quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sísifo e o sentido da vida - Desidério Murcho

Fonte:

http://criticanarede.com/pensaroutravez.htm
Crítica: revista de filosofia
Site Meter
Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade
5 de Março de 2006 · Ética

Sísifo e o sentido da vida
Desidério Murcho
King's College London

O mais desejável é viver uma vida com sentido e não uma vida que parece subjectivamente ter sentido.
Susan Wolf

Albert Camus inicia o seu famoso livro sobre o mito de Sísifo declarando que só há um problema filosófico verdadeiramente importante: o suicídio. A ideia é que é urgente descobrir se a vida faz ou não sentido — pois se não fizer, resta-nos o suicídio. Muitas pessoas que desconhecem a filosofia pensam que descobrir o sentido da vida é a tarefa fundamental, senão a única, da filosofia. Contudo, isto é um exagero dramático, semelhante ao erro de pensar que a filosofia tem por objecto de estudo unicamente "os valores". A filosofia tem uma enorme amplitude e qualquer visão redutora deste género falseia a sua natureza. Quem está a par da discussão filosófica contemporânea, e dos grandes clássicos da filosofia, sabe que o problema do sentido da vida não tem sido uma preocupação central dos filósofos. Contudo, nos últimos anos este problema tem recebido cada vez mais atenção por parte de filósofos tão importantes como Thomas Nagel, Robert Nozick, David Wiggins e Peter Singer, entre muitos outros.

Neste capítulo, defende-se uma perspectiva objectivista, naturalista e optimista do sentido da vida. Objectivista, porque se defende que o sentido da vida não é independente da realidade. Naturalista porque se defende uma posição não religiosa. E optimista porque se defende que é possível viver uma vida com sentido.

Ao objectivismo quanto ao sentido opõe-se o subjectivismo: a ideia de que o sentido da vida depende exclusivamente da satisfação que a pessoa sente. Assim, deste ponto de vista, uma pessoa permanentemente drogada, por exemplo, tem uma vida com sentido desde que se sinta feliz. O subjectivismo foi muito popular na fase positivista da filosofia contemporânea — a mesma fase que viu os filósofos a defender o subjectivismo em ética — mas foi hoje quase totalmente abandonado.

Uma das motivações para o subjectivismo optimista é a ideia de que, de um ponto de vista mais alargado, a nossa vida não faz realmente sentido. Assim, os optimistas quanto ao sentido subjectivo da vida são geralmente pessimistas quanto ao sentido objectivo (mas podem igualmente defender que o sentido objectivo não é sequer inteligível). Contudo, na história da filosofia também encontramos pessimistas quanto ao sentido subjectivo da vida, como Schopenhauer:

Que a vida humana tem de ser um tipo qualquer de erro é suficiente demonstrar pela simples observação seguinte: o homem é um composto de necessidades que são difíceis de satisfazer; a sua satisfação nada alcança a não ser uma condição dolorosa na qual o homem sucumbe ao tédio; e o tédio é uma demonstração directa de que a existência não tem em si qualquer valor, pois o tédio não é senão a sensação de que a existência é vazia. Pois se a vida, que a nossa essência e existência deseja, tivesse em si um valor positivo e um conteúdo real, o tédio seria coisa que não existiria: a mera existência seria suficiente para nos realizar e satisfazer. Tal como as coisas são, não temos qualquer prazer na existência excepto quando lutamos por algo — caso em que a distância e as dificuldades fazem o nosso objectivo parecer algo que nos satisfaria (uma ilusão que desaparece quando o alcançamos) — ou quando nos entregamos à actividade puramente intelectual, caso em que estamos na realidade a sair da vida como que para a olharmos a partir do exterior, como espectadores numa peça de teatro. Mesmo o próprio prazer sensual consiste numa luta contínua e cessa mal o seu objectivo foi atingido. Sempre que não estamos envolvidos numa ou noutra destas coisas, mas antes damos atenção à própria existência somos assaltados pela sua ausência de valor e fatuidade e esta é a sensação a que se chama "tédio". (Arthur Schopenhauer, "Da Vacuidade da Existência", p. 69)

Conceptualmente, é possível defender uma perspectiva religiosa e simultaneamente pessimista ou subjectiva quanto ao sentido da vida, mas não é muito comum: uma das motivações da visão religiosa do mundo é a ideia de que só o sobrenatural poderá dar objectivamente sentido à vida.

Há um certo antropocentrismo na formulação do problema do sentido da vida, pois subentende-se que se trata da vida humana — ou pelo menos, da vida de seres inteligentes e sofisticados como nós. Por vezes, usa-se igualmente a expressão "sentido da existência", conectando assim o problema do sentido da vida com o problema de saber por que razão há algo e não o nada. A questão de saber por que razão existe o universo relaciona-se com o problema do sentido da vida humana porque se encara muitas vezes este último como uma questão de saber que lugar é ocupado pelos seres humanos na ordem geral das coisas, por assim dizer. Contudo, como veremos, é falso que o sentido da vida dependa exclusivamente do lugar que ocupamos na ordem geral das coisas.

É evidente que o problema do sentido da vida não é linguístico — o termo "sentido" não corre nesta expressão na acepção em que ocorre quando perguntamos qual é o sentido ou significado de uma dada palavra. O problema do sentido da vida é saber se a vida tem finalidade e valor.

