Os jovens deverão saber como criar uma civilização
que funcione com energia solar, conserve a biodiversidade,
proteja solos e florestas,
desenvolva empreendimentos locais sustentáveis
e repare os estragos infligidos à Terra.
Para oferecermos essa educação ecológica,
precisamos transformar nossas escolas e universidades.
Na sociedade industrial, a grande maioria considera o sistema educacional, do primário ao doutorado, caro demais, maçante e pouco eficaz. Acham que este precisa de uma reforma radical, mas não sabem como proceder. Uns afirmam que a falha se deve à falta de verbas para laboratórios, bibliotecas, equipamentos, salários e novas instalações — ponto de vista defendido, obviamente, por educadores profissionais. Do outro lado, estão aqueles que defendem o abandono de grande parte do sistema atual, para criar um sistema de escolas organizadas como empresas.
Ambos concordam, porém, quanto aos objetivos básicos da educação: primeiro, equipar a sociedade com uma força de trabalho de “categoria mundial” para competir com vantagem na economia global e segundo, fornecer a cada indivíduo os meios para progredir ao máximo.
No entanto, existem motivos melhores para repensar a educação, ligados às questões de sobrevivência humana que dominarão o mundo no século XXI. A geração que hoje está estudando terá que fazer aquilo que nossa geração não conseguiu ou não quis fazer: estabilizar a população mundial, fixar e depois reduzir a emissão de gases que ameaçam mudar o clima — proteger a diversidade biológica, reverter a destruição de florestas e conservar o solo, cuja erosão diária atinge milhões de toneladas.
As gerações futuras precisam aprender a utilizar melhor a energia e os materiais disponíveis. Precisam aprender a usar a energia solar sob todas as suas formas. Precisam eliminar a poluição e o desperdício. Precisam aprender a administrar recursos renováveis. Precisam iniciar a imensa tarefa de restaurar, da melhor forma, os danos causados à Terra nos últimos 200 anos de industrialização. E tudo isso precisa ser feito, enfrentando as iniqüidades sociais e raciais. Nenhuma geração teve que encarar tamanho programa de trabalho. Continuamos, porém, a educar nossos jovens como se não houvesse nenhuma emergência planetária. Mas, a crise que enfrentamos é principalmente uma crise da mente, da percepção e dos valores — portanto, um grande desafio para as instituições que formam mentes, percepções e valores. Um desafio educacional.
Continuando com a mesma educação, que nos permitiu industrializar a Terra, somente vamos piorar a situação. Isso precisa ser dito com ênfase, porque a crise ambiental não é provocada principalmente por pessoas ignorantes, sem escolaridade. É provocada por pessoas de boa formação que, segundo Gary Snyder, “ganham rios de dinheiro, vestem-se impecavelmente, formam-se nas melhores universidades, apreciam pratos finos e lêem bons livros, enquanto orquestram investimentos e leis que arruínam o mundo”. São homens e mulheres com diplomas universitários, educados para pensar que dominar a natureza é nosso direito legítimo. Não estou querendo ir contra o ensino, mas falar a favor do tipo de ensino que prepara as pessoas para um estilo de vida apropriado a um planeta com biosfera sujeita às leis da ecologia e da termodinâmica.
As habilidades, aptidões e atitudes necessárias para industrializar a Terra não são necessariamente as mesmas que vamos precisar para curar a Terra ou para estabelecer economias e comunidades sustentáveis. Os grandes desafios ecológicos requerem uma alteração das matérias, do sistema e dos objetivos do ensino, em todos os níveis. Entretanto, o historiador Jaroslav Pelikan, da Universidade de Yale, tem dúvidas quanto à capacidade da universidade para enfrentar esta crise, que não só é ecológica e tecnológica, como também educacional e moral.
Para construir uma ordem mundial sustentável, precisamos desmontar o frágil andaime de idéias, filosofias e ideologias que constituem o currículo escolar moderno. Isso requer cinco medidas. Primeiro, precisamos desenvolver verdades mais abrangentes e ecológicas. Os arquitetos da visão atual que temos do mundo, principalmente Galileu e Descartes, consideravam tudo o que podia ser pesado, medido e somado, mais verdadeiro do que aquilo que não pode ser quantificado. Em outras palavras, se não podia ser quantificado, não contava. A filosofia cartesiana era cheia de tropeços ecológicos, que os discípulos de Descartes desenvolveram ao grau máximo. Sua filosofia separava o homem do mundo natural, despia a natureza do seu valor intrínseco e segregava a mente do corpo.
