terça-feira, 8 de setembro de 2009

Antropologia da Liberdade

Antropologia da Liberdade

Edgar Morin


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Liberdade é possibilidade de escolha. A possibilidade de escolher pode ser interior, isto
é, subjetiva ou mentalmente possível: liberdade de mente. Pode também ser exterior,
ou seja, objetiva ou materialmente possível: liberdade de ação.

Quando mais numerosos forem os domínios que oferecem possibilidades de escolha e,
em cada domínio, quanto mais variadas e numerosas forem as escolhas, mais haverá
possibilidades de liberdade. Quando maior a importância para a existência for o tipo de
escolha, mais alto será o nível de liberdade, isto é, escolha de meio de transporte,
profissão, residência, vida.

Em princípio, parece evidente que em condições favoráveis um ser humano dispõe de
possibilidades de liberdade. Experimentamos subjetivamente nossa liberdade todas as
vezes que nos é dado escolher entre alternativas e decidir.

Por outro lado, toda consideração objetiva sobre nossa condição parece reduzir a
liberdade a uma ilusão subjetiva. Sofremos as restrições do meio ao qual devemos nos
adaptar; estamos sujeitados por nosso patrimônio genético, que gerou e conserva
nossa anatomia, fisiologia, nosso cérebro e, portanto, a possibilidade de inteligência e
consciência; estamos sujeitados pela cultura, que inscreve em nossa mente, desde o
nascimento, normas, tabus, mitos, idéias, crenças; estamos submetidos à sociedade,
que nos impõe leis e proibições; somos até mesmo possuídos por nossas idéias, que
tomam posse de nós quando achamos que as temos à nossa disposição.

Dessa maneira, somos ecologicamente dependentes e, do mesmo modo, sujeitados
social, cultural e intelectualmente. Como são possíveis liberdades, se estamos
submetidos por todos os lados?

O Império do Ambiente
Como dissemos várias vezes antes1 , é preciso substituir o conceito de meio exterior
que impõe fatalidades aos seres vivos pela idéia de autonomia dependente. Uma
organização assim certamente está sujeita a determinantes físico-químicas, mas elas
são integradas, superadas e utilizadas pela auto-organização viva.2

Também já explicamos, em outro lugar, que a autonomia viva depende do meio exterior,
do qual retira energia e organização. Assim, toda autonomia viva é dependente.3
Aquilo que produz a autonomia produz a dependência, que por sua vez produz a
autonomia.

A existência em sociedade deu ao ser humano um grau considerável de autonomia. Os
desenvolvimentos técnicos da agricultura, transporte e indústria foram conquistas de
autonomia, pois controlaram energias materiais e exploraram produções naturais. O que
conduziu a uma dominação efetiva da natureza, evidentemente, criou uma multiplicação
de dependências, além de uma dependência global da biosfera da qual fazemos parte.

Ao desenvolver sua autonomia e domesticar a natureza, a sociedade histórica
desenvolveu e impôs restrições aos indivíduos (com freqüência sujeitando a maioria). O
que nos leva a perguntar: a autonomia que os indivíduos adquiriram em relação à
natureza estaria perdida para a cultura e a sociedade?

O Domínio dos Genes
Antes de chegar a essa indagação, é preciso que examinemos se a autonomia viva, no
que se refere ao mundo exterior, não comporta uma dependência interior à qual não é
possível escapar.

No que diz respeito a si mesma, a dependência de uma organização autônoma é a
condição evidente de toda a sua autonomia. Entretanto, o problema se aprofunda
quando se considera que a auto-organização — inclusive a humana — é geneticamente
dependente. Trata-se de uma dependência de origem anterior, pois é hereditária. Como
os geneticistas explicam o papel dos genes com a palavra programa, pode-se dizer que
a autonomia viva — inclusive a humana — é programada como a de um autômato.