Uma actividade não tem sentido se não tiver finalidade. Se alguém caminha sem qualquer razão, essa actividade não tem sentido. Evidentemente, é raro que aconteça tal coisa. Geralmente, as pessoas caminham pelo prazer de caminhar, para ir ao cinema, para ir às compras, para visitar um amigo, para conhecer a cidade ou por outra razão qualquer. Mas têm em geral uma razão ou finalidade.

Podemos distinguir dois tipos de finalidades: as instrumentais e as últimas. Uma finalidade instrumental é apenas um meio para outra finalidade, como quando alguém caminha para ir ao cinema. Chamar "finalidade" ao que pode ser meramente instrumental parece um abuso de linguagem. Afinal, se a única razão pela qual caminho é para ir ao cinema, caminhar não é uma finalidade, de todo em todo, mas apenas um meio. Contudo, as coisas são mais complexas. Uma pessoa pode caminhar para ir ao cinema e ao mesmo tempo caminhar pelo gosto de caminhar — ou, mais subtil, mas muito comum, o gosto que a pessoa tem ao caminhar resulta de saber que caminhar é um meio para ir ao cinema.

Em qualquer caso, podemos distinguir as finalidades instrumentais, sejam ou não meramente instrumentais, das finalidades últimas. Uma finalidade última, ao contrário da instrumental, é uma finalidade cuja razão de ser se esgota em si mesma. Por exemplo, uma pessoa pode ir ao cinema exclusivamente porque gosta de cinema.

Ter uma ou várias finalidades é uma condição necessária para o sentido, mas não suficiente. O mito de Sísifo ilustra bem este aspecto. Condenado pelos deuses, Sísifo tem de empurrar uma monstruosa pedra até ao cimo de um monte. Lá chegado, a pedra escapa-lhe e rola outra vez pela encosta abaixo, o que o obriga a voltar a empurrá-la, repetindo esta ingrata tarefa para todo o sempre. A existência de Sísifo é geralmente entendida como absurda ou sem sentido. Contudo, a sua existência tem uma finalidade: carregar a monstruosa pedra até ao cimo do monte. Pode-se argumentar que a existência de Sísifo não tem sentido porque nunca consegue atingir a sua finalidade; e é verdade que se o sentido da vida depender exclusivamente de uma dada finalidade que não se consegue alcançar, então a vida não terá sentido. Mas o caso de Sísifo parece diferente, pois é defensável que se conseguisse alcançar a sua finalidade, a sua existência seria igualmente destituída de sentido. Isto porque a própria finalidade a que Sísifo foi condenado é destituída de valor. O valor é uma condição necessária para o sentido — mas não é suficiente.

Não é suficiente porque executar mecanicamente e sem entrega actividades que têm finalidade e valor não dá sentido a uma vida. Por exemplo, vacinar dezenas de crianças por dia contra doenças mortais é uma actividade com uma finalidade que tem valor. Contudo, desempenhar tal actividade mecanicamente e sem entrega anula a possibilidade de sentido porque quebra a conexão apropriada entre o agente e a finalidade e valor da actividade. O sentido emerge quando há uma entrega activa a finalidades exequíveis com valor.

Pode-se defender que a exequibilidade das nossas finalidades não é uma condição necessária para o sentido. A forma mais plausível de o fazer é a seguinte: imagine-se alguém que dedica a vida a descobrir a cura para o cancro, mas morre sem o conseguir; mesmo que todos os outros aspectos da sua vida tenham sido destituídos de sentido, todas as actividades relacionadas com esta nobre finalidade são actividades com sentido. Esta ideia não é convincente, pois a ser verdadeira teríamos de dizer que a vida de alguém que não descobriu a cura do cancro apesar de o tentar e a vida de alguém que a descobriu têm o mesmo sentido. Por outro lado, é óbvio que uma vida dedicada a uma finalidade absolutamente inalcançável é absurda, por mais valor que tal finalidade possa ter: por exemplo, uma vida dedicada a tentar alcançar a omnisciência é absurda porque não é possível alcançar tal coisa. O que dá um ar de plausibilidade à ideia de que a exequibilidade das nossas finalidades não é necessária para o sentido são três pensamentos relacionados entre si. O primeiro é que uma actividade que tem por finalidade algo com valor tem mais valor do que uma actividade que tem por finalidade algo sem valor, ainda que nenhuma das actividades seja alcançada. Assim, ainda que quem procura descobrir a cura para o cancro não o consiga, a sua vida tem mais valor do que quem procura descobrir quantos grãos de areia há na Lua. O segundo pensamento é que é sempre melhor escolher finalidades com valor, ainda que não tenhamos garantias de as alcançar. Quem declara que não vale a pena darmo-nos ao incómodo de tentar descobrir a cura para o cancro porque não se pode ter a certeza de o conseguir labora no erro de confundir a falta de garantia no resultado com a garantia de que o resultado não é alcançável. O terceiro pensamento é que mesmo quando não se conseguem alcançar finalidades de valor, há sempre consequências de valor que resultam da própria tentativa: talvez a cura para todos os tipos de cancro não tenha sido alcançada, mas talvez se tenha conseguido chegar mais perto desse resultado, ou talvez se tenha descoberto outras curas importantes. Mas estes três pensamentos não implicam que uma vida dedicada a finalidades inalcançáveis (realmente inalcançáveis e não apenas difíceis de alcançar ou que efectivamente não se alcançaram por razões contingentes) tem sentido.

