quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Prout: economia e política a serviço da espiritualidade


Jiananananda atuou em países como Índia, Indonésia, Tailândia e Filipinas. Trabalha no Brasil desde 1999.
“Prout é muito importante para todos aqueles que almejam uma libertação que comece pelo econômico e se abra para a totalidade da existência humana.”Leonardo Boff, teólogo e escritor
Por Luna, Rogério Luna *
Entre 18 e 26 de setembro, o município de Nazaré Paulista recebeu a sexta edição do Festival da Primavera. Promovido pelaUniluz – Universidade da Luz, o evento contou com a participação ativa da população da cidade e de diversos palestrantes convidados. Dentre estes, o monge Acharya Jiananananda Avadhuta, natural do Congo, adepto do tantra yoga, chamou atenção não só por causa da sua veste alaranjada, da contagiante simpatia e do sotaque, mas também por conta de uma instigante, porém, pouco difundida teoria socioeconômica: o Prout (Progressive Utilization Theory).
O Prout (pronuncia-se “praut”), ou Teoria da Utilização Progressiva em português, foi formulado em 1959, pelo pensador indiano Prabhat Ranjan Sarkar. O sistema propõe uma nova forma de auto-suficiência econômica e política baseada na espiritualidade, opondo-se ao comunismo cerceador de liberdades individuais e ao capitalismo global comandado pelas megacorporações.
Na visão de Jiananananda – o qual, devido à complexidade do seu nome para os padrões ocidentais, nos propõe a chamá-lo de Dada (“irmão”) –, quando os proutistas falam de espiritualidade, referem-se ao sentido pelo qual o termo tem sido empregado modernamente. Ou seja, a capacidade do ser humano de se sentir integrado com ele mesmo, com a Natureza ou, no dizer do Dalai Lama, em seu livro Uma ética para o novo milênio (editora Sextante), “com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros”.
Com a derrocada do comunismo autoritário na maior parte do mundo, da amplificação do consumismo, da busca insana por lucros cada vez maiores e da exploração desenfreada dos recursos naturais, a tendência atual de proutistas como Jiananananda é mirar seu olhar crítico para a ganância e a irresponsabilidade do capitalismo global. “Hoje em dia fala-se em desenvolvimento acelerado. Mas, para quem? Para o povo ou para os capitalistas?”, questiona.
A relatividade do conceito de progresso – Na comédia americana O Virgem de Quarenta Anos (2005, Universal Pictures), é transmitda – não muito sutilmente – a ideia de que o personagem principal seria um bobo por usar bicicleta e não carro como seu meio de transporte. Entretanto, ao olharmos para a situação de cidades sufocadas pelo trânsito (alguém lembrou de São Paulo?), surge a pergunta: “Ao trocarmos nossas bicicletas por carros, progredimos verdadeiramente?” Dada discorda e acrescenta: “Para mim, por levar menos tempo do que de bicicleta, viajar de ônibus da Uniluz até São Paulo é um progresso. No entanto, para as pessoas que moram ao longo da estrada pode não ser, pois o ar que respiram se tornou mais sujo”.
O criador do Prout, Prabhat Ranjan Sarkar
Com esse exemplo, Dada nos alerta sobre o uso indevido do termo progresso. Em sua ótica, estamos vivendo numa espécie de grande ilusão ao pensarmos que as inovações tecnológicas são exatamente sinônimos de progresso, de evolução. Ele acrescenta que é inegável o crescimento da civilização industrializada no campo intelectual, do conhecimento em relação ao mundo material. Porém, no universo das nossas relações interpessoais, psíquicas e com o meio ambiente não progredimos tanto. “Nesse ponto, não me parece que somos tão mais avançados que os índios”, diz.
Na visão do Prout, a antiga crença capitalista de que o grande enriquecimento de seus dirigentes gera, proporcionalmente, mais empregos e bem-estar coletivo é um engodo. Além disso, a exploração irracional dos recursos da natureza, o processo de conversão e submissão às religiões do consumo e do individualismo pela qual os tradicionais meios de comunicação nos têm submetido, seriam grandes causadores da desgraça e da infelicidade de milhões de pessoas na Terra – pobres e ricos.
