quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Projeto de Desenvolvimento de Rede Solidária

Desenvolvimento Local e o Projeto de Desenvolvimento de Rede Solidária: Por que um projeto que não incuba?

Mariana Neubern de Souza Almeida

O que se espera de um processo de incubagem? A palavra incubar vem sendo utilizada pelas mais diversas instituições na realização de numerosas e distintas atividades. No que se refere ao trabalho realizado especificamente pela ITCP-USP, que consiste no estímulo a formação e acompanhamento das atividades de cooperativas e outros empreendimentos autogestionários, pode-se destacar duas expectativas iniciais que motivaram o desenvolvimento de uma metodologia de incubagem: a possibilidade de emancipação do indivíduo e a geração de renda.
Por emancipação do indivíduo, entende-se a possibilidade de mudar sua forma de sentir e agir a partir da devolução a ele de algo há muito perdido: o sentido de seu trabalho. A autogestão, por ser uma forma de organização de um empreendimento em que todos aqueles que nele trabalham tem igual direito à voz e voto, garante a atuação das pessoas nas decisões daquilo que lhes pertence. Elas passam a responsabilizar-se, a identificar-se com cada ação. É nesse momento que o trabalho ganha um sentido, maior inclusive do que a obtenção da renda. Ele passa a ser uma forma de realização da própria pessoa. Além disso, a não hierarquização traz a necessidade da redefinição das relações entre as pessoas, nas quais passam a ter lugar características variadas, que deixam de estar presas aos limites das funções exercidas por cada uma. Ou seja, a pessoa não é mais o operário, ela é mais um agente do conjunto, o que inclui todas as suas características, e não apenas aquelas referentes à sua destreza na operação de técnicas e máquinas. Não são mais funcionários, mas sim vidas interagindo no intuito de um desenvolvimento coletivo.
Esta, no entanto, não é a intenção mais disseminada dos processos de incubagem. De maneira geral, a Economia Solidária, em especial em suas ações de formação de cooperativas, desenvolveu-se no Brasil com mais intensidade a partir dos anos 90, como resposta à situação econômica do país. O raciocínio era simples: o desemprego assumiu um caráter inédito até então, não apenas pela sua dimensão (maiores taxas), mas por sua persistência. É possível dizer que nunca antes se teve tão pouca expectativa de se arrumar um emprego como nos dias atuais. Desse modo, a única alternativa aparentemente viável seria a organização autônoma dos trabalhadores. Na falta de emprego, eles próprios criariam seus trabalhos. Assim, a principal motivação das iniciativas de incubadoras era a expectativa de criação de formas alternativas de geração de renda.
Das duas expectativas da ITCP-USP, pode-se dizer que se atingiu bons resultados na primeira delas. Ao longo da grande maioria dos cursos e grupos já acompanhados, os participantes demonstraram mudanças em seus comportamentos cotidianos que, embora ainda tímidas, reforçaram o potencial de transformação na medida em que a autogestão puder ter um papel central em suas vidas.
Pode-se citar como exemplo um bazar realizado no Jardim Ângela, organizado conjuntamente entre todos os participantes do Oportunidade Soldaria naquele distrito, um grupo de quase 500 pessoas. Naquele momento, a autogestão fazia parte de todas as instâncias da vida daquelas pessoas, que puderam expor seus trabalhos, alimentar-se e divertir-se com a família e amigos. Com isso, pode-se observar uma dinâmica de cooperação desinteressada, no caso das pessoas que fizeram a montagem e desmontagem das barracas, por exemplo, que foram reconhecidas pelos demais, que lhes ofereceram fichas de suas barracas, após ter falhado inicialmente a organização de vales para os montadores. Assim, o bazar foi considerado um sucesso, não exatamente porque as pessoas tenham obtido bons resultados financeiros, o que não aconteceu com a maioria, mas porque naquele momento elas já tinham tudo o que precisavam, alimento, diversão, trabalho, e um relacionamento diferenciado entre as pessoas. Outros exemplos importantes são os de alguns grupos, como o de Cuidadores de Idosos incubado pela ITCP-USP, que se mantiveram, ou se mantém até hoje, muito mais pelo grupo do que pelo empreendimento. Isto é, aqueles grupos em que se percebeu a vontade das pessoas em conviverem num ambiente autogestonário, independente do resultado econômico que isso lhes traria.
É em relação à segunda expectativa que surgem os maiores questionamentos. Embora já sejam muitos os casos em que os trabalhadores se uniram para assumir fábricas falidas ou organizarem suas vendas em cooperativas rurais, que acabaram prosperando e até mesmo expandindo suas atividades, as histórias dos pequenos negócios que conseguiram gerar renda, iniciando sem estrutura e nicho de mercado prévio, são bem menos numerosas.
É preciso, então, um olhar mais cauteloso sobre o que define as possibilidades reais de geração de renda de um empreendimento. Ora, a primeira questão que deveria surgir é: o que é renda? Estamos chamando de renda a massa de rendimentos provenientes das mais diversas formas - salário, lucro, pensões, aluguéis... - que estão circulando e que devem ser alocados em diferentes bens e atividades - produtos, abertura de novos negócios, contratação de novas pessoas... - para que o processo produtivo possa ser realimentado. Estando isso claro, deve-se questionar a seguir: de onde virá essa renda? Apesar das diferentes proveniências da renda, para que ela possa ser utilizada com algum outro objetivo, diferente daquele que a gerou, ela deve necessariamente passar pelo seu espaço de circulação: o mercado. Ou seja, do ponto de vista de qualquer pessoa ou atividade que estejam em busca de renda, objetivamente, toda ela vem do mercado.
Como essa renda chega até os empreendimentos, isto é, o que há no mercado que define quais negócios irão obter sucesso financeiro? Inúmeros fatores passam pela nossa cabeça ao ouvirmos tal pergunta, são questões como bom atendimento, acesso a investimento e capital de giro, tino para negócios, preocupação com produto de qualidade, variedade, boa pesquisa de mercado, entre tantos outros. Nota-se, no entanto, que essas respostas referem-se a ações dos empreendimentos, mas não é neles que está a princípio a renda, e sim no mercado. Assim, a resposta que a pergunta está buscando não se encontra nesses fatores. Ela quer saber como esses fatores são selecionados e avaliados pelo agente detentor da renda, ou seja, o mercado. Para isso, torna-se necessário um olhar mais próximo da estrutura de produção, distribuição e crescimento do mercado.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, apesar de na maioria das vezes considerar-se mercado como um ente abstrato, cuja personalidade ninguém assume, quando falamos de mercado estamos nos referindo a agentes concretos, todos aqueles envolvidos no processo de produção e distribuição de uma sociedade. Ou seja, todos que trabalham, consomem qualquer produto, utilizam transporte público, assistem televisão, fazem parte do mercado. Isso porque são essas pessoas, através de suas ações e decisões, individuais e via empresas, que vão definir os caminhos que a renda irá seguir. Assim, o mercado não é algo tão indefinível e inquestionável, ao qual pode-se apenas adaptar. Ele é formado por pessoas e, embora o peso de cada empresa ou pessoa em suas decisão seja bastante diferente, o que também está relacionado às regras sobre as quais se estrutura o mercado, ele pode ser entendido e adaptado através de uma abordagem concreta dos sistemas de produção e distribuição.
Dito isso, podemos iniciar a análise de suas estruturas a partir de uma pergunta essencial: se todos os empreendimentos conseguirem atender à risca as determinações de mercado, este abrirá espaço para a entrada de todos? Isto é, todo e qualquer empreendimento que saiba adaptar-se, fazendo a escolha correta de seu produto, apresentando alta qualidade, bom atendimento, localização, entre tantos outros requisitos, terá como resposta o recebimento de uma parte suficiente da renda?
A suposição a ser descrita a seguir é de que a resposta para essa pergunta é não, o que significa dizer que, por mais que criem empreendimentos organizados, com produtos adaptados, ainda assim o sucesso a todos não será possível. É certo que não se pode concluir a impossibilidade de um sistema sustentável e bem distribuído a partir da mera observação, são necessários diversos estudos, em diferentes áreas. No entanto, pode-se levantar algumas questões que levam a essa percepção de insustentabilidade:

Como a propriedade é privada, as únicas formas de distribuição de renda são os salários e os negócios próprios.
No que diz respeito aos salários, o sistema não vive mais seus tempos de dependência do consumo de massa. Enquanto na época do chamado fordismo vigorou um modelo pautado essencialmente no consumo de massa, a estrutura de produção e rendimentos hoje parece não necessitar dessa característica para sobreviverem. Isso significa dizer que, enquanto as primeiras décadas do século XX assistiram a uma preocupação da indústria em expandir seus mercados, transformando, a partir do aumento dos salários, funcionários em consumidores, as últimas décadas foram protagonistas de um cenário em que a diversificação e diferenciação de produtos de alto valor agregado, com consumo concentrado nas classes mais altas, ganham maior espaço na pauta de interesses da indústria. Ou seja, a produção não depende mais do salário, e, portanto, nem o mercado depende da distribuição de renda.
(Aqui se encaixam os exemplos da De A à Z e 7 elos, cooperativas acompanhadas pela ITCP-USP que só conseguiram sustento por atender a um mercado de luxo, e no primeiro caso não deram certo também por não conseguir atingir esse mercado, embora os produtos importantes para o progresso delas fossem esses. Elas indicam que a produção não deve se voltar a quantidade, mas sim à preço. Além disso, existem os exemplos de produtos que antes eram considerado duráveis e que hoje tem um tempo de vida muito mais curto - geladeiras, vídeos, computadores - Apenas as camadas mais altas acompanham os avanços desses itens, num processo que parece poder durar para sempre, criando e vendendo quantos produtos destes forem necessários, sem precisar que haja uma massa compradora, a fidelização dessa classe já é suficiente.)

O padrão de qualidade capitalista exige uma estrutura de produção e gerenciamento de alta tecnologia, alto investimento inicial e, em geral, larga escala. Isso tem implicação tanto nas possibilidades de negócios quanto nos salários: impõe concentração produtiva (poucos negócios) e alta tecnologia (poucos trabalhadores).
Além da estrutura básica de produção, é preciso se considerar outras motivações que poderiam levar à distribuição, ações como as governamentais ou sociais de estímulo privado. Mesmo esses casos, no entanto, quando observadas suas conseqüências mais gerais, não parecem ser um caminho sustentável:
a) O investimento em desenvolvimento local é bastante restrito, isso porque as estruturas de produção são bastante concentradas. Melhores condições fiscais ou apelos sociais eventuais pelo desenvolvimento de uma região podem até deslocar fábricas para a área, mas se essa ação não vier acompanhada de uma maior renda global, representará apenas um deslocamento circunstancial, e não um desenvolvimento social, pelo menos não no âmbito global.
(Ainda na região trabalhada, pode-se citar os exemplos de duas grandes fábricas que compunham um pólo empregador para a região do Capão Redondo e Jardim Ângela, a Caloi e a Monark, que saíram da região com a abertura econômica, proporcionando certamente a abertura de empregos em outros locais do mundo, mas não na região. Demonstram que não é possível “esticar” os benefícios de uma fábrica).
b) O que move as decisões de investimento é, essencialmente, a possibilidade de lucro. Hoje em dia, a responsabilidade social vem aumentando a importância dada ao investimento social, seja por criar uma imagem positiva das empresas no mercado, possibilitando melhores resultados internos e externos, seja porque a consciência social de fato aumento. De qualquer forma, a escolha do momento e do espaço em que essas ações vão se dar é algo que independe das comunidades que serão atendidas. Mais uma vez. É o caso dos distritos da Zona Sul, que passaram a receber diversos desses investimentos na década de 90, após um apelo mais intenso da imprensa em relação a violência nessas regiões. Passadas as maiores crises, diversas instituições que trabalhavam ali se retiraram e foram atuar em outros locais. É uma forma de investimento imprecisa e insegura, sobre a qual dificilmente deve-se apoiar o desenvolvimento de uma região.

Se essas hipóteses são verdadeiras, quais as conseqüências da estrutura definida pelo mercado? Além de todo o impacto no nível pessoal, que foi parcialmente descrito na questão da importância da emancipação do indivíduo, tem-se a conclusão de que este é um sistema incapaz de garantir justiça material, dadas as duas regras de distribuição.
Se for assim, pergunta-se: vale a pena incubar uma cooperativa? Isto é, o ato de incentivar um empreendimento solidário sem dúvida pode contribuir com algumas questões da vida das pessoas, tanto do ponto de vista de suas relações pessoais quanto em termos de renda, mas ele é capaz de transformar as estruturas de distribuição e garantir um padrão material abrangente e estável para os grupos envolvidos? Existe alguma ação, no processo de incubação, que seja capaz não apenas de atender às lógicas de mercado e inserir um empreendimento, mas efetivamente sobrepor a lógica descrita nas hipóteses acima?
Acredita-se que a incubação tal como vêm sendo entendida até hoje não é capaz de trazer essas respostas. Exatamente por isso, não resulta necessariamente em sucesso econômico. No entanto, a autogestão, por ser um projeto de envolvimento das pessoas não só com o seu trabalho, mas com todos os espaços que ocupa, e por permitir uma relação diferenciada entre as pessoas, é uma possível resposta à conseqüência do mercado. Mas ela não é capaz de atingir todo o seu potencial de mudança sem fazer parte de todos os espaços da vida das pessoas, extrapolando o contexto da cooperativa e passando a atuar no desenvolvimento local de determinada comunidade.
A proposta é de um processo de incubação que seja capaz de transformar a autogestão em um movimento. Ou seja, a partir da convicção da inviabilidade de se atingir os níveis de justiça material e de liberdade do ser humano a partir da lógica de organização capitalista, seria iniciado o processo de repensar as principais atividades e necessidades de um local e traçar estratégias de se atingi-las, inclusive via o acesso a investimentos. A forma como esse processo deve ocorrer é que deve ser seu diferencial. Em primeiro lugar, a aplicação de tais investimentos não deverá se realizar por meio da reprodução dos moldes comuns de produção e distribuição. Em segundo, ele tem que partir do envolvimento local, compreendendo neste termo todos os atores deste local seja governo, seja entidade, seja dona-de-casa. Em terceiro, este envolvimento tem que partir da lógica autogestionária, pois só a partir dela é que as pessoas identificam-se e se responsabilizam pelas ações. Por fim, a avaliação das necessidades compreende toda a vida das pessoas, e não apenas as necessidades econômicas.
Assim, propõe-se que, no lugar da incubação tal como se faz hoje, tenha-se a atenção voltada para a criação de um espaço de organização de um movimento de planejamento local. Nele, a estrutura de produção poderia até mesmo assumir o formato de uma cooperativa, mas apenas como desdobramento lógico de uma estrutura local de reprodução autogestionária da vida, em todas as suas instâncias, e não mais como objetivo de nossa ação.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A patologia da Normalidade - Pierre Weil

A patologia da normalidade. PARA ALÉM DA NORMOSE
Pierre Weil

"As emoções destrutivas ligadas à cultura, matam em nós mesmos a harmonia e
a paz de nossa sabedoria primordial".

O poder castrador de nossa sociedade não é de ordem sexual, como afirmava
Freud, mas sim, espiritual e seu nome é: normose - a patologia da
normalidade.

Ela impõe a sociedade uma cultura do sucesso, sendo que o fracasso e o
ostracismo são uns dos maiores medos do normótico, que busca por segurança
em estados temporários e ilusórios, nos objetos exteriores, em conquistas e
sucessos efêmeros não sabendo que a verdadeira segurança é uma condição
subjetiva, resultado de uma experiência transpessoal, que se revelará de
forma espontânea e natural no momento do despertar da verdadeira
consciência.

O desastre é eminente para o normótico que faz depender a sua segurança das
parafernálias externas e não da paz da vida interna, a qual não depende das
circunstâncias da vida externa. O normótico vive fazendo investimentos e
seguros para sua vida, mas não investe na espiritualidade, sendo esperto por
alguns momentos, mas um tolo a longo prazo, pois leva muito tempo para ele
constatar que o acúmulo de riquezas, prestígio e poder é apenas uma troca, e
não o fim, da sua falta de segurança. O normótico sofisticado pode até fazer
um roteiro iludido de trabalhos espirituais, mas no fundo tais atividades
espirituais estão ao serviço da sua busca de segurança exterior e poder.

Em sua busca insana pela segurança financeira, status e reconhecimento
exterior, o normótico perde sua saúde para depois pagar de bom gosto tudo o
que conquistou para ter novamente sua saúde física, mental e emocional.

