sábado, 5 de dezembro de 2009

O Desenvolvimento local e a racionalidade econômica Ladislau Dwbor

O Desenvolvimento local e racionalidade econômica

Ladislau Dowbor
Fevereiro de 2006

O município pode ser gerido racionalmente? A própria prefeitura é uma unidade gestora, e presta contas. Mas uma cidade, com o seu contorno rural, pode ser vista como espaço de processos coerentemente articulados e integrados, visando uma produtividade sistêmica elevada? Há algumas décadas, o problema não aparecia como relevante, pois havia população urbana apenas em algumas capitais, e o grosso da população constituia população rural dispersa. O resultado era que governo era coisa da capital, onde famílias ricas compartilhavam a direção empresarial e a direção política. Hoje o Brasil tem 82% de população urbana, em cerca de 5.600 municípios, que constituem a unidade básica de organização política, econômica, social e cultural. A Constituição de 1988 concedeu autonomia aos municípios, É possível se pensar a racionalidade do conjunto - o país - sem resgatar a coerência interna das unidades básicas, os municípios?

Esta visão constitui um deslocamento de perspectiva. De certa maneira, deixamos de olhar o município como o lugar distante onde os projetos do governo central e estadual ou as iniciativas da grande empresa devem chegar, para considerar o município como bloco básico de construção do conjunto. Uma economia poderia funcionar bem se as suas empresas fossem geridas de forma caótica? Adotando o mesmo raciocínio para a nação, podemos nos perguntar se é viável uma racionalidade nacional sem se promover a racionalidade do conjunto das unidades que a compõem.

A dimensão territorial dos processos econômicos é essencial. Em particular, ao se deslocar boa parte das iniciativas do desenvolvimento para o nível local, aproxima-se a decisão do espaço onde o cidadão pode efetivamente participar, enfrentando em particular a “marginalidade urbana” que se tornou a forma dominante de manifestação da nossa tragédia social.

John Friedmann coloca com clareza a mudança de foco em termos tanto de objetivos como de mecanismo correspondente de regulação que a territorialização exige: “O modêlo dominante de crescimento econômico expressa o anseio do capital global por uma economia ‘sem fronteiras’ na qual não haja nem interesses organizados nem poderes intermediando os centros de decisão corporativa por um lado, e trabalhadores e consumidores individuais por outro. Na ideologia do capital, este tipo de economia se chama “livre”. Reduz os interesses territoriais a um mínimo de ‘lei e ordem’, como assegurar o respeito aos contratos e a manutenção da ordem nas ruas. Esta visão traz também a expectativa que os Estados territoriais lidarão da melhor forma que puderem com as consequências sociais do investimento privado e das decisões produtivas, tais como o esgotamento de recursos, desemprego, pauperização, poluição, deflorestamento e outros problemas das ‘áreas comuns’ (commons). A territorialidade chama a nossa atenção para o ambiente físico: a base de recursos da economia, o valor estético de paisagens tradicionais, e a qualidade de vida no ambiente construido onde têm lugar todas as nossas ações e que afetam a nossa vida, direta e indiretamente”.

Friedmann coloca com força a compreensão de que além da regulação empresarial e da regulação governamental, existe um processo de regulação crescente na base da sociedade, a partir do local onde as pessoas vivem, na linha do que chamou de “participatory governance”. “Um desenvolvimento alternativo é centrado nas pessoas e no seu ambiente, mais do que na produção e nos lucros. Da mesma forma que o paradigma dominante aborda a questão do crescimento econômico na pespectiva da empresa, que é o fundamento da economia neoclássica, um desenvolvimento alternativo, baseado como deve ser no espaço de vida da sociedade civil, aborda a questão da melhoria das condições de vida e das vivências na perspectiva do domicílio”.

Estes objetivos nos levam ao conceito de articulação da regulação local com o poder do Estado. “Apesar de apontar para uma política localmente enraizada, um desenvolvimento alternativo requer um Estado forte para implementar as suas políticas. Um Estado forte, no entanto, não precisa ser pesado no topo, com uma burocracia arrogante e enrijecedora. Será mais bem um Estado ágil e que responde e presta conta aos seus cidadãos. É um Estado que se apoia amplamente numa democracia inclusiva na qual os poderes para administrar os problemas serão idealmente manejados localmente, restituidos às unidades locais de governança e ao próprio povo, organizado nas suas próprias comunidades.”

Com isto a participação comunitária, o seu envolvimento direto nos assuntos da gestão racional dos recursos localmente disponíveis, aparece como um mecanismo regulador complementar, acrescentando-se ao mercado que constitui o mecanismo regulador dominante do setor empresarial, e ao direito público administrativo que rege a ação dos órgãos do Estado.

Os trabalhos de Robert Putnam trouxeram fortes avanços neste plano, pois mostram a que ponto os mecanismos participativos não só complementam a regulação do Estado e do mercado, mas constituem uma condição importante da eficiência destes mecanismos. O capital social aparece como fator importante da qualidade da governança de um território determinado. O estudo sobre a Itália já se tornou um clássico, mas é sobretudo na análise dos Estados Unidos que Putnam mostra a importância da capacidade de organização da sociedade em torno aos seus interesses - a dimensão participativa da regulação econômica e política - como um elemento chave da racionalidade do desenvolvimento em geral.

