terça-feira, 13 de julho de 2010

Buscadores & Polinizadores 3a. versao - Augusto de Franco


  1. O auto-didatismo e a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente & 
  2. O alter-didatismo e as comunidades de aprendizagem na emergente sociedade em rede 
  3. PROVOCAÇÃO INICIAL Terceira Versão (20/02/10) Augusto de Franco 
  4. Roteiro para um livro que estaria sendo escrito coletivamente na Escola-de-Redes, mas tal esforço articulado ainda não começou.
  5. Introdução 
  6. Não é novidade para ninguém que, no mundo atual, qualquer pessoa que saiba ler e escrever e tenha acesso à Internet pode aprender muito mais do que podia há dez anos. Sim, isso é fato. Uma criança com noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Diz-se agora que, se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de matemática na solução de problemas cotidianos e… banda larga, qualquer um vai sozinho. A novidade é que isso não depende, nem apenas, nem principalmente, da tecnologia stricto sensu e sim de novos padrões de organização social que estão se configurando na contemporaneidade. Uma sociedade em rede está emergindo e, progressivamente, tornando obsoletos as instituições e os processos hierárquicos da velha sociedade de massa, inclusive as instituições e processos educacionais. Novas tecnologias de informação e comunicação – que permitem a interação horizontal ou entre pares (pessoa-com-pessoa) em tempo real – estão acelerando esse processo. Mas novas tecnologias sociais, tão ou mais importantes do que essas (chamadas TICs), também estão contribuindo para mudar radicalmente as condições de vida e convivência social neste dealbar do século 21. Tudo isso vai mudar, em parte já está mudando, a maneira como executamos as nossas atividades empresariais, governamentais e sociais. Vai mudar a maneira como nos organizamos para produzir e comercializar, governar e legislar e conviver com as outras pessoas na sociedade. E – como não poderia deixar de ser – isso também está mudando a forma como aprendemos. O problema é que as instituições e os processos educativos que foram pensados para um tipo de sociedade que está deixando de existir (à medida que emerge uma nova sociedade cuja morfologia e dinâmica já são, em grande parte, as de uma rede distribuída) ainda remanescem e continuam aplicando seus velhos métodos. Em que pese o papel fundamental que cumpriram nos últimos séculos, essas instituições e processos já começam hoje a ser obstáculos à criatividade e à inovação. 2
  7. O que tivemos, pelo menos nos dois últimos séculos, foi, em grande parte, uma educação massiva e repetitiva, voltada para enquadrar as pessoas em um tipo insustentável de sociedade (instalando nas suas mentes programas maliciosos, elaborados para infundir noções de ordem, hierarquia, disciplina e obediência) e para adestrar a força de trabalho, para que os indivíduos pudessem reproduzir habilidades requeridas pelos velhos processos produtivos e administrativos e executar rotinas determinadas. Agora estamos, porém, vivendo a transição para outra época, para uma nova era da informação e do conhecimento, na qual as capacidades exigidas são outras também. Nesta nova sociedade do conhecimento, o que se requer é que as pessoas sejam capazes de criar e de inovar, mudando continuamente os processos de produção e de gestão para descobrir maneiras melhores de fazer e organizar as coisas. E isso elas só conseguirão na medida em que tiverem autonomia para aprender o que quiserem, da forma como quiserem e quando quiserem e para se relacionar produtivamente com outras pessoas de sua escolha, gerando cada vez mais conhecimento – o principal bem, conquanto intangível, deste novo mundo que já está se configurando. Faz-se necessário, pois, libertar o processo educativo das amarras que tentam normatizá-lo de cima para baixo, em instituições organizadas igualmente de cima para baixo, hierarquizadas, burocratizadas e fechadas, desenhadas para guardar em caixinhas o suposto conhecimento a ser transferido, de uma maneira pré- determinada, para indivíduos que preencherem determinadas condições (e, não raro, à revelia do que eles próprios desejariam de fato aprender). Ora, já se viu que o conhecimento é uma relação social e não um objeto que possa ser estocado, transportado, transferido ou transfundido de um emissor para um receptor. O processo de geração e compartilhamento do conhecimento ocorre na sociedade e torna-se cada vez mais difícil, custoso e improdutivo quando tentamos parti-lo em pedaços para arquivá-lo nos escaninhos de uma organização separada da sociedade por paredes opacas e impermeáveis. O que de tão importante se descobriu nos últimos anos é que, em última instância, quem é educadora é a sociedade, a cidade, a localidade onde as pessoas vivem e se relacionam. Na verdade, foi uma redescoberta democrática: Péricles, no século 5 a. E. C., já havia percebido este papel educador da polis enquanto comunidade política, quando declarou – segundo Tucídides – na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso, “que a cidade inteira é a escola da Grécia e creio que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos mais distintos aspectos, 3
  8. dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo, de encanto pessoal”. Portanto, sistemas educativos devem ser, sempre, sistemas sócio- educativos configurados em localidades, em sócio-territorialidades, quer dizer, em redes sociais que se conformam como comunidades compartilhando agendas de aprendizagem. Ensino e aprendizagem Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da aprendizagem. Em termos lógicos: ensino => aprendizagem; donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Nada disso. O ensino surgiu - como instituição – de certo modo, contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de poder. Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de) estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição. Os primeiros professores foram os sacerdotes. A primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento). Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na separação de corpos entre docentes e discentes. 4