Se quisermos salvar espécies e ambientes, precisamos de um conceito mais amplo da ciência e de um raciocínio mais abrangente, que une o conhecimento empírico com as emoções que nos fazem amar e, às vezes, lutar.
Descartes e seus discípulos estavam errados: não se pode separar os sentimentos do conhecimento, o objeto do sujeito; não podemos separar a mente ou o corpo do contexto ecológico e emocional.
Ciência sem amor não pode oferecer um motivo para apreciar o pôr do sol, nem pode oferecer um motivo objetivo para valorizar a vida. Esses motivos precisam vir de fontes mais profundas.
Segundo, precisamos desafiar a presunção contida no currículo oculto, que entende que o domínio da natureza pelo homem é bom; que uma economia de mercado crescente é natural; que todo conhecimento, independente de suas conseqüências, é igualmente valioso e que o progresso material é nosso direito. Nos tornamos incapazes de resistir à sedução da tecnologia, do conforto e do ganho imediato. Sob esse ponto de vista, a crise ecológica é questão de discernir entre vida ou morte, benção ou maldição, e de aprender a escolher a vida.
Terceiro, precisamos reconhecer o fato de que o currículo moderno ensina muito sobre individualidade e direitos, mas pouco sobre cidadania e responsabilidade. A emergência ecológica somente pode ser resolvida quando um número suficiente de pessoas adquirir uma idéia mais ampla do que significa ser cidadão. Esse conhecimento precisa ser cuidadosamente adquirido em todos os níveis de ensino.
Não se trata apenas de um problema político e social. Hoje, deveríamos ver o quanto dependemos da comunidade mais ampla de seres vivos. Nossa linguagem política não sugere esta dependência. A palavra “patriotismo”, por exemplo, é destituída de conteúdo ecológico. É preciso que ela venha a significar o uso feito da terra, florestas, ar, água e vida selvagem. Abusar dos recursos naturais, desgastar o solo, destruir a diversidade natural, desperdiçar, tomar mais do que o necessário ou deixar de repor o que foi usado — tudo isso precisa, no futuro, ser considerado falta de patriotismo. É preciso que “política” volte a significar, como disse Vaclav Havel, “servir a comunidade e servir aqueles que virão depois de nós”.
Quarto, precisamos questionar o conceito amplamente difundido de que nosso futuro é de constante evolução tecnológica e que isso é bom. A fé na tecnologia permeia todo o currículo, aceitando cegamente a noção de progresso. Entretanto, esse progresso não é um caminho escolhido de forma consciente, mas uma crendice tecnológica que avança sem controle através da história. Essas crendices são incorporadas nos aos métodos pedagógicos, sem questionamento. Conhecer a linguagem do computador, por exemplo, transformou-se em meta nacional — incentivada em geral pelos vendedores. Esse fundamentalismo tecnológico precisa ser questionado. As mudanças tecnológicas estão nos levando para onde queremos? Qual é o efeito da tecnologia sobre nossa imaginação, em questões sociais, éticas e políticas? E qual é o seu efeito ecológico?
George Orwell tinha prevenido que o “fim lógico do progresso tecnológico é reduzir o ser humano a algo parecido com um cérebro encerrado em uma garrafa”. O pesadelo de Orwell está se transformando em realidade, graças também às pesquisas realizadas nas melhores universidades — pesquisas contrárias às nossas reais necessidades. Nossas necessidades são necessidades do espírito, mas nossa imaginação e criatividade concentram-se na matéria.
Um quinto desafio desponta no horizonte, solapando a mais antiga e confortável das premissas: que educação somente pode ter lugar em instituições “educacionais”. Escolas e universidades são caras, lentas, com pouca imaginação, oprimidas pelo peso da tradição e da autocongratulação. Oferecem currículos com disciplinas que pouco correspondem à realidade. A educação ecológica visa provocar uma mudança na ênfase, na lealdade, no afeto e nas convicções, para preencher a lacuna existente entre o homem e seu meio ambiente.
