terça-feira, 27 de julho de 2010

Cibercultura Punk - André Lemos

Fonte Revista Cult
O “faça você mesmo” punk, nascido há três décadas, pode ser traduzido pelas três leis da cibercultura: emissão, conexão e reconfiguração.

“A internet, o primeiro meio de comunicação de muitos para muitos, nos liberaria da tirania das mídias centralizadas e do consumismo rançoso que diz que somos meros receptores do que são os Grandes Negócios, inclusive a Grande Mídia…”(Dan Gillmor, em “We the Media: Grassroots Journalism by the People, for the People”, disponível em inglês na internet no endereçohttp://www.oreilly.com/catalog/wemedia/book/index.csp)
 O movimento punk surgiu na década de 1970 na Inglaterra tendo como mote principal o “do it yourself”, o “faça você mesmo”, ganhando expressões na música, na literatura, na moda. A cultura eletrônica contemporânea, a cibercultura, herda essa atitude em diversas formas de suas expressões atuais, como blogs ou podcasts. “Remixada” e atualizada, a cibercultura se apropria, à sua maneira, do lema punk. Agora, a máxima é “a informação quer ser livre”, “distribua, reutilize, misture conteúdo”, “crie, edite e divulgue informações”.
O movimento punk acabou, mas deixou marcas e influencia toda a sociedade da informação. A herança punk criou a microinformática nos anos 1970, o movimento de ficção ciberpunk nos anos 1980 e os ciberpunks reais (hackers, crackers, coders, geeks…). Hoje, nesse começo de século 21, surgem podcasts, blogs, sistemas peer to peer. Em todos esses exemplos, o “faça você mesmo” pode ser traduzido pelas três leis da cibercultura: emissão, conexão e reconfiguração.
Emita, distribua… Modifique!
A primeira lei é a liberação da emissão. Aqui o “faça você mesmo” significa “produza e distribua informação”. As diversas manifestações da cultura eletrônica mostram que o que está em jogo com a circulação planetária de informação é a emergência de vozes e discursos sem a necessidade de passar por “editores”. A máxima é “produza informação”. Exemplos não faltam: chats, Orkut, MSN, blogs, fotologs, vlogs, podcasts, peer to peer (p2p), softwares livres…
A segunda lei é o princípio de conexão. Não basta produzir sem circular. A máxima punk torna-se aqui: “compartilhe, misture (remix), colabore, distribua informação”. É o “tudo em rede”; a conexão generalizada (internet, Wi-Fi, RFID, bluetooth, celulares) em todos os lugares (ubiqüidade) e de homens, máquinas e objetos entre si.
Todos os produtos da era da informação são, ao mesmo tempo, liberação da emissão, difusão em rede e reconfiguração da cultura. Essa é a terceira lei: reconfiguração de práticas sociais, instituições e modalidades midiáticas. Aqui o mote punk atualiza-se em: “dê sua parcela para modificar a cultura vigente”. Essa modificação não é aniquilação nem simples substituição, mas reorganização e convivência de formatos midiáticos: jornal on-line e impresso, espaço urbano e redes, podcast e rádio, TV e web, amigos de bar e de MSN.
A emissão generalizada (primeira lei), distribuída em rede (segunda lei), cria novos formatos e modificam outros, alterando a cultura — novas formas de consumo de bens culturais, novas formatos de produção de bens simbólicos, novas visões sobre propriedade e autoria, personalização e massificação.
Microinformática e ciberpunk
Mistura de movimento punk e de contracultura, a revolução da microinformática constituiu-se como uma guerrilha (P. Breton em Une histoire de l’informatique [Seuil, 1990]) contra a informática das grandes empresas e do sistema militar.
Invenção de jovens californianos nos anos 1970, ela irá combater a centralização da informação, democratizar os computadores e expandir a participação popular. Foi provavelmente o surgimento dessa atitude (mistura de punk e new age), junto com as inovações técnicas (miniaturização e barateamento de componentes como chips e memórias), que deu origem ao desenvolvimento dos microcomputadores. A microinformática nasce como contestação, sendo um não ao Big Brother.
Nos anos 1980, a invenção do microcomputador (com interfaces gráficas interativas — mouse, ícones e janelas) alimenta e é alimentada pelo imaginário “no future” caótico da literatura e do cinema ciberpunk.
O termo tem origem no movimento homônimo de ficção científica cujos expoentes são Gibson, Sterling, Rucker e Cadigan, dentre outros. Os autores associam, nas suas obras, ambientes urbanos, caóticos e violentos, altas tecnologias (redes, ciborgues, realidade virtual etc.) a uma visão distópica do futuro.
Essa parte punk do gênero associava-se assim às novas tecnologias digitais e telemáticas, às tecnologias da cibernética. Filmes como Blade Runner (1982), Tron (1982) e Jogos de Guerra (1983) são ícones desse imaginário ciberpunk, hoje alimentado por filmes como Matrix (1999).