Na tentativa de conquistar a "pseudo-seguranç a" para a sua vida, o normótico
esquece de vivê-la e como resultado vive num desespero silencioso,
precisando às vezes chegar ao topo da escada do sucesso, para amargamente
descobrir que a mesma estava encostada na parede errada. É justamente neste
desespero silencioso que uma fração de sanidade pode romper as paredes da
normose e levá-lo ao questionamento do tipo: Espelho, espelho meu, será que
algum dia eu já vivi?

O normótico, ou se preferir, o entediado anônimo - é vítima de um estado de
conflito interior prolongado. Na tentativa de anestesiar a dor resultante
desse conflito interior, das esperanças frustradas e dos sonhos abortados,
injeta "*novocaína*" - o anestésico do novo - em muitos aspectos da sua
personalidade. Ele não sente nada de maneira vívida: nem alegria, nem
tristeza, nem esperança, nem desespero. As coisas acontecem, mas ele não as
registra pois é preciso muita coragem para se permitir sentir.

É alguém que vive num eterno confinamento solitário causado por suas crenças
disfuncionais; alguém que se trancou numa rotina solitária e engoliu a
chave. Alguém que vive uma vida unilateral e morre em estado imperfeito.

Não possui a consciência de que a Grande Vida lhe deu uma alma, uma mente e
um corpo, os quais deve procurar desenvolver de forma harmônica. Vive
dominado pelas influências do sistema de crenças do modismo social
permitindo que a sociedade continue lhe impondo suas ilusões por meio de um
fortíssimo esquema de marketing que o bombardeia de forma brutal durante as
24 horas do seu dia a dia.

Não possuí a coragem de virar a mesa contra o clichê social e assumir a
responsabilidade pela sua maneira de pensar e pelo controle de sua vida. Não
fica difícil constatar os resultados desse caótico modo de viver: medos,
preocupações, paranóias, estresse, insatisfação, descontentamento e toda
espécie de somatização oriunda de uma pseudofelicidade.

Não consegue perceber que sem satisfação interior, nenhum acúmulo de sucesso
exterior consegue trazer felicidade e segurança duradoura. Como Adão e Eva,
vive exilado do jardim das delícias da unidade consciente com Deus, pela
ação da serpente do conformismo, tornando-se com isso, um ser limitado
devido ao crédito dado ao sistema de crenças do clã a que pertence.

O normótico opta por uma forma de pensar pelo simples fato de muitas pessoas
optarem por ela ou por constar de algum livro que a sociedade considera como
sagrado; não consegue avaliar por si mesmo sobre a questão e ajuizar se ela
é razoável ou não. Para ele, se prender as velhas rotinas consagradas pela
sociedade, é muito mais seguro do que se aventurar ao Aberto. É aquele cujo
desejo mais profundo ainda dorme, mas que teme a ação perigosa de acordar.

É como um cavaleiro que perdeu o domínio da carruagem e é arrastado pelos
cavalos dos instintos degenerados. Vive atrelado à matéria, com o Ser ainda
fechado para o que é eterno, caminhando sobre uma corda bamba, em chamas,
pronta para arrebentar. Não possuí a consciência de que não é um ser
material com necessidades espirituais ocasionais; mas sim, um ser espiritual
com necessidades materiais ocasionais.

Prefere a pseuda-paz do conformismo social do que a angústia da busca pelo
seu vir-a-ser. Passa a maior parte de sua vida com um sentimento de vazio e
falta de propósito tão grande, que é como se faltasse uma parte de si mesmo.
Sem que se perceba, muito do que faz o leva cada vez mais para a sensação de
vazio interior. Procura preenchê-lo com acúmulo de dinheiro e matéria, com
prestígio e reconhecimento profissional, chegando muitas vezes a extremos
como o excesso de comida, bebida, sexo ou até mesmo às drogas.

Quanto maior é o seu desespero em ocupar esse vazio interior, mais vazio se
sente.

Em nenhum momento, lhe ocorrer que essa sensação de ausência possa ser de
natureza espiritual, muito embora, esse conhecimento lhe chega de varias
maneiras. Somente quando a dor chega ao seu extremo intolerável é que ele
começa a olhar para dentro de si e a buscar por algumas práticas
espirituais, através das quais, recebe vislumbres do caminho do belo. Mas
que na inércia da mormose pode ficar como experiência de mundo paralelo, e
logo depois que o mormótico volta a sua rotina, e o automatismo novamente o
come e o subjuga.

Normose: uma fabrica de clichês.



Magritte

Boa parte dos normóticos está limitada pela identificação corporal. Não
possuem a consciência de que é justamente esse tipo de limitação sem
fundamento que os mantém longe de qualquer possibilidade de estados
alterados de consciência.

O normótico, quando não há nada para fazer, pensa em todas as possibilidades
de atividades, menos, tentar se sentar e experiênciar o Ser; é alguém que
sofreu a ferroada do não ser, a dor de uma vida não vivida, das estradas não
exploradas, dos riscos não sofridos, das pessoas não amadas, dos pensamentos
não realizados e dos sentimentos não apreciados.

Sua normose é fruto do resultado do pecado da omissão. É alguém que passa
muito de seu tempo se iludindo, deliberadamente, criando álibis para
encobrir suas fraquezas e que não possui a consciência de que se utilizasse
seu tempo de maneira diferente, esse mesmo tempo seria suficiente para curar
seus defeitos de caráter e imperfeições, de modo que então não seriam
necessários os álibis.

“O normótico vive principalmente para si próprio e sua família”. O seu tempo
completo é devorado pelo seu trabalho, atividades sociais e família. O chato
é que nestas atividades ele também não mostra sua beleza, mas sua capacidade
de cumprir rotinas, regulamentos e formalidades. Ele está na família, mas
não está, é podado da possibilidade do relacionamento amoroso, porque ele
não tem corpo, não tem tempo, não sabe como se entregar e curtir o afeto
profundo e simples de viver em família. Em raríssimos casos existe qualquer
visão mais elevada do que essa. Poucos são capazes até mesmo de dar um olhar
em direção aos pedintes que vem em sua direção nas paradas do trânsito.
Quase toda sua experiência é a de viver formalmente para si mesmo e sua
família, com apenas um minúsculo fragmento deixado para os outros, sempre
normótico, igual, formal, repetitivo e sem tempo e disposição para
estabelecer contato de coração.

Quanto algo o toca, o rejeita por medo de ter que abandonar seu modo de vida
disfuncional com suas conseqüentes zonas de conforto. Devido a esse tipo de
medo, vive sob a custódia de uma elite dominante da mesma forma como o gado
está sob os cuidados dos boiadeiros. Ele é incapaz de ver o mestre no amado,
no filho, no amigo, ele tem mestres mortos, distantes, com os que se
relaciona através de formalidades. Não raro são às vezes em que se obriga a
fazer coisas das quais se envergonha, alegando quando descoberto, que está
cumprindo com o seu dever; é um ser que sofre devido à alienação e
desconexão com o Ser que o faz ser. Em nome da aceitação condicionada por
parte das pessoas significativas de sua vida, status e reconhecimento pelo
seu bom comportamento, negligencia a si mesmo, abandonando- se e fechando-se
para o caminho do coração, devido ao medo de ser exposto à vergonha tóxica e
a dor da solidão, tendo como resultado dessa atitude, o desenvolvimento da
incapacidade de amar de forma incondicional.

O normótico é aquele que se conforma em ouvir sobre Deus, rezar para Deus e
pela espera de um encontro com Deus no próximo mundo: alguém que* não
consegue sair da crença para ousar pela busca da experiência*. Não tem a
percepção espiritual, que torna Deus uma realidade demonstrável; está
convencido de que Deus é uma necessidade, mas ainda não está convencido de
Deus. Prefere se agarrar na concepção oriunda da experiência pessoal de Deus
vinda de terceiros. Cultua mestres, santos, deuses, orixás de forma
burocrática e automática. Ele cumpre as programações, reza e comunga, mas
sem entregar a alma. Ele agradece e pede a seus deuses e mestres, mas não
escuta a respostas deles. Tudo nele é superficial, aparente, mecânico.

Vive preso a um ciclo compulsivo de hábitos, comportamentos e
relacionamentos profissionais e/ou afetivos mesmo que seus prazos de
validade estejam vencidos e repetidamente se mostrando disfuncionais. Sua
falta de sinceridade para consigo mesmo é uma das maiores e mais potentes
barreiras do processo de vir-a-ser.

A insinceridade corrói a integridade de sua Alma e destrói o fortalecimento
da razão. Vive aprisionado a um modismo social que determina um
comportamento padronizado dentro de uma sociedade mecanicamente padronizada
e com isso, autoboicota todo seu potencial criativo. Se ao menos soubesse da
existência de um estilo de vida imensamente mais rico e profundo do que toda
essa existência apressada - dotada de serenidade, paz e poder, sem pressa -
se soubesse como a vida interior é realmente poderosa, não hesitaria nem um
instante em abandonar todas as coisas que barram seu caminho para ir em
direção a ela e assim constatar por si mesmo, que tudo aquilo que a normose
tem para lhe oferecer para beber é tão somente um copo d´água salgada, cujo
propósito é o de lhe deixar ainda mais sedento.

Normose: um substituto para o sofrimento genuíno.

"Os homens caçam pequenos sucessos e maestrias triviais dos quais se retiram
exaustos e enfraquecidos; enquanto isso, toda a infinita força de Deus no
universo espera em vão para colocar-se a seu dispor". Sri-Aurobindo

Há muitas pessoas que se tornam neuróticas porque são exclusivamente
normóticas, como há aqueles que são neuróticos porque não podem ser
normóticos. Já afirmava Jung, que todos nós nascemos originais e morremos
cópias.

O normótico vive infeliz, devido ao fato de pensar só em si mesmo, no que
deseja, no que gosta, em qual o respeito que os outros lhe devem dar. Com
essa maneira de ser, consegue estragar tudo o que toca; fazendo uma miséria
com tudo que Deus coloca em seu caminho. Não se faz necessário um grande
estudo para se constatar a veracidade dessa afirmação. Basta uma boa olhada
na incidência do alcoolismo, do consumo de drogas, do sexualismo compulsivo
e do suicídio em nossa sociedade contemporânea para ver a falência relativa
da normose. Como nos dizeres de Paramahansa Yogananda, Tarthang Tulku, Paul
Brunton e Krishnamurti:

"As pessoas tentam encontrar felicidade, bebida, sexo e dinheiro, mas as
páginas da história estão repletas de relatos de suas decepções. O tempo que
passei meditando tornou minha vida inconcebivelmente rica. Mil garrafas de
vinho não produziriam a alegria que a meditação me deu. Nessa alegria
encontra-se a orientação consciente da sabedoria de Deus" - Paramahansa
Yogananda.

"Quaisquer que sejam as nossas propensões ou crenças, não podemos escapar de
uma consciência cada vez mais aguda da nossa insatisfação. Quando olhamos em
volta, vemos poucos sinais de verdadeira felicidade. Mesmo os ricos
enfrentam problemas com o tédio, e são incapazes de encontrar satisfação
permanente em seus bens ou na busca da realização de seus desejos. Sucesso
social ou profissional não traz necessariamente contentamento; uma vida de
muita luta e competição geralmente produz problemas complexos e, por fim,
grande exaustão". Tarthang Tulku - Conhecimento da Liberdade - Ed. Dharma

"Pode chegar uma hora em que o homem se canse de todos os círculos sociais,
da incessante e indigna competição profissional e do mundo dos negócios, e
deseje afastar-se de tudo isso - uma hora em que ele comece a ver através
das futilidades, superficialidades e estupidez que lhe são próprias. Que
outro recurso podem tentar ter, depois de tentar os caminhos comuns -
bebida, sexo, drogas ou religião -, além da busca?" - Paul Brunton - A Busca
- Ed. Pensamento

"Nossas aquisições são um meio de encobrirmos o nosso próprio vazio; nossas
mentes são como tambores ressonantes, batidos pelas mãos de cada um que
passa e produzindo muito barulho. Esta é a nossa vida, o conflito gerado
pelas fugas que nunca satisfazem, e por nossas crescentes misérias".
Krishnamurti - O Verdadeiro Objetivo da Vida - Ed. Cultrix

Do mesmo modo que a moderna produção em massa requer a padronização das
mercadorias, a normose também requer a padronização do homem, e o
conformismo a essa espécie de padronização é chamada de "normalidade" . Na
verdade, por medo do abandono e da solidão, o normótico se conforma com essa
"normalidade" num grau muito mais alto do que seja forçado a se conformar.
Erick Fromm já alertava anteriormente para os motivos geradores desse
conformismo. Segundo ele:

"... a união com o grupo é a forma preponderante de superar o estado de
separação. É uma união em que o eu individual em larga medida desaparece e
em que o objetivo é pertencer ao rebanho. Se sou como todos os outros, se
não tenho sentimentos ou pensamentos que me tornam diferente, se me conformo
em matéria de usos, roupas e idéias, ao modelo do grupo, então estou salvo -
salvo da terrível experiência da solidão...Todo homem, por natureza, possui
no mais profundo de si mesmo, o conhecimento da verdade, mas que, no
decorrer de seu desenvolvimento pessoal, com relação ao ambiente e a
sociedade, é obrigado a "removê-lo", perdendo, desta maneira, sua
sensibilidade e sua capacidade de perceber a realidade profunda das
coisas".. Erick Fromm

A mediocridade da normose tecnológica e industrial



Salvador Dali
"*Não importa o quanto às pessoas estejam insatisfeitas com as suas vidas,
elas continuam a fazer exatamente o que eles sempre fizeram. Elas nunca
param para pensar como poderiam por um fim em seus problemas. Ao invés
disso, elas apenas reclamam, culpam seus maridos ou esposas, seus patrões, o
governo ou a atualidade.. ..A maioria das pessoas vive em sua personalidade
exterior comum e ignorante que não se abre facilmente ao Divino; mas há um
ser interior dentro delas, do qual elas não sabem, que pode se abrir
facilmente à Verdade e à Luz. No entanto há uma parede que as separa dele,
uma parede de obscuridade e não-consciência. Quando ela desmorona, então há
uma libertação.*" Sri Aurobindo - La Sintesi dello Yoga - Vol. II

"Hoje, mediocridade virou padrão. Se você for ver quem são as pessoas mais
ricas na MPB, todos são músicos medíocres, e por quê? As empresas, as
gravadoras que tornaram essas pessoas ricas também ficaram ricas. Então, uma
rádio, que não passa de uma rádio comercial, uma televisão comercial, uma
gravadora, que não passam de uma fábrica de goiabada ou de sabão em pó,
estão aí para faturar. Preservar valores culturais não tem o menor sentido
para esse pessoal. O negócio deles é o balancete no final do mês, quanto
saiu e quanto entrou. Se está no verde, tudo bem. Se entrou no vermelho,
tira todo o mundo e muda tudo. Vender, vender, vender. Eles vão atrás de
quem está comprando. Quem está comprando? É o jovem e o povão. Então, é para
esse público que eles estão direcionados. Aí eu repito: a maior parte dos
Estados do Brasil já se entregou à banalização, à superficializaçã o da
arte." - Ivan Lins - Jornal A NOTICIA

Existe no normótico uma resistência de ordem espiritual, que é uma recusa de
crescer, de frutificar, de se transformar, uma recusa constante de se
entregar a uma Vontade Superior, a qual faz com que se conforme com sua
condição humana e se recuse a experiênciar Deus em si mesmo.

Por não vivenciar essa experiência de unicidade interior, não consegue
superar a identificação ilusória de separatividade. Vê-se como um ser
separado de si mesmo, dos outros seres humanos e do próprio Universo. Esse
tipo de posicionamento normótico diante da sua própria existência leva-o a
mediocridade. ..

