terça-feira, 12 de outubro de 2010

SOBRE SERES HUMANOS E SISTEMAS SOCIAIS HUMANOS Maria José Esteves de Vasconcellos

Publicado por http://www.equipsis.com.br/artigos_texto.php?id=20




Tem sido comum as pessoas se referirem às práticas que desenvolvemos na EquipSIS, com nossa Metodologia de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais, como “práticas com sistemas sociais”.
Entretanto, nossa concepção atual de “sistemas sociais” é fundamentalmente diferente de outras concepções correntes e sua compreensão parece-me um pré-requisito, não só para se entender as práticas que propomos, como para vir a realizá-las.
Por isso, meu objetivo aqui é o de expor resumidamente nossas concepções novo-paradigmáticas de “seres humanos” e de “sistemas sociais humanos” , embasadas na Teoria da Autopoiese, de Maturana e Varela.
Concebemos os seres humanos como seres vivos que vivem na linguagem.
Conforme a Teoria da Autopoiese de Maturana e Varela (1980/1972) – que é uma teoria sistêmica para os seres vivos – todos os sistemas existem em dois domínios fenomênicos que não se intersectam: o domínio de existência de seus componentes e o domínio de sua existência como unidade, quando interage com o meio.
Todos os seres vivos existem no domínio fisiológico (dos fenômenos que acontecem no organismo, na interação entre seus elementos componentes) e no domínio das condutas (dos fenômenos que acontecem na interação / relação do sistema ou unidade com seu meio, por exemplo, suas trocas de matéria e energia).
No caso dos seres vivos humanos, sua estrutura filogenética (biológica) permite (ou seja, contém a possibilidade de) que, na interação com o meio, esses seres vivos desenvolvam a linguagem, distinguindo-se assim dos demais seres vivos e constituindo-se como humanos, uma vez que se desenvolva efetivamente a linguagem, no domínio das interações.
E então, no caso dos seres vivos humanos, os fenômenos que acontecem na interação do ser vivo linguajante com seu meio têm sido chamados de fenômenos comunicacionais.
Segundo a Teoria da Comunicação Humana, de Watzlawick, Beavin e Jackson (1968/1967) – também uma teoria sistêmica – todos os comportamentos ou condutas dos seres humanos têm valor de mensagem, ou seja, todo comportamento é comunicação. E, como não é possível não se comportar, não é possível não se comunicar. Esse é o 1º Axioma dessa teoria.
Importante ressaltar que a estrutura fisiológica inicial de qualquer ser vivo só contém possibilidades e que tudo, a partir daí, dependerá também das possibilidades contidas na estrutura do meio com que esse ser vivo interagir. Nessas interações, a estrutura do ser vivo seleciona (conforme suas próprias possibilidades) entre as possibilidades do meio, ao mesmo tempo que a estrutura do meio seleciona (também conforme suas próprias possibilidades) entre as possibilidades do ser vivo. A interação que ocorre é o resultado dessa dupla seleção estrutural.
Essa compreensão do comportamento do ser vivo, segundo a Teoria da Autopoiese, é uma compreensão relacional ou interacional e, por isso, é reconhecida como uma teoria sistêmica.
Assim, no caso da linguagem, o ser vivo irá desenvolvê-la ou não, dependendo não só de suas características biológicas (tal como a complexidade de seu sistema nervoso), como também das características do meio com que ele interagir. As meninas-lobo , por exemplo, apesar de dotadas filogeneticamente com a possibilidade de virem a falar, não desenvolveram a linguagem – como de resto não desenvolveram outros comportamentos típicos do ser vivo humano.
