quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Os cinco saberes do pensamento complexo




[Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin,

Fernando Pessoa e outros escritores]


Humberto Mariotti





A vida é breve, a alma é vasta.

(Fernando Pessoa)



O esforço para a reforma do modelo de pensamento que hoje predomina em nossa cultura
tem várias vertentes. Muitos são os seus proponentes e diversificadas as suas propostas.



A obra de Edgar Morin está entre os pontos altos desse empreendimento. Em especial,
destaca-se a sua mais importante concepção epistemológica, o pensamento complexo.
Nele não predomina o raciocínio fragmentador (o modelo mental binário do "ou/ou": ou
amigo ou inimigo; ou bem ou mal; ou certo ou errado; ou ocidente ou oriente etc.).
Tampouco prevalece o utopismo da primazia do todo — o sistemismo reducionista.



Uma visão de mundo abrangente deve nascer da complementaridade, do entrelaçamento
— do abraço, enfim — entre esses dois modelos mentais. Assim Morin denomina o
pensamento complexo: o pensamento do abraço. Eis por que proponho, neste texto, falar
sobre o que chamo de cinco saberes do pensamento complexo: saber ver, saber esperar,
saber conversar, saber amar e saber abraçar. Todos estão inter-relacionados, abraçados,
e por isso dependem uns dos outros para ser vividos em sua plenitude. Vejamos como.



Saber Ver

Jean-Paul Sartre, entre outros, percebeu que nossa existência é confirmada pelo olhar do
outro. Mas não é necessário ser um filósofo para chegar a essa conclusão. Peter Senge1
relata que entre certas tribos do Natal, na África do Sul, o principal cumprimento é a
expressão Sawu bona, que quer dizer "eu vejo você". As pessoas assim saudadas
respondem dizendo Sikhona, que significa "eu estou aqui". Ou seja: começamos a existir
quando o outro nos vê.



E mais: existe, entre tribos africanas que vivem abaixo do Saara, a ética ubuntu, que
vem da tradição Umuntu ngumuntu nagabantu, que em zulu significa "Uma pessoa se
torna uma pessoa por causa das outras". Para esses povos, quando um indivíduo passa
por outro e não o cumprimenta, é como se houvesse se recusado a vê-lo, o que significa
negar-lhe a existência.



Saber ver é antes de mais nada saber ver os nossos semelhantes. De fato, a localização
anatômica dos nossos olhos mostra que eles estão orientados para ver o mundo — isto é,
para ver o outro. Todos sabemos que há certas partes de nossa anatomia que só
podemos enxergar em ângulos muito precários, e outras que não podemos ver de modo
algum.



Convém notar que a unidimensionalização da visão — que nada mais é do que o resultado
da apropriação do olhar pela cultura dominante — é um dos fenômenos mais alienantes do
nosso cotidiano. A iconização da sociedade, isto é, o fornecimento de um mínimo de
palavras escritas e um máximo de imagens padronizadas, conduz a uma diminuição do
contato com a razão — o logos. Disso resulta a restrição ao acesso das pessoas ao
imaginário, o que as leva a ver o mundo de modo concreto e literal.



Essa é uma das principais causas da redução da capacidade de lidar com a palavra e, por
conseguinte, de conversar. É uma forma de dificultar a formação de consensos derivados
da experiência e perpetuar a unidimensionalização. Trata-se de reprimir o imaginário e a
diversidade em todas as suas dimensões: na linguagem escrita e falada, na expressão
corporal, na produção de imagens e símbolos, enfim, em todos os meios pelos quais o
indivíduo pode se opor à massificação.



As imagens e os símbolos veiculados pela linguagem tendem a quebrar a linearidade do
nosso pensamento. Nesse sentido, os mitos são indispensáveis à facilitação das
conversações e, em conseqüência, à formação de consensos. A experiência mostra que
ao compartilhar histórias, lendas e narrativas, as pessoas vêem abrandado o seu ânimo
competitivo e litigante.



No entanto, como alerta o historiador e mitólogo Joseph Campbell, os símbolos têm, ao
longo da história, levado povos inteiros a comportamentos violentos e destrutivos. Para
Campbell, muitos desses comportamentos resultam da interpretação literal do conteúdo
de mitos heróicos. As metáforas são tomadas como reproduções exatas do real, e desse
modo reaplicadas à prática.



