terça-feira, 8 de setembro de 2009

Latinidades -

Edgar Morin

Este texto corresponde à transcrição de palestra dada pelo autor na Mostra Sesc de
Artes – Latinidades, em 29 de agosto de 2003, no SESC da Av. Paulista, São Paulo.


Retomando o título das palestras do ciclo da Mostra de Artes realizada pelo SESC,
encontramos o termo "latinidade" no plural: "latinidades". Diante disso, sabemos, nas
latinidades existe a latinidade, e realmente é importante estudar esse conceito a partir da
origem, ou seja, Roma.

Existem duas faces complementares daquilo que chamaremos de "romanidade". A primeira
é histórica e surge das conquistas extremamente bárbaras, tomando-se como ponto de
partida a cidade de Roma e subjugando de forma implacável e destrutiva a Itália e o
mundo mediterrâneo. Os estudiosos da história antiga recordam-se da destruição total de
Cartago e sua grande civilização púnica; o saque e a destruição total da grande cidade
grega Corinto; o cerco à Numância, povoado espanhol, com sua vã resistência e, por fim,
seu extermínio. Mesmo no próprio mundo romano, aconteceram ferozes repressões às
revoltas de escravos, como a de Espártaco, e a destruição da república e da democracia,
com o surgimento de um império e seu "divino" imperador.

Em continuação, defrontamo-nos com uma segunda — e paradoxal — face dessa
latinidade. Da conquista feroz da qual falamos emerge não somente um império pacífico,
mas também civilizador. Uma civilização com virtudes ao mesmo tempo integradoras e
universalistas.
A primeira integração foi a dos gregos, assim que Roma conquistou a Grécia. Em veículos
de transporte, nas carruagens triunfantes dos vencedores, chegaram escravos gregos e
com eles a cultura grega foi progressivamente difundida no império. E, como vocês sabem,
o grego tornou-se o idioma do império bizantino após a desintegração de sua porção
ocidental, o que tornou verdadeiro o adágio latino: "A Grécia vencida venceu seu bárbaro
vencedor".

Qual a contribuição da Grécia vencida? Um pensamento universal criado e desenvolvido
por seus filósofos e, principalmente, a célebre máxima humanista de Protágoras : "O
homem é a medida de todas as coisas", que encontra eco em Terêncio, autor latino de
teatro totalmente influenciado pela cultura grega. Em uma de suas obras encontramos a
célebre frase: "Homo sum: humani nihil a me alienum puto", ou seja: "Sou homem: nada do
que é humano me é estranho". É claro que essa universalidade e esse humanismo são
extremamente limitados, e deles não participam escravos.

Na Grécia, na Atenas da grande filosofia, Aristóteles dizia: "O escravo é uma ferramenta
animada", isto é, um objeto e não um ser humano; portanto, tratava-se da exclusão dos
não-cidadãos. Sim, esse universalismo é potencial como a democracia nascida em Atenas,
que se destina exclusivamente aos cidadãos. Porém, a idéia democrática carrega em si o
potencial da universalização, fato que se tornou a tarefa da democracia moderna.

Contamos então com esse humanismo universal, que irá permear a cultura latina, e a
seguir teremos uma integração, que eu chamaria de cidadã e política dos habitantes dos
países conquistados por Roma. Refiro-me ao édito do imperador Caracalla, no século três,
que estende a cidadania romana a todos os habitantes do império. A partir desse
momento, o império romano não é mais tão somente dos povos da Itália ou de Roma, mas
também dos espanhóis, dos africanos do norte — como santo Agostinho, que era um
bérbere —, que assim se tornaram cidadãos romanos de pleno direito.
É incrível que, enquanto observamos ainda nos dias de hoje a tendência de dominação de
uma etnia sobre outras, no império romano tenha havido uma tendência absolutamente
não-racial, não-racista. Existiram imperadores que não eram romanos, e nem mesmo
italianos.

Nessas condições, constituiu-se de certa forma a unidade das diferenças; as tolerâncias
religiosas relativas à Antigüidade pagã. Deuses estrangeiros foram adotados pelos
romanos: Osíris o deus egípcio, como Orfeu, o deus grego que morre e renasce tal qual
Osíris; e por fim a integração da mensagem de Jesus que, uma vez concretizada,
desintegrará todas as outras com o seu monopólio da verdade.