"A mediocridade processa idéias como um triturador, misturando tudo numa
massa uniforme, eliminando nuances, detalhes, sabores, cores, transformando
tudo numa coisa só, na maioria das vezes, cinza. E sempre com o respaldo de
um líder, de uma tese, de uma idéia". Luciano Pires - Brasileiros Pocotó

Essa mediocridade faz com que o normótico permita a existência de um sistema
tecnológico industrial imediatista e inconseqüente, isento de uma genuína
responsabilidade social. Podemos encontrar respaldo para esta afirmação
neste texto de Sogyal Rinpoche:

"A sociedade moderna é em larga escala um deserto espiritual em que a
maioria imagina que esta vida é tudo o que existe. Sem qualquer fé autêntica
numa vida futura, a maioria das pessoas vive toda a sua existência
destituída de um sentido supremo... crendo basicamente que esta vida é
única, as pessoas do mundo moderno não desenvolveram uma visão a longo
prazo. Assim, nada as refreia de saquear o planeta em que vivem para atingir
suas metas imediatas, e agem com um egoísmo que pode tornar-se fatal no
futuro". Sogyal Rinpoche - O livro Tibetano do Viver e do Morrer - Pág. 25

Ainda no mesmo livro, encontramos um texto de José Antonio Lutzenberger, que
demonstra que a total insensatez da normose industrial:

..."a sociedade industrial é uma religião fanática. Estamos derrubando,
envenenando e destruindo todos os sistemas vivos do planeta. Estamos
assumindo dívidas que nossos filhos não poderão pagar... Agimos como se
fôssemos a última geração do planeta. Sem uma mudança radical no coração, na
mente, na visão, a Terra se extinguirá como Vênus, calcinada e morta".

A nova tecnologia é uma espécie de arte circense de inventar necessidades
desnecessárias que se tornam absolutamente imprescindíveis e que leva o
normótico de forma inconsciente, a um modo de vida estressado, apressado,
rotineiro, excessivamente barulhento e repleto de "novidades". Mal possuí
tempo para respirar ou para aprender a usar o "novo" lançamento da
tecnologia. Quando ele esta quase se acostumando com seu uso, o mesmo já se
tornou obsoleto e "novamente" se permite ser bombardeado pela mídia da
"novocaína". Dentro desse ritmo frenético e consumista, não sobra muito
tempo para o questionamento da real necessidade dos mesmos. O resultado é
sempre igual: a mídia lhe impulsiona com as promessas de satisfação, fazendo
com que o normótico entre num processo compulsivo que só termina quando
consegue conquistar a sua "nova droga de escolha". Digo droga, pois este
modo consumista tem como função primordial lhe anestesiar temporariamente do
seu estado de monotonia e falta de sentido existencial. Preso a este ciclo
vicioso, o normótico corre o risco de nunca tomar a consciência de que
somente por meio de uma experiência transpessoal, que transpasse os seus
sentidos, poderá ter removida a grande monotonia que sente e quem sabe
assim, perceber a urgente necessidade de buscar por uma prática espiritual,
que preencha as verdadeiras necessidades de sua alma. Como nos dizeres de
Paul Brunton:

"Neste país, os homens estão mais ansiosos para melhorar suas fábricas do
que a si mesmos. Aceitam suas próprias imperfeições com complacência e
satisfação, mas as imperfeições de seus automóveis - nunca! Entretanto, qual
é a utilidade de correrem de um lugar a outro nesta terra se nem mesmo sabem
por que estão aqui... Usamos todos os momentos possíveis para cultivar os
campos incertos do comércio ou flores efêmeras do prazer, mas somos
incapazes de reservar um momento para cultivar os campos seguros do espírito
dentro de nós ou as artemísias duradouras da devoção divina". Do livro: A
BUSCA - Ed. Pensamento

Fica claro para mim, que enquanto o normótico se deixar arrastar pelos
apelos da mídia, da tecnologia e da moda e não optar por uma simplicidade
voluntária, (ver Simplicidade Voluntária - de Duane Elgin - Ed. Cultrix),
nunca saberá por experiência própria, o que vem a ser a verdadeira
realização pessoal e muito menos, tomar consciência da natureza e finalidade
de sua existência. Ele precisa tomar consciência que, na essência dos apelos
da tecnologia e da moda, sempre haverá um componente de incerteza e de
insegurança. Somente quando chega a um ponto de saturação em relação aos
ditames da sociedade, somente quando percebe que suas conquistas
tecnológicas, alegria e suas amizades são todas superficiais, pode estar
apto para iniciar seu processo de "desnormotizaçã o" através de um
aprendizado de uma nova maneira de viver. Encerro este tópico com um texto
de Tarthang Tulku:

"Em toda parte do mundo as pessoas passam a vida sonhando em desenvolver- se
espiritualmente, sem jamais fazer muita coisa nesse sentido. Neste país,
sobretudo, é preciso muita força de vontade para que alguém se desenvolva
interiormente. Somos apanhados na competição pelas vastas reservas não
exploradas de poder, que a tecnologia moderna colocou a nossa disposição.
Nós vivemos sob intensa pressão para nos conformarmos com as regras e as
restrições da nossa sociedade urbana "civilizada" . A estrutura está
enraizada de tal maneira que, se não nos conformarmos ser-nos-á difícil
sobreviver. Assim, muitos de nós nos sentimos constrangidos embora sejam
poucas as pessoas capazes de tomar a decisão de mudar suas vidas e menos
ainda os que têm o poder de fazê-lo."

A normose educacional

"A verdadeira educação é aquela que conduz à liberação". Shrii Shrii
Anandamurti

A normose é fruto de um sistema educacional que não ensina ao ser humano a
arte de viver, de amar incondicionalmente, a arte de meditar e muito menos a
arte de morrer. Nosso sistema de educação não é educacional, muito pelo
contrário, é um sistema fragmentário, reducionista e formador de uma normose
da especialização competitiva, onde os valores do ser são "normalmente"
substituídos pelos valores de códigos obsoletos do ter que tem a função de
tornar o ser humano uma outra pessoa, alguém que não pode ser. Para
elucidar, gosto de citar uma frase do Psicólogo, Antropólogo e Escritor,
Roberto Crema, seguida de outro pensamento de Tarthang Tulku:

"a especialização é um tipo de modelagem para a alienação e nós temos que
encarar os fatos. A definição que eu lapidei ao longo de muitos anos mais
própria do que seja um especialista: "É uma pessoa um pouco exótica, que
sabe quase tudo de quase nada, dotado de uma certa imbecilidade funcional,
que aprendeu a fazer um cacoete, que aprendeu a apertar um parafuso,que tem
uma viseira, que se orgulha da unilateralidade de visão e de ação e que
perdeu desgraçadamente a visão da inteireza".

"A educação formal nos ajuda a fazer melhores escolhas para nossa vida, mas
não oferece garantia alguma de que nossas escolhas não nos levarão ao
sofrimento. Depois de muitos anos de experiência, talvez consigamos
finalmente reconhecer onde se encontram as nossas maiores promessas de
satisfação. A vida é a nossa maior mestra, mas suas lições são geralmente
aprendidas tarde demais, e à custa de muito sofrimento". Tarthang Tulku -
Conhecimento e Liberdade - Ed. Dharma

Justamente pelo fato de aceitar esses códigos obsoletos é que muitos
normóticos acabam desenvolvendo a neurose. Desde o primeiro dia de vida, as
pessoas estão sendo treinadas para serem condicionadas ao sistema de crenças
em que nasceram. Isso é conveniente para a elite dominante. Esse
condicionamento normótico reduz o ser humano a um estado de fragmentação e
retardamento mental. Desde a mais tenra idade, o ser humano é educado para
viver num sistema que não lhe permite o questionamento, a dúvida, e um ser
humano que não é capaz de duvidar, de questionar, de dizer "não", de forma
alguma poderá ser capaz de potencializar os seus talentos e ser ele mesmo;
viverá de aparências e quem vive de aparências, só aparentemente vive. Por
não ousar sair da limitação imposta pelo sistema em que vive e se aventurar
no Aberto, no desconhecido, o normótico não consegue de forma alguma,
potencializar os seus talentos, sua criatividade, se fechando assim, para
toda possibilidade de expansão da própria alma. É natural que sua vida, com
o passar dos dias, entre numa dolorosa rotina e falta de sentido. Swami
Muktananda formulava de tal forma este ponto de vista:

"Durante muitos anos você esteve acumulando as impressões do mundo. Esteve
enchendo a sua mente e coração com a noção de que é pequeno, que é fraco,
que é pecador. Aprendeu estas coisas de seus professores, de sua sociedade e
de todos os livros sagrados de diferentes religiões e passou a acreditar
neles. Pensava a seu respeito como uma criatura limitada, aprendeu a ver
pecado no Ser puro. Como resultado, você vem nadando num oceano de
sentimentos limitados - desejos e anseios, apego e aversão, raiva e ciúme.
Agora a sua mente e coração tornaram-se tão nublados e embotados, que você
não pode ver a luz do Ser e, mesmo quando alguém lhe diz que você é o Ser,
você não consegue aceitar. Por isso você precisa fazer sadhana (prática
espiritual) Sadhana é o meio pelo qual você pode tornar seu coração puro e
forte o bastante para reter o conhecimento da verdade".

O que acontece é que o normótico não consegue ter a consciência que por
detrás dessa busca desenfreada por segurança e status, o que
inconscientemente procura é pelo preenchimento de sua sede de plenitude.
Esse tema já foi explorado de forma brilhante pela escritora Christina Grof,
em seu livro editado pela Editora Rocco, intitulado Sede de Plenitude -
Apego, Vício e o Caminho Espiritual. Podemos confirmar este ponto de vista,
nos pensamentos de um outro grande escritor e poeta da espiritualidade,
Paramahansa Yogananda:

"Em tudo que buscamos - dinheiro e prazeres sensórios - estamos, na verdade,
procurando Deus. Somos garimpeiros de diamantes que descobrem, em vez disso,
pedacinhos de vidro brilhando ao sol. Atraídos por esses vidrinhos e
momentaneamente ofuscados por eles, esquecemo-nos de continuar procurando os
diamantes autênticos, muito mais difíceis de achar... O homem é como um
fantoche. Os cordéis de seus hábitos, emoções, paixões e sentidos comandam a
dança. Amarram sua alma. Quem não quer ou não pode cortar os cordéis para
conhecer Deus, não O encontrará... Precisamos ser capazes de renunciar a
tudo para conhecê-Lo: "Buscai, primeiro, o reino de Deus, e todas essas
coisas vos serão acrescentadas. "...Você deve conceber Deus como a
necessidade prioritária de sua vida. Quebre as algemas da limitação, dos
hábitos obscuros e da rotina diária, mecânica... Queridos, já fui como
vocês, andei pela Terra procurando a verdade e a felicidade, mas tudo que
prometia alegria me deu sofrimento, e voltei-me então para Deus. Cada um
deve descobrir a própria divindade e conquistar para si próprio o reino de
Deus".

A normose exerce sobre a massa da sociedade uma espécie de hipnose refletida
na busca do status por meio de um materialismo grosseiro, apoderando-se de
sua energia vital como uma sanguessuga no corpo. Essa hipnose faz com que o
normótico não se dê conta da sabedoria contida nas sábias palavras de Jean
Jacques Rosseau: "Obtém-se tudo, tendo dinheiro, menos, bons costumes e bons
cidadãos".

Para o normótico a vida espiritual é uma espécie de mito ou um motivo de
chacotas; ele apresenta as mais absurdas espécies de desculpas para não
iniciar uma prática espiritual ou para não continuá-la se a iniciou,
achando-a enfadonha, vazia ou demasiada cansativa e não é raro, vê-lo fazer
comentários e piadinhas de mau gosto em relação àqueles que vivem uma busca
espiritual. Transcrevo abaixo, textos de alguns autores espiritualista que
elucidam bem a ação dessa forma de hipnose materialista:

"Aqueles que se encontram demasiado absorvidos pelos encantos de uma cobiça
excessiva, pelos tórridos vapores das paixões desordenadas ou pelo turbilhão
das atividades incessantes, talvez desdenhem dessa disciplina, tachando-a de
vaga e insípida. Paciência! Mas assim como a vida termina por triunfar
(embora secretamente) sobre a morte, assim também a vida espiritual com todo
o seu desenvolvimento e riqueza terminará por triunfar ostensivamente sobre
o materialismo sem alma dos nossos dias". Paul Brunton - A Busca do Eu
Superior - Ed. Pensamento

"Às vezes penso que a maior aquisição da cultura moderna é sua brilhante
promoção do samsara e suas estéreis distrações. A sociedade moderna me
parece uma celebração de todas as coisas que nos afastam da verdade, fazendo
difícil viver para ela e desencorajando as pessoas até mesmo de acreditar
que ela existe... Esse samsara moderno alimenta-se de ansiedade e depressão
que ele próprio fomenta, e para as quais nos treina e cuidadosamente nutre
com um mecanismo de consumo que precisa manter-nos ávidos para continuar
funcionando. O samsara é altamente organizado, versátil e sofisticado.
Investe sobre nós de todos os lados com sua propaganda, criando à nossa
volta uma cultura de dependência quase inexpugnável. Quanto mais tentamos
escapar, mais nos sentimos enredar nas armadilhas que ele tão engenhosamente
nos prepara..." Sogyal Rinpoche - O livro Tibetano do Viver e do Morrer -
Pág. 41

"...Hoje, o homem tornou-se tão materialista que ele teme qualquer
experiência, exceto a dos sentidos. Ele acredita que somente aquilo que ele
pode experimentar por meio dos sentidos é uma experiência verdadeira, e que
aquilo que não é experimentado por meio dos sentidos é alguma coisa
desequilibrada, alguma coisa que deve ser temida; isso significa penetrar em
águas profundas, algo anormal, pelo menos um caminho inexplorado. Com muita
freqüência o homem teme cair num transe, ou ter um sentimento que é incomum,
e pensa que aqueles que vivenciaram tais coisas são fanáticos que perderam a
razão. Mas não é assim. O pensamento pertence à mente, o sentimento, ao
coração. Por que alguém deveria acreditar que o pensamento está certo e o
sentimento, errado?" Sufi Hasrat Inayat Khan - O Coração do Sufismo - Ed.
Cultrix

"Ao trabalhar com tantas pessoas diferentes ano após ano, ouvi jovens e
idosos expressarem os mesmos sentimentos. Muitos são aqueles que, apesar de
riqueza, educação e sucesso profissional, estão insatisfeitos com suas
vidas, e sentem uma profunda fome interior que não sabem como saciar...
Debaixo da superfície próspera das nossas vidas, ainda experimentamos
frustração e confusão, ansiedade e desespero. Dentro das nossas sociedades,
mesmo os mais afortunados têm pouca esperança de liberação completa da
frustração e insatisfação". Tarthang Tulku - Conhecimento da Liberdade - Ed.
Dharma

Fica portanto, claro para mim, que a normose, resultado de um viver
egocêntrico, é uma das maiores barreiras ao desenvolvimento espiritual, e
tem como função primordial, frustrar a abertura dos olhos de nossa alma e o
conhecimento de sua natureza imortal.

Normose tem cura para quem procura



Salvador Dali
"Ninguém precisa se envergonhar de estar mental e emocionalmente doente,
pois é a coisa que normalmente acontece com os que fazem parte da grande
massa, isto é 95% da população. E fazer parte dos 5% restantes pode até dar
uma sensação de isolamento". Livro Bronze da Irmandade de N/A - Neuróticos
Anônimos

Quando o normótico começa a tomar consciência da sua verdadeira natureza e
do significado da sua existência, observa-se uma aceleração do seu processo
evolutivo. E isso ocorre porque o mesmo começa a colaborar com o impulso
evolutivo e a se tornar consciente, sentindo cada vez mais forte e
irresistível a premência de reencontrar a realidade de si mesmo capaz de lhe
proporcionar a Unidade interna necessária para a conquista de um modo de
vida equilibrado, efetivo e feliz.

O processo de recuperação da normose, num primeiro momento, inclui um
minucioso e destemido questionamento quanto ao atual sistema de crenças, a
coragem de recusar a submissão às mesmas que se mostrarem disfuncionais e
obsoletas, o destemor dos resultados da opinião social a seu respeito e a
coragem suficiente para rejeitar as idéias religiosas bem como os costumes
de terceiros e um questionamento destemido e minucioso quanto aos padrões
que se encontram subjacentes às insatisfações pessoais, e descobrir o que
esta limitando a realização e o prazer de viver. Traz consigo a
responsabilidade de buscar por idéias avançadas capazes de suplantar sua
insanidade estagnante. Os que se interessam o suficiente para enfrentar este
processo indiferente ao desprezo social, assim como explorar o que está além
das idéias institucionalizadas , estão aptos para exercerem a divina missão
de não mais perpetuar essa condição em si mesmos e no mundo que os rodeia.
Para o exercício desta missão, se faz necessário a conscientizaçã o de que o
grosso da sociedade sofre de uma espécie de alergia diante de conversas que
levem ao questionamento quanto à normose e que apenas poucos são capazes de
ousar por uma independência e juízo individual. Precisa ter em mente que
muitos normóticos, (assim como ele mesmo no decorrer do exercício da própria
normose), por medo de perder a estabilidade financeira ou por medo do
abandono e da solidão se afastam de práticas e de pessoas que possam colocar
em xeque a sua atual maneira de viver, chegando muitas vezes, até mesmo a
hostilizá-las, pois sentem que as mesmas, colocam em perigo as coisas e os
relacionamentos dos quais dependem para ter segurança e uma boa imagem. Com
razão dizia Thomas Merton, em seu livro Na Liberdade da Solidão - Ed. Vozes:

"Não pode o homem dar o seu assentimento a uma mensagem espiritual enquanto
tem a mente e o coração escravizados pelo automatismo" .

