver recursos para garantir os direitos básicos das pessoas nem para a superação da miséria e da fome. Nos últimos 49 anos, a ajuda dos países ricos às nações em desenvolvimento foi de apenas US$ 2 trilhões! Uma mísera esmola ao longo de quase meio século!
A crise financeira comprovou que, por si só, o mercado é incapaz de reduzir o índice de exclusão social e assegurar a prosperidade coletiva. Nem é este o seu objetivo.
Na raiz da desigualdade social imperante no Brasil está a concentração de terras em mãos de poucas famílias ou empresas. Temos a segunda maior concentração da propriedade fundiária do planeta. Apenas 2,8% do total das propriedades rurais do país têm mais de 1.000 ha e ocupam 56,7% das terras cultiváveis. Os minifúndios representam 62,2% dos imóveis rurais e ocupam apenas 7,9% da área total - de acordo com o Atlas Fundiário do INCRA. É como se a área conjunta dos estados de São Paulo e Paraná estivesse em mãos dos 300 maiores proprietários rurais, enquanto 4,8 milhões de famílias sem-terra estão à espera de chão para plantar.
A lógica econômica que predomina na política do governo insiste, sob pretexto de evitar a inflação, em elevar os juros para favorecer o mercado financeiro e não os consumidores. Basta dizer que governo federal gastou em 2008, com a dívida pública, 30,57% do orçamento da União para irrigar a especulação financeira. E apenas 11,73% do orçamento com saúde (4,81%), educação (2,57%), assistência social (3,08%), habitação (0,02%), segurança pública (0,59%), organização agrária (0,27%), saneamento (0,05%), urbanismo (0,12%), cultura (0,06%) e gestão ambiental (0,16%).
Quem mais paga impostos são os pobres. Os 10% mais pobres da população destinam 32,8% de sua escassa renda ao pagamento de tributos, enquanto os 10% mais ricos, que dispõem de mecanismos de isenção tributária, apenas 22,7% da renda.
O ciclo da moderna economia política fecha-se num mundo autossuficiente, indiferente a qualquer consideração ética sobre a vida humana e a preservação da natureza. Os fatos históricos e a miséria em que vive grande parte da humanidade - 2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza, segundo a ONU -, põem em questão o rigor e a seriedade dessa ciência e a bondade das políticas econômicas voltadas mais ao crescimento e à acumulação da riqueza do que ao verdadeiro desenvolvimento sustentável.
[Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto
Copyright 2010 - FREI BETTO - Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].

* Escritor e assessor de movimentos sociais

SER(ES) AFINS