De qualquer modo, quero dizer que é real essa aceitação de outras crenças, pois aceitar
os deuses dos outros povos significa reconhecê-los. Eliminar os deuses dos outros povos,
como o fizeram por exemplo as conquistas espanhola e portuguesa, é negar de fato a
existência dos demais.

O terceiro aspecto da latinidade é a integração do Cristianismo a partir de um momento
extremamente importante — o encontro do judaísmo de Jesus com a cultura grega, com a
cultura greco-latina. Essa extraordinária circunstância histórica aconteceu a Paulo, o
patrono desta cidade de São Paulo.

São Paulo, que na realidade se chamava Saulo, era judeu, fariseu, anticristão, e perseguiu
os primeiros cristãos. Como sabem, ele viu um clarão, teve um êxtase — há um belo
quadro de Caravaggio numa igreja em Roma, na Piazza del Popolo no qual vemos Paulo
caído do cavalo, fulminado, tombado ao chão — ao ter uma revelação de Jesus, que lhe
disse: "Paulo, ou melhor, Saulo, porque me persegues?".

Como é do conhecimento de todos, essa conversão de Saulo terá imensas conseqüências
porque Paulo — Saulo que se tornou Paulo — enunciará esta idéia básica: não há mais
judeus e não há mais gentios (a palavra "gentio" significando todos os outros povos, todas
as outras nações), existe uma só humanidade.

Esse pensamento e mensagem de Jesus, potencialmente universalista, torna-se de fato
universal; também tem suas limitações, já que o cristianismo, como sabem, não aboliu a
escravidão: contribuiu para sua abolição.

Durante dois ou três séculos, houve uma longa incubação da mensagem cristã em todo o
império romano e em todas as camadas da sociedade. Até que, com a conversão do
imperador Constantino, ela se torna não somente a religião de império, mas também a
única religião oficial. Nesse momento o cristianismo integra a romanidade, integrando a
latinidade que o havia integrado anteriormente.

Existe um duplo aspecto nessa integração: a integração de uma mensagem de abertura,
de amor, como a do sermão da montanha, e outro aspecto: a intolerância de uma religião
que se declara a exclusiva detentora da verdade, que possui o monopólio da verdade e
que eliminará todas as outras de forma impiedosa.

Sabemos que essa tendência do monoteísmo — aliás, quero lembrar-lhes que este é de
origem egípcia, pois o Faraó Akenaton foi o primeiro a adorar um deus único — tem
aspectos que remetem ao universal. É dirigida a todos os seres humanos e — em certos
momentos históricos, infelizmente demasiadamente numerosos — também tem aspectos
extremamente intolerantes e fanáticos. Como ocorreu nas incessantes guerras religiosas
na Europa, e com o Islã, também possuidor do mesmo caráter monopolista do monoteísmo.

Percebem então que as guerras religiosas são um monopólio ou uma característica
específica do nosso mundo ocidental e mediterrâneo, enquanto que na China e no Japão,
por exemplo, notamos a pluralidade das religiões. Uma mesma pessoa pode tanto professar
o culto dos ancestrais, o culto Xintoísta ou o culto Budista. Finalmente, essa questão é
não somente o grande êxito da latinidade em si, como de todas as latinidades.

E o que são as latinidades?

A latinidade surge a partir da desintegração do império romano do Ocidente, isto é, com a
chegada dos povos bárbaros que integram uma parte da civilização e da língua latina. A
língua latina transforma-se — como acontece com todas as línguas na História —, dando
origem às línguas nacionais a partir das linguagens populares, já que os letrados
continuam usando o latim clássico, o da igreja. Contudo, essas línguas nacionais detêm
um cunho latino, como naturalmente têm o italiano, o espanhol, o português, o francês, o
romeno, etc.

Presenciamos então o surgimento das latinidades, das línguas mestiças, evidentemente
marcadas durante a Idade Média pelo monopólio teológico da religião. Porém, no âmago da
latinidade ocorrerá o que denominamos de Renascimento, ou seja, a ressurreição da
herança grega, que já houvera permeado a latinidade do império romano. Essa
ressurreição tem início na Itália, e faz brotar algo que romperá o isolamento religioso, já
que representa o despontar de um pensamento não-religioso, de um pensamento laico,
autônomo, com ou sem Deus.