É claro que essa espécie de compreensão pressupõe mentes como as nossas,
condicionadas por uma cultura cujos mitos básicos configuram uma interminável crônica
de guerras, pilhagens, vinganças e punições. É dessa maneira que os fundamentalismos
reforçam os condicionamentos, que por sua vez reforçam os fundamentalismos, e assim
por diante.



A primitivização de nossas mentes pela supressão da palavra (em especial a palavra
escrita) traduz-se na prática pelo estreitamento de nossa percepção de mundo. Dessa
maneira, ela passa a depender de quase que um único sentido — a visão. A audição vem
em segundo lugar, mas com menos destaque. Essa circunstância nos torna cada vez
menos capazes de perceber a importância do conjunto.



Perdemos a abrangência de avaliação proporcionada pela totalidade dos sentidos, e
dessa forma nos afastamos da perspectiva sistêmica de estar no mundo. Em
conseqüência, as percepções veiculadas pelos sentidos que têm sido reprimidos e
anestesiados são desvalorizadas, o que favorece a unidimensionalização e a manipulação.




É indispensável que evitemos assumir uma visão conspiratória desse fenômeno, para não
cairmos mais uma vez no eterno equívoco (ou conveniência) de atribuir as causas de
nossas dificuldades só a fatores externos, dos quais nos julgamos vítimas indefesas.
Convém que estejamos alertas para essas circunstâncias, pois, ao que parece, muitos de
nós estão convencidos de que a alienação das massas, com todas as suas
conseqüências, resulta da atuação de um establishment onipotente, ao qual é inútil
resistir. É com essa espécie de desculpa que costumamos fugir à responsabilidade de ter
de lidar com o real.



Convém não esquecer que tudo isso vem acontecendo com a nossa anuência, consciente
ou não. Essa postura de vítimas, aliás, expressa-se em nossa tendência a dar pouco
valor às iniciativas individuais para a transformação social: se sou uma vítima, e ainda
mais estando isolado, como poderei mudar alguma coisa? Muitos parecem não entender
que para superar essa circunstância é fundamental o desenvolvimento do fabulário, que
aglutina as pessoas. Parecem não compreender também que para isso a palavra, as
imagens, os sons e as sensações tácteis e olfativas precisam caminhar juntos, como
meios de percepção e integração de nossa experiência no mundo.



O que aconteceria se de repente perdêssemos a visão, ficando dependentes dos demais
sentidos? Essa foi a idéia que levou o escritor português José Saramago a produzir o
romance Ensaio Sobre a Cegueira. A história se passa em uma grande cidade, onde as
pessoas começam a ficar súbita e inexplicavelmente cegas. Pior ainda, o problema é
contagioso. O alastramento do surto marca o início de uma série de terríveis
acontecimentos, centrados num só fato: as desventuras de uma sociedade que,
acostumada à unidimensionalidade, a um modo quase único de perceber o mundo, é de
súbito levada a depender por inteiro dos demais sentidos, que sempre havia mantido em
plano secundário.



Continuemos com o romance de Saramago. Os casos de cegueira vão se multiplicando. A
primeira providência tomada é previsível: os cegos são confinados, com guardas armados
a vigiá-los — a clássica atitude concentracionária, à qual nossa cultura recorre sempre
que tem de lidar com pessoas que de um modo ou de outro se revelam diferentes. A
história prossegue, e logo se estabelecem entre os cegos confinados ações que oscilam
entre a competição e a cooperação.

Seguem-se cenas em que essas circunstâncias se generalizam, e a disputa pela comida
leva a conseqüências degradantes, que se alastram para fora do ambiente do
confinamento.



O livro é uma metáfora das desventuras de uma sociedade cujo principal modo de
perceber o mundo foi suspenso. A isso se adiciona o fato de que esse modo de
percepção, por sua própria natureza, impele as pessoas a buscar referenciais externos,
com o resultante apagamento progressivo da vida interior. No romance, ao se verem
privadas desses referenciais (impedidas, por exemplo, de consultar o Grande Guru que é a
televisão), elas se dão conta de seu vazio interno e partem para a busca de uma
solidariedade perdida, o que é feito de modo canhestro e ineficaz. Não se pode, aliás,
esperar outra coisa de indivíduos mais preparados para a competição do que para a
parceria.