É preciso ter em mente de que o normótico só irá procurar por ajuda para a
limitação imposta por sua disfuncional maneira de viver, quando não tiver
mais com o que anestesiar a dor do tédio, a insatisfação e a falta de
sentido existencial. Transcrevo abaixo, pensamentos de alguns escritores que
elucidam bem este ponto de vista. São eles:

"...via de regra só o fazem sob o impacto de uma grande dor, crise emocional
ou outra perturbação que temporariamente os faça voltarem-se para dentro de
si mesmos e torne toda a atividade centralizada no eu fútil e sem sentido. É
estranho que ao atingir aquele ponto em que a vida não parece mais valer a
pena ser vivida é que as pessoas começam a interessar-se deveras pelo
aspecto espiritual da existência, quando anteriormente só ligavam para o seu
lado material. É nesse ponto que recorrem à religião em busca de lenitivo, à
filosofia em busca de compreensão, e, quando ambas as coisas não parecem
suficientes, a cultos estranhos e heterodoxos em busca de uma luz qualquer.
Contudo, qualquer que seja a fonte a que recorrerem a fim de obter
orientação interior e esclarecimento, ver-se-ão sempre em última instância
face a face com o mistério do eu, o qual exigirá sempre, conquanto de forma
silenciosa, investigações mais profundas. Torna-se portanto obrigatório que
o homem entenda tal coisa e faça da auto-compreensã o uma das razões
primordiais da sua vida. Até que assim faça, religião, filosofia, psicologia
superior, em suma, todas as trilhas do conhecimento não-sensorial
continuarão a confundi-lo e intrigá-lo". Paul Brunton - A Busca do Eu
Superior - Ed. Pensamento

"*Como é triste que a maioria de nós apenas comece a apreciar a vida quando
estamos a ponto de morrer!*... Não há comentário mais desalentador sobre o
mundo moderno do que esse: a maioria das pessoas morre despreparada para
morrer, como viveu despreparada para viver". Sogyal Rinpoche - O livro
Tibetano do Viver e do Morrer - Pág. 28

"Há um lugar no ser interior onde sempre se pode permanecer calmo e de lá
olhar com equilíbrio e discernimento as perturbações da consciência de
superfície e agir sobre ela para mudá-la. Se você puder aprender a viver
nesta calma do ser interior, você terá encontrado sua base estável". -
Sri-Aurobindo

"Ao enxergar sob uma luz bem mais abrangente os padrões que condicionam a
vida, é possível que não ficássemos tão dispostos a participar de ações que
sempre resultaram em sofrimento.. . Com um entendimento assim, não haveria
limites para a nossa visão do ser humano, nem limites para a liberdade
humana". Tarthang Tulku - Conhecimento da Liberdade - Ed. Dharma

"...Quem tiver a coragem e a paciência para permitir que sua mente raciocine
por essa forma, livre da ideologia convencional, será em última instância
gratificado com a descoberta da verdade eterna a cerca do homem. Dar-se por
satisfeito com as teorias científicas e filosóficas correntes, que podem e
devem ser completamente modificadas nas próximas décadas ou então ser
taxadas de errôneas e incompletas pela geração seguinte, é demonstrar
inércia e covardia mental. A verdade não é para os preguiçosos ou tímidos".
Paul Brunton - A Busca do Eu Superior - Ed. Pensamento

O normótico que quer se recuperar precisa buscar por momentos de solidão
onde possa praticar uma qualidade de escuta interior pela qual se possa
manifestar a Presença do que está presente, no mais profundo de sua
essência, abrindo-se cada vez mais "àquele que É". Ele precisa superar o
estado de identificação corporal para uma maior identificação com o
transpessoal. Precisa entrar num estado de apatia, ou seja, um estado onde
não mais se deixa enganar pelas promessas de satisfação vindas do externo, o
qual faz com que o normótico saia da sua horizontalidade em busca do
Essencial, acima de todas as coisas - a busca da ação da verticalidade do
Ser.

O normótico não consegue perceber a realidade da prisão em que vive, do
mesmo modo que o peixe não se percebe prisioneiro num aquário. Por essa
razão, o normótico submete sua liberdade à autoridade grupal em detrimento
de sua autonomia. Não consegue perceber que são nas escolhas individuais, na
mais ampla liberdade do homem que se encontra o potencial de saúde.

"Esta normalidade é uma mediocridade que não admite ou até mesmo condena
tudo o que se encontra fora de suas normas e o considera como anormal sem
levar em conta que muitos comportamentos ditos como anormais são em
realidade começos ou tentativas para ultrapassar a mediocridade" - Roberto
Assagioli
Tags: cura, normalidade, normose, patologia

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A vida secreta dos ingredientes - Pegue uma embalagem de biscoito em sua cozinha e dê uma lida no rótulo. Você conhece a origem e a função de todos os ingredientes? O jornalista americano Steve Ettlinger também não sabia, mas viajou o mundo para descobrir e relatou tudo no livro Twinkie, Deconstructed (Twinkie, Desconstruído, sem edição brasileira). A ideia surgiu durante um piquenique com a família. Seu filho perguntou o que é o polissorbato 60: “Dá em árvores?” Ettlinger não soube o que responder e decidiu descobrir e compartilhar esse conhecimento com outros consumidores. Foi pesquisar a origem de todos os ingredientes do famoso bolinho recheado Twinkie, vendido há mais de 70 anos nos Estados Unidos. Em alguns casos, a origem está em refinarias de química cuja localização é protegida por leis antiterrorismo. Noutros, nas fazendas de milho e soja do Meio Oeste americano. (Ah, sim: o polissorbato 60 de certa forma dá em árvores. Trata-se de um polímero derivado de milho e óleo vegetal. É um emulsificante: faz com que a água e a gordura se combinem. No caso do Twinkie, sua função é substituir a capacidade estabilizante dos ovos e do leite, que ajudam no crescimento das massas.)
Entrevista com o AUTOR

Apocalipse Motorizado



Ned Ludd (org.)

A cada três minutos acontece um acidente envolvendo carros na cidade de São Paulo.

Vinte mil pessoas são mortas, por ano, vítimas de acidentes de trânsito no Brasil, mas números não oficiais apontam quase o dobro. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mais de um milhão de pessoas estão envolvidas direta ou indiretamente nestes acidentes!

As ruas, avenidas e viadutos avançam devastando bairros e expropriando o espaço público da comunidade pelo espaço privado do automóvel.

O petróleo polui e altera as condições climáticas das cidades cada vez mais congestionadas...Guerras são declaradas e milhões são massacrados pelo controle das fontes de combustíveis como podemos ver claramente hoje no Iraque.

Contudo, até então nenhuma reflexão contundente sobre o papel desumano dos automóveis havia obtido seu devido espaço no Brasil, nenhuma crítica radical contra essas máquinas moedoras de carne humana.

Por isso, o livro Apocalipse Motorizado - A Tirania do Automóvel em um Planeta Poluído apresenta uma coletânea inédita de textos sobre a questão do automóvel como uma imposição social, discutindo seus ´efeitos colaterais´ nefastos como poluição, dependência do petróleo, expropriação do espaço público comum e a exclusão social. Mais que uma abordagem teórica, o livro propõe ações práticas e soluções à libertação da humanidade dessa tirania.

A coletânea é ilustrada pelo cartunista americano Andy Singer, cujo livro CARtoons tornou-se referência nos movimentos anticapitalistas ao redor do mundo.

Apocalipse Motorizado não representa apenas uma análise da insustentável organização de nosso atual sistema de transportes, mas também insere sugestões de como, de maneira inteligente e criativa, se opôr à ditadura do automóvel e suas consequências desumanas.

O pensamento ecológico radical de Ivan Illich e André Gorz, o papel do carro em nossa sociedade, a história do movimento anticarro, seu objetivo, como organizar uma ´Massa Crítica´ em sua cidade, sugestões de manifestações bem-humoradas: tudo condensado neste livro bombástico, um guia para quem não aceita ficar parado, vendo o tráfego atropelar suas vítimas.

Mais um acidente de trânsito acabou de acontecer em São Paulo.

OS AUTORES
Ivan Illich (1926-2000) foi um dos pensadores mais surpreendentes dos anos 70 e 80. Com precisão e força atacou cada um dos falsos consensos da sociedade ocidental. O texto de Illich neste livro teve imenso impacto no pensamento libertário de hoje.

André Gorz nasceu em Viena, em 1924, é autor de ´Crítica da Divisão de Trabalho´ (Martins Fontes, 1989)

Aufheben é o nome de um grupo autonomista marxista da Inglaterra surgido nos anos 90.

Car Buster é a principal organização ativista internacional do movimento anticarro.

Reclaim The Streets é um dos principais movimentos ativistas de Londres que surgiu em 1991 com o intuito de tornar as ruas um local de convívio entre pessoas e não somente um espaço de passagem.

Ned Ludd é organizador do livro Urgência nas Ruas ­ Coleção Baderna - Conrad, 2002


Ciência precisa de metáforas melhores, diz pesquisador
Livro critica estágio atual da biologia e sugere caminhos para o futuro dessa disciplina



Se a poesia emprega metáforas para despertar o encanto, também a ciência usa esse recurso, para uma melhor compreensão de conceitos abstratos ou complexos. Por isso os cientistas falam, por exemplo, da movimentação do som por meio de "ondas". Porém, se na poesia o mau uso de metáforas resulta apenas em uma obra duvidosa, na ciência a compreensão literal das metáforas leva a perigosos mal-entendidos.

Esse é o eixo central das idéias discutidas por Richard Lewontin, pesquisador da Universidade de Harvard (EUA), em conferências realizadas em Milão que, com o acréscimo de mais um capítulo, tornaram-se o livro A tripla hélice. Lewontin debate a idéia de que somos pré-determinados pelos genes, aponta incorreções na teoria da evolução de Darwin, discute a visão cartesiana de que o corpo é uma máquina e sugere caminhos para o estudo da biologia.

O autor critica o uso do termo desenvolvimento para sintetizar as alterações por que passamos do nascimento à morte. Lewontin afirma que o "termo traz a idéia de algo que se desenrola a partir de algo já presente". Segundo esse conceito, as características dos seres vivos seriam a mera expressão do seu material genético e nunca dependeriam da influência do ambiente (como se verifica, nos humanos, no caso da língua que cada indivíduo fala).

Lewontin também discute a atualidade da teoria da evolução. O termo criticado dessa vez é a adaptação -- "o processo pelo qual um objeto se torna apto a satisfazer uma existência preexistente". Segundo esse conceito, a diversidade das espécies resultaria da existência de "diferentes tipos de ambientes aos quais os seres vivos se compatibilizaram mediante a seleção natural". O autor condena a separação entre ambiente e organismo. As formigas, por exemplo, fazem ninhos, as plantas consomem gás carbônico do ambiente e produzem o oxigênio a ser usado pelos animais. Organismos e ambiente agem um sobre o outro em um processo constante de transformação.

Mais uma metáfora combatida é a comparação de seres vivos a máquinas. Para estudar um organismo, a biologia divide-o em partes, como se fosse possível separá-lo em funções e em seguida "determinar um todo claro e de anatomia óbvia". É impossível estudar como alguém segura um objeto analisando apenas os movimentos da mão. Ele precisa dos olhos para ver, os músculos se contraem a partir do encurtamento das fibras musculares, que por sua vez depende da química das proteínas actisina e miosina.

Embora admita que as técnicas de que a ciência dispõe já bastam para que avanços sejam feitos, Lewontin esclarece que as respostas que a biologia elabora dependem das perguntas que faz. Se o estudo dos seres vivos está permeado de noções equivocadas, as perguntas serão mal-formuladas e as respostas não esclarecerão o que realmente interessa.

A tripla hélice é um livro atual e envolvente. Em uma linguagem simples, porém de raciocínios complexos, permite uma leitura surpreendente a quem quer que tenha domínio razoável de biologia e genética.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

As Moedas Sociais nas atividades artísticas pelo país

Por Yuno Silva da Tribuna do Norte.


Economia solidária não é nenhuma novidade, pois o conceito econômico com base no cooperativismo existe desde a Revolução Industrial ainda no século XVIII – simplificadamente, podemos considerar como base da economia solidária o associativismo centrado na valorização do ser humano, e não do capital. Porém, é no segmento cultural que o formato vem ganhando força no Brasil com a criação de maneiras alternativas de produção, consumo e distribuição de riquezas.

Um bom exemplo de como movimentar a cadeia produtiva da Cultura vem de Cuiabá, Mato Grosso, onde, desde 2004, circula o Cubo Card – moeda complementar criada pela o coletivo Espaço Cubo, associação cultural responsável pelo gerenciamento da moeda e por uma série de ações culturais e artísticas como os festivais de música independente Calango e Grito Rock, a Semana da Música e o circuito audiovisual Próxima Cena. Além de promover eventos, o Espaço Cubo também conta com uma série de espaços propícios para fomentar a economia criativa: estúdio para ensaio e gravação, loja para distribuição de discos, informativos impressos (fanzines) e virtuais (blogs), entre outras frentes.

“Criamos o Cubo Card em 2004 para formalizar as parcerias e criar possibilidades reais de produção, circulação e distribuição de produtos culturais. Na época, por falta de experiência e sistemática, quebramos – literalmente – por ainda não termos um lastro sólido que desse suporte ao Cubo Card. Tivemos que replanejar todo modelo de funcionamento para evitar tropeços financeiros, e a idéia vem prosperando e se multiplicando desde então”, comemora Pablo Capilé, produtor cultural e cabeça de chave do Espaço Cubo, cujo núcleo é formado por dez pessoas.

Segundo Capilé, logo no início as pessoas não sabiam direito como o sistema funcionaria, e o Cubo Card tinha que ser constantemente descontado (trocado por dinheiro) junto aos fornecedores e prestadores de serviço que arrecadavam os créditos, por isso a quebradeira: “Todos quiseram sacar ao mesmo tempo e o nosso lastro ainda não estava devidamente consolidado. Pedimos paciência, que segurassem os créditos até o sistema ser ajustado – em pouco meses voltamos a emitir novos Cubo Cards. Agora, quase cinco anos depois, conseguimos criar demanda para o Cubo Card circular sem nossa intervenção, através de trocas entre os próprios participantes da rede”, informa Capilé.

Exemplo “hipotético”

Para deixar ainda mais claro, vamos utilizar um exemplo local: imagine que a Associação dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências (Samba) tenha uma moeda complementar circulando em Natal, o Samba Card, que é distribuído entre artistas prestadores de serviços à Samba e entre empresários que financiam eventos promovidos pela Samba. Parte do crédito é revertida em reserva (o chamado lastro) para garantir a liquidez da moeda, pois cada Samba Card equivale a R$ 1,50, e o restante volta para o mercado para troca: artistas podem utilizar o Samba Card para almoçar em restaurantes conveniados, que por sua vez podem contratar músicos para um show pagando da mesma forma. Uma loja de instrumentos pode ‘vender’ um equipamento e receber em créditos Samba Card, que serão trocados por dinheiro (junto à Samba) ou reutilizados para contratar serviços oferecidos pela própria Samba (organização de eventos ou assessoria de imprensa, por exemplo). Quem quiser produzir um vídeo clipe pode contratar um profissional da área audiovisual que também faça parte da rede… um artista vende obra em Samba Card e contrata atores, músicos e fotógrafos para participar da abertura de sua mostra.

Informação é negócio

Além de Cuiabá, Uberlândia (MG) já conta com moeda alternativa própria, o Goma Card; e em Belo Horizonte (MG) e Rio Branco, no Acre, iniciativas semelhantes também estão em estágio avançado de implementação. “Atualmente, o Espaço Cubo, através do Circuito Fora do Eixo, agrega outros coletivos que também querem entrar na rede, entre eles o Coletivo Lumo (de Recife) e Coletivo Noize (em Natal). Estamos repassando nossa experiência para consolidar uma rede que, atualmente, está presente em 37 cidades de 22 estados”, disse. Pablo explicou que moedas complementares só funcionam plenamente quando os participantes da rede estão bem informados: “Hoje temos em circulação, aqui em Cuiabá, 120 mil em créditos Cubo Card ( ou seja, há cerca de 180 mil reais circulando em moeda complementar na capital do Mato Grosso) e uma rede com 450 cadastrados, entre artistas, produtores, lojas e empresas prestadoras de serviço. A meta é fazer com que ela possa ser trocada pela moeda complementar local de outros estados, sem unificar.