Importante destacar a concepção de linguagem que estamos adotando aqui, ou seja, a definição de linguagem dada por Maturana. Todos os seres vivos, em suas interações com o meio em que vivem, podem coordenar suas ações. Por exemplo, uma cadela e seus filhotes coordenam suas ações, os filhotes se aproximando e mamando quando a cadela se deita ou a cadela se deitando quando os filhotes se aproximam. Do mesmo modo, se estendo minha mão espalmada para um bebê, este pode também estender a sua e jogá-la contra a minha, produzindo um ruído, que um observador poderia chamar de bater uma palma e que poderia distinguir como uma coordenação de ações entre adulto e criança. Claro que o bebê pode ter observado outras pessoas se comportando dessa forma e, por imitação, ter aprendido isso que estamos distinguindo como uma coordenação de ações.
Se, por outro lado, o adulto disser ao bebê “Vamos bater palminha, querido” e a criança imediatamente estender sua mãozinha espalmada, ou se o adulto disser “Vamos bater mais depressa (ou mais forte)” e a criança passar a exibir um comportamento mais rápido (ou mais intenso), o observador diria que está acontecendo uma coordenação de coordenação de ações e que isso caracteriza uma interação na linguagem entre o adulto e a criança. Claro que essa coordenação de coordenação de ações poderia acontecer também numa linguagem não-verbal, o adulto usando apenas uma linguagem gestual ou analógica, por exemplo. Segundo o 4º Axioma da Teoria da Comunicação Humana, seres humanos se comunicam digital e analogicamente (linguagens verbal e não-verbal, respectivamente).
Os animais são capazes de coordenação de ações, não só entre eles, como também com seres humanos. Por exemplo, o cãozinho entrando em casa, logo que seu dono abre a porta, ou o dono abrindo a porta logo que vê o cãozinho se aproximando ou logo que esse late. Eventualmente, pode acontecer também coordenação de coordenação de ações entre um ser humano e seu animal de estimação. Por exemplo, o cãozinho se aproximando da porta, quando seu dono diz “Venha cá, vou abrir a porta para você entrar”. O cãozinho está se comportando em resposta a um comportamento exclusivamente verbal de seu dono, sem que este se dirija para a porta ou emita qualquer outro comportamento nessa direção. Entretanto, são apenas episódios de linguagem decorrentes da íntima e recorrente interação entre ambos. Diante desses episódios, as pessoas costumam comentar que aquele animal até parece humano, embora não cheguem nunca a distingui-lo como um ser humano.
No caso dos seres humanos, as interações na linguagem não são episódios esporádicos, mas constituem o modo de viver que vem sendo conservado pela espécie hominídea.
Então, os seres humanos sendo seres de linguagem, que se comunicam uns com os outros, nós, como observadores, distinguimos sistemas (sociais) humanos: conjuntos de seres humanos interagindo, se relacionando, linguajando, conversando ...
Como seres humanos, vivemos imersos em conversações, que são o fluir entrelaçado do linguajar com o emocionar-se. O emocionar-se é uma condição biológica, uma predisposição fisiológica e, enquanto animais, os seres humanos, estão sempre fluindo de um emocionar a outro. Não fazem sentido, pois, as expressões “de repente fiquei emocionado” ou “Fulano foi subitamente tomado pela emoção”. Mesmo nos momentos em que estivermos “pensando tranquilamente”, “calmamente fazendo uma leitura” ou “empenhados na solução de um problema de matemática”, estaremos emocionados, pois sempre existe uma condição fisiológica subjacente que torna certas condutas possíveis e outras não, em cada momento.
Entrelaçando-se com o linguajar, nosso emocionar condiciona o modo como conversamos: amorosamente (reconhecendo e legitimando o outro, usufruindo da convivência), raivosamente (agredindo o outro), medrosamente (evitando o outro), etc.