O romance de Saramago pode ser lido como um questionamento ao pensamento único,
apropriado pelo poder de uma cultura em que o homem perdeu o sentido da globalidade e
o de si mesmo. Nesse contexto, a proposta do pensamento complexo corresponde a uma
retomada da pluri-sensorialidade. Esta pode ser considerada um equivalente orgânico da
transdisciplinaridade — uma forma de ver e entender o mundo, traduzida em um saber
que questiona a cegueira do modelo mental dominante.



Esse detalhe pode não ser claro para muitos de nós, mas não escapou à sensibilidade de
um grande poeta. Falo de Fernando Pessoa, em cujos versos se lê:



E penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e com os pés

E com o nariz e com a boca.2



O que nos conduz de volta ao marco inicial: saber ver é saber ver o outro, único ponto
de partida humano para começar a enxergar o mundo. Ou, como diz Pessoa,



O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa.



Mas isso (tristes de nós, que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desaprender.3



A expressão "trazemos a alma vestida", pode ser vista como uma alusão ao fato de nossa
cultura estar atrelada ao modo de pensar binário, ou pensamento linear, o qual estreita e
obscurece nossos horizontes mentais, e assim nos impede de perceber muitas das
nuanças da realidade. Trata-se de um padrão que, entre muitas outras coisas, privilegia o
conhecimento tecnocientífico e deixa em segundo plano a vertente humanística do
conhecer.



Já versos como "isso exige um estudo profundo/uma aprendizagem de desaprender" nos
conduzem ao que Morin viria reconhecer como a necessidade da reforma do sistema de
pensamento acima mencionado, o que gerou sua atitude epistemológica fundamental: o
pensamento complexo. É indispensável — sustenta o pensador francês — aprender a
aprender.



Tudo isso visto, convém lembrar que os poemas aqui citados foram escritos no começo
do século 20 (Pessoa morreu em 1935). Ou seja, bem antes de se começar a falar de
modo constante em complexidade, reforma do pensamento, aprender a aprender e temas
semelhantes.



O próprio Morin vê em Pascal a inspiração inicial de seu pensamento complexo. Percebe-
se, então, como a vasta cultura literária e filosófica de Morin — à qual ele nunca deixou
de recorrer — inspirou muitas de suas descobertas mais importantes. Assim, sua
conhecida admiração pelos poetas e ficcionistas só faz enaltecer o seu trabalho.



Falemos mais um pouco sobre Fernando Pessoa. Os famosos heterônimos, por exemplo
(Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e outros menores), correspondem às
partes que compõem o todo de sua obra; e esse todo retroage sobre as partes
realimentando-as. Eis aqui um dos princípios do pensamento complexo: as partes
integram o todo mas não perdem suas características individuais.



Os heterônimos são partes, mas a obra pessoana não perde a unidade por causa da
diversidade deles. Trata-se de uma evidência marcante da realidade do complexo que,
como observa Morin, vem do latim complexus — aquilo que é tecido junto. Como na
metáfora moriniana: os fios compõem o tapete; este só é tapete por causa dos fios; mas
o que o constitui é a relação entre os fios de sua contextura e o conjunto da tapeçaria.



Em poucas obras literárias o fenômeno da unitas multiplex (unidade na multiplicidade)
surge com tanto vigor como nos trabalhos de Pessoa.

Em meu livro As Paixões do Ego4 — do qual deriva este trabalho —, menciono ainda outra
das múltiplas faces da contribuição pessoana. Além do que se viu acima, Pessoa figura
entre os primeiros criadores literários a ter a intuição da fenomenologia, sem dúvida uma
das vertentes do pensamento complexo.



Sabe-se que a poesia de Alberto Caeiro inclui a investigação de se a linguagem humana é
ou não capaz de representar o real. Caeiro concluiu que ela não tem essa capacidade, ou
a tem de forma limitada. Assim, diante da realidade o poeta opta por descrevê-la como
ela se apresenta; busca mais mostrar do que explicar a experiência do ser humano em
sua interação com o mundo.



A célebre frase "voltar às coisas mesmas", de Edmund Husserl — introdutor da
fenomenologia e da filosofia moderna na Alemanha —, significa que o esforço
fenomenológico implica suspender os preconceitos, as idéias prévias, as teorias e,
mediante essa disposição, observar os fenômenos tal como eles se apresentam à nossa
experiência imediata.