Vivendo na Matrix - Diante de tal quadro – o qual nos faz pensar que boa parte do povo do planeta vive adormecida sob uma grande Matrix -, quais as alternativas propostas pela Teoria da Utilização Progressiva para um mundo melhor? Entre outras propostas, o Prout defende que o desenvolvimento pessoal num sentido integral, a criação de cooperativas e comunidades são importantes passos para alcançarmos tal objetivo.
O monge cita como exemplos a Uniluz – onde se incentiva a expansão da consciência e uma maior integração com as pessoas e a Natureza -, movimentos ligados à permacultura, bioconstrução e agroecologia.
Em Nazaré Uniluz se incentiva a expansão da consciência e uma maior integração com as pessoas e a Natureza
O crescimento de iniciativas como as citadas acima não é mera utopia ou ingênuo idealismo. Elas são uma realidade ascendente. Segundo a International Cooperative Alliance (ICA – http://www.coop.org/ica/) – que representa 248 organizações de 92 países -, mais de 800 milhões de pessoas no mundo participam de cooperativas. No livro Após o Capitalismo, o autor Dada Maheshvarananda informa que os Estados Unidos, país-símbolo do capitalismo global, abriga quase 50 mil cooperativas, as quais prestam assistência a 37% da população norte-americana, ou seja, 100 milhões de cidadãos. Para mais informações sobre o tema, visite o site da National Cooperative Business Association (http://www.ncba.coop).
Os Cinco Princípios Fundamentais de Prout – Tais princípios, extraídos da supracitada obra Após o Capitalismo, servem como orientação na distribuição dos recursos e riquezas entre os indivíduos. Advertimos que as explicações de cada item são apenas recortes de um todo. Para maior aprofundamento, sugerimos a consulta do livro citado.
1-     A nenhum indivíduo deve ser permitido acumular riqueza sem a permissão ou a aprovação clara do corpo coletivo: assim como existem salários mínimos, o Prout propõe o estabelecimento de salários máximos, com a possibilidade de serem acrescentados benefícios extra-salariais (bônus por desempenho, participações em ações, cobertura de despesas pessoais).
2-     Distribuição racional de todas as potencialidades mundanas, supramundanas e espirituais do universo: neste caso, uma das críticas vai para grandes propriedades rurais ociosas ou cujo cultivo visa apenas à exportação.
3-     Máxima utilização das potencialidades físicas, metafísicas e espirituais do indivíduo e do corpo coletivo da sociedade: o foco deve ser no bem-estar dos indivíduos e da coletividade e não no individualismo e consumismo excessivos.
4-     Ajuste apropriado para a utilização nos plano físico, metafísico, mundano, supramundano e espiritual: deve-se usar as qualidades individuais das pessoas para adequá-las a tarefas que lhes tragam prazer e que sejam compatíveis com seus talentos e habilidades. Sem desmerecer a profissão de agricultor, o escritor Dada Maheshvarananda critica, por exemplo, o governo comunista chinês, o qual, durante a Revolução Cultural obrigou pessoas com curso superior (médicos, enfermeiras etc.) a trabalharem no campo.
5- O método de utilização deve variar de acordo com as mudanças de tempo, lugar e pessoa, e a utilização deve ser de natureza progressiva
Política + Economia + Espiritualidade - Para algumas pessoas que leram esta reportagem até aqui, a visão do Prout sobre a interdependência entre espiritualidade, política e economia pode causar estranheza ou mesmo rejeição. Muitas acham que tais coisas não deveriam se misturar. Jiananananda critica tal ponto de vista. “É uma artimanha da exploração propagar a ideia de que a política é má. Se as pessoas de boa vontade, inspiradas pelo bem, não se ligam à política, nas mãos de quem ela vai cair? Dos bandidos”, rebate Jiananananda.