Dessa maneira, Genos (a organização genética) dá ao Anthropos autonomia em relação
a Oikos (o meio ambiente natural), mas a mesmo tempo o põe sob sua dependência. De
acordo com essa concepção, é o gene — unidade ao mesmo tempo química e
informacional — que detém a verdadeira soberania sobre os nossos seres.

Já falamos sobre as formas fetichistas, racionalizadoras (delirantes) do pan-
geneticismo, que substituiu o império do ambiente pelo império dos genes.4
Recordemos de modo breve os argumentos que contestam essa visão imperialista.

Se é correto que a autonomia do indivíduo no mundo exterior é o resultado de uma
autonomia genética, esta por sua vez depende da autonomia individual por ela
produzida. Como já vimos5, no indivíduo a organização associa, de maneira indissociável
e complementar, o Genos (a espécie, o patrimônio hereditário, o processo reprodutivo)
e o Phenon (o indivíduo vivo hic et nunc no mundo dos fenômenos). A relação entre
eles é circular, recursiva. Isto é, trata-se de um circuito gerador/regenerador, no qual a
produção produz um produto que a produz e a reproduz. Cada termo é ao mesmo tempo
produto e produtor do outro.

A espécie produz o indivíduo que produz a espécie; o indivíduo é produzido por um ciclo
de reprodução, que precisa do indivíduo para se perpetuar. Genos produz Phenon que
produz Genos. O DNA precisa das proteínas que especifica, as quais o especificam como
especificador. A continuidade genética precisa de uma atividade fenomênica que se
reinicie sempre.

Além disso, o aparentemente todo-poderoso DNA está sujeito a fissuras, quebras,
brechas. E é a unidade global da organização geno-fenomênica que impõe às proteínas
a dedicação auxiliar de reparar, reajuntar, remendar, religar os fragmentos inválidos. Em
relação às mutações do DNA no processo reprodutivo, é a própria unidade global que
restaura a sua organização, quando a transforma (no caso feliz em que a mutação gera
uma qualidade nova).

Os engramas genéticos se transformam em programas de acordo com as necessidades
e atividades. O que está escrito nesses engramas é a formidável experiência de nossa
linhagem, espécie, ordem (primatas), classe (mamíferos), filo (vertebrados), reino
(animal), organização (viva). É esse capital genético que garante a nossa autonomia.

A unidade global está nos indivíduos, que de modo recíproco estão nessa unidade global
que atravessa as gerações. O indivíduo está em tudo aquilo que está nos indivíduos.

Dessa forma, os genes não são os Mestres do vivo: são apenas um momento de auto-
organização. Neles se concentra, sob a forma de engrama, a memória e a experiência
hereditária. É a atividade de computação, própria da auto-organização, que os
transforma em programa. A auto (geno-feno)-eco-organização é mestre-dependente e
produz a autonomia/dependência o indivíduo que a produz.

O cérebro humano é um aparelho epigenético que depende do círculo genofenomênico
(o qual, como veremos adiante, integra — e se integra — um grande círculo ego-sócio-
cultural, em que a mente se forma como processo emergente, sem deixar de depender
do tecido cerebral. O menor de nossos pensamentos é inseparável das sínteses e das
transformações moleculares — as quais também são inseparáveis da ação dos genes
que estão presentes nos neurônios. É dessas múltiplas dependências que emerge a
autonomia mental do ser humano, capaz de fazer escolhas e construir estratégias.

No que se refere à atividade cerebral humana, o inato e o adquirido não se opõem de
modo algum: na verdade, são complementares. Não podemos conseguir nada de
maneira autônoma; nosso cérebro tem a aptidão inata de adquirir aptidões não inatas.
Quanto mais rico em competências é o dispositivo cerebral inato, mais rica é a
disponibilidade para o aprendizado e a realização de tarefas autônomas.