O ânimo transcendentalista de Husserl acabou por distanciar a fenomenologia da vivência
do cotidiano. Pessoa expressa em termos poéticos o que Husserl — ao menos nas etapas
iniciais do método fenomenológico — diz em linguagem filosófica. Seu trabalho revela
como a poesia, na qualidade de meio de compreensão do mundo, tem tanto a contribuir
quanto a filosofia — não fosse ele, além de poeta, também um filósofo.




Os Cinco Saberes do Pensamento Complexo

[Pontos de encontro entre as obras de Edgar Morin,

Fernando Pessoa e outros escritores]


Humberto Mariotti


pág. 2/4


Por meio dos versos de Caeiro, a lírica pessoana entrelaça as consciências lógica e
poética. Ela é, pois, uma forma de exercer a atitude fenomenológica; e com isso ajuda-
nos, e muito, a lidar com a complexidade. Alguns exemplos:



Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!5

(...)

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e o sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores,

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e lua e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E lua e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.6

(...)

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:

As coisas não têm significação, têm existência.

As coisas são o único sentido oculto das coisas.7

(...)

A espantosa realidade das coisas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,

E quanto isso me basta.8

(...)

O Universo não é uma idéia minha.

A minha idéia de Universo é que é uma idéia minha.

A noite não anoitece pelos meus olhos,

A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.

Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos

A noite anoitece concretamente

E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.9



Saber Esperar

Para nós, não há nada mais difícil do que esperar. A exemplo do que fez com tudo mais,
nossa cultura privilegiou a dimensão quantitativa do tempo. Deu primazia ao tempo
medido em relação ao vivido. Como a temporalidade medida é, em nossa concepção,
igual a dinheiro, e como o dinheiro com muita freqüência se relaciona a imediatismo,
ansiedade e temor, saber esperar reduziu-se a um sinônimo de perder tempo, isto é,
perder dinheiro e sentir medo.



Transformamos o tempo em uma coisa, uma mercadoria, como mostrou Marx em seus
estudos sobre o tema. Na mesma linha, a apropriação do tempo (e a mecanização da
gestualidade) das pessoas foi também consagrado como o ponto central do taylorismo
— a "gerência científica" das linhas de produção industrial, que Charles Chaplin satirizou
em Tempos Modernos.



Qualquer tentativa de fazer uma ontologia do tempo suscita desde logo a questão de se
ele é linear ou circular. É importante registrar que nas três grandes tradições patriarcais
de nossa época — o cristianismo, o judaísmo e o islamismo — o tempo é linear. Na
Bíblia, com exceção do Eclesiastes, é assim que ele é considerado. Segundo essas
tradições, marchamos sobre essa reta com princípio meio e fim determinados, sempre
em direção a um alvo final — a morte — que pode representar a salvação ou a danação
eternas. Não existe possibilidade de segunda chance.



É essa linearidade que torna possível as pressões, cobranças e advertências que
instilam em nós o pavor em relação a esse marco do qual não se volta. Tal
circunstância contribui, é evidente, para que encaremos a morte como um ponto final
que nos apavora e não como um dado da vida. Tende também a fazer com que
desvalorizemos a passagem, a trajetória, e tudo aquilo que com ela se relaciona.



Trata-se de uma unidirecionalidade que torna possível as ameaças partidas de deuses
masculinos, severos, punitivos e fiscalizadores. Possibilitou, ainda, a emergência de
filosofias como o determinismo histórico de Hegel, apropriado por Marx e transformado
em uma espécie de via dolorosa, a ser percorrida na direção da beatitude final do
comunismo salvador.



Além de levar à desvalorização do cotidiano, a retilineidade princípio-meio-fim dificulta
muito a prática da tolerância, da serenidade e da compaixão. Por outro lado, sempre
estimulou a "competitividade". Porém, mesmo com o aceno a penas terríveis e com a
impossibilidade de retorno, não se conseguiu evitar as infindáveis tentativas de burlar
as punições mediante toda sorte de estratagemas, muitos deles antiéticos.



Tudo isso levou ao desaprendizado da espera. A concepção linear do tempo tornou
possível, como já foi dito, a sua apropriação e transformação em mercadoria — ponto
central da filosofia das linhas de montagem industrial e da idéia de produto acabado. A
reificação, a quantificação e a comercialização do tempo fizeram com que ele se
tornasse artificialmente escasso e, como tal, objeto de usura. É o caso dos prazos
bancários — e também da apropriação e desvalorização da temporalidade e da
subjetividade.