Disputar a ideia de que o valor seja uma condição necessária do sentido não nos leva muito longe, dado que uma vida dedicada a coleccionar selos vermelhos e a contar os átomos da Lua é o exemplo típico de uma vida destituída de sentido. Pode-se defender que todo o valor é subjectivo e que desde que a pessoa dê valor a tais finalidades, a sua vida terá sentido. Mas isto é uma confusão, pois o que se está a pôr em causa não é a ideia de que uma vida dedicada a actividades sem valor não tem sentido, mas antes a ideia de que coleccionar selos vermelhos não tem valor. Quando se tem uma perspectiva subjectivista do valor, seja o que for que alguém valoriza tem valor para ela e nada mais há a dizer. Esta perspectiva será discutida mais tarde. Para já, é suficiente notar que esta perspectiva aceita a ideia de que o valor é uma condição necessária do sentido; apenas acrescenta que o valor é seja o que for que é valorizado por uma pessoa.

Dado que parece haver imensas finalidades exequíveis com valor às quais nos podemos entregar, o problema do sentido da vida parece receber uma resposta optimista muito simples: se nos entregarmos activamente a finalidades exequíveis com valor, a nossa vida terá sentido. Esta resposta está fundamentalmente correcta, mas enfrenta várias dificuldades. Esclarecer e responder a essas dificuldades é o objectivo do resto deste capítulo.

Há uma tendência para pensar que descobrir o sentido da vida é descobrir uma finalidade única para toda a vida. Que há várias finalidades, últimas e instrumentais, que guiam as actividades da nossa vida, é evidente. Mas é falacioso inferir daí que há uma só finalidade. Do facto de todas as pessoas terem uma mãe não se pode inferir que há alguém que é a mãe de todas as pessoas. Assim, não se pode inferir a existência de uma finalidade única com base na existência de finalidades para as diversas actividades da vida. Mas daqui também não se segue que não há uma finalidade única. Provar que não se pode chegar a B partindo de A não prova que não se pode chegar a B. Se for possível reduzir todas as finalidades das várias actividades da vida a uma dada finalidade última, então pode-se dizer, com um certo abuso de linguagem, que essa é a finalidade única da vida. Assim, os hedonistas, por exemplo, defendem que a finalidade última de todas as actividades é o prazer — seja o prazer intelectual, emocional ou outro. Neste caso, pode-se dizer que a finalidade única é o prazer.

As actividades que desempenhamos ao longo da vida são encadeamentos complexos de finalidades últimas e instrumentais, muitas vezes misturadas de forma subtil. Assim, uma pessoa levanta-se cedo com alguma contrariedade, mas depois gosta de sentir o ar lavado da manhã enquanto se dirige para o seu emprego, talvez. Levantou-se e caminha para atingir uma finalidade instrumental: ir para o emprego. Vai para o emprego para atingir outra finalidade instrumental: ter dinheiro para ter uma vida confortável. Ter uma vida confortável é uma finalidade última, mas as outras finalidades poderão ser parcialmente últimas, no sentido em que a pessoa pode sentir-se muito realizada no seu emprego, e poderia até continuar empregada mesmo que lhe saísse a lotaria. Num certo sentido, podemos dizer que há uma finalidade na vida desta pessoa: podemos defender que a finalidade última de todas as suas actividades é o prazer, por exemplo, ou o bem-estar, ou a felicidade. Efectivamente, as diferentes escolas gregas de filosofia defendiam implicitamente diferentes perspectivas sobre o tipo de finalidade última e única que dá sentido à vida ao defenderem diferentes perspectivas sobre o que dá a felicidade: para Platão e Aristóteles a felicidade consiste em ser virtuoso; para os epicuristas, é a paz de espírito que resulta de vencermos os nossos medos irracionais; os cépticos defendiam que a felicidade só podia alcançar-se se suspendermos os nossos juízos sobre a realidade; os estóicos, quando aceitamos a realidade tal como é.

Contudo, a ideia hoje em dia mais popular é que um deus — ou deuses — nos trouxe à existência com uma finalidade, e que esse facto é o elemento fundamental para compreender o sentido da vida. Contudo, é uma ilusão pensar que basta tal coisa para dar sentido à vida. Em primeiro lugar, para que uma finalidade única possa dar sentido à vida, tem de ter uma conexão forte com as diferentes actividades dessa vida. Como nem todas as finalidades únicas podem ter tal tipo de conexão, segue-se que nem todas as finalidades únicas podem dar sentido às nossas vidas. Por exemplo, se a finalidade única de alguém for conduzir um exército numa batalha de importância cósmica com o vizinho das traseiras, só as suas actividades guerreiras e estratégicas de preparação para tal batalha fazem sentido. Se a maior parte da vida dessa pessoa for dedicada, como é natural pensar, a muitas outras actividades — ler poesia e conversar com os amigos, por exemplo — a maior parte da vida dessa pessoa não tem qualquer sentido.

Em segundo lugar, nenhuma finalidade que alguém me possa impor anula as finalidades que dou a mim mesmo. Ainda que os meus pais me tenham concebido com a finalidade de ter um médico em casa, e ainda que me obriguem ditatorialmente a ser médico, essa finalidade não se concretiza a menos que eu a aceite: pois se só contrariado for médico, não se pode dizer que ser médico seja uma finalidade da minha vida. Assim, para que uma finalidade única de alguém possa dar sentido à sua vida é necessário que essa pessoa reconheça essa finalidade e a faça sua.