Essa corrente humanista surge com muita força na Itália, com Pico Della Mirandola,
Giordano Bruno — que foi queimado em Roma, como sabemos —, com Leonardo da Vinci
e, ao mesmo tempo, com o advento da tecnologia, da ciência, da filosofia, etc.

Todavia, não existe somente essa corrente italiana, que aliás se propagará pela Europa
Ocidental e influenciará principalmente Erasmo. Há uma outra corrente subterrânea, muito
pouco conhecida, que podemos denominar de corrente marrana: a dos convertidos. São
os judeus convertidos ao catolicismo pela força, por vontade própria, ou mesmo pelo
medo. Entre eles, há certamente alguns que acabaram esquecendo suas origens e se
tornaram católicos; outros permaneceram judeus, secreta e clandestinamente, mantendo
uma aparência católica concomitante. Porém, há outra categoria, bastante minoritária,
para quem o confronto, o choque entre as religiões cristã e hebraica fez emergir algo
novo, que transcenderá ambas.

Para dar-lhes um exemplo, o mais belo é o pensamento de Espinosa, filósofo de origem
judaica que naquele tempo promoveu essa revolução mental própria do mundo moderno:
eliminou a idéia de um Deus exterior ao mundo que criou o universo tal qual um arquiteto.
Elimina essa idéia, que naquela época permanece muito arraigada em Descartes e em
Newton, situando a substância criadora no âmago da própria natureza.

A fórmula de Espinosa é: "Deus, isto é, a natureza". Não podemos dizê-lo com mais
ênfase. Esse será o problema fundamental: o fato de que a criação, as idéias, a
humanidade, a evolução, originam-se do próprio mundo, que permanentemente se cria e
recria.

Como já haviam percebido os inquisidores, perseguidores dos marranos, o marranismo era
uma fonte de ceticismo e racionalidade. O exemplo mais claro é o de Michel de Montaigne
cuja hereditariedade é toda de origem marrana, isto é judia, possuidor desses conceitos
extraordinários para a sua época de guerras religiosas: o ceticismo e a relatividade. Foi
Montaigne o primeiro a dizer, quando da conquista da América: "Chamamos de bárbaros os
que pertencem a uma civilização distinta da nossa". É a ressurreição da mensagem
universal greco-latina em um mundo pós-cristão. Lendo os ensaios de Montaigne,
encontramos inúmeras referências aos gregos, aos poetas gregos e latinos, porém
nenhuma menção à Bíblia ou ao Evangelho.

Podemos, portanto, dizer que a filosofia e a ciência moderna tiveram origem no
Renascimento, e que a partir desse momento a latinidade não pôde mais se confundir com
a cristandade, que se estabelece de maneira mais ampla na Europa.

Sob a influência desse pensamento — do Renascimento e do catolicismo — ocorre então
na Europa o que chamaríamos de dialógica, ou seja, uma relação ao mesmo tempo
complementar e antagonista entre a religião e a razão, entre a fé e a dúvida. Graças a ela
podemos reconhecer os limites da razão. Nela podemos, como demonstra Pascal — e isso
é muito importante e atual —, concluir que não existe nenhuma prova lógica nem empírica
da existência de Deus.

O que diz Pascal? Diz: "E preciso apostar". Eis o grande tema da Aposta de Pascal:
"Doravante, devemos apostar". Seja em Deus ou, de acordo com nossos princípios, no
bem, no aprimoramento da humanidade, em um mundo melhor: devemos sempre apostar.
Nunca teremos certeza de êxito em nossas iniciativas, e eis aqui também essa sólida idéia
em um país de língua latina, a França, o que é de suma importância.

Não devemos esquecer que a latinidade contém duplamente o helenismo — helenismo
significando a herança grega, já que os gregos são os helenos. Existe a herança grega
encontrada na latinidade do império romano, e a herança grega encontrada na Europa
latina e de maneira mais extensa na Europa moderna e, por fim, nos tempos modernos.

Deparamo-nos, portanto, com uma nova aventura para a palavra latinidade. Da mesma
forma como Roma conquistou de forma bárbara o mundo antigo, a Europa conquistou a
América, a América Latina com a pavorosa destruição das civilizações Asteca e Inca, com
uma subjugação maciça. Nessa conquista bárbara, podemos observar a rapacidade dos
conquistadores e a imposição imperiosa da fé católica.