Mas nem tudo é ficção. Nos anos 1970-1980, surgiram diversos personagens, os chamados ciberpunks reais, figuras do underground da microinformática e das redes telemáticas. Eles invadem sistemas, produzem vírus, alertam para problemas de controle, segurança e vigilância, agregam-se em comunidades eletrônicas…
São os phreakers (piratas do telefone), os hackers, os cypherpunks, os zippies, os geeks…Os ciberpunks reais são os porta-vozes do “faça você mesmo”, formando uma emergente subcultura eletrônica que une antiautoritarismo punk e uso intensivo das tecnologias e redes digitais.
O trabalho é claramente político. O lema explícito em diversos manifestos é: “A informação deve ser livre; o acesso aos computadores deve ser ilimitado e total. Desconfie das autoridades, lute contra o poder; coloque barulho no sistema, faça você mesmo”.
Cibercultura punk?
A herança  punk parece ser evidente. Nos exemplos mostrados aqui, vimos como a máxima punk se propaga nas três leis da cibercultura; e isso do surgimento da microinformática, passando pela ficção científica ciberpunk, pelos ciberpunks reais, até chegar aos fenômenos atuais como os podcasts, os blogs, os sistemas p2p e os softwares livres.
Evidenciamos atitudes que buscam democratizar o acesso e facilitar a produção de informação, aumentar a circulação e o consumo dos bens culturais, reconfigurar as diversas práticas sociais e as estruturas da indústria cultural massiva.
Embora o punk não exista mais enquanto movimento, as três leis da cibercultura podem ser interpretadas como uma herança atualmente disseminada na cultura das redes telemáticas. Não são punks os que fazem podcasts, blogs etc. Trata-se hoje, com a morte dos grandes movimentos, de uma apropriação generalizada dessas tecnologias. Abrem-se assim novas possibilidades de liberação da emissão, de conexão em rede e de reconfiguração.
Para participar dessa cultura eletrônica, dessa cibercultura punk, não é necessário usar presilhas no nariz, cabelo estilo moicano ou roupas rasgadas. Basta plugar-se na rede.
Exemplos atuais de cibercultura punk
Podcast
Com os podcasts, trata-se de fazer e distribuir emissões sonoras. Essas duas ações (fazer e distribuir) vão reconfigurar a mídia “rádio”. O fenômeno mundial de emissões sonoras conhecido como podcast surgiu no final de 2004, sendo o nome um neologismo dos termos “iPod” (tocador de mp3 da Apple) e “broadcasting” (transmissão de rádio).
Estima-se que há mais de 6 milhões de usuários no mundo. Com um computador doméstico e softwares gratuitos de edição de som e publicação, você faz sua emissão e difunde pela internet. Usuários comuns e gigantes da indústria cultural (BBC, por exemplo) produzem diariamente diversos tipos de emissão sob esse novo formato (noticiário, talk shows, guias de museus, leituras de livros clássicos…).
Com os podcasts, vemos a herança punk em ação: 1-Liberação da emissão (qualquer pessoa pode produzir uma emissão sonora); 2-Princípio de conexão (distribuição livre por indexação de sites na rede – RSS); 3-Reconfiguração dos formatos de emissão de conteúdos sonoros (rádio massiva, podcasts, audioblogs). 
Blogs
Com os blogs, outro fenômeno mundial, as mesmas leis estão em jogo. A máxima é: “produza e distribua você mesmo textos, sons, vídeos, fotos”. Blogs são formas de publicação na internet de que qualquer pessoa pode facilmente dispor e por meio das quais começar a emitir seu diário pessoal ou informações jornalísticas, em emissões tanto de áudio (audioblogs) e vídeos (vlogs) como de fotos (fotolog).
Os blogs podem ainda funcionar em comunidades onde usuários/leitores comentam e adicionam novas informações. Aparece claramente a liberação do pólo da emissão (qualquer um pode fazer seu blog), o princípio em rede (blogs estão em rede e fazem referência a outros blogs) e a reconfiguração: novos formatos de diários, de publicações jornalísticas, de emissões sonoras e imagéticas etc.
Um exemplo interessante é a Wikipedia (www.wikipedia.org), uma enciclopédia “faça você mesmo”, atualizada constantemente por qualquer pessoa, de qualquer lugar do mundo.
Hoje há a criação de um novo blog a cada segundo. A “blogosfera” dobra a cada seis meses, contando, segundo estatísticas, mais de 60 milhões de publicações. A liberação do pólo da emissão, o princípio em rede e a conexão têm servido como instrumentos para que vozes autênticas surjam, criando um contraponto à mídia clássica e à censura política. Os recentes problemas de corrupção no Governo brasileiro encontram nos blogs um instrumento de informação fora do esquema dos “mass media” (meios de comunicação de massa): cidadão comum para cidadão comum. Forma-se o que alguns chamam de “citizen media”, os meios de comunicação do cidadão.