Em terceiro lugar, ainda que uma finalidade única seja tal que oriente todas as actividades de uma vida, e ainda que tal finalidade seja activamente aceite, essa vida pode ser totalmente destituída de sentido. Pois imagine-se que descobrimos que fomos criados por deuses para se divertirem à nossa custa, no seu programa televisivo predilecto: Cosmic Big Brother. E imagine-se que aceitávamos com entusiasmo desempenhar o nosso papel. A nossa vida seria activamente dedicada a uma finalidade única — distrair, com as nossas guerras e dramas, conquistas e descobertas, os deuses entediados — mas seria absurda porque essa finalidade é destituída de valor.

Finalmente, é defensável que qualquer finalidade única que nos tenha sido atribuída é degradante porque nos trata como objectos ou artefactos e não como pessoas:

É degradante que um homem seja encarado como algo que serve meramente um propósito. Se numa festa eu perguntar a um empregado de mesa "Qual é o seu propósito?", estarei a insultá-lo. Poderia igualmente perguntar "Para que serve você?" Tais perguntas reduzem-no ao nível de uma engenhoca, um animal doméstico, ou talvez um escravo. Pois subentende-se que nós lhe atribuímos as tarefas, fins e objectivos que ele terá de procurar; que os seus desejos e aspirações e propósitos pouca ou nenhuma importância têm. Estamos a tratá-lo, para usar a expressão de Kant, unicamente como um meio para os nossos fins e não como um fim em si. (Kurt Baier, "The Meaning of Life", p. 120)

Assim, em nada nos ajuda a ideia de uma finalidade única. A questão central é a mesma: encontrar uma finalidade — ou várias — com valor. A ilusão é pensar que se uma finalidade única for dada por um deus, então, por definição, tal finalidade terá valor. Compreende-se que é uma ilusão quando se pergunta se uma dada finalidade única tem valor porque foi escolhida por um deus, ou se foi escolhida por um deus porque tem valor. A primeira alternativa é inaceitável porque torna o valor arbitrário: a ser verdadeira, teria valor fosse o que fosse que um dado deus decidisse. Mas nenhum deus pode dar sentido à existência de Sísifo, por mais que determine que carregar pedras pesadas por nenhuma razão encosta acima tem valor. Resta-nos, pois, a segunda alternativa: Deus escolheu uma dada finalidade porque essa finalidade tem valor. Ora, isto significa que a nossa tarefa, exista ou não um deus, não se altera: em qualquer caso, temos de procurar uma finalidade — ou mais — com valor. Neste contexto, a palavra "deus" indica apenas um lugar vazio a ser preenchido mais tarde; indica apenas a esperança de que existam realmente uma ou mais finalidades com valor.

No auge da sua carreira, Tolstoi começou a sentir um vazio na sua vida. Apesar de se dedicar activamente a várias finalidades com valor — escrever romances, criar uma família feliz e cultivar amizades com pessoas interessantes — não podia deixar de sentir que, de algum modo, tudo isso era vão:

Mais cedo ou mais tarde os que eu amava e eu próprio seríamos vítimas da doença e da morte (como já antes acontecera), e nada restaria senão podridão e vermes. Tudo aquilo de que me ocupava, seja lá o que for, seria mais cedo ou mais tarde esquecido, e eu próprio deixaria de existir. (Leão Tolstoi, A Minha Confissão, p. 12-13)

Como Tolstoi, muitas pessoas não conseguem evitar a sensação de que a sua vida é algo vazia — independentemente do bem-estar e riqueza que possam ter atingido. Algumas pessoas têm esta sensação no auge da sua carreira; noutras, ocorre quando morre um ente querido e dão consigo a perguntar-se que sentido terá tudo isto; noutras ainda, ocorre quando os seus negócios ou projectos falham estrepitosamente. Alguns adolescentes têm a mesmíssima sensação por motivos opostos: porque ainda não fizeram coisa alguma, porque estão indecisos e não sabem bem que tipo de vida querem ter.

Em nenhum destes casos as pessoas pensam que é indiferente ter uma vida confortável ou morrer de fome e sofrimento, amar e ser amado ou ser desprezado e odiado por todos. O que se pergunta é se tais actividades que nos fazem felizes dão sentido à nossa vida. O que está em causa torna-se mais claro se imaginarmos, como Richard Taylor, que os deuses não se limitaram a condenar Sísifo a empurrar repetidamente uma monstruosa pedra monte acima por toda a eternidade. Num gesto que poderia parecer clemente, os deuses teceram um encantamento e Sísifo sente a maior felicidade em empurrar a sua pedra. Sísifo está, pois, feliz. Mas será que por causa disso a sua existência faz sentido?

