Estado - Ao preconizar uma nova política de civilização, o senhor insiste na idéia da
"refundação ético-econômica". O que é isso?
Morin - A economia sempre esteve sob o controle da ética por intermédio da política,
que elabora e introduz as leis que informam os processos e penas judiciais contra os
autores de atos de corrupção, de falcatruas financeiras e outros crimes ditos de
colarinho-branco. Mas houve nos últimos anos um retrocesso no campo ético, como o
demonstram escândalos envolvendo empresas gigantescas tipo Enron, na esteira da
abolição de uma série de normas reguladoras das atividades econômicas e financeiras.
Felizmente, diante do avanço dos métodos ilegais e imorais em certos setores de
atividade, uma reação em favor de exigências éticas na condução da economia está
sendo desenvolvida nos Estados Unidos e na Europa por diversos movimentos
associativos, incluindo produtores rurais, empresários, operadores de capitais.
Estado - O senhor é um dos benévolos propagandistas dos investimentos éticos...
Morin - Os fundos de investimentos éticos, em expansão no mundo desenvolvido e já
totalizando alguns bilhões de dólares, ilustram bem essa preocupação com o que eu
chamaria de refundação ético-econômica, que abrange também exigências de ordem
ambiental, considerado a extensão dos danos causados pela poluição. Foi dentro desse
espírito que se iniciou entre diversos países europeus, latino-americanos e africanos
outro movimento - o do comércio eqüitativo. Vários de meus amigos e eu próprio só
consumimos, hoje, o café da América Latina vendido pela sistema de distribuição
eqüitativa.
Livre da ganância desenfreada dos intermediários, ele assegura um preço correto para
os pequenos produtores e também para os consumidores. O raio de ação do comércio
eqüitativo precisa ser agora ampliado com a criação de novos lobbies dos consumidores
associados aos movimentos da cidadania. Só assim, mediante pressões sobre os poderes
públicos e os atores responsáveis do mercado, é que se conseguirá a prevalência por
inteiro da moral nas atividades produtivas. Enfim, é preciso restaurar o primado da
política sobre a economia.
Estado - No mundo da complexidade e da informação, exigindo presteza no trato das
múltiplas questões da sociedade, que devem fazer os homens políticos para estar à
altura?
Morin - Os partidos políticos em geral estão esclerosados em toda a parte.
Seus membros se ocupam basicamente das coisas simples do dia-a-dia, porque se
desorientam quando se defrontam com a complexidade. Na verdade, são poucos os que
estudam os problemas da sociedade complexa em que vivemos comportando outras
formas de risco, de incerteza e exigindo o aprendizado da história e da compreensão,
indispensável à paz mundial. Também não houve até agora nenhuma reforma do ensino
para permitir abordagem metodológica da questão e de suas incidências sobre a
condição humana.
Estado - Que rumo o senhor apontaria aos políticos?
Morin - Eu vejo a coisa em duas dimensões: primeiro, temos de convir que a política
necessita urgentemente ser fecundada por novas idéias, idéias que surgem muitas vezes
em centros ou clubes de reflexão das periferias, de laboratórios de ciências humanas
itinerantes, como o de Porto Alegre.
Paralelamente, coloca-se o problema da reeducação e/ou da autoeducação dos
políticos. Do contrário, eles acabarão dominados de vez pelos técnicos ou tecnocratas,
que privilegiam o enfoque unidisciplinar, fechado, fundado nos modelos matemáticos que
são redutores. Ora, nem todos os elementos essenciais da condição humana podem ser
quantificados. A rigor, os problemas da sociedade complexa devem ser tratados no plano
da qualidade, a começar pela qualidade da vida - e tal exigência passa imperativamente
pelo enfoque plurisdiciplinar das questões.
Estado - Então, qual seria a conclusão de seu diagnóstico?
Morin - Em suma, pelo meu diagnóstico, três dos quatro motores - a ciência, a técnica,
a economia - que impulsionam a nave espacial Terra estão desregulados por causa da
avaria do quarto e principal motor - a política.
Daí o fato de estarmos às voltas com as crises das técnicas industriais poluentes, das
práticas escusas de um capitalismo desabrido, às quais se juntam os riscos de
manipulações genéticas dementes, etc. E não serão os técnicos, os economistas e os
cientistas que irão fixar normas ético-políticas e conjurar o caos. Caos a que seremos
levados se os homens políticos continuarem se omitindo por ignorância e por carência de
civismo.
Estado - Como vê a evolução do Brasil e da América Latina neste cenário mundial de
incertezas?
Morin - Se o mundo se encaminhar para o confronto de barbáries, a América Latina não
ficará a salvo das conseqüências disso. Nos momentos de crise, os povos costumam se
voltar para si e para seus vizinhos e tratar de se amparar reciprocamente. Tudo o que
espero, neste quadro de ameaças e incertezas - e torçamos para que as previsões mais
sombrias não se concretizem -, é que os latino-americanos, rompendo as barreiras
geográficas, se conheçam melhor, colaborem mais entre si na construção do continente
que lhes pertence.
Imagino o advento de uma federação continental, como a que se esboça na Europa,
mas nunca nos termos da concebida por Bolívar. Bolívar só pensou na união e na
liberdade dos colonos brancos, seu projeto não incorporava o mundo indígena, pré-
colombiano. Pois o Brasil tem papel decisivo a desempenhar nessa construção comum,
visto a força civilizadora fenomenal engendrada pela sua herança cultural mestiça,
caldeando os valores ameríndios com os da Europa, África e Ásia.
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