  9. O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do aprendizado. O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores que foram instalados para verticalizar a "rede-mãe". O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso”. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a que foi submetido. Como twittou Pierre Levy, as universidades não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento, mas retêm em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma. O autodidatismo e a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando pudermos dizer: “eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito”. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). 5
  10. O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente. Todos seremos autodidatas Na sociedade que está vindo, todos seremos, em alguma medida, autodidatas. Uma criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata. Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será necessário. Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet em casa e noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e… banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios. Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra. Quem organiza o conhecimento é a busca Em uma sociedade conectada (melhor dizendo, em um Highly Connected World), quem organiza o conhecimento é a busca. Mas os 6
  11. caras ainda insistem em querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo). Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional. Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (e é isso, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing). Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos para você”. Em uma sociedade cada vez mais em rede, onde as pessoas conectadas têm múltiplos caminhos para acessar o conhecimento que lhes interessa, quem organiza o conhecimento é a busca. E a busca 7
  12. semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas devem conhecer. Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes da nova sociedade que está florescendo. Dentro em breve, toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) será regulada por meio de outros processos em rede. Só para dar um exemplo, em 10 minutos de funcionamento, o Twitter Tracker é capaz de fornecer – dependendo do tema – mais notícias inovadoras sobre determinado assunto do que os esforços de organização de uma equipe especializada, dedicada a essa tarefa durante uma semana. O autodidata é um buscador: mas quem busca é a pessoa O autodidata é um buscador. Mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um ambiente educativo. Colecionadores de diplomas Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo seguida pelo candidato. Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma 8
  13. pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem autorização para acessar e licença oficial para interpretar tais dados. Cada pessoa terá a sua própria wikipedia. Ao invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um - o arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final. Qualquer um vai sozinho? De certo ponto de vista, qualquer um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Para reprogramar a educação básica deveríamos começar perguntando o que é necessário para que um indivíduo e uma comunidade possam fazer o seu próprio roteiro de aprendizagem. Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): 1 – Estabelecer conexões 2 – Reconhecer padrões 3 – Linguagear e conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas noções). A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um sentido ampliado): 9
  14. 1) a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e escrever e interpretar o que leu: no caso, em português); e as outras “alfabetizações”: 2) em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); 3) matemática (dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana); 4) lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples); 5) digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas digitais de inserção, articulação e animação de redes). Esses são os requisitos e as ferramentas contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo. No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor, ninguém pode caminhar sozinho. Aprender a aprender está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a primeira expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos). O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) requer mais duas “alfabetizações”: 6) em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário); e 7) democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Essas “alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem. Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, 10
  15. inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem). É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser agentes comunitários de educação. Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer um vai sozinho e se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseia os sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada. O alterdidatismo e as comunidades de aprendizagem na emergente sociedade em rede Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: “eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que vive. Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente. 11