A questão é saber se a felicidade (ou, pelo menos, a satisfação e o prazer) é uma condição suficiente para dar sentido à vida. O argumento de Tolstoi é muito intuitivo e procura estabelecer uma resposta negativa — a felicidade não é suficiente para dar sentido à vida porque tudo acabará por perecer. Contudo, este argumento está errado — apesar de ser verdade que a felicidade, num certo sentido, não é uma condição suficiente para o sentido. Antes de analisarmos o argumento de Tolstoi é conveniente esclarecer que se pode ter duas concepções diferentes de felicidade. Numa concepção subjectivista, a felicidade é meramente a satisfação do agente, independentemente da realidade. Assim, uma pessoa pode ser feliz, neste sentido, ainda que esteja a viver uma completa ilusão — desde que essa ilusão seja agradável para ela. Numa concepção objectivista, uma pessoa pode pensar que é feliz, nomeadamente se estiver a viver uma ilusão muito agradável, mas estar enganada e ser de facto infeliz. É neste sentido objectivista que Aristóteles entendia a eudemonia. Se entendermos a felicidade no sentido objectivista, então a felicidade é uma condição suficiente para o sentido. Mas se a entendermos como a mera satisfação subjectiva, a felicidade não é uma condição suficiente para o sentido, ainda que possa ser necessária. Evidentemente, mesmo que se aceite a noção objectivista de felicidade, não se segue que alguém, ou o estado, tem o direito de impor a outras pessoas a verdadeira felicidade, do mesmo modo que do facto de ser realmente verdade que a Terra se move não dá ao estado ou a outra pessoa qualquer o direito de torturar e matar para convencer as pessoas de que a Terra se move. E, historicamente, são em geral os defensores de doutrinas que não resistem à discussão objectiva e racional que têm tendência para matar e torturar para impor as suas crenças — precisamente porque compensam com a força bruta a falta de argumentação sólida, baseada na verdade.

A formulação mais plausível do argumento de Tolstoi baseia-se na ideia de que se a vida não for eterna, não faz sentido. Mas se uma vida não tiver sentido, não o ganha só porque se prolonga indefinidamente: a existência de Sísifo não ganha sentido apesar de se prolongar para todo o sempre. E se uma vida tem sentido, não o perde só por ser finita: pensar isso resulta de uma confusão com o raciocínio prudencial.

Pode-se defender que o teste do tempo, por assim dizer, é uma forma apropriada de determinar se um dado valor é real ou ilusório. O que está em causa é a noção de que nem tudo o que no curto prazo dá prazer ou felicidade tem verdadeiramente valor, pois pode revelar-se causa de sofrimento e infelicidade no futuro. Assim, a aparente felicidade de hoje pode revelar toda a sua ilusão se amanhã provocar sofrimento: a entrega a uma vida boémia, por exemplo, pode trazer pobreza e solidão no futuro porque não se acautelou uma velhice confortável nem se consolidaram amizades genuínas.

O raciocínio prudencial é um bom teste do valor autêntico. Contudo, é um erro alargá-lo e declarar que toda a felicidade é ilusória e todo o sentido fantasia porque somos mortais. Pois há uma diferença fundamental nos dois casos. Num caso, o sofrimento de amanhã resulta da felicidade irreflectida de hoje; no outro, a morte e a cessação de toda a felicidade não resulta da felicidade de toda uma vida. Esta diferença é fundamental porque só a conexão entre a felicidade irreflectida de hoje e o sofrimento de amanhã permite afirmar que a felicidade irreflectida foi imprudente e responsável pela sua própria anulação. Quando não se dá essa conexão, tudo o que se pode dizer de uma vida com valor que chegou ao fim é que chegou ao fim; não se pode dizer que, porque chegou ao fim, anulou magicamente o valor alcançado.

Pode-se insistir que a morte é incompatível com o sentido da vida porque nos impede de alcançar os nossos objectivos: tal como Sísifo, nunca conseguimos completar a tarefa que temos em mãos. Ainda que consigamos alcançar várias finalidades instrumentais, a grande finalidade última — a vida eterna de felicidade — não pode ser alcançada se formos mortais. Este argumento é muito fraco porque pressupõe o que devia explicar: não explica por que razão só poderemos ter uma vida com sentido se a nossa finalidade última for uma vida eterna de felicidade. Pelo contrário, há muitas finalidades com valor que podemos alcançar e que não pressupõem uma vida eterna; que tais bens acabem por perecer também não lhes retira o valor que tiveram.

Acresce que é muito difícil conceber coerentemente uma vida eterna com sentido. As religiões que defendem esta perspectiva são parcas na explicação do que seria tal coisa. Pode-se pensar que no paraíso teremos uma existência eterna sem sofrimento e plena de felicidade. Mas isto são meras palavras sem grande significado: dado o que sabemos sobre nós mesmos, não se compreende como poderia tal existência ter algum sentido. Não poderíamos dedicar-nos durante sessenta anos à música, por exemplo, e depois outros tantos à ciência, e assim por diante, pois numa existência eterna teríamos de voltar às mesmas actividades, num ciclo infinito. Ora, se nos entregarmos à mesma actividade para todo o sempre, ainda que intermitentemente, o tédio é o resultado inevitável. O tédio aqui em causa não é uma mera reacção psicológica à repetição das mesmas actividades para todo o sempre; sem dúvida que tal reacção psicológica existe, mas o que interessa é que é intrinsecamente destituído de sentido repetir as mesmas actividades para todo o sempre, a menos que tais actividades tenham valor. Assim, o que há de crucial no sentido é o valor, e não a sua continuação. Mas mesmo que tais actividades tenham valor, a inevitável reacção psicológica de tédio impede o sentido porque a entrega activa a actividades de valor é uma condição necessária do sentido.