Nesse modelo não há lugar para o ser humano individualizado, mas sim para o homem
recortado, o homem-função. O padrão linear-quantitativo fez com que a técnica
determinasse a vida humana e não o contrário. Temos uma enorme dificuldade de
compreender que, ao ver o tempo só como um bem de consumo ou moeda de troca,
perdemos a sabedoria da espera. Isto é: perdemos uma das dimensões mais importantes
da nossa existência. Não sabemos distinguir o tempo cultural do tempo natural e
pagamos muito caro por isso. Ao institucionalizar a temporalidade linear, deixamos de
respeitar a diversidade das temporalidades individuais.



Essa é a tônica da nossa cultura, na qual os dominadores impõem aos dominados (mas
também a si próprios) o seu modelo mecânico de temporalidade, e o tempo da cultura
patente reprime o da cultura latente. É claro que precisamos dessa linearidade para as
práticas da vida mecânica — mas não precisamos dela como indutora de paranóias.



Do ponto de vista qualitativo, o tempo não se ganha nem se perde: vive-se. Nas
grandes tradições anteriores à judaico-cristã, a temporalidade é circular, reflete a
dinâmica dos sistemas da natureza, o que nos mostra que vivemos num mundo de
ciclos. Com elas, aprendemos que saber esperar é saber viver.



É preciso reaprender a aguardar o nascer do dia, o cair da noite, a chegada de uma
estação do ano, as fases da lua, o desenvolvimento de uma idéia. Os ciclos da vida
incluem o tempo de espera dos sistemas. Vivemos neles e eles em nós. Não há como
desenvolver uma alteridade bem diversa da que vivemos hoje sem entender a
complementaridade dos tempos linear (o tempo mecânico-produtivista) e não-linear (o
tempo sistêmico). Ela nos levará a uma visão complexa da nossa temporalidade.



E preciso, por exemplo, não pretender apressar a chegada da felicidade. Essa proposta
não quer dizer que devamos esperá-la passivamente, mas por outro lado mostra que de
nada adianta persegui-la como se ela fosse uma caça. Com efeito, a experiência mostra
(e insistimos em não aprender com ela) que é a perseguição ansiosa da felicidade que
muitas vezes nos faz infelizes.



Aqui, a noção de coisa mais uma vez faz com que ignoremos a de processo: a felicidade
que se busca com tanta sofreguidão é apenas a da acumulação material. Essa é a idéia
de felicidade que herdamos do Iluminismo, e que continua em vigor até hoje. Ela
pressupõe que as sociedades caminharão sempre rumo à perfeição, que o evoluir da
história está predeterminado por leis fixas e que o indivíduo, na qualidade de
instrumento desse determinismo, é conduzido por ele.



Trata-se, pois, da idéia de felicidade projetada sobre uma linha de tempo, sujeita à
quantificação e que suscita, no outro pólo, a noção de escassez. Esta, por sua vez,
produziu a convicção de que prolongar o processo vital é igual a prolongar a felicidade.
Trata-se de um ponto de vista em princípio razoável, mas que em certos casos, além de
desvalorizar o momento presente, inspira ações de postergação artificial da vida em
situações em que ela já não é compatível com a dignidade humana.



Fala-se pouquíssimo na felicidade que surge no aqui-e-agora do convívio das pessoas —
a felicidade solidária. É compreensível: nosso cotidiano competitivo pode ser tudo
menos feliz, embora seja nele, e não num reino transcendental, que temos de viver.
Nossa mente tem pouca capacidade de entender e valorizar a felicidade que emerge da
convivência. Um dos motivos para isso é que esta não é facilmente apropriável e
transformável em moeda de troca, como se faz com o tempo.



Os obstáculos a essa compreensão são muitos e estão muito enraizados nos cânones
de nossa cultura, segundo os quais é preciso competir, batalhar, ganhar muito dinheiro
para poder comprar a felicidade. Na prática, as pessoas não raro acabam concluindo
que é tão difícil ser feliz por esses meios que imaginam que o seja por todos os demais.
E assim, no fim das contas, acabamos nos considerando incapazes de ser felizes seja
de que maneira for.