Concomitante e paralelamente ao aspecto bárbaro, assistimos à introdução do português,
do espanhol e de novas latinidades. É nessas novas latinidades que se inicia o processo
de emancipação. Primeiramente a emancipação dos criollos, isto é, dos colonos desses
países ao se libertarem da coroa espanhola e portuguesa, e com essa emancipação, a dos
escravos. No Brasil do século 19, e que ainda não terminou... que está muito longe de
terminar, se pensarmos em países como o Peru, a Bolívia e o próprio Brasil, com o
problema dos indígenas da Amazônia e de outras regiões.

Porém, assim mesmo contamos com um processo que chamarei de civilizador: a
mestiçagem, que contribui para a integração e emancipação dentro de um novo complexo
nacional e civilizador. Realmente, embora o processo não esteja acabado, o exemplo mais
marcante de uma nação que criou uma civilização pela mestiçagem é sem dúvida o do
Brasil, exemplo de mestiçagem civilizadora e criadora.

Da mesma forma que na Europa não existe mais, desde o Renascimento, uma latinidade,
mas sim latinidades, na América Latina também existem latinidades. E o termo latinidade
torna-se um componente lingüístico e cultural das civilizações mestiças, e não a essência
dessas civilizações. Não podemos reduzir todos estes países à simples latinidade, nem
mesmo a Argentina, que é o país mais europeu da América Latina. Em outras palavras, o
termo "latino" deve ser considerado um adjetivo e não um substantivo.

A latinidade é um traço que caracteriza os povos, as nações da América Latina. Portanto,
podemos dizer que as latinidades se enriqueceram e continuarão a se enriquecer pela
mestiçagem e pelas diversidades no seio das unidades nacionais. Digo "irão se enriquecer",
porque nos encontramos num processo de despertar das realidades e das culturas
indígenas em países vizinhos, como o Peru, a Bolívia, o Equador; o despertar das culturas
Quéchua, Aymara. Assistimos a esse impulso indígena muito forte, que deverá nos levar a
uma nova ou a novas simbioses.

Tendo dito isto e nessas novas condições, devemos examinar um novo aspecto, aquele
próprio às latinidades. Qual é ele? Primeiramente, quando examinamos os mapas
geográficos, percebemos que as latinidades são do Sul: o Sul da América — e
naturalmente o México, culturalmente parte integrante da América Latina, situado ao sul
dos Estados Unidos — e a Europa do sul: Portugal, Espanha, França, Itália, Mediterrâneo,
ele próprio localizado no sul da Europa. Portanto, existe essa característica que é o Sul.

Hoje — e isso ocorre já faz alguns anos —, não falamos mais da oposição Leste / Oeste.
Após a queda do império soviético, falamos do Norte e do Sul. Dizemos: o Norte é rico, o
Sul é pobre; o Norte é desenvolvido, o Sul é subdesenvolvido; o Norte é muito técnico,
industrial, o sul é principalmente rural, etc. De alguma forma, o desenvolvimento e a
riqueza significam Norte, o subdesenvolvimento e a pobreza significam Sul. Porém, na
realidade as coisas são muito mais complexas.

Por que? Porque o Norte detém a hegemonia da técnica, da indústria, do capitalismo, que
também é a hegemonia do cálculo, do economicismo. Isso significa que o pensamento do
Norte tende sempre mais a se concentrar no cálculo, na economia — que por sua vez
também é cálculo —, e que todo o conteúdo humano não se resume ao mero cálculo.

O sofrimento não pode ser calculado, assim como também o amor. Mesmo que se invente
uma unidade de medida para o amor — que chamaríamos de "Cupido" —, nunca faríamos
uma declaração de amor a uma jovem dizendo-lhe: "Sinto trezentos Cupidos por você".
Absolutamente não! Nada disso é quantificável. Mas a tendência do Norte é reduzir tudo
ao cálculo: reduzir a política à economia, ao crescimento, à renda bruta. São meras
noções estatísticas formais. Em outras palavras, é a hegemonia da quantidade em
detrimento da qualidade, das qualidades, tendo à frente a qualidade de vida.