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Saiba mais:
Ananda Marga – Yoga, Meditação e Serviço Social
Contatos: (11) 2204-7954 / 9926-3571 – anandamargasaopaulo@gmail.com
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Prout em São Paulo (grupo promove encontros semanais gratuitos e abertos na USP)
Mais informações pelo proutsp@gmail.com
Aline (11) 6559-5745
Denise (11) 9393-2106
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Prout em português – www.prout.org/por
Nazaré Uniluz – www.nazareuniluz.org.br
International Cooperative Alliance (ICA) – www.coop.org/ica
National Cooperative Business Association – www.ncba.coop
Vídeos indicados:
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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sobre a Conclamação Para a Recuperação dos Bens Comuns


 
Este website é dedicado a recolher assinaturas para a campanha global Conclamação Para a Recuperação dos Bens Comuns, lançada no Fórum Social Mundial, que foi realizado em Belém do Pará, Brasil, em janeiro de 2009.
A apresentação da Conclamação Para a Recuperação dos Bens Comuns, no FSM 2009, foi o ponto inicial da mobilização internacional para reivindicar, proteger e recriar os bens comuns.
A proposta desse projeto é de popularizar a noção dos Bens Comuns, através da abertura de espaços participativos que nos permitam compartilhar e discutir idéias e iniciativas relacionadas ao futuro dos bens comuns.
O Manifesto é apenas o ponto inicial. Todos estão convidados a comentar criticamente e a compartilhar seus pontos de vistas, idéias e práticas comuns. Além disso, o Manifesto, como deve ficar bastante óbvio da sua leitura, toma inspiração em vários textos e idéias que vem sendo produzidos nos últimos anos.
Convidamos a todos a assinar o Manifesto, discuti-lo e divulgá-lo.
As iniciativas e práticas relacionadas aos vários aspectos dos Bens Comuns são inúmeras e muito diversificadas. Agricultores, educadores, pacientes, técnicos, ativistas, cientistas, artistas, pais, etc, todos lutam diariamente pelos Bens Comuns, com imaginação e criatividade.
O objetivo da campanha é reunir todas essas iniciativas, e multiplicar seus impactos através da criação de novos laços - tanto no ciberespaço como no contato pessoal - entre as pessoas que as levam adiante em todo o mundo. Buscamos facilitar a criação de novas idéias e mobilizações, tão livres, criativas e diversas quanto possível.
Convidamos a todos a apresentarem suas iniciativas de reivindicação, proteção e criação dos Bens Comuns, no seguinte sítio:http://benscomuns.org. Aproveite a oportunidade de promover a sua própria iniciativa e essa campanha; chame seus amigos e colegas para assinar o Manifesto, conecte pessoas e organizações, para que os Bens Comuns sejam o assunto prioritário da agenda dos movimentos sociais globais.


Conclamação Para a recuperação dos bens comuns

 
A privatização e a mercantilização dos elementos vitais para a humanidade e o planeta são mais fortes do que nunca. Seguindo-se à exploração dos recursos naturais e do trabalho humano, esse processo se acelera e estende-se aos conhecimentos, às culturas, à educação, às comunicações, à vida, ao patrimônio genético e às suas modificações. O bem-estar de todos e a preservação da Terra são sacrificadas ao lucro imediato de poucos.
As conseqüências deste processo são nefastas. Elas são visíveis e conhecidas de todos: sofrimento e morte daqueles que são negligenciados pela pesquisa orientada a fins comerciais, e que não podem ter acesso aos tratamentos patentados; destruição do meio-ambiente e da biodiversidade; aquecimento global; dependência alimentar dos países pobres; empobrecimento da diversidade cultural; limitações de acesso ao conhecimento e à educação pelo sistema estabelecido de propriedade intelectual; impacto nefasto da cultura consumista.
O Fórum Social Mundial de 2009, em Belém do Pará, no Brasil, desenvolve-se no momento em que a globalização capitalista, dominada pelas finanças fora de qualquer controle público, fracassa espetacularmente. Mas também no momento em que emerge uma tomada de consciência de que há certos bens – e a natureza inclui-se entre eles – que são de uso comum a todos os seres humanos, e não podem ser de forma alguma privatizados ou considerados como mercadorias.