Redes p2p e Software Livre
O sistema de compartilhamento de arquivos conhecido como redes peer to peer (p2p), como os atuais Kazaa, Limeware ou Gnutella, possibilita a troca mundial de arquivos de diversos formatos. A máxima punk transforma-se em: “o que eu tenho, eu compartilho”, legalmente ou independentemente de direitos ou propriedades.
Os sistemas p2p vão reconfigurar as indústrias fonográfica e cinematográfica, além de questionar noções como propriedade e direito de autor. Vejam, por exemplo, o sistema de venda de música iTunes da Apple ou o surgimento de licenças como GNU (softwares livres) ou Creative Commons mostrando possibilidades de criação de novos acordos de distribuição, de venda, de uso e de cópia.
No caso dos softwares de código aberto, emerge um novo formato de criação e de compartilhamento de inteligência no desenvolvimento de programas de computadores.
Trata-se de recombinações de linhas de códigos de forma aberta, livre e criativa, construindo um dos mais interessantes fenômenos da cibercultura. O lema punk aqui passa a ser: “faça você mesmo os seus programas, colabore, compartilhe e modifique códigos de forma a quebrar a hegemonia dos softwares proprietários”.
A liberação da emissão e o princípio em rede estão reconfigurando a indústria proprietária, reforçando a cultura do compartilhamento. Emerge aí a cultura “copyleft”, em oposição à lógica proprietária do copyright que dominou a dinâmica dos “mass media”.
O copyleft é um hacking do copyright. A atual revolução dos softwares não-proprietários deve-se a essa cultura do compartilhamento, potencializando a distribuição e a cooperação.
Estão em ação, também nesse exemplo, as três leis: a liberação da emissão (qualquer um pode trabalhar em códigos e programas), o princípio de conexão (trabalho cooperativo em rede) e reconfiguração da indústria dos softwares.
O Brasil é reconhecido com um líder na adoção desses softwares, tanto na sua administração direta como em projetos de inclusão digital.
*André Lemosé professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBa), Doutor em Sociologia pela Université René Descartes e Diretor do Centro Internacional de Estudos Avançados e Pesquisa em Cibercultura
bibliografia básica
 McNeil, Legs e McCain, Gillian. Mate-me, por favor -– L&PM, 1997 (relançado em dois volumes na coleção “L&PM Pocket” em 2004)
Por meio de depoimentos dos participantes do movimento punk de Nova Iorque (cronologicamente anterior ao punk inglês), conta como o gênero foi nascendo de forma espontânea, dando crédito também a bandas pré-punk como Velvet Underground, Stooges e New York Dolls, que atuaram no final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Legs McNeil foi um dos fundadores da revista Punk.
Savage, Jon. England’s dreaming – Faber & Faber, 1991 (relançado na Inglaterra em 2005 pela mesma editora)
O mais completo e informativo relato sobre a explosão punk inglesa. O fio condutor é a história dos Sex Pistols. Mas o crítico Jon Savage recua aos antecedentes das biografias de Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, dá um panorama preciso da péssima situação política e econômica do Reino Unido nos anos 1970 e aponta todas as ramificações (moda, publicações xerocadas, artes plásticas, discos independentes etc.) motivadas pelo sucesso dos Pistols e pelo choque que causou na sociedade britânica.
Marcus, Greil. In the fascist bathroom: Punk in pop music, 1977-92 – Penguin, 1994 (relançado pela Harvard em 1999)
Compilação de artigos do renomado crítico Marcus, que, apesar de americano,
defende que o punk inglês tem uma representatividade social e musical que o dos EUA nunca alcançou.
Lydon, John; Zimmerman, Keith; Zimmerman, Kent. Rotten: No irish, no blacks, no dogs – Hodder & Stoughton, 1994 (relançado pela Plexus em 2003)
Curiosa e desbocada autobiografia de John Lydon, mais conhecido como Johnny Rotten, vocalista dos Sex Pistols. Crítico ácido e impiedoso, Lydon/Rotten dá sua versão do nascimento do punk.
Bivar, Antonio. O que é punk – Brasiliense, 1982 (Coleção Primeiros Passos)
(relançado em 2001)
Pioneira iniciativa brasileira, publicada quando o punk ganhava força no país com o festival O começo do fim do mundo (em São Paulo, no final de 1982). Apesar de veterano da geração hippie, o jornalista e escritor Antonio Bivar procurou se integrar à geração punk com boa vontade. 
Lançamentos recentes no Brasil:O’Hara, Craig. A Filosofia do punk: mais do que barulho – Radical Livros, 2005
O autor, um militante punk americano, defende nesse livro (que teve sua primeira edição em 1999) a visão de que o punk não morreu nem perdeu força depois de 1978. Dedicada defesa de todas as formas que o punk tomou nas últimas três décadas.
Parsons, Tony. Disparos do front da cultura pop – Barracuda, 2005
Oriundo da classe trabalhadora inglesa, esse crítico cobriu o choque punk de 1976/77 de muito perto. Vários artigos dessa época estão nessa coletânea (inclusive um testemunho do choque entre os Sex Pistols e a polícia em um barco no rio Tamisa).

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