Sendo biologicamente estruturados assim, dotados da possibilidade da linguagem (no domínio da fisiologia), e vivendo em grupos e em conversações (no domínio das interações), temos sido chamados de seres sociais. Ou seja, somos sociais porque somos biologicamente constituídos como somos, como seres de linguagem. Segundo Maturana (2000), a espécie hominídea surgiu quando nossos ancestrais – animais coletores – conservaram o modo de viver apoiando-se sobre os dois pés (postura ereta ou bipedalismo), compartilhando alimentos e o cuidado da prole, acariciando-se e fazendo sexo frontal com olho no olho, vivendo em pequenos grupos e desfrutando a companhia dos outros – o que, tudo junto, teria propiciado o surgimento da linguagem.
Nosso viver se dá, portanto, em grupos de seres humanos conversando.
Como pensadores sistêmicos, podemos olhar para esses grupos e distingui-los como sistemas, fazendo ‘emergir então para nós os “sistemas humanos”, sistemas cujos elementos constituintes são seres humanos se relacionando, conversando. Esses sistemas humanos têm sido chamados também de antropossociais (Morin, s.d./1977).
Portanto, ao distinguir sistemas humanos, distinguimos sempre sistemas lingüísticos, como propõem Goolishian e Winderman (1989/1988), reconhecendo que interações entre seres humanos acontecem sempre na linguagem.
Pensando sistemicamente, distinguimos a organização do sistema – as relações entre os componentes, que distinguimos como as que dão identidade a esse sistema: as relações que distinguimos nesse sistema são o que desde há muito nos acostumamos a chamar de comunicações ou conversações.
Conforme o 2º. Axioma da “Teoria da Comunicação Humana”, em toda comunicação podemos distinguir um aspecto de conteúdo e outro de relação: geralmente emitimos uma mesma mensagem, ou seja, um mesmo conteúdo, com diferentes entonações para diferentes pessoas, dependendo da relação que temos com cada uma delas.
Então, pensando sistemicamente, quando distinguimos um sistema humano, distinguimos como organização desse sistema as relações – as comunicações ou conversações – entre os seres humanos que constituem aquele sistema, independentemente do conteúdo dessas conversas. Com a visão sistêmica, nosso foco estará nas relações, sempre.
Também podemos distinguir diferentes tipos de sistemas humanos, conforme o tipo de conversa, ou seja, conforme o tipo de relação ou tipo de emocionar entrelaçado com o linguajar – não conforme diferentes conteúdos.
Maturana (1997/1988) reserva o nome de sistema social para os sistemas de convivência em que as conversações acontecem na emoção de aceitação incondicional do outro, no respeito pelo outro, sem acusações ou cobranças, ou seja, em que a conversação acontece na emoção do amor – a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação do outro na convivência, criando um contexto de convivência harmoniosa e prazerosa, em que se convive pelo prazer de conviver .
Nesse sentido poderemos distinguir uma família como um “sistema social”, no sentido de Maturana, se distinguimos esse tipo de organização nesse sistema familiar .
Quando o linguajar está entrelaçado com outras emoções, Maturana distingue outros tipos de sistemas humanos que – tendo organização diferente, ou seja, um tipo diferente de relação entre seus componentes – têm identidades diferentes e recebem outros nomes. Assim, Maturana não considera como sistemas sociais nem os sistemas de trabalho, nem os sistemas de poder ou hierárquicos, pois nesses a convivência se constitui sob outras emoções, que não a aceitação incondicional do outro, o amor. Os sistemas de trabalho se constituem sob a emoção do compromisso e neles a aceitação do outro é condicionada ao cumprimento das tarefas ou deveres contratados e nos sistemas de poder prevalece uma dinâmica de ordem e obediência que configura ações de auto-negação e negação do outro, de submissão própria ou de submissão do outro, não sendo as interações embasadas pelo reconhecimento da legitimidade do outro em suas diferenças.
Entretanto, num sistema social – em que se convive pelo prazer de conviver – podem começar a surgir conversações sobre algo que se considera que não está bem. Numa família, por exemplo, podem surgir posições antagônicas de seus elementos, com diferentes opiniões sobre alguma situação por eles vivenciada e, então, nessas conversações costumam acontecer acusações, recriminações recíprocas, antagonismos, que podem ameaçar o “prazer de conviver”.