Esta tomada de consciência se apóia em uma visão de sociedade que coloca o respeito aos direitos humanos, a participação democrática e a colaboração no coração destes valores. As iniciativas alternativas estão se desenvolvendo em numerosos domínios para defender a água e os rios, a terra, as sementes, a biodiversidade, o conhecimento, as ciências e os saberes ancestrais, as florestas, os mares, o vento, a moeda, a comunicação e a criação de redes, a cultura, a música e outras artes, as tecnologias abertas e os softwares livres, os serviços públicos de educação, saúde, saneamento e previdência.
Os signatários do presente manifesto, lançado no Fórum Social Mundial de 2009, chamam todos os cidadãos do mundo e suas organizações a se engajarem na ação pela recuperação e criação de bens comuns da humanidade e do planeta para que sua gestão seja assumida de forma participativa e colaborativa pelas pessoas e comunidades concernidas, e à escala da humanidade na perspectiva de um mundo sustentável.
Os signatários chamam os cidadãos de todo o mundo e suas organizações para aprofundarem a noção de bens comuns e compartilharem suas abordagens e experiências no esforço de desprivatização e desmercantilização dos bens comuns da humanidade e do planeta para articularem as lutas de suas próprias organizações, reforçando mutuamente suas campanhas e iniciativas.


terça-feira, 12 de outubro de 2010

SOBRE SERES HUMANOS E SISTEMAS SOCIAIS HUMANOS Maria José Esteves de Vasconcellos

Publicado por http://www.equipsis.com.br/artigos_texto.php?id=20




Tem sido comum as pessoas se referirem às práticas que desenvolvemos na EquipSIS, com nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais, como “práticas com sistemas sociais”.
Entretanto, nossa concepção atual de “sistemas sociais” é fundamentalmente diferente de outras concepções correntes e sua compreensão parece-me um pré-requisito, não só para se entender as práticas que propomos, como para vir a realizá-las.
Por isso, meu objetivo aqui é o de expor resumidamente nossas concepções novo-paradigmáticas de “seres humanos” e de “sistemas sociais humanos” , embasadas na Teoria da Autopoiese, de Maturana e Varela.
Concebemos os seres humanos como seres vivos que vivem na linguagem.
Conforme a Teoria da Autopoiese de Maturana e Varela (1980/1972) – que é uma teoria sistêmica para os seres vivos – todos os sistemas existem em dois domínios fenomênicos que não se intersectam: o domínio de existência de seus componentes e o domínio de sua existência como unidade, quando interage com o meio.
Todos os seres vivos existem no domínio fisiológico (dos fenômenos que acontecem no organismo, na interação entre seus elementos componentes) e no domínio das condutas (dos fenômenos que acontecem na interação / relação do sistema ou unidade com seu meio, por exemplo, suas trocas de matéria e energia).
No caso dos seres vivos humanos, sua estrutura filogenética (biológica) permite (ou seja, contém a possibilidade de) que, na interação com o meio, esses seres vivos desenvolvam a linguagem, distinguindo-se assim dos demais seres vivos e constituindo-se como humanos, uma vez que se desenvolva efetivamente a linguagem, no domínio das interações.
E então, no caso dos seres vivos humanos, os fenômenos que acontecem na interação do ser vivo linguajante com seu meio têm sido chamados de fenômenos comunicacionais.
Segundo a Teoria da Comunicação Humana, de Watzlawick, Beavin e Jackson (1968/1967) – também uma teoria sistêmica – todos os comportamentos ou condutas dos seres humanos têm valor de mensagem, ou seja, todo comportamento é comunicação. E, como não é possível não se comportar, não é possível não se comunicar. Esse é o 1º Axioma dessa teoria.
Importante ressaltar que a estrutura fisiológica inicial de qualquer ser vivo só contém possibilidades e que tudo, a partir daí, dependerá também das possibilidades contidas na estrutura do meio com que esse ser vivo interagir. Nessas interações, a estrutura do ser vivo seleciona (conforme suas próprias possibilidades) entre as possibilidades do meio, ao mesmo tempo que a estrutura do meio seleciona (também conforme suas próprias possibilidades) entre as possibilidades do ser vivo. A interação que ocorre é o resultado dessa dupla seleção estrutural.