Há mais. Nas condições históricas deste fim de século 20, a mente humana foi capaz de
tomar conhecimento, controle e posse dos genes dos quais ela depende. E assim
começa a manipulá-los para os seus próprios propósitos. Um Saulo de Tarso moderno
poderia alegar: "Ó gene, onde está tua vitória?"

Mas deixemos de lado esse lirismo. Devemos ter em mente que não é possível escrever
nosso destino a não ser obedecendo à inscrição genética incluída em cada uma de
nossas células. Nossa autonomia é forjada nessa servidão. O indivíduo atravessa um
destino que permite que ele se torne autônomo.

O gene significa ao mesmo tempo hereditariedade e herança, encargo e
dádiva,determinação e autonomia, limitação e possibilidade, necessidade e liberdade.

Não nos voltamos só para a reprodução, mas também para a fruição da vida. A própria
reprodução é também capaz de produzir indivíduos que possam fruí-la. O amor e a
volúpia usam o ato da reprodução para a sua realização. Suas conseqüências podem
ser afastadas pela interrupção do coito, preservativos, pílulas. A sexualidade nos
invade, mas ela própria é também invadida pelo gozo e pelo amor.

Se considerarmos nossa dupla dependência, a de Genos (os genes) e a de Oikos (o
ambiente), perceberemos que a primeira procura a autonomia individual em relação à
segunda. Perceberemos também que o fato de Genos depender de Oikos alimenta essa
autonomia. O fechamento genético do indivíduo impede que ele seja destruído pela
invasão de determinismos a ele externos. Além disso, sua abertura fenomênica lhe
permite constituir e desenvolver suas práticas autônomas.

Num plano mais geral, nossa dependência genética permite que não sejamos
totalmente conduzidos por determinismos ecológicos e sociais. Nossa dependência
ecológica possibilita que nutramos e desenvolvamos nossa autonomia. A autonomia
individual se forma e se mantém com base nessas duas dependências, as quais se
opõem mutuamente e nela se unem.

De uma forma mais profunda e básica, a autonomia do indivíduo vivo — em especial o
humano — se afirma em sua condição de sujeito. Lembremo-nos de que ser sujeitado é
estar no centro de seu mundo, ou seja, o lugar egocêntrico do "para si". A própria
constituição do sujeito é dialógica, pois comporta simultaneamente um princípio de
exclusão (nada pode estar no lugar dele) e um princípio e inclusão (inclusão num "nós"
— a família, a espécie, a sociedade — e de exclusão desse "nós" em si próprio), no qual
estão as atividades reprodutoras, a inscrição hereditária, a inserção da comunidade no
interior do sujeito. Da mesma forma, a auto-afirmação do sujeito torna real a
apropriação egocêntrica de sua inscrição hereditária — não apenas a familiar, mas
também a antropológica, a primata, a mamífera, etc.

Dessa maneira, o fatum genético se transforma em destino pessoal no ato de auto-
afirmação do sujeito. O indivíduo-sujeito se apropria de seu Genos sem deixar de
depender dele, pois o ocupante egocêntrico é, ele próprio, dialogicamente ocupado por
Genus. O indivíduo se torna autônomo quando se apropria de Genos, ao qual obedece.
Sua dependência hereditária singular, sem deixar de ser dependência, se torna,
profundamente, sua identidade pessoal: nossa hereditariedade plural nos transforma em
indivíduos singulares. Vivemos nossas vidas pela ressuscitação dos ingredientes das
vidas de nossos antecessores. Desse modo, possuímos genes que nos possuem.

Vem daí o paradoxo: toda existência humana é ao mesmo tempo atuante e atuada;
todo indivíduo é uma marionete manipulada de dentro e de fora e, ao mesmo tempo, é
um ser que se auto-afirma em sua própria qualidade de sujeitado.

Evidentemente, é por meio da consciência que — diferenciando-se dos animais — o ser
humano pode, em certas condições e ocasiões às vezes decisivas, manifestar sua
liberdade.