Abrafin já é exemplo nacional

O êxito da iniciativa cuiabana já colhe frutos em âmbitos, digamos, oficiais: o Ministério do Trabalho e o Senai, dois dos grandes parceiros da Associação Brasileira de Festival Independentes – Abrafin, considera o setor da música um dos mais afinados com conceitos da economia solidária, ou seja, as instituições reconhecem que a economia formal ganha fôlego e volume com a realização de festivais como o MADA (em Natal), Abril pro Rock (Recife), Porão do Rock (em Brasília), entre tantos outros promovidos com maior ou menor grau colaborativo.

“As moedas complementares visam o fortalecimento e a movimentação em todos os níveis da cadeia produtiva da Cultura. Não é para pagar aluguel, e sim para articular a geração de renda através de novas possibilidades de relações comerciais e econômicas”, explica Daniel Zen, secretário Estadual de Cultura do Acre, e atual presidente do Fórum de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, que estava reunido com Capilé tratando desse e outros assuntos quando a reportagem do VIVER entrou em contato com o produtor. “A utilização de moedas complementares é um meio, uma alternativa promissora em mercados pequenos onde circula pouco dinheiro para fomentar a criação, produção, circulação e distribuição de produtos culturais. Com isso, gera-se um movimento indireto de dinheiro real entre os integrantes da rede”, aposta Zen, que pretende apresentar os resultados conquistados em Cuiabá à gestores de outros Estados – no Mato Grosso, a Secretaria Estadual de Cultura já é parceira do Cubo Card.

“Dois exemplos de bandas que ganharam projeção nacional ao gerenciar bem os recursos do Cubo Card são a Vanguart e Macaco Bong”, disse Pablo Capilé, que acredita ser possível implementar moeda complementar em grandes centro como São Paulo, desde que seja setorizada.

Em Natal, experiências ainda são isoladas e informais

Em Natal, quem faz parte da rede Circuito Fora do Eixo é o Coletivo Noize, grupo formado no final de 2008 e que une músicos e produtores que transitam na órbita dos selos independentes Geladeira Discos, Xubba Music e Dia 32 (ex-Solaris). “Nossa meta é implantar uma moeda complementar aqui em Natal, mas ainda estamos em fase de planejamento interno. Antes de qualquer ação concreta, temos que saber quais as frentes que devemos ‘atacar’, identificar as demandas e elencar necessidades”, planeja Gustavo ‘Macaco’ Rocha, um dos coordenadores do Noize e baixista da banda Calistoga.

“Inicialmente queremos envolver nosso público, ligado ao circuito alternativo de música e outras vertentes da Cultura, para depois ampliar a rede. Acredito que qualquer pessoa interessada em arte e cultura é um participante em potencial”, garante Macaco. O Coletivo Noize ainda não pensou em um nome para a moeda complementar natalense.

Já o produtor Anderson Foca, criador da marca DoSol – que hoje agrega selo, estúdio, bar e festival – disse que já pratica conceitos de economia solidária bem antes de saber o significado: “Aqui em Natal já praticamos a economia solidária há, pelo menos, dez anos, mas nossa forma de negócio é diferente – nosso perfil não é de Ong nem de Associação, como em Cuiabá e Uberlândia. Moedas alternativas não devem ser gerenciadas por empresas com fins lucrativos”, disse.

Foca informa que praticar preços abaixo do mercado na prestação de serviços (como locação de estúdio e espaço para shows) e propor trabalhos com base em permutas já é uma forma de movimentar o segmento. “Não temos uma moeda para regulamentar esse escambo, como o Cubo Card, mas damos nossa contribuição”, diz.

Experiência para outros

O Cubo Card funciona da seguinte maneira: o Espaço Cubo emite a moeda complementar a partir da captação de recursos junto a iniciativa privada, que apóia e/ou patrocina eventos promovidos pela Associação. Parte desse dinheiro (30%) é revertido em lastro para manter a liquidez do Cubo Card, enquanto o restante (70%) volta a circular no mercado como força de trabalho e créditos que pode ser trocado entre os conveniados – artistas, produtores, lojas parceiras (de instrumentos musicais, empresas prestadoras de serviço (escola de idiomas, cabeleireiro, restaurantes).

Exemplo de como utilizar os créditos: uma empresa passa a fazer parte da rede ao patrocinar, com dinheiro, algum evento promovido pelo Espaço Cubo. Parte desses recursos retornam à empresa em forma de créditos Cubo Card, e o núcleo responsável pela produção do evento também distribui créditos entre as pessoas que trabalham nesse núcleo específico. Se por um lado a empresa pode trocar Cubo Cards por serviços oferecidos pelo Espaço Cubo e contratar artistas para alguma ação promocional, realização de show; do outro, artistas se beneficiam do sistema ao trocar Cubo Cards por produtos e serviços em empresas conveniadas.

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Evento -- Novos bancos e moedas

“Não estamos numa era de mudanças mas numa mudança de Era”

Chris Anderson

Crie Futuros Iberoamérica, Novos Bancos e Moedas

A grande mudança que estamos vivendo é a passagem de séculos onde tudo se organizava em torno exclusivamente de bens materiais para um novo momento onde a sustentabilidade e o desenvolvimento se apóiam em outras dimensões: o social, ambiental e cultural. Prova disso são as crises financeira e ambiental que demandam mudanças urgentes.

Outro elemento central neste momento de transição é a centralidade do intangível (criatividade, cultuar e conhecimento) para o desenvolvimento sustentável de países, comunidades, empresas. Enquanto os recursos materiais ( terra , ouro , petróleo) são finitos, a criatividade a cultura e o conhecimento são infinitos e são os únicos recursos que se renovam e multiplicam com o uso. Representam uma verdadeira galinha de ovos de ouro, que para ser aproveitada e não virar “canja” necessita de novos indicadores de riqueza, novas moedas e novos bancos.

Indicadores como o FIB, ( Felicidade Interna Bruta para substitui o PIB) originário do Butão, aplicado no Canadá e que está mobilizando o cenário internacional ( por exemplo a França). Novos Bancos que facilitem a troca de outros valores que não sejam as moedas tradicionais e tenham modelos de gestão democráticos e enraizados nas comunidades.

Novas Moedas capazes de avaliar ( e permitir a troca ) entre as várias formas de capital: capital social, capital humano, capital natural, capital cultural e outros.
Enfim, pela primeira vez na história temos recursos, conhecimento e pessoas para criar o mundo que desejamos e merecemos. O fator mais urgente para que possamos aproveitar essa oportunidade rara é talvez a re-invenção da economia.Uma nova Economia para a gestão dos recursos abundantes que os ativos intangíveis e a tecnologia oferecem, em um mundo baseado na percepção de nossa interdependência e portanto ciente que a chave está na cooperação e na ética. Uma nova economia Inclusiva, cuja dinâmica venha da relação harmônica entre macro economia de escala e a micro economia de nicho. Uma nova economia que vai necessitar novas medidas, moedas e indicadores.

Crie Futuros Novos Bancos e Moedas reúne pessoas e instituições cujo trabalho no presente já cria futuros desejáveis. Temos pesquisadores e especialistas internacionais oriundos de práticas referência que além de nos contarem sobre suas atividades vão descrever o futuro desejável para o qual trabalham.
O evento será transmitido pela internet e mescla participação presencial e virtual (outros países participam pela web). Conta com a interação do público e palestrantes que, através da dinâmicas, criam visões de futuros desejáveis.

Apoio

BNDES
AECID
Outros realizadores


Conheça a lista dos palestrantes já confirmados...
Anne Louette - São Paulo - Brasil

Autora do Compendio de Sustentabilidade das nações”, que mapeia 25 indicadores econômicos alternativos e complementares às métricas do PIB, que incorporam novas medidas de sustentabilidade econômicas, ambientais, sociais, éticas e culturais, além da inclusão de parâmetros de avaliação da felicidade/qualidade de vida.


Lala Deheinzelin - São Paulo - Brasil

Enthusiasmo Cultural e Instituto Suba. Assessora em Economia Criativa, Desenvolvimento e Futuros para o PNUD, UNESCO, OEI, Criadora e coordenadora de Crie Futuros.

Tião Rocha - Minas Gerais - Brasil
Premiadíssimo empreendedor social , criador do CPCD, Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento e do Banco de Êxitos S/A. Criou indicadores de desempenho “qualitativos”, que abrangem as demais dimensões além da econômica.

Miguel Yasuyuki Hirota - Japão
Criador do Online Laboratory on Complementary Curriencies. Pesquisou as experiênciais mundiais no assunto, dividindo em categorias, e promove atividade ligadas à moedas complementares no Japão.

Cesar Matsumoto - ITCP – FGV, AGESOL
Integrante da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Fundação Getulio Vargas onde desenvolve diversos trabalhos em microfinanças, moedas sociais e bancos comunitários visando a promoção do desenvolvimento local nas comunidades onde atua. Realizou pesquisa acadêmica sobre a experiência Banco Palmas (Fortaleza, Ce) e promove palestras e seminários sobre o tema das moedas complementares e bancos comunitários.

Heloisa Primavera - Argentina
Uma das maiores especialistas mundiais em Economia Solidária, fundadora da Rede Latino Americana de Socioeconomia Solidária
(Redlases). É coordenadora do Projeto Colibri. Recebeu o Premio de Mulher do Ano do Instituto de Estudos Políticos e Sociais, na Argentina.

Pablo Capilé - Mato Grosso, Brasil
Espaço Cubo. Criador da moeda Cubo Card que deu origem à um complexo e completo sistema , o Circuito For a do Eixo, que reúne 37 coletivos em 17 estados e gerencia: (1) Fora do Eixo Card ( integrando moedas complementares dos coletivos;(2) Fora do Eixo Discos, reunindo os selos; Portal : reunindo blogs dos participantes; circuito de distribuição, congresso, festival e Rede de Festivais Independentes.

Stephen De Meulenaere - Bali, Indonésia
Coordenador da ONG Complementary Currency,, uma plataforma digital que atua como fonte de pesquisa on line.Trabalhou na introdução ou fortalecimento de moedas complementares em países da America, Ásia e Indonésia e desenvolveu a teoria que modelos duais de moedas complementares ( moeda nacional+ moeda/tempo para comunidade )podem ser uma solução para preservação do tecido social e cultural em tempos de globalização.

Pablo José Hales Beseler - Banco do Tempo, Chile
Experiência onde os participantes cooperam através de troca de horas de trabalho, que também pode ser “moeda” para outros produtos e serviços.
HomeCrie FuturosPalestrantesProgramaçãoPúblico AlvoLocal e dataWikiFuturosContato

Público Alvo

De forma genérica o evento destina-se a gestores públicos e privados, empreendedores, membros da academia de diversas áreas, criadores, organizações da sociedade civil; instituições ligadas à economia, fomento e cooperação, jovens, enfim todos aqueles envolvidos em processos de inovação e pensamento prospectivo.

Cabe ressaltar que graças à Rede Crie Futuros Ibero America , à transmissão ao vivo por Web TV e ao fato dos materiais serem reprisados 24 horas por dia na TV Crie Futuros nosso público alvo inclui tantos países quantos forem os interessados no tema.

O evento será gratuito a todos os participantes

Data
O evento irá ocorrer em 13 e 14 de Outubro de 2009 no auditório da FGV Berrini em São Paulo - SP
Endereço: Av. Engenheiro Luis Carlos Berrini, 1376 - Itaim Bibi
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Entrevista com Zigmunt Bauman

Cited by SciELO
Similars in SciELO
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Tempo Social
Print version ISSN 0103-2070
Tempo soc. vol.16 no.1 São Paulo June 2004
doi: 10.1590/S0103-20702004000100015
ENTREVISTA



Entrevista com Zigmunt Bauman*





Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke






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RESUMO

Nesta entrevista, o sociólogo Zygmunt Bauman reflete sobre vários aspectos da "sociologia humanística" que pratica e também sobre momentos memoráveis de sua trajetória, desde a Polônia comunista até a Inglaterra neo-liberal de Tony Blair.

Palavras-chave: Modernidade; Pós-modernidade; Filosofia; Sociologia; Socialismo.


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ABSTRACT

In this interview, sociologist Zygmunt Bauman reflects on several aspects of the "humanistic sociology" he practices and also about unforgettable moments of this trajectory from communist Poland to Tony Blair's neo-liberal England.

Keywords: Modernity; Pos-modernity; Philosophy; Sociology; Socialism.


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Um renomado periódico espanhol referiu-se recentemente a Zygmunt Bauman como um dos poucos sociólogos contemporâneos "nos quais ainda se encontram idéias". Opinião semelhante é freqüentemente exposta por críticos de várias partes do mundo quando refletem sobre o pensamento desse intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971 e empenhado há meio século em "traduzir o mundo em textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras disciplinares, Bauman é um dos líderes da chamada "sociologia humanística", ao lado de Peter Berger, Thomas Luckmann e John O'Neill, entre outros. De um lado, não se encontram em suas obras abstrações ou análises e levantamentos estatísticos; de outro, são ali aproveitadas quaisquer idéias e abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de compreender a complexidade e a diversidade da vida humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman tem muito a dizer para uma gama de leitores muito maior do que normalmente se espera de um trabalho de sociologia mais convencional, o que condiz com suas próprias ambições de atingir um público composto de pessoas comuns "esforçando-se para ser humanas" num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o mundo pode ser diferente e melhor do que é.

Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer que sua fama e prolixidade aumentaram significativamente após a aposentadoria, em 1990: 16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e cinco obras dedicadas ao estudo de seu pensamento foram escritas nos últimos anos.

Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade" (com o que não concorda), por suas reflexões sobre as condições do mundo da "modernidade líquida", os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que trata, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman é uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. "Hoje em dia", lamenta ele, "os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções... invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que 'não há alternativa'". É nesse quadro que se pode entender sua afirmação de que "esse nosso mundo" precisa do socialismo como nunca antes. Mas o socialismo de que Bauman fala, como insiste em esclarecer, não se opõe "a nenhum modelo de sociedade, sob a condição de que essa sociedade teste permanentemente sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou". É nesse sentido que ele define o socialismo como "uma faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da sociedade".

Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos horrores do holocausto que aguardavam os judeus poloneses na Segunda Guerra Mundial ao fugir com sua família para a Rússia, em 1939. De lá voltou após a guerra, quando se filiou ao partido comunista, estudou na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com quem está casado há 55 anos e com quem teve três filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena (arquiteta).

Confiantes e animados pelo sonho de criar uma sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali construíram suas carreiras (ele como professor da Universidade de Varsóvia e ela como editora de roteiros cinematográficos) e criaram sua família, até que uma nova onda de anti-semitismo e repressão esmagou seus sonhos e os forçou ao exílio. Após três anos em Israel, o convite para o cargo de chefe do departamento de sociologia na Universidade de Leeds trouxe Bauman e sua esposa à Inglaterra, onde permanecem até hoje.

Gentil, modesto e reservado, Zygmunt Bauman aceitou prontamente ser entrevistado para o público do Brasil, país que pouco conhece e onde esteve uma única vez há vários anos, para um congresso de sociologia no Rio de Janeiro. Pelas notícias que ouve do país, o que o impressiona é a desumanidade de cidades como São Paulo, por exemplo, uma cidade que, como diz, com sua abundância de muros ao redor de residências, prédios, parques etc., mostra "o lado mais brutal e inescrupuloso das tendências segregadoras e exclusivistas" das cidades metropolitanas. O fato de os brasileiros despenderem "4,5 bilhões de dólares por ano em segurança privada" só acresce a desumanidade de um quadro que considera sintomático da realidade mundial.

Bauman recebeu-me em Leeds, na confortável casa onde mora desde que ali chegou, há mais de trinta anos. "Naquela época achei a cidade horrível, imunda", disse-me Janina, comentando a mudança dos últimos tempos, que transformou Leeds de um sujo centro industrial em uma cidade bonita, verdejante e cheia de vida.

Extremamente hospitaleiro (algo muito próprio dos europeus do Leste, como dizem), Bauman entremeou reflexões sobre sua obra e sua vida com idas à cozinha para servir chá quente e com oferecimentos insistentes de caprichados canapés de salmão e outros petiscos cuidadosamente dispostos na pequena mesa de sua biblioteca.