Essa compreensão do comportamento do ser vivo, segundo a Teoria da Autopoiese, é uma compreensão relacional ou interacional e, por isso, é reconhecida como uma teoria sistêmica.
Assim, no caso da linguagem, o ser vivo irá desenvolvê-la ou não, dependendo não só de suas características biológicas (tal como a complexidade de seu sistema nervoso), como também das características do meio com que ele interagir. As meninas-lobo , por exemplo, apesar de dotadas filogeneticamente com a possibilidade de virem a falar, não desenvolveram a linguagem – como de resto não desenvolveram outros comportamentos típicos do ser vivo humano.
Importante destacar a concepção de linguagem que estamos adotando aqui, ou seja, a definição de linguagem dada por Maturana. Todos os seres vivos, em suas interações com o meio em que vivem, podem coordenar suas ações. Por exemplo, uma cadela e seus filhotes coordenam suas ações, os filhotes se aproximando e mamando quando a cadela se deita ou a cadela se deitando quando os filhotes se aproximam. Do mesmo modo, se estendo minha mão espalmada para um bebê, este pode também estender a sua e jogá-la contra a minha, produzindo um ruído, que um observador poderia chamar de bater uma palma e que poderia distinguir como uma coordenação de ações entre adulto e criança. Claro que o bebê pode ter observado outras pessoas se comportando dessa forma e, por imitação, ter aprendido isso que estamos distinguindo como uma coordenação de ações.
Se, por outro lado, o adulto disser ao bebê “Vamos bater palminha, querido” e a criança imediatamente estender sua mãozinha espalmada, ou se o adulto disser “Vamos bater mais depressa (ou mais forte)” e a criança passar a exibir um comportamento mais rápido (ou mais intenso), o observador diria que está acontecendo uma coordenação de coordenação de ações e que isso caracteriza uma interação na linguagem entre o adulto e a criança. Claro que essa coordenação de coordenação de ações poderia acontecer também numa linguagem não-verbal, o adulto usando apenas uma linguagem gestual ou analógica, por exemplo. Segundo o 4º Axioma da Teoria da Comunicação Humana, seres humanos se comunicam digital e analogicamente (linguagens verbal e não-verbal, respectivamente).
Os animais são capazes de coordenação de ações, não só entre eles, como também com seres humanos. Por exemplo, o cãozinho entrando em casa, logo que seu dono abre a porta, ou o dono abrindo a porta logo que vê o cãozinho se aproximando ou logo que esse late. Eventualmente, pode acontecer também coordenação de coordenação de ações entre um ser humano e seu animal de estimação. Por exemplo, o cãozinho se aproximando da porta, quando seu dono diz “Venha cá, vou abrir a porta para você entrar”. O cãozinho está se comportando em resposta a um comportamento exclusivamente verbal de seu dono, sem que este se dirija para a porta ou emita qualquer outro comportamento nessa direção. Entretanto, são apenas episódios de linguagem decorrentes da íntima e recorrente interação entre ambos. Diante desses episódios, as pessoas costumam comentar que aquele animal até parece humano, embora não cheguem nunca a distingui-lo como um ser humano.
No caso dos seres humanos, as interações na linguagem não são episódios esporádicos, mas constituem o modo de viver que vem sendo conservado pela espécie hominídea.
Então, os seres humanos sendo seres de linguagem, que se comunicam uns com os outros, nós, como observadores, distinguimos sistemas (sociais) humanos: conjuntos de seres humanos interagindo, se relacionando, linguajando, conversando ...
Como seres humanos, vivemos imersos em conversações, que são o fluir entrelaçado do linguajar com o emocionar-se. O emocionar-se é uma condição biológica, uma predisposição fisiológica e, enquanto animais, os seres humanos, estão sempre fluindo de um emocionar a outro. Não fazem sentido, pois, as expressões “de repente fiquei emocionado” ou “Fulano foi subitamente tomado pela emoção”. Mesmo nos momentos em que estivermos “pensando tranquilamente”, “calmamente fazendo uma leitura” ou “empenhados na solução de um problema de matemática”, estaremos emocionados, pois sempre existe uma condição fisiológica subjacente que torna certas condutas possíveis e outras não, em cada momento.