É claro que o indivíduo humano não pode escapar de sua sorte paradoxal: é uma
pequena partícula de vida, um instante efêmero, uma insignificância. Mas contém em si
a plenitude da realidade viva: a existência, o ser, os fazeres. Assim, ele contém a
totalidade da vida e ao mesmo tempo é uma unidade elementar dessa mesma vida.
Contém simultaneamente a plenitude da realidade humana, a consciência, o
pensamento, o amor, a amizade e a própria realidade da humanidade — tudo isso sem
deixar de ser a unidade elementar da humanidade.

Como veremos adiante, sua inscrição numa cultura e numa sociedade faz com que ele
experimente uma nova dependência quando lhe oferece a possibilidade de uma nova
autonomia e, às vezes, o acesso à liberdade.

O Império Sociológico e o Domínio Cultural
Antes de tudo, há o domínio sociocultural.

A cultura das sociedades arcaicas tornou possível a realização de indivíduos que
desenvolveram uma extrema acuidade sensorial. Isso permitiu que eles captassem como
signos e mensagens os múltiplos indicadores e eventos de seu ambiente natural:
indivíduos com aptidões manuais politécnicas, mestres na arte de manejar suas armas
de caça, fabricar utensílios e edificar suas habitações.

Os arcaicos são seres "livres", sem Estado, mas não são cidadãos. São livres mas se
submetem a tabus; livres em seu ambiente, mas limitados a ele; adquiriram autonomia
técnica, mas não conseguiram desenvolver o mundo das idéias, o qual lhes possibilitaria
desenvolver sua autonomia mental.

As sociedades históricas, já dotadas de um Estado dominador, controlador, dão
liberdade ás elites tomando-a dos inferiores que assim são condenados á obediência e à
ignorância. O Estado se inscreve na mente dos indivíduos como um Superego, e nela
constrói um altar dedicado à sua devoção.

Em todas as sociedades a cultura se impõe aos indivíduos. O feto sofre influências
culturais na vida intrauterina (alimentação, sons, músicas), e desde o nascimento o
indivíduo começa a receber a herança cultural que garante a sua formação e
desenvolvimento como ser social; ele sofre a influência de tabus, imperativos, regras
(que se inscrevem no tecido cerebral por meio da estabilização eletiva de sinapses), e
tem fixados a si automatismos sociais.

Em todo indivíduo, a herança cultural se mescla à hereditariedade biológica, o que
determina estímulos ou inibições que modulam a opressão dessa hereditariedade. Assim,
cada cultura, com seu sistema educacional, seu regime alimentar, seus padrões de
comportamento, recalca, inibe, favorece, estimula, determina a expressão dessa
atitude, exerce seus efeitos no funcionamento do cérebro e na formação da mente.
Desse modo, intervém na organização e no controle do conjunto da personalidade.

A cultura inscreverá no indivíduo o seu imprinting — expressão matricial
freqüentemente definitiva, que marca os indivíduos em sua maneira de conhecer e
comportar-se desde a infância e se aprofunda por meio da educação familiar e, a
seguir, pela escolar. O imprinting fixa o que está prescrito e o que é interdito, o
santificado e o maldito. Implanta crenças, idéias e doutrinas que têm força imperativa
de verdade ou evidência. Enraíza nas mentes seus paradigmas, princípios que
comandam os esquemas e os modos explicativos, o uso da lógica, as teorias,
pensamentos e discursos. O imprinting se faz acompanhar de uma normalização que faz
com que se calem todas as dúvidas ou contestações de suas normas, verdades e
tabus. Vem daí o caráter aparentemente inexorável dos determinismos internos à
mente.

O imprinting e a normalização se reproduzem geração após geração: "Uma cultura
produz os modos de conhecimento nos humanos a ela submetidos, os quais por seu
modo de conhecimento reproduzem a cultura, que produz esses modos de
conhecimento".6

Assim se consuma a domesticação das mentes.



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