quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Projeto de Desenvolvimento de Rede Solidária

Desenvolvimento Local e o Projeto de Desenvolvimento de Rede Solidária: Por que um projeto que não incuba?

Mariana Neubern de Souza Almeida

O que se espera de um processo de incubagem? A palavra incubar vem sendo utilizada pelas mais diversas instituições na realização de numerosas e distintas atividades. No que se refere ao trabalho realizado especificamente pela ITCP-USP, que consiste no estímulo a formação e acompanhamento das atividades de cooperativas e outros empreendimentos autogestionários, pode-se destacar duas expectativas iniciais que motivaram o desenvolvimento de uma metodologia de incubagem: a possibilidade de emancipação do indivíduo e a geração de renda.
Por emancipação do indivíduo, entende-se a possibilidade de mudar sua forma de sentir e agir a partir da devolução a ele de algo há muito perdido: o sentido de seu trabalho. A autogestão, por ser uma forma de organização de um empreendimento em que todos aqueles que nele trabalham tem igual direito à voz e voto, garante a atuação das pessoas nas decisões daquilo que lhes pertence. Elas passam a responsabilizar-se, a identificar-se com cada ação. É nesse momento que o trabalho ganha um sentido, maior inclusive do que a obtenção da renda. Ele passa a ser uma forma de realização da própria pessoa. Além disso, a não hierarquização traz a necessidade da redefinição das relações entre as pessoas, nas quais passam a ter lugar características variadas, que deixam de estar presas aos limites das funções exercidas por cada uma. Ou seja, a pessoa não é mais o operário, ela é mais um agente do conjunto, o que inclui todas as suas características, e não apenas aquelas referentes à sua destreza na operação de técnicas e máquinas. Não são mais funcionários, mas sim vidas interagindo no intuito de um desenvolvimento coletivo.
Esta, no entanto, não é a intenção mais disseminada dos processos de incubagem. De maneira geral, a Economia Solidária, em especial em suas ações de formação de cooperativas, desenvolveu-se no Brasil com mais intensidade a partir dos anos 90, como resposta à situação econômica do país. O raciocínio era simples: o desemprego assumiu um caráter inédito até então, não apenas pela sua dimensão (maiores taxas), mas por sua persistência. É possível dizer que nunca antes se teve tão pouca expectativa de se arrumar um emprego como nos dias atuais. Desse modo, a única alternativa aparentemente viável seria a organização autônoma dos trabalhadores. Na falta de emprego, eles próprios criariam seus trabalhos. Assim, a principal motivação das iniciativas de incubadoras era a expectativa de criação de formas alternativas de geração de renda.
Das duas expectativas da ITCP-USP, pode-se dizer que se atingiu bons resultados na primeira delas. Ao longo da grande maioria dos cursos e grupos já acompanhados, os participantes demonstraram mudanças em seus comportamentos cotidianos que, embora ainda tímidas, reforçaram o potencial de transformação na medida em que a autogestão puder ter um papel central em suas vidas.
Pode-se citar como exemplo um bazar realizado no Jardim Ângela, organizado conjuntamente entre todos os participantes do Oportunidade Soldaria naquele distrito, um grupo de quase 500 pessoas. Naquele momento, a autogestão fazia parte de todas as instâncias da vida daquelas pessoas, que puderam expor seus trabalhos, alimentar-se e divertir-se com a família e amigos. Com isso, pode-se observar uma dinâmica de cooperação desinteressada, no caso das pessoas que fizeram a montagem e desmontagem das barracas, por exemplo, que foram reconhecidas pelos demais, que lhes ofereceram fichas de suas barracas, após ter falhado inicialmente a organização de vales para os montadores. Assim, o bazar foi considerado um sucesso, não exatamente porque as pessoas tenham obtido bons resultados financeiros, o que não aconteceu com a maioria, mas porque naquele momento elas já tinham tudo o que precisavam, alimento, diversão, trabalho, e um relacionamento diferenciado entre as pessoas. Outros exemplos importantes são os de alguns grupos, como o de Cuidadores de Idosos incubado pela ITCP-USP, que se mantiveram, ou se mantém até hoje, muito mais pelo grupo do que pelo empreendimento. Isto é, aqueles grupos em que se percebeu a vontade das pessoas em conviverem num ambiente autogestonário, independente do resultado econômico que isso lhes traria.
É em relação à segunda expectativa que surgem os maiores questionamentos. Embora já sejam muitos os casos em que os trabalhadores se uniram para assumir fábricas falidas ou organizarem suas vendas em cooperativas rurais, que acabaram prosperando e até mesmo expandindo suas atividades, as histórias dos pequenos negócios que conseguiram gerar renda, iniciando sem estrutura e nicho de mercado prévio, são bem menos numerosas.
É preciso, então, um olhar mais cauteloso sobre o que define as possibilidades reais de geração de renda de um empreendimento. Ora, a primeira questão que deveria surgir é: o que é renda? Estamos chamando de renda a massa de rendimentos provenientes das mais diversas formas - salário, lucro, pensões, aluguéis... - que estão circulando e que devem ser alocados em diferentes bens e atividades - produtos, abertura de novos negócios, contratação de novas pessoas... - para que o processo produtivo possa ser realimentado. Estando isso claro, deve-se questionar a seguir: de onde virá essa renda? Apesar das diferentes proveniências da renda, para que ela possa ser utilizada com algum outro objetivo, diferente daquele que a gerou, ela deve necessariamente passar pelo seu espaço de circulação: o mercado. Ou seja, do ponto de vista de qualquer pessoa ou atividade que estejam em busca de renda, objetivamente, toda ela vem do mercado.
Como essa renda chega até os empreendimentos, isto é, o que há no mercado que define quais negócios irão obter sucesso financeiro? Inúmeros fatores passam pela nossa cabeça ao ouvirmos tal pergunta, são questões como bom atendimento, acesso a investimento e capital de giro, tino para negócios, preocupação com produto de qualidade, variedade, boa pesquisa de mercado, entre tantos outros. Nota-se, no entanto, que essas respostas referem-se a ações dos empreendimentos, mas não é neles que está a princípio a renda, e sim no mercado. Assim, a resposta que a pergunta está buscando não se encontra nesses fatores. Ela quer saber como esses fatores são selecionados e avaliados pelo agente detentor da renda, ou seja, o mercado. Para isso, torna-se necessário um olhar mais próximo da estrutura de produção, distribuição e crescimento do mercado.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, apesar de na maioria das vezes considerar-se mercado como um ente abstrato, cuja personalidade ninguém assume, quando falamos de mercado estamos nos referindo a agentes concretos, todos aqueles envolvidos no processo de produção e distribuição de uma sociedade. Ou seja, todos que trabalham, consomem qualquer produto, utilizam transporte público, assistem televisão, fazem parte do mercado. Isso porque são essas pessoas, através de suas ações e decisões, individuais e via empresas, que vão definir os caminhos que a renda irá seguir. Assim, o mercado não é algo tão indefinível e inquestionável, ao qual pode-se apenas adaptar. Ele é formado por pessoas e, embora o peso de cada empresa ou pessoa em suas decisão seja bastante diferente, o que também está relacionado às regras sobre as quais se estrutura o mercado, ele pode ser entendido e adaptado através de uma abordagem concreta dos sistemas de produção e distribuição.
Dito isso, podemos iniciar a análise de suas estruturas a partir de uma pergunta essencial: se todos os empreendimentos conseguirem atender à risca as determinações de mercado, este abrirá espaço para a entrada de todos? Isto é, todo e qualquer empreendimento que saiba adaptar-se, fazendo a escolha correta de seu produto, apresentando alta qualidade, bom atendimento, localização, entre tantos outros requisitos, terá como resposta o recebimento de uma parte suficiente da renda?
A suposição a ser descrita a seguir é de que a resposta para essa pergunta é não, o que significa dizer que, por mais que criem empreendimentos organizados, com produtos adaptados, ainda assim o sucesso a todos não será possível. É certo que não se pode concluir a impossibilidade de um sistema sustentável e bem distribuído a partir da mera observação, são necessários diversos estudos, em diferentes áreas. No entanto, pode-se levantar algumas questões que levam a essa percepção de insustentabilidade:

Como a propriedade é privada, as únicas formas de distribuição de renda são os salários e os negócios próprios.
No que diz respeito aos salários, o sistema não vive mais seus tempos de dependência do consumo de massa. Enquanto na época do chamado fordismo vigorou um modelo pautado essencialmente no consumo de massa, a estrutura de produção e rendimentos hoje parece não necessitar dessa característica para sobreviverem. Isso significa dizer que, enquanto as primeiras décadas do século XX assistiram a uma preocupação da indústria em expandir seus mercados, transformando, a partir do aumento dos salários, funcionários em consumidores, as últimas décadas foram protagonistas de um cenário em que a diversificação e diferenciação de produtos de alto valor agregado, com consumo concentrado nas classes mais altas, ganham maior espaço na pauta de interesses da indústria. Ou seja, a produção não depende mais do salário, e, portanto, nem o mercado depende da distribuição de renda.
(Aqui se encaixam os exemplos da De A à Z e 7 elos, cooperativas acompanhadas pela ITCP-USP que só conseguiram sustento por atender a um mercado de luxo, e no primeiro caso não deram certo também por não conseguir atingir esse mercado, embora os produtos importantes para o progresso delas fossem esses. Elas indicam que a produção não deve se voltar a quantidade, mas sim à preço. Além disso, existem os exemplos de produtos que antes eram considerado duráveis e que hoje tem um tempo de vida muito mais curto - geladeiras, vídeos, computadores - Apenas as camadas mais altas acompanham os avanços desses itens, num processo que parece poder durar para sempre, criando e vendendo quantos produtos destes forem necessários, sem precisar que haja uma massa compradora, a fidelização dessa classe já é suficiente.)