Entrelaçando-se com o linguajar, nosso emocionar condiciona o modo como conversamos: amorosamente (reconhecendo e legitimando o outro, usufruindo da convivência), raivosamente (agredindo o outro), medrosamente (evitando o outro), etc.
Sendo biologicamente estruturados assim, dotados da possibilidade da linguagem (no domínio da fisiologia), e vivendo em grupos e em conversações (no domínio das interações), temos sido chamados de seres sociais. Ou seja, somos sociais porque somos biologicamente constituídos como somos, como seres de linguagem. Segundo Maturana (2000), a espécie hominídea surgiu quando nossos ancestrais – animais coletores – conservaram o modo de viver apoiando-se sobre os dois pés (postura ereta ou bipedalismo), compartilhando alimentos e o cuidado da prole, acariciando-se e fazendo sexo frontal com olho no olho, vivendo em pequenos grupos e desfrutando a companhia dos outros – o que, tudo junto, teria propiciado o surgimento da linguagem.
Nosso viver se dá, portanto, em grupos de seres humanos conversando.
Como pensadores sistêmicos, podemos olhar para esses grupos e distingui-los como sistemas, fazendo ‘emergir então para nós os “sistemas humanos”, sistemas cujos elementos constituintes são seres humanos se relacionando, conversando. Esses sistemas humanos têm sido chamados também de antropossociais (Morin, s.d./1977).
Portanto, ao distinguir sistemas humanos, distinguimos sempre sistemas lingüísticos, como propõem Goolishian e Winderman (1989/1988), reconhecendo que interações entre seres humanos acontecem sempre na linguagem.
Pensando sistemicamente, distinguimos a organização do sistema – as relações entre os componentes, que distinguimos como as que dão identidade a esse sistema: as relações que distinguimos nesse sistema são o que desde há muito nos acostumamos a chamar de comunicações ou conversações.
Conforme o 2º. Axioma da “Teoria da Comunicação Humana”, em toda comunicação podemos distinguir um aspecto de conteúdo e outro de relação: geralmente emitimos uma mesma mensagem, ou seja, um mesmo conteúdo, com diferentes entonações para diferentes pessoas, dependendo da relação que temos com cada uma delas.
Então, pensando sistemicamente, quando distinguimos um sistema humano, distinguimos como organização desse sistema as relações – as comunicações ou conversações – entre os seres humanos que constituem aquele sistema, independentemente do conteúdo dessas conversas. Com a visão sistêmica, nosso foco estará nas relações, sempre.
Também podemos distinguir diferentes tipos de sistemas humanos, conforme o tipo de conversa, ou seja, conforme o tipo de relação ou tipo de emocionar entrelaçado com o linguajar – não conforme diferentes conteúdos.
Maturana (1997/1988) reserva o nome de sistema social para os sistemas de convivência em que as conversações acontecem na emoção de aceitação incondicional do outro, no respeito pelo outro, sem acusações ou cobranças, ou seja, em que a conversação acontece na emoção do amor – a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação do outro na convivência, criando um contexto de convivência harmoniosa e prazerosa, em que se convive pelo prazer de conviver .
Nesse sentido poderemos distinguir uma família como um “sistema social”, no sentido de Maturana, se distinguimos esse tipo de organização nesse sistema familiar .
Quando o linguajar está entrelaçado com outras emoções, Maturana distingue outros tipos de sistemas humanos que – tendo organização diferente, ou seja, um tipo diferente de relação entre seus componentes – têm identidades diferentes e recebem outros nomes. Assim, Maturana não considera como sistemas sociais nem os sistemas de trabalho, nem os sistemas de poder ou hierárquicos, pois nesses a convivência se constitui sob outras emoções, que não a aceitação incondicional do outro, o amor. Os sistemas de trabalho se constituem sob a emoção do compromisso e neles a aceitação do outro é condicionada ao cumprimento das tarefas ou deveres contratados e nos sistemas de poder prevalece uma dinâmica de ordem e obediência que configura ações de auto-negação e negação do outro, de submissão própria ou de submissão do outro, não sendo as interações embasadas pelo reconhecimento da legitimidade do outro em suas diferenças.