Trata-se menos de remendos no status quo, do que de um rompimento com antigos conceitos, com a camisa-de-força dos currículos e até com o confinamento em salas de aula e prédios escolares.
Educação ecológica exige, antes de mais nada, a reintegração da experiência no ensino, porque a experiência é um ingrediente indispensável ao raciocínio. Uma boa maneira para obter essa reintegração é utilizar o campus universitário como laboratório para o estudo de alimentos, energia, materiais, água e saneamento. A pesquisa do impacto ecológico de determinada instituição transforma questões abstratas complexas em dimensões compreensíveis — em escala que permite a busca de soluções. Isto representa um antídoto para o desespero sentido pelos alunos, quando compreendem os problemas, mas são incapazes de efetuar mudanças. As universidades precisam observar atentamente o potencial econômico da região, para descobrir como o dinheiro pode ser gasto e investido no local, para ajudar a mover o mundo em direção mais sustentável. Por exemplo, alunos de diversas escolas, que pesquisavam a compra de alimentos, ajudaram a trocar fornecedores distantes por outros mais próximos, permitindo reduzir custos, melhorar a qualidade e impulsionar a economia local.
Precisamos ir além. O velho currículo foi elaborado com o objetivo de ampliar ao máximo o domínio do homem sobre a Terra. O novo currículo precisa ser organizado para desenvolver conhecimento ecológico e habilidade prática, essenciais para enquadrar as coisas em um mundo de micróbios, plantas, animais. O modelo ecológico vai cuidadosamente entrosar os objetivos humanos com o mundo natural, para orientar os objetivos humanos.O planejamento ecológico requer capacidade de olhar além das disciplinas, para ver o mundo no contexto mais amplo; requer ampliação do conhecimento ecológico — saber como a natureza trabalha — através de todo o currículo. Significa ensinar aos jovens os fundamentos daquilo que precisam saber para ampliar o horizonte, para criar uma civilização movida a luz solar; que utiliza energia e riquezas com grande eficiência; que preserva o solo, as florestas e a diversidade biológica, que desenvolve empresas locais e regionais sustentáveis; e que repara os danos infligidos à Terra durante toda a era industrial.
Mas, precisamos ir ainda mais longe. Chegou o momento de voltar a unir as disciplinas. Para tanto, sugiro que dediquemos parte do currículo, em todos os níveis, ao estudo de um aspecto ou lugar do nosso meio ambiente — um rio, montanha, vale, lago, solo, pântano, determinado animal, pássaros, o céu, a orla marítima ou até mesmo uma pequena cidade. Um curso sobre o rio local poderia começar com uma viagem rio abaixo, para colocar os alunos frente ao objeto do estudo. Depois poderiam escolher diferentes aspectos do rio para estudar: sua evolução, como foi povoado, a ecologia, os peixes e a vida aquática, os efeitos da poluição, as leis que governam o seu uso, e assim por diante. O curso termina com outra viagem, enquanto os alunos descrevem o que aprenderam.
Rios, montanhas, lagos são reais; disciplinas são abstratas. O que é real estimula todos os sentidos, não só o intelecto. O conhecimento curricular normalmente é isolado da realidade e muitas vezes é difícil relacioná-lo a realidades ecológicas concretas. Os alunos precisam aprender a apreciar, respeitar e, quem sabe, até mesmo amar uma parte específica do mundo, antes de adquirir o poder implícito no conhecimento puramente abstrato. Se o jovem compreende como o mundo funciona em um sistema integrado e por que esse conhecimento é importante para seus objetivos e seu estilo de vida, ele vai saber também como conseguir uma economia sustentável.
Defensores do currículo convencional acreditam que o domínio de uma disciplina, oferecendo conhecimento especializado, é um fim em si. Aconselho revertermos essa prioridade para colocar o conhecimento dentro de um contexto ecológico específico. Desta forma, vamos engajar todos os sentidos dos alunos, não apenas sua inteligência, para que se apaixonem pelo mundo natural. Podemos também ensinar as limitações do conhecimento a respeito de determinado aspecto da natureza — e este é o começo da sabedoria ecológica.