  16. Aprender a conviver Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, disso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não apenas trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade. De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede. Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos… Educandos da interação comunitária Nosso desafio é elaborar e testar metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my friends” - Karen Stephenson), baseadas na idéia de cidade educadora (reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem) e aproveitando experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, como, por exemplo, alguma coisa assemelhada ao método Kumon (expandido, porém, com novos conteúdos e adaptado às novas 12
  17. formas de interação educativa extra-escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do unschooling) e o conectivismo como nova teoria da aprendizagem (daí as redes sociais, que constituem o padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem capazes de disseminar as ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem). Seremos todos aprendentes Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede, a educação não será nada disso que andam falando. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando pudermos dizer: “nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente” (em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes. Sociedades desescolarizadas Sociedades em que as redes são as escolas serão sociedades desescolarizadas, como queria o visionário Ivan Illich. A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que fique claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando da cidade educadora (*), ou, mais precisamente ainda, das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede. Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistadas dentro da sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, é a própria sociedade (local, no sentido ampliado) que educa, por meio das comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio. Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. 13
  18. Nota (*) Já havia, desde que surgiu o conceito de cidade educadora, a visão de que “as cidades sempre foram educadoras, assim como o foram também os habitats considerados não-urbanos. Em todas as épocas e lugares a convivência social gerou processos de socialização de seus membros como elementos básicos da própria existência humana em sociedade”. Com o tempo, porém, foi ficando mais claro que nem toda cidade que prioriza políticas públicas, programas e ações governamentais e não- governamentais de educação (ou voltadas à educação) pode ser considerada uma cidade educadora. Se fosse assim, não haveria necessidade de construir um novo conceito. Ou seja, foi se impondo a necessidade de identificar os elementos distintivos a partir dos quais se poderia caracterizar uma cidade como educadora. Assim, foi ficando mais claro que o que é propriamente educador na cidade educadora é o ambiente favorável à interação educadora. Isso não significa que não são importantes as políticas, os programas e as ações governamentais de educação. Nem que não sejam importantes as escolas e universidades. Nem que não sejam importantes os programas e ações de educação não-governamentais. Tudo isso é importante, mas a sinergia entre essas diversas ações, processos e instituições formais, não-formais ou informais, depende de como elas interagem virtuosamente para produzir um efeito sistêmico. O ambiente educador, portanto, é a chave da questão. Esse conceito de cidade educadora, que apareceu no início dos anos 90, em Barcelona, não levava em consideração a nova dinâmica da sociedade em rede que está emergindo. Desse ponto de vista ele deve hoje ser tensionado para revelar que as cidades são educadoras na medida em que se configuram como redes de comunidades. Os 10 pontos seguintes tentam fazer esse tensionamento: 1 - Somente seres humanos podem educar seres humanos, ou seja, a educação é o resultado de uma interação entre humanos. Cabe identificar quais os novos arranjos sociais capazes de favorecer tais interações, ensejando a multiplicação de atividades educadoras na cidade. 2 - Toda cidade é educadora na medida em que seu tecido urbano é composto por múltiplas redes sociais que aprendem e promovem interações educativas entre as pessoas conectadas nessas redes. São essas redes que educam em uma cidade educadora. Para além dos necessários programas formais e das estruturas educativas, são essas redes que conformam o ambiente propício à função educadora do processo democrático. São essas redes que educam a própria cidade para que ela possa ser caracterizada como uma cidade educadora. 3 - A proposta de cidade educadora implica a existência de novas institucionalidades educadoras na cidade. Essas novas institucionalidades serão de várias naturezas: governamentais, empresariais e sociais. Parte significativa delas deverá ser pública, em um sentido mais amplo do que aquele compreendido pelo Estado. Deverão ser formadas por parcerias 14