Nesse caso, o observador pode distinguir um “sistema determinado pelo problema”, cuja organização são essas conversas com opiniões divergentes ou posições antagônicas dos participantes. Esses costumam ser sistemas que distinguimos – enquanto profissionais de ajuda – quando somos procurados – seja no “contexto de terapia”, seja no “contexto de atendimento” pelos chamados “sistemas em crise” ou “sistemas humanos em crise” .
Note-se que estamos falando de “sistemas humanos em crise” e não necessariamente de “famílias em crise”. É que, no “contexto de atendimento”, trabalhamos com “sistemas amplos” ou “sistemas mais amplos que a família”, quando distinguimos um SDP – sistema determinado pelo problema. Nesse caso, distinguimos uma conversação da qual além de famílias – cuja identidade e composição são definidas por elas próprias –, também participam instituições da comunidade igualmente interessadas na solução da situação por todos distinguida como problemática . Trata-se, então, de práticas desenvolvidas com “famílias e redes sociais”.
Como profissionais sistêmicos novo-paradigmáticos, ao trabalhar com esses sistemas, vamos então focalizar as relações – ou seja, o tipo de conversa que está rolando – independentemente dos conteúdos em torno dos quais a conversa esteja se desenrolando. Identificamos como problema exatamente essas “relações problemáticas”, problemáticas porque vivenciadas a partir de posições antagônicas, que impedem a cooperação no encaminhamento de formas harmoniosas de conviver. Então, ao abordar um SDP, o profissional novo-paradigmático não se compromete com o conteúdo das conversações, nem com os problemas concretos sobre os quais se conversa, nem com possíveis soluções para esses problemas. Compromete-se com a proposta de viabilizar uma mudança das relações de antagonismo entre os que estão conversando e definindo que algo não está bem.
O profissional trabalha, pois, pela “dissolução do problema”, ou seja, pela dissolução do “sistema determinado pelo problema” : encaminhadas soluções para a situação-problema que motivou as conversações, desaparecerá o sistema lingüístico que emergiu da definição consensual inicial de seus próprios participantes, de que algo não estava bem, ou de que algo precisava mudar.
É assim que estamos pensando quando desenvolvemos e descrevemos nossas práticas com “sistemas sociais humanos”, utilizando-nos da Metodologia de Atendimento Sistêmico de Famílias e Redes Sociais ou Metodologia de Atendimento Sistêmico.
REFERÊNCIAS
GOOLISHIAN, Harold A.; WINDERMAN, Lee. Constructivismo, autopoiesis y sistemas determinados por problemas. Sistemas Familiares, Buenos Aires, año 5, n. 3, p. 19-29, dez 1989. Original inglês, 1988.
MATURANA, Humberto. Ontologia do conversar. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Original espanhol, 1988.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. Autopoiesis: the organization of the living. In: MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. Autopoiesis and Cognition: the realization of the living. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company. Boston Studies in the Philosophy of Science, vol. 42, 1980. Publicado originalmente no Chile, sob o título “De máquinas e seres vivos”, 1972.
Maturana, Humberto; Rezepka, Sima Nisis de. Formação humana e capacitação. Petrópolis, Editora Vozes, 2000. Original espanhol, s. d.
MORIN, Edgar. O método. A natureza da natureza. Lisboa: Publicações Europa-Améica, s. d. Original francês, 1977.
WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet; JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana. Um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo: Cultrix, 1968 (9ª ed. 1993). Original inglês, 1967.

Um comentário:

  1. Olá.
    Tb estou concorrendo no Top, mas em Variedades, resolvi ver as demais categorias, aproveitando para aprender mais.
    Gostei muito desse texto e não imaginava encontrar algo assim na área de Economia.
    Votei aqui no seu selo e espero q tenha sucesso.

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