No entanto, o atraso econômico do Sul comporta a salvaguarda dos valores humanos não
redutíveis a quantidades nem a moedas. São os valores de convívio, de hospitalidade,
valores de qualidade de vida. De resto, o Norte sente uma necessidade crescente desses
valores. Desde o século 19, o Norte busca o Sul: o Norte germânico, preso num mundo
fechado, apelava ao Mediterrâneo por meio de seus poetas. Em especial Goethe, que,
referindo-se à Itália. diz: "Conheces o país onde floresce a laranjeira?" Pode-se encontrar
esse apelo ao Mediterrâneo também em Hölderlin.

E, hoje, na Europa, vê-se uma grande massa de veranistas alemães que acorrem para as
praias do Mediterrâneo, para as ilhas gregas, para o Sul, para o sol, que buscam algo que
não lhes é oferecido por sua cultura e sua civilização. Aliás, por que será que a pizza
difundiu-se pelo Norte e pelo mundo inteiro? Ela é um símbolo daquilo que o Sul pode nos
trazer; alguma coisa que não pode ser encontrada no chucrute nem na salsicha.

Claro que não se deve denegrir o Norte. É preciso dizer também que o Sul, durante muito
tempo, manteve certas desigualdades muito marcantes, principalmente a desigualdade do
estatuto da mulher. Na Espanha, ainda há trinta anos, uma mulher não podia entrar num
bar desacompanhada. A chegada das mulheres ao mundo do trabalho, ao mundo externo,
é recente. A defesa dos direitos da mulher começou incontestavelmente no Norte, e por
essa razão, é preciso não somente pregar, como eu faço, a resistência do Sul, mas
também a simbiose civilizadora entre o que há de importante e útil no Norte com o que
decididamente deve ser conservado no Sul.

Nessa simbiose, vemos o que a latinidade pode trazer: uma fonte de universalidade e
humanismo em que ela mesma pode se transformar, acrescentando às reivindicações
locais, particulares e singulares, o elemento de universalidade indispensável.

Quando, num primeiro momento, houve resistência à globalização econômica, e alguns
tendiam a dizer que deveríamos nos fechar em nossos países — chegou-se a ver essa
posição — houve também uma outra mensagem, trazida por José Bové, um homem da
latinidade e pastor francês, que disse: "O mundo não é uma mercadoria". Isso quer dizer
que podemos aceitar uma civilização global, porém com suas diversidades. Não queremos
nos fechar. É evidente que se deva respeitar os valores de cada cultura. Nesse ponto,
reaparece a questão do Sul.

Pensadores negros de expressão francesa, como Aimé Césaire, martiniquês, ou como
Léopold Sédar Senghor, africano senegalês, são pensadores universais, sem abandonar o
pensamento da negritude, das qualidades do negro, do black is beautiful.

Para uma simbiose criativa, para uma civilização planetária, o papel da latinidade é, a meu
ver, o de ser a porta-voz ao mesmo tempo do Sul e do universal. Mas para isso é preciso
ultrapassar a noção de desenvolvimento. Esta, na minha opinião, é uma noção totalmente
subdesenvolvida, por tratar-se de um conceito técnico e econômico, que o Norte
ocidental quer impor ao mundo propondo-se como modelo. Como se a técnica e o capital
fossem locomotivas capazes de puxar um trem com a democracia, o humanismo e o
aperfeiçoamento do destino humano. Como se a visão de que a pobreza se mede apenas
pelas estatísticas e pelo PIB, e não por traços humanos como a humilhação, como o fato
de não dispor de medicamentos ou de acesso às fontes de informação.

Em outras palavras, a medida puramente quantitativa da pobreza é um erro. Podemos
considerar paupérrimos os camponeses que vivem numa economia de subsistência, numa
policultura, produzindo eles próprios o que necessitam para viver. Mas isso pode ser falso.
Esses mesmos camponeses, uma vez lançados nas habitações paupérrimas das periferias
dos grandes centros, não possuem nenhum recurso, vivendo de pequenos trabalhos,
numa verdadeira miséria.

Em suma, é preciso repensar essa idéia de desenvolvimento. E a idéia de
subdesenvolvimento, a meu ver, é abjeta, porque nos faz ver os subdesenvolvidos como
aqueles que nada conhecem a não ser superstições. Na realidade, chamamos de
subdesenvolvidos a povos que possuem culturas milenares. Os índios da Amazônia, por
exemplo, possuem tesouros em conhecimentos medicinais sobre as plantas, sobre os
animais. Esses povos têm uma sabedoria e uma cultura oral de enorme riqueza. Na minha
opinião, é terrível pensar que tudo isso nada representa, e que devemos dar-lhes pura e
simplesmente o alfabeto e as idéias abstratas. É preciso ir além desse conceito de
desenvolvimento.