Entretanto, num sistema social – em que se convive pelo prazer de conviver – podem começar a surgir conversações sobre algo que se considera que não está bem. Numa família, por exemplo, podem surgir posições antagônicas de seus elementos, com diferentes opiniões sobre alguma situação por eles vivenciada e, então, nessas conversações costumam acontecer acusações, recriminações recíprocas, antagonismos, que podem ameaçar o “prazer de conviver”.
Nesse caso, o observador pode distinguir um “sistema determinado pelo problema”, cuja organização são essas conversas com opiniões divergentes ou posições antagônicas dos participantes. Esses costumam ser sistemas que distinguimos – enquanto profissionais de ajuda – quando somos procurados – seja no “contexto de terapia”, seja no “contexto de atendimento” pelos chamados “sistemas em crise” ou “sistemas humanos em crise” .
Note-se que estamos falando de “sistemas humanos em crise” e não necessariamente de “famílias em crise”. É que, no “contexto de atendimento”, trabalhamos com “sistemas amplos” ou “sistemas mais amplos que a família”, quando distinguimos um SDP – sistema determinado pelo problema. Nesse caso, distinguimos uma conversação da qual além de famílias – cuja identidade e composição são definidas por elas próprias –, também participam instituições da comunidade igualmente interessadas na solução da situação por todos distinguida como problemática . Trata-se, então, de práticas desenvolvidas com “famílias e redes sociais”.
Como profissionais sistêmicos novo-paradigmáticos, ao trabalhar com esses sistemas, vamos então focalizar as relações – ou seja, o tipo de conversa que está rolando – independentemente dos conteúdos em torno dos quais a conversa esteja se desenrolando. Identificamos como problema exatamente essas “relações problemáticas”, problemáticas porque vivenciadas a partir de posições antagônicas, que impedem a cooperação no encaminhamento de formas harmoniosas de conviver. Então, ao abordar um SDP, o profissional novo-paradigmático não se compromete com o conteúdo das conversações, nem com os problemas concretos sobre os quais se conversa, nem com possíveis soluções para esses problemas. Compromete-se com a proposta de viabilizar uma mudança das relações de antagonismo entre os que estão conversando e definindo que algo não está bem.
O profissional trabalha, pois, pela “dissolução do problema”, ou seja, pela dissolução do “sistema determinado pelo problema” : encaminhadas soluções para a situação-problema que motivou as conversações, desaparecerá o sistema lingüístico que emergiu da definição consensual inicial de seus próprios participantes, de que algo não estava bem, ou de que algo precisava mudar.
É assim que estamos pensando quando desenvolvemos e descrevemos nossas práticas com “sistemas sociais humanos”, utilizando-nos da Metodologia de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais ou Metodologia de Atendimento Sistêmico.
REFERÊNCIAS
GOOLISHIAN, Harold A.; WINDERMAN, Lee. Constructivismo, autopoiesis y sistemas determinados por problemas. Sistemas Familiares, Buenos Aires, año 5, n. 3, p. 19-29, dez 1989. Original inglês, 1988.
MATURANA, Humberto. Ontologia do conversar. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Original espanhol, 1988.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. Autopoiesis: the organization of the living. In: MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. Autopoiesis and Cognition: the realization of the living. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Boston Studies in the Philosophy of Science, vol. 42, 1980. Publicado originalmente no Chile, sob o título “De máquinas e seres vivos”, 1972.
Maturana, Humberto; Rezepka, Sima Nisis de. Formação humana e capacitação. Petrópolis, Editora Vozes, 2000. Original espanhol, s. d.
MORIN, Edgar. O método. A natureza da natureza. Lisboa: Publicações Europa-Améica, s. d. Original francês, 1977.
WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet; JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana. Um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo: Cultrix, 1968 (9ª ed. 1993). Original inglês, 1967.

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