O padrão de qualidade capitalista exige uma estrutura de produção e gerenciamento de alta tecnologia, alto investimento inicial e, em geral, larga escala. Isso tem implicação tanto nas possibilidades de negócios quanto nos salários: impõe concentração produtiva (poucos negócios) e alta tecnologia (poucos trabalhadores).
Além da estrutura básica de produção, é preciso se considerar outras motivações que poderiam levar à distribuição, ações como as governamentais ou sociais de estímulo privado. Mesmo esses casos, no entanto, quando observadas suas conseqüências mais gerais, não parecem ser um caminho sustentável:
a) O investimento em desenvolvimento local é bastante restrito, isso porque as estruturas de produção são bastante concentradas. Melhores condições fiscais ou apelos sociais eventuais pelo desenvolvimento de uma região podem até deslocar fábricas para a área, mas se essa ação não vier acompanhada de uma maior renda global, representará apenas um deslocamento circunstancial, e não um desenvolvimento social, pelo menos não no âmbito global.
(Ainda na região trabalhada, pode-se citar os exemplos de duas grandes fábricas que compunham um pólo empregador para a região do Capão Redondo e Jardim Ângela, a Caloi e a Monark, que saíram da região com a abertura econômica, proporcionando certamente a abertura de empregos em outros locais do mundo, mas não na região. Demonstram que não é possível “esticar” os benefícios de uma fábrica).
b) O que move as decisões de investimento é, essencialmente, a possibilidade de lucro. Hoje em dia, a responsabilidade social vem aumentando a importância dada ao investimento social, seja por criar uma imagem positiva das empresas no mercado, possibilitando melhores resultados internos e externos, seja porque a consciência social de fato aumento. De qualquer forma, a escolha do momento e do espaço em que essas ações vão se dar é algo que independe das comunidades que serão atendidas. Mais uma vez. É o caso dos distritos da Zona Sul, que passaram a receber diversos desses investimentos na década de 90, após um apelo mais intenso da imprensa em relação a violência nessas regiões. Passadas as maiores crises, diversas instituições que trabalhavam ali se retiraram e foram atuar em outros locais. É uma forma de investimento imprecisa e insegura, sobre a qual dificilmente deve-se apoiar o desenvolvimento de uma região.

Se essas hipóteses são verdadeiras, quais as conseqüências da estrutura definida pelo mercado? Além de todo o impacto no nível pessoal, que foi parcialmente descrito na questão da importância da emancipação do indivíduo, tem-se a conclusão de que este é um sistema incapaz de garantir justiça material, dadas as duas regras de distribuição.
Se for assim, pergunta-se: vale a pena incubar uma cooperativa? Isto é, o ato de incentivar um empreendimento solidário sem dúvida pode contribuir com algumas questões da vida das pessoas, tanto do ponto de vista de suas relações pessoais quanto em termos de renda, mas ele é capaz de transformar as estruturas de distribuição e garantir um padrão material abrangente e estável para os grupos envolvidos? Existe alguma ação, no processo de incubação, que seja capaz não apenas de atender às lógicas de mercado e inserir um empreendimento, mas efetivamente sobrepor a lógica descrita nas hipóteses acima?
Acredita-se que a incubação tal como vêm sendo entendida até hoje não é capaz de trazer essas respostas. Exatamente por isso, não resulta necessariamente em sucesso econômico. No entanto, a autogestão, por ser um projeto de envolvimento das pessoas não só com o seu trabalho, mas com todos os espaços que ocupa, e por permitir uma relação diferenciada entre as pessoas, é uma possível resposta à conseqüência do mercado. Mas ela não é capaz de atingir todo o seu potencial de mudança sem fazer parte de todos os espaços da vida das pessoas, extrapolando o contexto da cooperativa e passando a atuar no desenvolvimento local de determinada comunidade.
A proposta é de um processo de incubação que seja capaz de transformar a autogestão em um movimento. Ou seja, a partir da convicção da inviabilidade de se atingir os níveis de justiça material e de liberdade do ser humano a partir da lógica de organização capitalista, seria iniciado o processo de repensar as principais atividades e necessidades de um local e traçar estratégias de se atingi-las, inclusive via o acesso a investimentos. A forma como esse processo deve ocorrer é que deve ser seu diferencial. Em primeiro lugar, a aplicação de tais investimentos não deverá se realizar por meio da reprodução dos moldes comuns de produção e distribuição. Em segundo, ele tem que partir do envolvimento local, compreendendo neste termo todos os atores deste local seja governo, seja entidade, seja dona-de-casa. Em terceiro, este envolvimento tem que partir da lógica autogestionária, pois só a partir dela é que as pessoas identificam-se e se responsabilizam pelas ações. Por fim, a avaliação das necessidades compreende toda a vida das pessoas, e não apenas as necessidades econômicas.
Assim, propõe-se que, no lugar da incubação tal como se faz hoje, tenha-se a atenção voltada para a criação de um espaço de organização de um movimento de planejamento local. Nele, a estrutura de produção poderia até mesmo assumir o formato de uma cooperativa, mas apenas como desdobramento lógico de uma estrutura local de reprodução autogestionária da vida, em todas as suas instâncias, e não mais como objetivo de nossa ação.

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