Nós, europeus, que nos consideramos desenvolvidos, percebemos que nossa civilização
traz uma pobreza moral, traz o isolamento no egocentrismo e toda uma série de problemas
até então inexistentes: a poluição urbana, a degradação da biosfera, o desencadeamento
das armas nucleares. Caminhamos, céleres, para um impasse. E dizemos aos demais países
para seguirem esse caminho, quando seria preciso dizer que escolham um outro. Esse é o
problema fundamental.

Por isso, creio que o papel da latinidade poderia ser extremamente importante, podendo
integrar o que há de positivo na idéia de desenvolvimento, como o acesso aos
medicamentos, por exemplo. Vê-se hoje, ainda, as indústrias farmacêuticas impondo
grandes dificuldades para reconhecer a países como o Brasil o direito de fabricar seus
medicamentos genéricos. Logo, precisamos de uma política da civilização, da simbiose da
civilização. Precisamos de uma política da humanidade, que se dirija às necessidades mais
prementes, mais fundamentais para nossa humanidade, para o nosso planeta.

Sabemos que uma política de civilização não pode limitar-se a uma luta militar contra o
terrorismo, porque a própria luta continua, desenvolve a violência e, desenvolve um outro
terrorismo — o terrorismo de Estado — de extrema brutalidade. A política da civilização
deve lutar contra a violência, e não pela simples repressão; mas sim por meio da mudança
das condições humilhantes e de dependência existentes no mundo atual.

Entretanto, como realizar essa regeneração da humanidade, para salvá-la da catástrofe
para a qual ela se dirige? Muitas vezes eu disse que a nave espacial Terra era
impulsionada por quatro motores: o motor ciência, o motor técnica, o motor economia e o
motor lucro; mas disse também que não havia piloto, e que os passageiros da nave não
se entendem uns aos outros.

Nessas condições, o que fazer? É um trabalho de fôlego. É preciso conscientização.
Quando tivermos consciência de que estamos caminhando em direção a algo de terrível, a
reação surgirá e, talvez, possamos salvar o mundo... Mas já à beira da catástrofe! Vocês
devem conhecer as palavras de Hölderlin, aqueles versos de seu poema à Grécia, chamado
Patmos, no qual ele diz: "Onde há perigo / há também salvação".

E penso que é a consciência que pode fazer isso. Para entendermos o que pode
acontecer, vou dar um exemplo mais lógico. Acreditava-se que as células-matrizes —
aquelas que, no embrião humano, têm a capacidade de criar as células de todos os órgãos
como o fígado, o baço, o cérebro, etc. — têm a possibilidade universal, o que se chama
em linguagem biológica tutti potente. Acreditava-se que elas desaparecessem no adulto,
depois da criação dos órgãos com células especializadas.

Há dois anos, porém, uma descoberta muito importante, feita durante as pesquisas sobre
regeneração de órgãos e culturas de embriões, mostrou que um ser adulto possui células-
matrizes em sua medula, em seu cérebro, em seu corpo. Essas células matrizes estão
apenas adormecidas. A questão a ser levantada pela medicina nos próximos anos é como
despertá-las. Já foram feitas experiências num camundongo com lesão cardíaca e, graças
ao despertar dessas células, foi possível reconstituir um coração normal.

Mas deixemos a metáfora e voltemos a falar da humanidade. Cada ser humano, e não
somente ele, mas cada coletividade humana também possui em si potências regeneradoras
que são como o equivalente das células-matrizes. Elas ficam adormecidas enquanto
estamos numa sociedade especializada, burocratizada, que busca exclusivamente a
quantidade e o lucro.

Quando há uma crise, contudo, as células-matrizes podem despertar. É o que Karl Marx
chamava de homem genérico. Ele se referia à capacidade de criação e regeneração
presentes no ser humano. Nós dispomos dessas capacidades. Elas estão adormecidas. E
temos, entre essas células-matrizes, as matrizes do humanismo greco-latino. Assim, as
latinidades podem estar na vanguarda dos esforços para salvar a humanidade do desastre
para o qual ela corre.

Muito obrigado.


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