Poderá argumentar-se que na eternidade nos esquecemos do facto de nos termos já dedicado um número infinito de vezes a uma dada finalidade; mas isto é equivalente a ser mortal, pois é como defender que já vivemos um número infinito de existências de que não nos lembramos, e que a existência actual não será recordada por um "eu" do futuro distante. Viver um milhão de anos unicamente com memória dos últimos duzentos é equivalente a viver apenas duzentos anos. Mas tem a agravante de ser uma existência efectivamente absurda: como um Sísifo condenado para toda a eternidade a reconstruir o mesmo templo, destruído regularmente sem o seu conhecimento, e que Sísifo não recorda ter já reconstruído um número infinito de vezes.

Um argumento diferente é que a existência eterna é por natureza radicalmente diferente desta, pelo que não podemos aplicar as categorias que aplicamos a esta existência: pelos padrões da nossa existência actual é inconcebível a felicidade eterna, mas isso é apenas porque a nossa existência actual é muitíssimo limitada. No paraíso, não se trata de nos entregarmos a diversas finalidades, mas de nos dedicarmos apenas à pura contemplação e à felicidade extática. Este argumento é insatisfatório. Se sou incapaz de conceber a minha própria existência eterna, noutro plano das coisas, porque nesse plano tudo é completamente diferente, então quando me encontrar nesse plano não terei qualquer conexão com o que sou hoje e portanto é precisamente a mesma coisa do que ter cessado a minha existência anterior. Se a vida mortal não tem sentido por ser mortal, continuará sem sentido se for imortal mas nenhuma conexão existir entre o eu paradisíaco e extático e o eu actual. Se uma dada existência é destituída de sentido, mudar de "plano de existência" não pode dar-lhe sentido; e se uma dada existência tem sentido, não o perde só porque não se muda para outro "plano de existência".

Assim, se a vida tem sentido, não o perde só porque somos mortais. E se não tem sentido, não o ganha se formos imortais. Evidentemente, uma vida poderá ser mais ou menos longa, o que permitirá realizar mais ou menos finalidades com valor, mas daqui não se segue que só uma vida imortal tem sentido. A morte, só por si, não retira o sentido à vida. Resta saber se a morte é um mal. Epicuro apresentou um argumento contra esta ideia:

A morte, o mais aterrorizador dos males, nada é para nós, dado que enquanto existimos a morte não está connosco; mas, quando a morte chega, nós não existimos. A morte não diz respeito portanto nem aos vivos nem aos mortos, pois para os primeiros nada é, e os segundos já nada são. (Epicuro, Carta a Meneceu, p. 125)

A morte não é um mal, segundo Epicuro, porque só existe quando nós já não existimos. A ideia é que o sofrimento associado a alguns processos da morte é sem dúvida um mal, mas a morte em si é indiferente. Pode-se acrescentar que, se acaso a morte for apenas uma passagem para uma existência melhor, nada há que recear; e que se for apenas o fim da existência, nada há que recear também. A morte pode parecer-nos um mal porque nos imaginamos mortos — vemos o nosso próprio funeral, digamos assim, na nossa imaginação. Mas isto é um erro porque estar morto não é como estar congelado num corpo, sem nos podermos mexer, nem é como pairar no nosso próprio funeral como pó levantado pelo vento: estar morto é não estar lá, e se não estamos lá, nada podemos sofrer.

O argumento de Epicuro não é convincente porque se baseia na ideia de que tudo o que conta é o que conta do nosso próprio ponto de vista. Se aceitássemos este argumento, teríamos de aceitar que, desde que nunca o saibamos, e desde que não existam consequências práticas, é irrelevante ser desprezado por quem pensamos que nos preza e por quem nós prezamos. Pelo contrário, a realidade dos sentimentos e pensamentos de quem prezamos é para nós importante, ainda que isso não tenha consequências práticas. Analogamente, não se pode argumentar que a morte não é um mal porque do nosso próprio ponto de vista já lá não estamos quando vier a morte; saber se a morte é um mal é saber se é realmente um mal, e não apenas saber se é um mal do nosso próprio ponto de vista. Assim, o argumento de Epicuro falha.

Há razões para pensar que a morte é um mal. Apesar de não ser um mal pela sua presença, como o sofrimento, é um mal pela privação que provoca: priva-nos de um bem maior — a vida. Todavia, a morte não anula o sentido que uma dada vida possa ter usufruído, ao contrário do que sugere o argumento de Tolstoi.

O argumento de Tolstoi sugere uma diferença importante no que respeita ao problema do sentido da vida: a diferença entre o valor ilusório e o verdadeiro valor. Esta diferença baseia-se na ideia de que tudo o que conta não é unicamente o que conta para nós, como o argumento de Epicuro parece pressupor. O argumento de Tolstoi sugere que para determinar se uma vida tem sentido não basta perguntar se essa vida é feliz de um ponto de vista exclusivamente subjectivo. É igualmente necessário saber se essa vida tem valor de um ponto de vista mais alargado. Tolstoi olhava para si próprio de um ponto de vista subjectivo e via-se feliz e realizado; mas olhava-se de um ponto de vista mais abrangente e perguntava-se se essa felicidade e realização teriam algum valor mais amplo.

Esta capacidade para nos olharmos de um ponto de vista mais abrangente — do ponto de vista do universo, como dizia Sidgwick, ou sub specie aeternitatis — é um resultado e uma exigência da própria racionalidade. Recusar olhar para nós mesmos de uma perspectiva mais alargada é empobrecedor e provinciano. Esta capacidade manifesta-se em várias áreas. A distinção entre a crença, ou aquilo que pensamos ser verdade, e o que é realmente verdade é uma condição de possibilidade de toda a investigação e estudo sérios: sem tal distinção a investigação torna-se arbitrária. Também o pensamento ético depende da distinção entre o ponto de vista subjectivo e o ponto de vista universal: os interesses de uma dada pessoa têm de ser contrastados com os interesses das outras pessoas, e cada qual tem direito apenas ao que é imparcialmente defensável.