Educação ecológica requer também mudanças no funcionamento e nas prioridades de escolas e universidades, assim como no seu modo de operar. Por exemplo, na pesquisa mencionada, os alunos descobriram maneiras de reduzir custos, melhorar serviços, diminuir o impacto sobre o meio ambiente e ajudar a economia local. O princípio é simples: aquelas instituições que pretendem induzir os jovens a tornarem-se adultos responsáveis devem elas próprias mostrar responsabilidade pelo mundo que os jovens herdarão. Instituições de ensino muitas vezes medem seu desempenho pelo investimento por aluno ou pela porcentagem de docentes com Ph. D.. Do ponto de vista ecológico, temos outro conjunto de indicadores da qualidade:
1. Emissão de dióxido de carbono por aluno;
2. Porcentagem de materiais reciclados;
3. Porcentagem de material reciclado adquirido;
4. Uso de produtos tóxicos;
5. Porcentagem de energia renovável consumida;
6. Porcentagem de dejetos orgânicos transformados em adubo;
7. Quantidade de água usada por aluno;
8. Porcentagem de alimentos servidos na cantina, que foram cultivados organicamente;
9. Carne consumida por aluno.
Pensamos que o ensino é feito em edifícios, mas achamos que a construção e operação desses prédios nada têm a ver com educação. Isto é um erro. O currículo oculto na arquitetura acadêmica constitui uma espécie de pedagogia cristalizada, cheia de preconceitos relacionados ao poder, à maneira como as pessoas aprendem, como se relacionam com o mundo natural e como se relacionam uns com os outros. Existem, porém, oportunidades educacionais: o projeto ecológico abrange o paisagismo, a engenharia solar, a seleção dos materiais de construção, a escolha de materiais de consumo duráveis e recicláveis e a eliminação do lixo e dos dejetos.
Além de reduzir o impacto sobre o meio ambiente, as instituições de ensino poderiam usar suas verbas para ajudar a economia local e regional. A decisão de comprar alimentos, cultivados organicamente, de produtores locais, pode servir de incentivo para que os agricultores mudem para métodos de produção ecologicamente sustentáveis. O mesmo princípio aplica-se a quase todos os produtos e serviços adquiridos. As instituições de ensino são conhecidas e respeitadas.
Todos vão comentar, se uma escola ou universidade comunica que está levando o futuro a sério e, portanto, vai reduzir o impacto sobre o meio ambiente e, ao mesmo tempo, ajudar a economia local e regional.
Por fim, algumas palavras sobre o objetivo da educação ecológica. Na maioria das vezes, ouvimos que o ensino é útil porque aumenta as possibilidades de promoção e de ganhar a vida. Preparamos os jovens para aquilo que os orientadores chamam de “carreira”. Raramente mencionamos aquilo que era chamado de “vocação”. Sob uma perspectiva mais ampla, isto é tolice. Os alunos deveriam ser estimulados, antes de mais nada, a descobrirem sua vocação: aquilo que lhes desperta paixão, que realmente gostariam de fazer. A vocação indica o que queremos fazer de nossa vida. A carreira é um plano friamente elaborado para obter segurança e um pouco de “prazer”. A carreira quase sempre revela-se profundamente insatisfatória, não importando a renda. A vocação não é algo calculado, mas o resultado de uma conversa interior sobre aquilo que importa na vida e a contribuição que queremos dar a este mundo. A vocação começa como intuição. É arriscada. É mais inspirada do que premeditada. A carreira é um teste de QI; a vocação é um teste não somente da inteligência, mas também de sabedoria, caráter, lealdade e força moral. A pessoa sempre pode achar uma carreira dentro de sua vocação. É muito mais difícil encontrar, ao longo da vida, uma vocação na carreira. Quando a pessoa opta pela segurança, a sorte está lançada. Em última análise, a carreira é falta de imaginação e sinal de que achamos o mundo pobre em possibilidades.
Precisamos encorajar os jovens a encontrar em sua vocação um trabalho bom e necessário. O trabalho melhor e mais necessário no mundo atual procura, de mil maneiras, sintonizar os valores, as instituições, as expectativas e o comportamento humano com o respeito à Terra em que vivemos. Esta é hoje a tarefa da educação.
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Fonte: Resurgence nº 160, outubro de 1993.
David Orr é professor titular de pedagogia na Faculdade de Oberlin, Ohio, EUA.
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