Quando se acompanha sua carreira, o senhor parece um filósofo que, devido às condições da Polônia de pós-guerra, foi temporariamente desviado de sua vocação, voltando-se para a sociologia. Concorda com essa descrição?

Essa seria uma reconstrução justa do que realmente aconteceu e de como eu encarava a situação, mas com uma ressalva. Eu não era um filósofo profissional antes de ter me desviado para a sociologia, como você sugere; nem desejava me tornar um. Antes de me juntar ao exército polonês e voltar para meu país natal por essa via, eu fiz dois anos de curso universitário de física por correspondência (na Rússia, os estrangeiros não tinham permissão de viver em cidades grandes, onde havia universidades). Lembro de, como tantos adolescentes, me sentir um tanto apavorado e esmagado pelos mistérios e enigmas do universo e de desejar ardentemente dedicar minha vida a desvendar esses mistérios e a solucionar esses enigmas. Meus estudos no entanto foram interrompidos pelo apelo das armas, quando eu tinha 18 anos, para jamais serem retomados.

Ao deixar o exército em 1945, eu me vi novamente numa Polônia arruinada pela ocupação nazista, o que se somava a um anterior legado de miséria, de desemprego em massa, de conflitos étnicos e religiosos aparentemente insolúveis e de exploração de classe brutal. Os desafios que meu país confrontava eram, pois, muito maiores do que os do resto da Europa, pois além de reconstruir fábricas e casas, semear campos abandonados e colocar a economia de pé novamente, a Polônia exigia a batalha exaustiva contra uma pobreza sedimentada e contra profundas divisões de classe; a abertura das oportunidades educativas também era tarefa urgente, já que até então elas haviam estado fechadas à grande maioria da nação. Para resumir, a Polônia ainda tinha que aderir ao "projeto de modernidade", que podia ainda estar "inacabado" na Europa (e ainda hoje está, como insiste Jurgen Habermas), mas que na Polônia de 1945 ainda nem havia começado seriamente.

Imagino que a crença de que a sociologia poderia melhorar a vida humana ao reformar o meio social no qual esta se conduzia era parte integral do "projeto de modernidade". Até mesmo diria que o projeto consistia exatamente nisso. Assim, as pessoas que estavam seriamente empenhadas em levar a sociedade a desenvolver condições mais desejáveis — a fim de ser "moderna", ou seja, mais humana e melhor estruturada para promover a felicidade e a dignidade humanas — não titubeavam um instante sobre que tipo de conhecimento deveria ser com mais urgência adquirido, dominado e colocado em prática. Certamente só poderia ser a "ciência da sociedade", a sociologia, a disciplina que surgira para servir ao "projeto de modernidade". Como Auguste Comte disse na origem do mais "modernista" dos objetivos científicos, "il faut savoir pour prévoir, e prévoir pour pouvoir". Tal convicção sobre a missão da sociologia e tal fé em seu poder de realizar sua missão devem, sem dúvida, intrigar um leitor contemporâneo, mas somente porque vivemos hoje numa era diferente, quando o mantra do dia não é mais "salvação pela sociedade"; infelizmente, o que se ouve agora, como homilias insistentes, é que devemos buscar soluções individuais para problemas produzidos socialmente e sofridos coletivamente.

Se o senhor é ao mesmo tempo sociólogo e filósofo, poderia dizer se há ocasiões em que os dois papéis entram em conflito?

Essa é uma questão de perspectiva, pois combinar os papéis de "sociólogo" e de "filósofo" (ou ser enquadrado ora em um ora no outro, ou nos dois ao mesmo tempo) pode parecer esquisito agora e no mundo anglo-saxão (ou nas partes do mundo nas quais o desenvolvimento das ciências sociais seguiu um padrão americano após a Guerra). Mas nem sempre, nem em todos os lugares, foi assim... Certamente não era assim na Polônia, onde, como em grande parte da Europa, a sociologia foi concebida, gestada e incubada dentro do pensamento filosófico — como parte, ou ramo, da filosofia. Fui educado e treinado no Departamento de Filosofia e Sociologia, e não me recordo de nenhum conflito entre as duas partes do mundo acadêmico: ambas pareciam assumir que eram "naturalmente" parte de um todo, talvez se vissem mesmo como gêmeos siameses, ou até gêmeos holocéfalos!

Sou inclinado a acreditar que as raízes da sociologia como uma atividade intelectual separada e relativamente autônoma se encontram na exposição da antiga atividade filosófica à ousada, e até temerária, intenção de "ilustrar". O projeto de "ilustração" pode ser entendido, para usar a famosa alegoria de Platão, como a vontade de levar o produto da contemplação das verdades brilhantes e ofuscantes dos filósofos para os habitantes das cavernas e, desse modo, retirá-los dos bancos aos quais estavam atados, permitindo que vissem, absorvessem e retivessem algo mais valioso do que as meras sombras das coisas refletidas nas paredes. Em outras palavras, a sociologia nasceu da intenção, do desejo de compartilhar a sabedoria dos filósofos com hoi polloi, as "pessoas comuns", e de com isso elevá-las da ignorância e superstição para o conhecimento e entendimento genuínos. Inclino-me a pensar que na sua origem a sociologia era um programa de educação filosófica universal... Li o apelo à razão como uma faculdade universal dos seres humanos, contido em Was is Aufklarung ("O que é Iluminismo") de Kant, como um manifesto sociológico (dentre outras coisas, é claro).

Muitas pessoas tendem a descrever sua obra como sendo a de um moralista ou, pelo menos, como a de um sociólogo com mensagens éticas muito fortes. Concorda com essa descrição? Se sim, diria que está propondo um novo tipo de sociologia?

Talvez deva começar dizendo que, diferentemente da filosofia que "deixa o mundo como é", conforme a famosa reclamação de Ludwig Wittgenstein (que disse isso seguramente pensando no tipo de filosofia de "análise lingüística" que dominava o universo acadêmico da época), a sociologia faz diferença no mundo. Diria mesmo que, considerando sua ligação com a condição humana, há alguma afinidade entre o papel da sociologia e o da engenharia. A "engenharia" em que a sociologia se engaja, quer deliberadamente ou não, pode ser de dois tipos, e faz uma imensa diferença saber de qual deles se trata. Desde os anos de 1950 cunhei os termos "engenharia pela manipulação" e "engenharia pela racionalização" para diferenciar os dois tipos de engajamento e esclarecer para mim mesmo a qual tipo eu deveria aderir e de qual eu deveria me afastar.

O primeiro tipo de "engenharia", imensamente popular no meu tempo de estudante, tanto na comunista Polônia como na capitalista América, se oferecia aos corredores do poder com a promessa de ajudá-los a obter, sem nenhum questionamento, qualquer tipo de ordem que fosse escolhida para a sociedade sob seu domínio. Supridos com informações sociológicas sobre as condições sob as quais os homens e as mulheres se inclinam a diminuir suas obstinações e indocilidades usuais e se tornam menos propensos a se rebelar e a trilhar seus próprios caminhos, os detentores do poder podiam, então, legislar e transformar a realidade de modo a obter e receber a obediência e a disciplina que achassem necessárias. O livro de sociologia mais influente da época, The structure of social action, de Talcott Parsons, declarava exatamente seu propósito de desvendar os segredos do comportamento humano e de torná-lo previsível, não obstante ser um fato inquestionável que os atos humanos são voluntários; em outras palavras, alardeava a possibilidade de "neutralizar" os efeitos potencialmente perturbadores da escolha livre inata dos seres humanos, escolha danosa e abominável do ponto de vista dos construtores e guardiães da ordem. Esse tipo de sociologia prometia ser uma ciência da não-liberdade a serviço da tecnologia da não-liberdade... algo na mesma linha do que disse recentemente William Kristol em apoio às intenções dos dirigentes americanos de remodelar a ordem social das pátrias de outras pessoas, desta vez em escala planetária: "Bem, o que há de errado com o domínio, desde que a serviço de bons princípios e altos ideais?"1. Já ouvi tais palavras muitas vezes, e me arrepiei antes do mesmo modo como ainda me arrepio agora.

Penso que fui atraído para a sociologia por motivos exatamente opostos aos que moviam os praticantes e "propagandistas" da "engenharia pela manipulação". Suponho que o que me seduziu foi a esperança de ampliar a extensão e a potência da liberdade dos atores sociais, oferecendo a eles um melhor insight na organização social na qual desempenham suas tarefas de vida e que eles co-produzem (a maior parte das vezes inconscientemente). Desde sempre acreditei que, se a vocação sociológica tem alguma utilidade para os seres humanos, essa utilidade se deve aos serviços que presta e pode prestar ao esforço de compreender, dar sentido e adquirir um modicum de controle sobre suas vidas. É por isso que tendo a descrever o que faço como um contínuo diálogo com a experiência humana. Era isso ao menos o que Stanislaw Ossowski, um dos maiores sociólogos poloneses e um dos meus mais persuasivos professores em Varsóvia, considerava a premissa central de sua muito peculiar "sociologia humanística".

Foi com isso em mente que durante os cinqüenta anos de minha aventura sociológica me movi de uma área da "condição humana" para outra, sempre estimulado pelas contínuas mudanças, algumas profundas e outras sutis, dessa condição, ou seja, do cenário social em que os indivíduos devem atuar. Desempenhando sua função — isto é, representando a condição humana como produto das ações humanas —, a sociologia era e é para mim uma crítica da realidade social. Entendo que cabe à sociologia expor publicamente a contingência, a relatividade do que é "a ordem", para abrir a possibilidade de arranjos sociais e modos de vida alternativos; em outras palavras, ela deve militar contra as ideologias e as filosofias de vida estilo TINA ("there is no other alternative") e manter outras opções vivas. Eu me regozijaria se algum dia dissessem de mim o que Kracauer disse de Simmel: "É sempre o homem — considerado o construtor de cultura e um ser espiritual e intelectual maduro, agindo e avaliando com total controle dos poderes de sua alma e ligado fraternalmente aos outros homens em sentimento e em ação coletiva — que está no centro da visão de Simmel".

Se isso é ser moralista, então sou moralista no sentido de que creio que todas as decisões que o ser humano toma em seu ambiente social (pois ninguém está sozinho, todos nós estamos conectados a outras pessoas) têm significado ético, têm um impacto em outras pessoas, mesmo quando só pensamos no que ganhamos ou perdemos com o que fazemos. A extensão planetária da televisão não nos permite mais dizer "eu não sabia" como desculpa para nossa inação. Contemplamos diariamente como se faz o mal, como se sofre a dor, e dizer que nada podemos fazer pelo outro é uma desculpa fraca e pouco convincente, até mesmo para nós próprios. Não há como negar que em nosso planeta abarrotado e intercomunicado dependemos todos uns dos outros e somos, num grau difícil de precisar, responsáveis pela situação dos demais; enfim, que o que se faz em uma parte do planeta tem um alcance global.

Max Weber também era um moralista, no sentido de que estava interessado em ética e desenvolveu a idéia de ética como dever; mas o seu contexto era diferente, era de grandes poderes. Não é esse o meu caso, pois nunca estive particularmente interessado em falar com os detentores do poder, tanto na Polônia como na Inglaterra.

Diria, então, que o papel da sociologia mudou na última geração?

Gostaria de voltar a insistir sobre o que cabia à sociologia nas suas origens. Como disse, essa "ciência da sociedade" nasceu junto com o projeto de modernidade, que era um projeto muito simples. Partindo da idéia de que o mundo que herdamos dos tempos pré-modernos, tradicionais, ignorantes, preconceituosos e supersticiosos era um mundo desordenado e caótico, a tarefa que se impunha era torná-lo melhor. Ora, quem assumiria esse papel? Evidentemente os legisladores, os reis, os príncipes, os presidentes, os parlamentos, enfim, quem quer que estivesse no poder e que se impusesse a tarefa de reorganizar o mundo de tal modo que as pessoas viessem a se comportar racionalmente, a buscar a felicidade sem correr o risco de fazer escolhas erradas. Nesse quadro, cabia à sociologia fornecer informações sobre como obter um comportamento desejável das pessoas, sobre as razões pelas quais elas se desviam do caminho certo, como mantê-las nesse caminho e evitar desvios etc. Enfim, o conhecimento sociológico era, portanto, dirigido àqueles que estavam no papel de legislar, de criar as condições para uma boa sociedade. Esse era, enfim, o projeto da modernidade, que hoje está em grande parte abandonado.

O que quero dizer, portanto, é que a sociologia, como um esforço de entendimento da experiência humana, não mudou. Continua agora como era antes. O problema é que hoje o conhecimento sociológico é dirigido não mais aos governantes, porque estes renunciaram à sua responsabilidade para com o bem da sociedade; eles são agora neutros, não interferem na vida que se escolhe, a não ser que se trate de um assassino ou um terrorista. Por exemplo, o único tipo de conhecimento pelo qual Tony Blair se interessa é aquele que lhe diz qual movimento deve ser feito para ser mais popular. Outras coisas, como o bem da sociedade, não lhe interessam muito.

Vivemos em tempos de desregulamentação, de descentralização, de individualização, em que se assiste ao fim da Política com P maiúsculo e ao surgimento da "política da vida", ou seja, que assume que eu, você e todo o mundo deve encontrar soluções biográficas para problemas históricos, respostas individuais para problemas sociais. Nós, indivíduos, homens e mulheres na sociedade, fomos portanto, de modo geral, abandonados aos nossos próprios recursos.

Sendo assim, a única entidade a quem a sociologia se dirige hoje é aquela que realmente está assumindo a responsabilidade — o indivíduo. Ora, a experiência individual é normalmente muito estreita para que o indivíduo seja capaz de ver os mecanismos internos da vida. Não saberíamos o que está acontecendo nesse mundo da modernidade líquida se não fôssemos alertados para as possíveis conseqüências do processo em andamento. Explicar como as coisas funcionam, ampliar a visão necessariamente limitada dos indivíduos, alargar seus horizontes cognitivos, enfim, dar a eles condições de enxergar além de seu próprio nariz é o que cabe à sociologia agora. Como disse Ulrich Beck, que mais do que ninguém nos alertou sobre os intricados mecanismos do que ele chama de Risikogesellschaf, a sociedade de risco, "nós, cidadãos, perdemos a soberania sobre nossos sentidos e, portanto, também sobre nosso julgamento... ninguém é mais cego para o perigo do que aqueles que continuam a confiar em seus próprios olhos".

Poderia falar mais amplamente sobre os riscos da modernidade?

Uma das características do que chamo de "modernidade sólida" era que as maiores ameaças para a existência humana eram muito mais óbvias. Os perigos eram reais, palpáveis, e não havia muito mistério sobre o que fazer para neutralizá-los ou, ao menos, aliviá-los. Era óbvio, por exemplo, que alimento, e só alimento, era o remédio para a fome.

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se pode sentir ou tocar muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas conseqüências. Não podemos, por exemplo, cheirar, ouvir, ver ou tocar as condições climáticas que gradativamente, mas sem trégua, estão se deteriorando. O mesmo acontece com os níveis de radiação e de poluição, a diminuição das matérias-primas e das fontes de energia não renováveis, e os processos de globalização sem controle político ou ético, que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem precedentes.

Diferentemente dos perigos antigos, os riscos que envolvem a condição humana no mundo das dependências globais podem não só deixar de ser notados, mas também deixar de ser minimizados mesmo quando notados. As ações necessárias para exterminar ou limitar os riscos podem ser desviadas das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para alvos errados. Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais à mão como causa das incertezas e das ansiedades modernas. Veja, por exemplo, o caso das manifestações contra imigrantes que ocorrem na Europa. Vistos como "o inimigo" próximo, eles são apontados como os culpados pelas frustrações da sociedade, como aqueles que põem obstáculos aos projetos de vida dos demais cidadãos. A noção de "solicitante de asilo" adquire, assim, uma conotação negativa, ao mesmo tempo em que as leis que regem a imigração e a naturalização se tornam mais restritivas e a promessa de construção de "centros de detenção" para estrangeiros confere vantagens eleitorais a plataformas políticas.

Para confrontar sua condição existencial e enfrentar seus desafios, a humanidade precisa se colocar acima dos dados da experiência a que tem acesso como indivíduo. Ou seja, a percepção individual, para ser ampliada, necessita da assistência de intérpretes munidos com dados não amplamente disponíveis à experiência individual. E a sociologia, como parte integrante desse processo interpretativo — um processo que, cumpre lembrar, está em andamento e é permanentemente inconclusivo —, constitui um empenho constante para ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos e uma voz potencialmente poderosa nesse diálogo sem fim com a condição humana.