  19. entre setores governamentais, empresariais e sociais para buscar extrair sinergias da interação entre esses diversos tipos de agenciamento. 4 - Cidade educadora não é uma cidade escolarizada. Ao focalizar prioritária e exclusivamente as escolas como instrumentos ou espaços educativos, pode-se estar contribuindo para uma indesejável escolarização da sociedade ao invés de promover uma necessária socialização das escolas e diminuindo a importância dos ambientes sociais coletivos que deveriam caracterizar uma cidade educadora. Cidades educadoras são cidades nas quais proliferam, além de um sistema escolar eficiente e inclusivo, ambientes educadores extra-escolares. 5 - O mais importante, porém, é a cidade como espaço de aprendizagem. Cidade educadora, antes de ser uma cidade-que-ensina é uma cidade-que- aprende e enseja a aprendizagem contínua de seus cidadãos. Assim, antes de perguntar o que é uma ‘cidade educadora’, deveríamos perguntar o que é uma ‘cidade que aprende’. Uma cidade não pode ser educadora se não for, antes, uma cidade capaz de aprender ou uma cidade-que-aprende. 6 - Diz-se que cidades educadoras promovem a educação, transformando-a numa força da cidade na conquista de inclusão, equidade e direitos para todos. Todavia, a idéia de inclusão social não pode ser adequadamente expressada somente como o direito dos cidadãos a receberem algo do Estado. As pessoas devem fazer alguma coisa a mais em favor da sua própria inserção, além de exigirem os seus direitos do Estado protestando, demandando e monitorando as políticas governamentais. As pessoas devem assumir por si próprias responsabilidades com a promoção da sua real inclusão social. Isso faz parte do aprendizado dos cidadãos e do aprendizado da cidade como um todo, sem o qual a cidade não poderá se caracterizar como uma cidade educadora. Ao lado da noção de igualdade, sempre enfatizada quando falamos sobre as necessidades de inclusão social, também deve ser enfatizada a noção de liberdade para inovar, criar, arriscar e empreender e propor ações coletivas que resultem em uma maior participação democrática da sociedade para promover, por via de suas iniciativas endógenas, a inclusão dos excluídos. 7 - As tendências atuais indicam que em um mundo cada vez mais interconectado culturalmente, terão uma inserção mais adequada às experiências de miscigenação (cultural) do que de multiculturalismo. Multiculturalismo sem interculturalidade não é desejável. O que é desejável, do ponto de vista das cidades educadoras, é uma relação entre pessoas e coletivos culturalmente diferenciados que implique a promoção sistemática e gradual de espaços e processos de interação positiva capazes de generalizar relações de confiança, reconhecimento mútuo, comunicação efetiva, diálogo e debate, aprendizagem e intercâmbio, regulação pacífica dos conflitos, cooperação e convivência. Iniciativas de prevenir conflitos (sejam estes de caráter distributivo, inter-geracional, inter-étnico ou inter- religioso) devem articular-se por meio da aplicação de políticas urbanas e iniciativas de instaurar modos democráticos de regulação de conflitos na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. 15
  20. 8 - Péricles, talvez o principal expoente da democracia grega, afirmou – segundo Tucídides, na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso – que “a cidade inteira é a escola da Grécia e creio que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos mais distintos aspectos, dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo, de encanto pessoal”. Tal relação entre a educação e a vida democrática da polis, está na raiz do conceito de cidade educadora. Essa visão pode ser apresentada em termos contemporâneos, pois continua válida em essência. Poder-se afirmar hoje que o investimento na educação do indivíduo para melhorar a sua vida depende do investimento em ambientes coletivos favoráveis à boa governança, à prosperidade econômica e à expansão de uma cultura cívica capaz de melhorar suas condições de convivência social. No conceito fundante de Péricles, quem educa não é propriamente a Cidade-Estado e sim a koinomia (a comunidade) política (democrática). Na ausência de democracia (mesmo que limitada aos mecanismos e processos formais de representação, isto é, como regime político ou forma de administração do Estado), uma cidade não pode alcançar a condição de cidade educadora. 9 - Cidades educadoras ensejam o surgimento de novos atores públicos para além dos atores estatais ou governamentais. O cidadão conectado em redes de participação cidadã pode, como tal, fazer política pública. A política pública não é mais monopólio do Estado, mas inclui também os atores sociais que operam com um sentido público. A sociedade civil pode, como tal, tomar iniciativas públicas coletivas, aumentando o seu protagonismo e o seu empreendedorismo. E nada disso constitui privilégio das formas de organização tradicionais e burocráticas (da chamada “sociedade civil organizada”). Os cidadãos desorganizados (segundo os antigos padrões de organização), porém conectados horizontalmente uns com outros em prol de objetivos comuns, podem participar da composição de uma nova esfera pública não-estatal. 10 - Se cidades podem aprender, como elas podem aprender? Eis a grande questão colocada pela contemporaneidade para as cidades educadoras. Quem aprende na cidade não são apenas os cidadãos, individualmente, mas também as redes sociais nas quais tais cidadãos estão conectados. Podemos dizer que a comunidade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social aprendendo. Quando se diz que a cidade educa, o que se está dizendo, a rigor, é que são as diversas comunidades de aprendizagem, de prática e de projeto que se formam dentro da cidade que estão aprendendo. Apenas estruturas complexas que apresentam a morfologia e a dinâmica de rede podem aprender. Uma cidade será cada vez mais educadora na medida em que for também, cada vez mais, uma cidade-rede. 

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