Se o ponto de vista subjectivo fosse o único possível, qualquer vida teria obviamente sentido desde que fosse razoavelmente feliz. Por isso, quem se recusar a olhar para si mesmo de um ponto de vista não paroquial não encontra interesse no problema do sentido da vida. Pois nesse caso o problema do sentido da vida pouco mais é do que uma questão de raciocínio prudencial, reduzindo-se à questão de saber que tipo de vida ou que actividades mais provavelmente nos farão felizes. Este ponto de vista é inaceitável porque implica auto-engano. Não podemos abdicar da nossa capacidade para olhar para nós próprios "por cima do nosso ombro" sem ao mesmo tempo abdicarmos da nossa racionalidade; mas não podemos abdicar realmente da nossa racionalidade — tudo o que podemos fazer é fingir que o fazemos, para aquietar talvez a sensação desconfortável de que, de um ponto de vista mais abrangente, a nossa vida é destituída de sentido.

Por detrás desta sensação desconfortável poderá estar uma incompreensão fundamental do problema do sentido da vida. Considere-se o seguinte argumento: a nossa vida não tem sentido porque à escala cósmica somos minúsculos — da estrela mais próxima, o nosso planeta não é visível, para não falar em nós próprios, e mesmo o nosso sol será apenas uma pequena estrela distante, não muito brilhante. Que este argumento é deficiente devia ser evidente, pois se a vida de alguém não tem sentido, não o ganha se essa pessoa crescer enormemente até custar a caber na galáxia.

Contudo, este argumento sugere que o problema do sentido da vida está relacionado com a questão da nossa importância; o tamanho é apenas uma forma desadequada de a conceber. Ora, no que respeita à importância, o conflito entre a perspectiva subjectiva e a perspectiva do universo é evidente: ao passo que do seu próprio ponto de vista a vida de alguém é de suma importância, do ponto de vista do universo a sua vida não é assim tão importante. Thomas Nagel defende que a vida carece de sentido, por mais que cultivemos actividades de valor, porque nunca poderemos ter do ponto de vista do universo a importância que temos do ponto de vista subjectivo:

Cada um de nós vive a sua própria vida — vive consigo vinte e quatro horas por dia. Que outra coisa poderíamos fazer? Viver a vida de outra pessoa? Contudo, os seres humanos têm uma capacidade especial para se distanciarem e se inspeccionarem a si próprios, e para inspeccionar as vidas com que se encontram comprometidos, com a surpresa distanciada que temos quando observamos uma formiga que luta para subir um monte de areia. Sem desenvolver a ilusão de que podemos libertar-nos da nossa posição muitíssimo específica e idiossincrática, podemos ver a nossa posição sub specie aeternitatis — e o que se vê faz-nos ficar sérios e é ao mesmo tempo burlesco. (Thomas Nagel, "The Absurd", p. 15)

Este é um pessimismo substancial quanto ao sentido da vida. Não se trata apenas de afirmar que a nossa vida não tem sentido porque, por algum motivo, somos incapazes de cultivar os valores adequados que lhe dariam sentido. Trata-se de afirmar que a natureza das coisas é tal que é conceptualmente impossível que a nossa vida tenha sentido, porque nunca teremos do ponto de vista universal a importância que nos atribuímos do ponto de vista subjectivo.

Esta perspectiva resulta de uma confusão conceptual. Mas esta confusão tem raízes profundas na psicologia humana e é muito difícil de eliminar. Numa palavra, trata-se de uma confusão que resulta de egocentrismo. A confusão é particularmente clara em algumas perspectivas religiosas, sobretudo teístas, que atribuem aos seres humanos em geral e a cada um de nós em particular uma importância desmedida. A ideia é que o universo foi criado por um deus para que nós, seres humanos, existissem. Esta ideia é uma monstruosidade aritmética dada a dimensão do universo, pois é como pensar que alguém criou um sistema solar inteiro para uma pulga poder existir. Mas é precisamente esta monstruosidade aritmética que manifesta a confusão egocêntrica que importa esclarecer.

Do ponto de vista de uma dada pessoa, a sua dor de dentes é mais importante e urgente do que cem mil pessoas que morrem à fome num país distante. Emocionalmente, é assim que as coisas são. Mas não é assim que têm de ser. Também as crianças têm de aprender a superar o seu egocentrismo, que as faz achar óbvio que uma vontade, aqui e agora, de comer um chupa-chupa é mais importante do que salvar alguém de morrer afogado. Aprender a calibrar a importância que atribuímos às coisas de acordo com a importância que elas têm de um ponto de vista mais vasto é parte integrante do crescimento cognitivo e emocional. A forma mais simples de não atender a esta exigência é adoptar uma resposta religiosa ao problema do sentido da vida que garanta que cada um de nós tem uma importância cósmica. Certas formas mais infantis de viver conflitos espirituais resultam também de egocentrismo, fazendo as pessoas ter a sensação falsa de que os seus conflitos e dilemas espirituais têm uma importância cósmica — ao mesmo tempo que o sofrimento atroz mas alheio é negligenciável. O romantismo alemão e a ideia de uma alma genial e atormentada é outra manifestação do mesmo egocentrismo infantil.