Poderia nos dizer como foi a experiência de viver no que o senhor descreveu como a "idade áurea", quando as universidades polonesas tiraram o máximo de vantagem da liberdade ganha nas batalhas do "outubro polonês"2?

Foi algo, de fato, fascinante, diferente de qualquer outra universidade que conheci; diferente, diria, de qualquer vida universitária existente. Há situações de liberdade acadêmica praticamente sem limites, quando todos os tipos de Weltanchauungen (visões de mundo), estratégias de pesquisa, hierarquias de relevância e prioridades, estilos de se contar histórias se encontram, conversam e argumentam. E há também situações em que os sociólogos se movem pelo sentido de urgência, e não somente pela necessidade de completar dissertações a tempo e assegurar uma próxima promoção; uma urgência de dar sua própria contribuição para a batalha por uma sociedade melhor, mais hospitaleira aos seres humanos e à sua humanidade. E também se movem por uma vocação, uma missão de só se dedicar a isso. O que foi peculiar da situação pós-outubro polonês foi que as duas situações emergiram juntas e continuaram durante algum tempo a coincidir e a se fertilizar reciprocamente. Tal convergência é muito menos freqüente do que a presença de uma ou de outra das duas situações isoladamente; na verdade, tanto quanto posso julgar a partir de minha experiência de meio século, é mesmo uma raridade.

Esse tipo de combinação entre sentimento de liberdade e de propósito é uma felicidade de que a maioria dos acadêmicos contemporâneos infelizmente carece, quer tenham ou não consciência do que estão perdendo. Na maioria dos lugares do mundo a liberdade de expressão acadêmica é completa ou quase completa, somente limitada pelos regulamentos e regras (muitas vezes penosas e até ridículas) da carreira e de outras invenções da burocracia universitária; mas, fora isso, as escolhas são deixadas inteiramente livres para cada um. Há, no entanto, muito pouco sentido do propósito e particularmente da relevância de seu próprio trabalho para o mundo fora dos muros da academia, como se todos compartilhassem da sina da filosofia lamentada por Wittgenstein, de "deixar o mundo como é". Como se queixam muitos sociólogos americanos, e também alguns europeus, os estudos sociais acadêmicos perderam a ligação com a agenda pública. Parece haver poucos fregueses, se é que algum, para os modelos de "boa sociedade", o que costumava ser a preocupação central e o forte da sociologia com inclinações humanísticas. As classes educadas não estão mais interessadas na tarefa de ilustração e de elevação espiritual do povo. Os intelectuais pararam em grande parte de se definir pela responsabilidade que têm para com "o povo", a nação e a humanidade.

O senhor se referiu aos "muros da academia" como um obstáculo para o pensamento livre. Há alguma esperança para as universidades?

O que quer que as universidades façam, elas não conseguirão jamais pôr um fim à curiosidade humana, que talvez tenha de sair da academia para se satisfazer. Ainda tenho meu escritório na Universidade de Leeds, mas mal posso reconhecer a universidade da qual saí há poucos anos, tal a velocidade da mudança. Os nomes aparecem e desaparecem das portas, as pessoas são classificadas de acordo com o projeto em que estão engajadas no momento, mas tudo é tão a curto prazo! Cambridge provavelmente ainda é diferente.

Se se pensa nas limitações que a organização universitária hoje impõe ao desenvolvimento do pensamento livre, basta olhar para o que acontece com a filosofia e a sociologia tal como são praticadas nos departamentos universitários e em outros "locais de autoridade", ou seja, os lugares em que afirmações reconhecidas como pertencentes a uma dada disciplina podem ser feitas e nos quais elas devem ser expressas para serem reconhecidas como tais. Nesse quadro, pois, a filosofia e a sociologia se ligam a interesses intelectuais, estilos de pensamento e modos de argumentação bastante diferentes. Cada uma dessas duas disciplinas acadêmicas se pretende de posse de grupos distintos de "dados primários" e os processa, interpreta, verifica e refuta de maneiras diferentes. Dominar o canon tanto da sociologia como da filosofia e adquirir credenciais oficialmente reconhecidas e confirmadas em cada uma delas toma todo o tempo dos estudantes universitários — e a competência em uma dessas disciplinas acadêmicas raramente é exigida para se adquirir o grau na outra.

Posso entender a preocupação dos sociólogos acadêmicos com a circunscrição, as barreiras e a defesa de suas possessões contra os competidores na obtenção do dinheiro das fundações e do governo, mas o que não podemos esquecer é que essa preocupação se origina na realidade da vida acadêmica e não na lógica da experiência humana que a sociologia é chamada a servir.

Quão difícil foi para o senhor se ajustar à cultura britânica, quando veio viver na Inglaterra, com mais de 40 anos?

Ajustamento nunca ocupou um lugar prioritário no meu programa de vida. Nesse campo não fui além do básico, isto é, aprender o idioma local e me fazer compreensível, evitando os mais crassos faux pas. Tal como lembro, meu estado mental ao chegar à Grã-Bretanha não estava particularmente preocupado em esconder, sufocar ou erradicar minha idiossincrasia, em abandonar o que no meu modo de agir e pensar poderia parecer estranho aos nativos. Tornar-me como os outros e dissolver-me no plano de fundo não me parecia tarefa nem possível nem especialmente atraente, e nunca foi minha intenção. Na época, eu considerava que o desafio estava em outro lugar: como revelar para meus colegas e alunos britânicos o sentido das minhas diferenças e talvez induzi-los a achar algum interesse e uso no que era inicialmente alheio a eles.

"Ajustamento" sugere uma via de mão única. Ao contrário, eu pensava em termos de troca igualitária: o único meio de retribuir a hospitalidade dos meus anfitriões britânicos era oferecer a eles algo que não tinham ainda e não poderiam adquirir a não ser num encontro face a face com um pensamento e um modo de agir alternativos; algo novo e diferente que pudesse eventualmente enriquecê-los do mesmo modo que me tenho enriquecido com o encontro com o cotidiano britânico. Eu, na verdade, desejava ser aceito — mas aceito precisamente pelo que eu era, por minha dessemelhança.

Minha sorte foi que, com essa atitude, eu aterrissei e me estabeleci na Grã —Bretanha. Posso pensar em muitos países onde viver com tal atitude teria sido muito mais difícil e social e espiritualmente custoso. Se alguém tiver de ser um exilado ou um estrangeiro, a Grã-Bretanha é o lugar certo para se estar. Pode-se esperar boa vontade, tolerância e bastante hospitalidade — com a condição de que não se queira fingir que se é inglês... Além disso, o que aqui chega vindo de fora não é colocado numa classe mas numa categoria separada, de "estrangeiro", na qual a liberdade de pensamento e de ação tem amplo espaço; os estrangeiros escapam da atribuição de classe, de certo modo inflexível e rija, que interfere na vida dos outros, dos britânicos comuns...

O senhor certa vez disse que se sentia "fora de lugar" em muitas circunstâncias. Ainda se sente assim? Diria que esse sentimento implica perdas e ganhos?

Sim, ainda me sinto assim e gosto disso. Não tenho certeza se tal atitude foi fruto de uma escolha livre que gradualmente se tornou um hábito, ou se foi, e ainda é, um meio de transformar uma necessidade em virtude. Perdas deve haver, como ser ocasionalmente objeto de desconfiança, de zombaria, de descortesia, de um caso ou dois de rejeição e, o que para mim é a coisa mais vexatória e nociva de todas, sentir que em vez de avaliarem suas opiniões de acordo com o seu mérito, elas são descartadas como manifestações de alienismo. Mas os ganhos superam imensamente as perdas. No meu ponto de vista (e por experiência), estar "fora de lugar", ao menos em parte do nosso ser, não concordar completamente, manifestar divergência e dissensão, é o único meio de resguardarmos nossa autonomia e liberdade. Estar "dentro" mas parcialmente "fora" é também um meio de preservar o frescor, a inocência e a abençoada ingenuidade de visão. Quem está assim situado tende a fazer perguntas que não ocorreriam àqueles estabelecidos mais solidamente; tende a notar o estranho no familiar, o anormal no óbvio. Exílio é muito freqüentemente uma situação de sofrimento, mas também de expansão do pensamento crítico, de independência, insight e criatividade. No conjunto, foi minha grande sorte viajar e me estabelecer aqui.

Quando e como o senhor abandonou o marxismo? Considera-se ainda um socialista?

Nunca abandonei Marx, apesar de minha intoxicação pelo "marxismo realmente existente" ter sido, felizmente, breve; de fato, terminou bem cedo, no momento em que o vi como era: um imenso obstáculo para a recepção e a manutenção da mensagem ética de Marx.

Imagino que meu entusiasmo por Emmanuel Lévinas3 tenha sido, em grande parte, predeterminado pela minha antiga inoculação com a idéia de Marx de que a qualidade da sociedade deve ser testada pelos critérios de justiça e de fair play que regulamentam a coletividade humana: a sociedade deve se justificar pelos padrões éticos, e não o contrário, os padrões éticos pela sociedade. Espero ter o direito de dizer que nunca abandonei essa crença. O mesmo se aplica ao meu socialismo, que, em meu entender, se resume na convicção de que, assim como o poder de carga de uma ponte se mede não pela força média de todos os pilares mas pela força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma sociedade também não se mede pelo PIB, pela renda média de sua população, mas pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

Socialismo para mim não é o nome de um tipo particular de sociedade. É, exatamente como o postulado de Marx de justiça social, uma dor aguda e constante de consciência que nos impulsiona a corrigir ou a remover variedades sucessivas de injustiça. Não acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de uma "sociedade perfeita", mas acredito numa "boa sociedade" — definida como aquela que se recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa e não estar fazendo o suficiente para se tornar melhor...

Fiquei muito marcado pelo Homme révolté de Albert Camus, que li no fim dos anos de 1950. O rebelde de Camus é um ser humano que diz "não", mas que também diz "sim", ou seja, um ser humano que diz cada uma dessas palavras de tal modo que deixa espaço para a outra. O rebelde se recusa a aceitar o que existe, mas também se abstém de rejeitar totalmente o que existe. Ele não desculpa a condição humana pela sua desumanidade, por não se equiparar ao que ela poderia ser, mas também não a despreza; aceita a condição humana "realmente existente", completa, com todas as suas desumanidades. A motto hic Rhodos, hic salta4 define o rebelde de Camus e também o distingue dos rebeldes "metafísicos" e "históricos", aparentemente seus parentes próximos, mas não companheiros de armas e talvez até mesmo seus confessos inimigos e adversários mais traiçoeiros.

O rebelde metafísico rejeita a condição humana, considerando-a injusta, fraudulenta, abjeta e absurda. Ele nega a ela o direito de existir e o direito de reconhecimento. É, pois, um rebelde intolerante que não perdoaria, e muito menos absolveria, o pecado da não-resistência. Ele odeia o pecado, mas odeia mais ainda o pecador. Ele odeia a desumanidade do mundo, mas odeia mais ainda — já que também desdenha e rejeita — seus escravos, vítimas e feridos colaterais. O rebelde metafísico diria que o mais horrendo crime da condição humana "realmente existente" é a conspiração contra a rebelião. E, no entanto, nenhum criminoso é tão repelente para ele como os seres humanos não rebeldes.

Os erros do rebelde histórico são ainda mais terríveis, ou ao menos assim parecem, pois foi contra ele que o rebelde de Camus teve de afirmar seu próprio tipo de rebelião. Na época em que Camus escreveu, o rebelde metafísico já parecia ter sido derrubado e destronado por seu "primo histórico", e essa mudança de dinastia parecia irreversível e definitiva. Era também claro que, apesar de o rebelde histórico ter feito sua rebelião contra a variedade metafísica de escravidão, ele a fizera em nome de uma escravidão nova e aprimorada.

Ele se rebelou contra ter de encarar o fato da solidão humana e da responsabilidade que a acompanha. Não podia suportar a condição de sujeito moral dos homens, bem como o absurdo da impotência e da insignificância humanas. A servidão, disse Camus, era a verdadeira paixão do século XX. Amedrontado por sua impotência, o rebelde histórico correu em busca de proteção, procurando desesperadamente uma nova autoridade que aceitasse sua rendição. E isso ele encontrou nas "leis da história", que inevitavelmente aliviam os ombros doloridos do peso da escolha responsável, e também nos absolvem do mais angustioso dos deveres — o da subjetividade: daquele cuidado pelo Outro no qual o Eu, o sujeito que está sozinho mas que não é solitário, que se auto-guia mas não está abandonado, nasce. Finalmente, as leis da história oferecem a fuga mais eficaz da culpa de crueldade ao fazer a inevitabilidade histórica do progresso tomar o lugar da distinção entre o bem e o mal.

Muitos anos mais tarde deparei com outra afirmação de Camus: "Existe a beleza e existem os humilhados. Quaisquer que sejam as dificuldades que o empreendimento possa apresentar, gostaria de nunca ser infiel quer aos segundos quer à primeira". Também gostaria que minha vida me permitisse dizer que me comportei o mais possível de acordo com esse princípio. Por outro lado, não me importo muito com a lealdade aos "ismos"...

O senhor se diz ao mesmo tempo um socialista e um liberal. Poderia explicar como concilia as duas posições?

Eu, na verdade, não acredito que requeiram conciliação. Defino o socialismo de um modo muito simples, como já disse antes, pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

Se se pensa, por exemplo, num dos fundadores do liberalismo moderno, John Stuart Mill, nota-se que ele também chegou ao socialismo por acreditar que para implementar o programa liberal, o programa da liberdade humana, é necessário uma distribuição justa de oportunidades, diminuindo-se a distância entre os membros mais ricos e os mais pobres da sociedade. E, se nos lembrarmos de Lord Beveridge, o criador do Estado de bem-estar social britânico, o caso é o mesmo. Durante a guerra, o governo da Grã-Bretanha criou uma comissão para organizar um programa de bem-estar social (do qual Beveridge era diretor), prevendo que com o fim do conflito haveria milhões de desempregados que não mais aceitariam a sina dos oprimidos. Beveridge preparou então todo um programa que foi pouco a pouco aceito pelo governo após a guerra. Ora, ele não era um socialista e não se definiu jamais como tal. Dizia que era um liberal e que o que estava propondo era, na verdade, a implementação definitiva do programa liberal, porque, se o liberalismo quer que todos sejam seres autônomos e autoconfiantes, então para ser livre é necessário que se tenha recursos, que haja um chão firme no qual se apoiar. A idéia de Lord Beveridge, que infelizmente não se impôs, era que toda essa assistência social, esse bem-estar social, toda essa provisão eram necessários como medidas temporárias. E isso porque ele partia do pressuposto de que, para ter a coragem, a ousadia de ser aventurosas e se arriscar, as pessoas precisam se sentir seguras — e segurança elas não podem obter por si próprias, mas deve ser oferecida e garantida pela grande sociedade. Se as pessoas se arriscam sozinhas, correm o perigo de ser abatidas por um grande fracasso, uma tragédia, uma crueldade ou coisa semelhante. Deve haver, portanto, essa garantia do Estado, o que eu chamo de seguro coletivo contra o infortúnio individual. Se isso existe, as pessoas se enchem de coragem e, sem receio de tentar, logo podem tornar-se prósperas. Essa era a idéia de Beveridge.

Enfim, como vemos, se se considera o melhor na história do liberalismo e o melhor na história do socialismo, eles sempre convergem, há sempre essa conexão entre os dois. Para resumir, tudo se reduz à questão muito simples de que há dois valores igualmente indispensáveis para uma vida humana decente e digna: liberdade e segurança. Não se pode ter um sem que se tenha o outro. Esse é o meu ponto, mas infelizmente na prática política eles são normalmente justapostos e apresentados como tendo propósitos opostos, como sendo necessário sacrificar a segurança sob o argumento de que quanto maior ela for menos livre se é. A acusação mais comum hoje em dia é que o Estado de bem-estar social torna as pessoas dependentes, já que ninguém pode ser livre se depende de assistências de qualquer natureza: saúde, caridade e coisas do gênero. Isso tudo me soa muito cruel, porque eu sou um ser moral na medida em que me considero dependente de você. Em certo sentido, meu bem-estar depende do seu bem-estar, minha autonomia depende da sua autonomia. Assim, qualquer que seja a perspectiva da qual se parta, chega-se sempre à mesma questão de que, ou liberdade e segurança são obtidas juntas, ou não serão obtidas de modo algum. Esse é o ponto de encontro entre socialismo e liberalismo.