A felicidade não está no término de uma linha de tempo, na qual o começo e o meio
também estão predeterminados. A própria idéia de conquista subentende-a difícil e
fugidia. Nessa ótica, ela é considerada uma forma de vantagem e continuamos a
persegui-la por toda parte — menos onde se encontra: no espaço de convivência com
o outro humanamente legitimado, e no respeito ao tempo de que ela precisa para
emergir.



Saber esperar não é uma condição que deriva de um conjunto de regras, de um sistema
filosófico ou de uma disciplina pragmática. Tampouco é uma condição transcendente, à
qual devemos nos curvar movidos pela fé. Trata-se de uma dimensão importante da
condição humana, e negá-la é negar a própria essência do viver.



Não é por acaso que saber esperar é uma dimensão tão feminina. Na mulher, essa
característica não é uma virtude, uma proposta metafísica ou um valor moral. Pode até
evoluir para tudo isso, sem dúvida, mas no princípio, na base, saber esperar é uma
questão biológica. A mulher é um ser lunar, que sabe que precisa aguardar pelos
grandes ciclos de seu universo orgânico: o menstrual, o gravídico, o puerperal, o do
aleitamento. Ela sabe que não há como tentar acelerá-los, nem competir com eles sem
que os resultados sejam desastrosos. E é essa sabedoria do viver que a capacita para a
sabedoria do conviver.



Aprender com a mulher os mistérios da temperança e da serenidade é algo que nós, os
homens, precisaríamos voltar a fazer.10 Digo voltar, porque já sabemos que era assim
nas ancestrais culturas matrísticas. Se existe uma biologia do amor, existe também uma
biologia da espera, e saber exercê-la é o caminho natural para aprendermos a lidar com
a ansiedade e o imediatismo. Não estou dizendo que a mulher é superior ao homem ou
vice-versa, mas convém lembrar que, em nossa cultura, um dos grandes obstáculos à
compreensão e aceitação da biologia da espera é a tradicional desvalorização do
feminino.11



Há muito que lançamos sobre as mulheres a culpa pelas dificuldades e frustrações que
nosso imediatismo nos faz passar. Projetamos nelas os preconceitos oriundos de nossa
insistência em negar a não-linearidade e a complexidade inerentes ao mundo e ao
tempo. Por isso, dizemos que elas são imprevisíveis, inconstantes, obscuras, difíceis de
lidar. Ou seja, dizemos que a mulher encarna todos os aspectos da vida que nossa
mente racionalizadora não consegue pôr sob controle, esquecidos de que, ao nos
expressarmos assim, reafirmamos que o feminino é a própria vida, da qual tanto nos
queixamos, e à qual, ao mesmo tempo, tanto nos apegamos.



Saber Conversar

O que para nós é claro, pode ser incompreensível para o outro. Como observam Joseph
O'Connor e Ian McDermott, em princípio tendemos a julgar a nós mesmos pelas nossas
intenções e não pelo resultado de nossos atos.



Esse pressuposto em muitos casos nos leva a ser auto-tolerantes: se algo dá errado,
ou se o resultado de nossas atitudes prejudica alguém, sempre poderemos dizer que
não era essa a nossa intenção. Por outro lado, costumamos julgar o outro não pelas
suas intenções (que nem sempre podemos adivinhar), mas por seu comportamento. Se
algo não dá certo, ou se alguém é prejudicado, torna-se bem mais difícil sermos
tolerantes com ele.



Mas ocorre que o tipo de alteridade ao qual estamos culturalmente determinados —
gerador de mil cautelas, medos e desconfianças — não nos põe à vontade para
conversar de modo aberto sobre as nossas intenções. Ao contrário, muitas vezes
tendemos a escondê-las ao máximo. Se avalio o outro apenas pelo seu comportamento
(e não pelo seu comportamento mais as suas intenções), é claro que ele me julgará do
mesmo modo.



Esse é mais um dos resultados da limitação de nossas percepções e entendimentos pelo
raciocínio de causalidade simples, que reforça a desconfiança e a constante busca de
"provas", aumenta o nível de cobranças e dificulta a tolerância. Somos inclinados a
reagir a comportamentos e não a interagir com intenções e condutas.