Do ponto de vista da teoria econômica, o processo em sí é interessante, pois fomos gradualmente passando da visão do capital físico acumulado que ainda ocupa o papel central em O Capital de Marx, para uma compreensão do papel maior do capital financeiro, evoluindo para a recente tomada de consciência da importância do capital natural que estamos esgotando no planeta, a compreensão mais ampla do capital humano que se tornou crucial com os avanços tecnológicos, e do capital social que representa de maneira mais ampla a maturidade e coesão do tecido social que sustenta o conjunto. A progressão ao mesmo tempo reflete a ampliação do conceito de economia, e a articulação da ciência econômica com as outras ciência sociais.

A visão tradicional seria de que os municípios constituem a base de uma pirâmide, e esta “verticalidade” teórica está profundamente ancorada nas nossas convicções. Na realidade, as novas orientações apontam para formas inter-municipais de gestão (por exemplo consórcios intermunicipais de saúde, comités de bacias hidrográficas, conselhos regionais de desenvolvimento, redes de cidades-irmãs), permitindo articulações horizontais complexas. O resultado é que as próprias comunidades deixam ser ser “pequenas demais” para serem viáveis, pois se articulam de maneira criativa e diferenciada nas diversas territorialidades. O ponto chave aqui, é a iniciativa, o sentimento de apropriação das políticas, que é devolvido ao espaço local, onde as pessoas podem participar diretamente, pois conhecem a realidade e a escala de decisão coincide com o seu horizonte de conhecimento.

Isto muda profundamente o que poderíamos chamar de cultura do desenvolvimento. Uma comunidade local deixa de ser um receptor passivo de decisões longinquas, seja do Estado que vai “doar” um centro de saúde, ou de uma empresa chegará e poderá “dar” empregos. O desenvolvimento deixa de ser uma coisa que se espera pacientemente, torna-se uma coisa que se faz, inclusive no aspecto da organização dos aportes externos.

Uma dimensão importante deste processo é a mudança do paradigma da comunicação. “O espaço está morto” comenta um articulista americano, ao ver a conectividade planetária instantânea dos que trabalham com aplicações financeiras. É um exagero evidente, as pessoas ainda moram numa cidade concreta, olham o pôr do sol na beira de um rio concreto. Mas o fato da informação estar instantaneamente disponível em qualquer parte do planeta muda drasticamente o nosso universo de reflexão. Um município como Pintadas, no interior da Bahia, pequeno e a 60 quilómetros do asfalto, articulou os atores sociais locais e gerou um processo de desenvolvimento dinâmico que ninguém esperaria. Quando o governo do Estado, para puní-lo da sua autonomia, fechou o único banco local, a comunidade lançou um banco cooperativo, com 10 mil reais, hoje com 4 milhões. Na realidade, o que se esperaria na visão conservadora é que o município “esperasse” o desenvolvimento chegar, por magnanimidade empresarial ou política. Eles acharam que o desenvolvimento não se espera, se faz.

Há um conjunto de estudos que delimitam gradualmente esta área da economia do desenvolvimento local. Os trabalhos de Manuel Castells sobre a sociedade em rede apontam para a facilidade maior desta regulação local aproveitando a conectividade horizontal do conjunto de atores sociais que participam do processo de desenvolvimento. Os estudos de Pierre Lévy sobre a inteligência coletiva permitem vislumbrar uma sinergia de esforços sociais através da convergência das informações e dos conhecimentos de uma comunidade territorial articulada com comunidades virtuais. Os trabalhos de Ignacy Sachs, partindo da preocupação da sustentabilidade dos processo de desenvolvimento, evidencia a importância dos recursos subutilizados - herança das discussões sobre planejamento econômico na Polônia socialista, tempos de Lange e Kalecki - que existem em cada localidade. Carlo Trigiglia mostra como inciativas socialmente organizadas aumentam a produtividade sistêmica, ao gerar economias externas à empresa mas internas ao território. São alguns exemplos de uma ampla literatura que desenha novos rumos, de uma economia que se organiza pela base, e que portanto vai além do econômico.

O resultado, evidentemente, é a nossa prosaica qualidade de vida, numa visão sustentável. A imagem da qualidade de vida nos remete a um bairro agradável, com razoável prosperidade, saúde, riqueza cultural, equidade e segurança: grande parte destas coisas se organiza localmente, e ter uma economia gerida por resultados implica que estes resultados sejam em grande parte determinados pelas comunidades criativas e diferenciadas que temos, e não necessariamente reproduzindo de cima uma macdonaldização generalizada. Assim, ao associarmos desenvolvimento local com o conceito de cultura do desenvolvimento estamos apontando para uma reconciliação entre a democracia política e a democracia econômica. O possível outro mundo vai exigir também uma ciência econômica mais aberta, que incorpore estas dimensões.

Na nossa visão, resgatar o potencial econômico da gestão local não envolve apenas eficiência de gestão empresarial e pública, envolve também colocar uma parte maior da economia na escala onde as pessoas têm sobre ela um controle maior, resgatando assim o controle sobre as suas próprias vidas. Uma economia que passa a pertencer ao cidadão abre mais espaço para uma política que pertença ao cidadão.


Ladislau Dowbor, economista, professor titular da PUC-SP, disponibiliza os seus principais trabalhos no site http://dowbor.org

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