Em sua obra o senhor se refere freqüentemente a romances. O que acha que a literatura pode ensinar sobre a sociedade e sobre a condição humana? Mais especificamente, o senhor confessa ser Borges uma de suas grandes fontes inspiradoras. Poderia nos explicar em que um escritor que parece não tratar especificamente de questões sociais lhe é importante?

Devo começar lembrando que meus professores na Polônia nunca se preocuparam com as diferenças entre "filosofia social" e "sociologia propriamente dita"; mas, acima de tudo, consideravam romancistas e poetas seus camaradas de armas, não competidores, e muito menos antagonistas. Aprendi a considerar a sociologia uma daquelas numerosas narrativas, de muitos estilos e gêneros, que recontam — após terem primeiramente processado e reinterpretado — a experiência humana de estar no mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era oferecer um insight mais profundo do modo como essa experiência foi construída e pensada, e dessa maneira ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle de seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a narrativa sociológica não era "por direito" superior a outras narrativas, pois tinha de demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto. Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insight sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde uma determinada idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição — assunto tanto da sociologia como das belles-lettres.

Compreendo, pois, a observação de Richard Rorty de que, se os futuros arqueólogos quisessem saber como era viver, buscar a felicidade e sofrer na nossa era agridoce, teriam muita sorte se encontrassem em alguma biblioteca os livros de Dickens e muito azar se encontrassem os de Heidegger. Quando se está seriamente interessado em colocar o pensamento, o sentimento e a ação humana no centro da pesquisa sociológica e em se tratar a sociologia como uma conversa contínua com os seres humanos, o veredicto de Rorty faz muito sentido. A lida diária com médias estatísticas, tipos, categorias e padrões facilmente faz com que se perca de vista a experiência. Um bom romance teria, então, um efeito salutar e sóbrio, relembrando ao praticante dos "métodos sociológicos" qual deveria sempre ser o "negócio" da sociologia e que tipo de sabedoria ela deveria estar permanentemente buscando.

Não só a sociologia perde para a literatura quando se quer entender o que faz as pessoas serem o que são, conhecer o que pensam, os dilemas que enfrentam, suas alternativas etc. Muito pouco também se pode aprender sobre isso de escritos que estão extremamente distantes das experiências diárias, que as processam de modo a selecionar somente uma pequena parcela da condição humana. Pensemos, por exemplo, no grande Kant, que estabeleceu as fundações de nosso pensamento. Pois bem, nas suas tentativas de explicar o humano, ele desconsiderou todo o aspecto da condição humana que não fosse a razão, deixando de lado, portanto, as características emocionais, irracionais, erráticas, que também fazem parte dessa condição. Isso nos deixa com um quadro da humanidade muito empobrecido, que, se por um lado pode aumentar a elegância teórica e o prazer estético do relato lógico, de outro perde a comunicação com a experiência humana diária. Ora, se se entende a sociologia, como já mencionei antes, como um diálogo contínuo com a experiência humana, tal estratégia representa o fim do diálogo, pois com ela muito pouco se pode aprender sobre a humanidade.

O que aprendi com Borges? Acima de tudo, aprendi sobre os limites de certas ilusões humanas: sobre a futilidade de sonhos de precisão total, de exatidão absoluta, de conhecimento completo, de informação exaustiva sobre tudo; enfim, sobre as ambições humanas que, no final, se revelam ilusórias e nos mostram impotentes. Lembremos, por exemplo, do conto de Borges que fala sobre o mapa: o sonho do mapa exato que acaba ficando do mesmo tamanho da própria coisa mapeada e, portanto, sem nenhuma utilidade. Não me ocorre nenhum filósofo ou sociólogo que tenha podido tratar de tais questões de forma tão persuasiva, tão convincente, tão espetacular. Em parte isso se deve à posição muito luxuosa e mesmo invejável de nunca ter sido um acadêmico e de nunca ter estado submetido a uma disciplina. Fora dos muros da academia os romancistas desfrutam da liberdade que é negada, por exemplo, aos sociólogos profissionais, que têm seus trabalhos avaliados pela conformidade com os procedimentos que definem e distinguem a profissão, e não por sua relevância humana. Quando se envia um artigo a uma revista científica para ser avaliado por um "par", numa opinião anônima, isso só tem um impacto: reduzir a originalidade ao denominador comum! Pois na verdade o que acontece é que essas opiniões fazem rebaixar todo pensamento original. Borges nunca teve que se submeter a esse tipo de coisa. Note que os dois cientistas sociais da modernidade realmente interessantes e ainda hoje extremamente tópicos foram Marx e Simmel, e eles têm também essa característica em comum: ambos eram free lancers e nenhum deles ensinou nas universidades!

Ao contrário dos acadêmicos, portanto, os romancistas podem, aberta e sem a menor vergonha, recorrer a estratégias que os primeiros desconsiderariam arrogantemente como "meras intuições", "puras suposições" ou mesmo "construções da imaginação". É por agirem assim que eles podem abrir novas possibilidades interpretativas que os profissionais de bona fide dificilmente iriam suspeitar ou mesmo notar.

Mas, acima de tudo, a maior vantagem da narrativa dos romancistas é que ela se aproxima mais da experiência humana do que a maioria dos trabalhos e relatórios das ciências sociais. Elas são capazes de reproduzir a não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado — todas características muito marcantes do modo de o ser humano estar no mundo, mas que a ciência social se inclina a ver como "impressões falsas", originárias da ignorância ou do conhecimento insuficiente.

O senhor tem sempre enfatizado a necessidade de todos nós "questionarmos ostensivamente as premissas de nosso modo de vida". Teria alguma sugestão a nos dar sobre as respostas a esses questionamentos?

Maurice Blanchot disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que as respostas são a má sorte das perguntas. De fato, cada resposta implica fechamento, fim da estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez, harmonia, elegância; enfim, qualidades que o mundo narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa camisa-de — força na qual ele definitivamente não cabe. Corta as opções, a multidão de sentidos e possibilidades que a condição humana implica a cada momento. Promete falsamente uma solução simples para uma busca provocada e impelida pela complexidade. Também mente, pois declara que as contradições e as incompatibilidades que provocam as questões são fantasmas — efeitos de erros lingüísticos ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e irremovíveis da condição humana.

Creio que a experiência humana é mais rica do que qualquer uma de suas interpretações, pois nenhuma delas, por mais genial e "compreensiva" que seja, poderia exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de conversação com a experiência humana deveriam abandonar todos os sonhos de um fim tranqüilo de viagem. Essa viagem não tem um final feliz — toda a felicidade se encontra na própria jornada.

O senhor descreveu modestamente um de seus livros mais recentes como um discussion paper. Diria que é por acaso ou propositadamente que tem se dedicado a escrever ensaios?

No curso de meio século de estudos e de escrita, nunca consegui adquirir a habilidade de terminar um livro... Com o passar do tempo reconheço que todos os meus livros foram entregues ao editor inacabados. Em regra, antes mesmo que o manuscrito seja impresso, fica claro para mim que o que há pouco me parecia "o fim" era, de fato, um começo — com uma seqüência desconhecida, mas tremendamente necessária. Por trás de cada resposta percebo que novas questões estão piscando; que mais, muito mais restou a ser explorado e compreendido, e muito pouco, de fato, foi revelado pelo "acabamento bem-sucedido" das explorações passadas. As perguntas mais intrigantes e provocantes emergem, via de regra, após as respostas. No decurso dos anos aprendi a apreciar a queixa de Adorno sobre a convenção linear da nossa escrita: por causa dela nós não conseguimos transmitir a lógica do pensamento que, diferentemente da escrita, move-se em círculos e está invariavelmente forçada, por seu próprio progresso, a fazer perpétuos retornos.

O senhor já foi descrito como um "profeta da pós-modernidade" e os termos "pós-moderno" e "pós-modernidade" aparecem em títulos de quatro de seus livros. Estaria sugerindo que uma mudança cultural e social significativa ocorreu na última geração, suficientemente grande para que falemos de um novo período da história?

Uma das razões pelas quais passei a falar em "modernidade líquida" e não em "pós-modernidade" (meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, "pós-modernismo" de "pós-modernidade". No meu vocabulário, "pós-modernidade" significa uma sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição humana), enquanto "pós-modernismo" refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente, da condição pós —moderna. Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um sociólogo da pós-modernidade não significa ser um pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um pós-modernista significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores que, entre outras coisas, descarta a idéia de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana, assume que todos os tipos de vida humana se equivalem, que todas as sociedades são igualmente boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a fazer qualquer julgamento e a debater seriamente questões relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é pós-modernismo. Mas eu sempre estive interessado na sociologia da pós-modernidade, ou seja, meu tema tem sempre sido compreender esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo como uma condição que ainda se mantém eminentemente moderna na suas ambições e modus operandi (ou seja, no seu esforço de modernização compulsiva, obsessiva), mas que está desprovida das antigas ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante. É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim, modernidade sem ilusões.

Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de "modernidade sólida", que também tratava sempre de desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna: como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes". Sem dúvida a vida moderna foi desde o início "desenraizadora", "derretia os sólidos e profanava os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente "re-enraizado", agora todas as coisas — empregos, relacionamentos, know-hows etc. — tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições.

Como um exemplo dessa perspectiva, li outro dia que um famoso arquiteto de Los Angeles estava se propondo a construir casas que permanecessem lindas "para sempre". Ao ser perguntado o que queria dizer com isso, ele teria respondido: até daqui a vinte anos! Isso é "para sempre", grande duração, hoje. O que me interessa é, portanto, tentar compreender quais as conseqüências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido.

Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a ter um projeto de vida, a decidir o que queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo suicida. Se se toma, por exemplo, os dados levantados por Richard Sennett — o tempo médio de emprego em Silicon Valley, por exemplo, é de oito meses —, quem pode pensar num projet de la vie nessas circunstâncias? Na época da modernidade sólida, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Renault ou da Ford iria com toda a probabilidade ter ali uma longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem idéia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano! E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana.

No meu livro mais recente, Liquid love, exploro o impacto dessa situação nas relações humanas, quando o indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um lado, ele precisa dos outros como o ar que respira, mas, ao mesmo tempo, tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos que o imobilizem em um mundo em permanente movimento.

Em muitas partes de sua obra o senhor soa nostálgico, às vezes até mesmo do que chama de "modernidade sólida", quando a humanidade aparentemente era menos ansiosa e tinha uma vida mais estável e segura. Concorda com essa interpretação?

Eu não diria isso. Não acredito que haja um progresso linear no que diz respeito à felicidade humana. Podemos dizer que, como um pêndulo, nos movemos de tempos mais felizes para tempos menos felizes e de menos felizes para mais felizes. Hoje temos medo e somos infelizes do mesmo modo como também tínhamos medo e éramos infelizes há cem anos, mas por razões diferentes. A modernidade sólida tinha um aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados esmagando as faces humanas. Virtualmente todo mundo, quer da esquerda quer da direita, assumia que a democracia, quando existia, era para hoje ou para amanhã, mas que uma ditadura estava sempre à vista; no limite, o totalitarismo poderia sempre chegar e sacrificar a liberdade em nome da segurança e da estabilidade. Por outro lado, como Sennett mostrou, a antiga condição de emprego poderia destruir a criatividade e as habilidades humanas, mas construía, por assim dizer, a vida humana, que podia ser planejada. Tanto os trabalhadores como os donos de fábrica sabiam muito bem que iriam se encontrar novamente amanhã, depois de amanhã, no ano seguinte, pois os dois lados dependiam um do outro. Os operários dependiam da Ford assim como esta dependia dos operários, e porque todos sabiam disso podiam brigar uns com os outros, mas no final tendiam a concordar com um modus vivendi. Essa dependência recíproca mitigava, em certo sentido, o conflito de interesses e promovia algum esforço positivo de coexistência, por menor que fosse.

Bem, nada disso existe hoje. Os medos e as infelicidades de agora são de outra ordem. Dificilmente outro tipo de stalinismo voltará e o pesadelo de hoje não é mais a bota dos soldados esmagando as faces humanas. Temos outros pesadelos. O chão em que piso pode, de repente, se abrir como num terremoto, sem que haja nada ao que me segurar. A maioria das pessoas não pode planejar seu futuro muito tempo adiante. Os acadêmicos são umas das poucas pessoas que ainda têm essa possibilidade. Na maioria dos empregos podemos ser demitidos sem uma palavra de alerta. Você chama isso nostalgia? Não sei... Para pessoas que viveram no tipo de sistema Ford, semitotalitário, que tinha uma tendência totalitária inerente, como Hannah Arendt dizia, nossas apreensões devem parecer incompreensíveis!

A questão é que, como já disse antes, aproximando-me dos meus 80 anos, não mais acredito que possa existir algo como uma sociedade perfeita. A vida é como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz os pés ficam frios, e quando se cobrem os pés o nariz fica gelado. Há sempre um custo a ser pago para a melhora numa determinada direção. Mas insisto que a sociedade que obsessivamente se vê como não sendo boa o suficiente é a única definição que posso dar de uma boa sociedade.

O senhor subscreveria a motto de Romain Rolland sobre o "pessimismo da inteligência" e o "otimismo da vontade"?

Pessimismo? No meu entender, o otimista é aquele que acredita que este é o melhor dos mundos possíveis. E o pessimista é aquele que suspeita que o otimista tem razão... Nesse quadro, não me identifico nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crença é instrumental em torná-lo melhor...

Qual seria sua mensagem para os jovens de hoje?

Gostaria que tentassem, apesar de tudo (e talvez esteja aí o elemento de nostalgia que você notou), apesar de todas as tendências em contrário e de todas as pressões de fora, reter na consciência e na memória o valor da durabilidade, da constância, do compromisso. Eles não podem mais contar, como a antiga geração, com a natureza permanente do mundo lá fora, com a durabilidade das instituições que tinham antes toda a probabilidade de sobreviver aos indivíduos. Isso não é mais possível e, na verdade, a vida humana individual, apesar de ser muito curta, abominavelmente curta, é a única entidade da sociedade de agora que tem sua longevidade aumentada. Sim, somente a vida humana individual vê crescer sua durabilidade, enquanto a vida de todas as outras entidades sociais que a rodeiam — instituições, idéias, movimentos políticos — é cada vez mais curta. Assim, o único sentido duradouro, o único significado que tem chance de deixar traços, rastos no mundo, de acrescentar algo ao mundo exterior, deve ser fruto de seu próprio esforço e trabalho. Os jovens podem contar unicamente com eles próprios e só haverá em suas vidas o sentido e a relevância que forem capazes de lhes dar. Sei que essa é uma tarefa muito difícil... mas é a única coisa que posso lhes dizer.





Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora aposentada da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora associada do Center of Latin American Studies, Universidade de Cambridge. É autora, entre outros, de Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural (Hucitec, 1996) e As muitas faces da história (Unesp, 2000), editado também em inglês, The new history: confessions and conversations (Polity Press, 2002).
*Uma versão reduzida desta entrevista foi publicada na Folha de S. Paulo, caderno "Mais!", 19 de outubro de 2003.

1. William Kristol é um dos mais influentes pensadores neo-conservadores de Washington e um dos ideólogos da chamada "doutrina Bush". É editor da The Weekly Standard e chairman do Project for the New American Century. Seu pai, Irving Kristol, foi um dos grandes defensores do senador Joseph McCarthy e de sua política inquisitorial contra os comunistas — conhecida como macarthismo — do início dos anos de 1950.
2. O "outubro polonês" (1956) ficou conhecido como o início de um período de grandes promessas e expectativas, quando a liberalização do regime — que se propunha a ser mais fiel aos ideais comunistas — parecia abrir novas perspectivas para a Polônia.
3. Nascido na Lituânia em 1906 e naturalizado francês, foi um filósofo que fez da responsabilidade ética para com os outros o ponto de partida e o foco principal de suas análises filosóficas. "A Ética precede a ontologia" é uma frase que sintetiza sua posição. Totalité et infini (1961) e Autrement qu'être (1974) são consideradas suas obras-primas. Faleceu em 1995.
4. De significado controverso, essa expressão de Esopo é usada aqui no sentido de Marx, que, seguindo Hegel, a usou para descrever as condições das quais não se pode fugir. No caso do rebelde de Camus, trata-se de acentuar que, se ele quer aprimorar o mundo, não há como escapar ao fato de que o ponto de partida tem de ser a condição humana existente, com todas as suas imperfeições.


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