Modificar o nosso modelo de conversação constitui, talvez, a melhor forma de lidar com
essa dificuldade. Sabemos que nosso conversar é determinado por um alto nível de
institucionalização. Em nossa cultura, não são muito freqüentes as oportunidades de
falar com liberdade e sinceridade. Essa situação poderá mudar de modo significativo, se
e quando conseguirmos transformar nossas conversas em trocas de intenções, em vez
de continuar a fazer delas meios de ocultá-las. É preciso construir uma ética do
dialogar, cujo ponto de partida pode ser a aprendizagem de como receber feedback (em
especial o negativo) e mudar em função disso.



É claro que essa atitude não significa que devemos fazer tudo o que o outro quer.
Nosso principal empenho será fazê-lo dar-se conta de que estamos procurando
entender que seu comportamento provavelmente reflete as suas intenções, e que
esperamos que ele faça o mesmo a nosso respeito.

Precisamos estar bem conscientes, porém, de que a alteridade que baliza a nossa
cultura potencializa as posições reativas e dificulta as criativas, o que não quer dizer
que devamos renunciar a estas. A chave para compreender esse sistema é tentar
chegar às intenções do outro.



Tudo bem examinado, deduz-se que saber conversar é algo que só se aprende quando
se é livre. Entre as muitas maneiras de definir o que significa ser livre chama atenção a
de Viktor Frankl, que definiu liberdade como o intervalo entre o estímulo e a resposta,
isto é, o espaço entre as questões que o mundo nos propõe e as respostas que lhe
damos. Frankl sabia o que dizia. As bases de seu pensamento — que deram origem a
uma corrente de psicoterapia existencial, a logoterapia — começaram na década de 20,
mas foram consolidadas em sua experiência como prisioneiro de campos de
concentração nazistas.



O psicoterapeuta Rollo May define liberdade do mesmo modo: como a possibilidade que
uma pessoa tem de estabelecer uma pausa entre o estímulo e a resposta e depois
orientar-se para uma determinada atitude, escolhida entre várias outras. É esse
intervalo, esse pequeno interstício, que convida as pessoas a serem livres. E é dele que
temos tanto medo: sempre que chamados a visitá-lo, refugiamo-nos no já visto, no
conhecido. Essa é a principal forma de manter conversações que costumam louvar as
virtudes do novo e queixar-se da repetitividade da vida, mas que são, elas próprias,
repetitivas em sua insistência em opor-se a novas maneiras de ver o mundo.



Quando digo que precisamos reaprender a conversar, estou me referindo a essa
circunstância. Reaprender a conversar significa aprender de novo a utilizar nossos
espaços de criação. Mas, como sabemos, o medo de ser livres faz com que fujamos
deles. Essa fuga se faz com mais freqüência por meio de nosso hábito de fazer
perguntas padronizadas, as quais por sua vez suscitam respostas estereotipadas. Ou
seja, dizemos o que os outros querem ouvir para que eles nos respondam o que
queremos ouvir — e assim nada se aprende e nada se ensina.



Se cada um de nós percebe o mundo segundo a sua própria estrutura, saber conversar
significa antes de mais nada saber perguntar. Expliquemos. Em nossa cultura, muitas
vezes o diálogo se torna uma competição, na qual se decidirá quem fala melhor, quem
argumenta com mais brilhantismo e assim por diante. Em geral, julgamos que uma
questão bem formulada é aquela que põe o outro em dificuldades. Sentimo-nos
vitoriosos quando conseguimos embaraçar o nosso interlocutor. Propor-lhe perguntas
difíceis, acuá-lo, significa para nós um triunfo. Com muita freqüência, usamos as
perguntas não para conversar, para aprender algo, mas para "vencer" um debate.



O modo como o interlocutor entende o nosso questionamento depende de sua
estrutura, não do que perguntamos. Saber perguntar é fazer perguntas que produzam
alterações no questionado, isto é, que o levem a aprender algo, a modificar-se e depois
partilhar conosco o que aprendeu. Nesse sentido, saber questionar, antes de ser uma
pretensão a receber algo de quem se pergunta, equivale a dar-lhe uma oportunidade de
transformar a sua estrutura, isto é, de aprender. Trata-se, no fim das contas, de um
processo maiêutico.



Ensinar é propor questões mobilizadoras. Estas produzem em quem as formula uma
expectativa respeitosa diante da resposta, e é por isso que saber questionar conduz a
saber ouvir. Não pode haver indagações adequadas sem a conseqüente preparação
para receber o retorno.



pág. 1/4

pág. 3/4



voltar










Nenhum comentário:

Postar um comentário

SER(ES) AFINS