O egocentrismo é uma incapacidade para nos vermos a nós mesmos como somos e para aceitar a importância que temos. Imagine-se alguém que levanta um processo em tribunal e ganha a causa, recebendo um pagamento pelos prejuízos de que foi vítima; imaginemos que a decisão do tribunal foi justa. O egocêntrico é sempre incapaz de aceitar a decisão como justa, porque nunca a vê de um ponto de vista universal: olha para a situação e tudo o que vê é o seu prejuízo. O egocêntrico não quer o que lhe cabe de um ponto de vista imparcial: quer o que lhe cabe do seu próprio ponto de vista — ou seja: quer o que quer.

Analogamente, o egocêntrico quer olhar para si de um ponto de vista universal e ver-se, desse ponto de vista, como se vê do ponto de vista subjectivo: como sumamente importante. Como, por outro lado, o egocentrismo é também uma incapacidade para ver a importância que os outros têm, gera-se a ilusão de que, de um ponto de vista universal, a nossa vida vale menos que nada. Na realidade, o egocêntrico é incapaz de olhar para si mesmo de um ponto de vista universal: tudo o que faz é olhar para si mesmo como olha para os outros; e como o egocêntrico olha para os outros como se fossem formigas, fica com a sensação de que, de um ponto de vista universal, a sua vida é tão destituída de valor e sentido quanto a vida de uma formiga. Mas a vida dos outros não tem menos valor só porque não é a nossa vida, e portanto a nossa vida não é destituída de valor do ponto de vista objectivo — apenas não tem o valor exacerbado que o egocêntrico lhe dá. Em igualdade de circunstâncias, o sofrimento ou morte de alguém, a sua felicidade ou bem-estar, é tão importante quanto a de qualquer outra pessoa.

O sentido da vida resulta da entrega activa a finalidades com valor sub specie aeternitatis. Se os valores fossem meramente subjectivos ou intersubjectivos, também a vida não teria sentido sub specie aeternitatis — teria sentido apenas de um ponto de vista subjectivo ou intersubjectivo. Contudo, uma exigência fundamental do pensamento ético, reconhecida pelas principais teorias éticas clássicas e contemporâneas, é a universalizabilidade: o pensamento ético tem de avaliar as coisas do ponto de vista do universo. Quem defende que do ponto de vista do universo a vida não tem valor terá muita dificuldade em esclarecer em que sentido é a ética universalizável.

Não é verdade que ao olhar para nós mesmos de um ponto de vista universal todo o sentido se dilua, por mais que a nossa vida esteja activamente conectada com valores objectivos. Porque, por definição, tais valores são valores de qualquer ponto de vista. Logo, se aceitamos que há valores objectivos, uma vida que os cultive activamente faz sentido de um ponto de vista objectivo.

Uma versão diferente de pessimismo baseia-se na ideia de que não há valores objectivos. Apesar de ser um problema em aberto saber exactamente que tipos de valores são objectivos e que tipos de valores são subjectivos, não é verdade que todo o valor seja subjectivo. Imagine-se alguém que caminha longamente à chuva para ir ao cinema. Essa pessoa não caminha à chuva por gostar, mas apenas porque não tem outra forma de transporte; se pudesse evitar caminhar à chuva, evitá-lo-ia. Mas ela quer ir ao cinema porque está em exibição especial um clássico raro, recentemente recuperado. Dado o valor antecipado que a pessoa dá ao filme, o custo de caminhar longamente à chuva é compensado. Logo, a sua caminhada tem sentido: é um meio para uma finalidade com valor, e o custo do meio adoptado não ultrapassa o valor previsto. Contudo, ao chegar ao cinema, a pessoa descobre que afinal a exibição do filme foi cancelada porque as máquinas de projecção se avariaram. O que descobriu esta pessoa acerca do sentido da sua caminhada? Do ponto de vista subjectivista, não faz sentido dizer que ela descobriu que afinal a sua caminhada não teve sentido. Pois do ponto de vista subjectivo, ela não sabia, enquanto caminhava, que a sua caminhada não fazia sentido. Para podermos dizer que ela estava enganada quanto ao sentido da sua caminhada temos de admitir que o que faz sentido não é exclusivamente o que faz subjectivamente sentido. A realidade interfere nas nossas crenças sobre o que faz ou não sentido. O mesmo se pode dizer do valor.

O subjectivismo ingénuo quanto ao valor e ao sentido é claramente falso. Mas mesmo uma versão mais sofisticada, intersubjectiva, é dificilmente defensável. A ideia central do intersubjectivismo quanto ao valor é que se trata de uma construção social, como as regras de trânsito, por exemplo: meras convenções. Mas é absurdo afirmar que tanto faz aceitar como recusar que é bom torturar crianças por prazer, do mesmo modo que tanto faz conduzir pela esquerda ou pela direita. Nem tudo o que tem ou não valor é uma mera convenção intersubjectiva.

Uma das motivações do subjectivismo e intersubjectivismo quanto ao valor é o positivismo. Depois de se fazer uma descrição exaustiva dos factos, argumenta o positivista, não se encontraram "factos morais" ou "valores"; logo, não há tal coisa. Que este argumento é inaceitável vê-se imediatamente se o compararmos com o seguinte argumento análogo: depois de se fazer uma descrição exaustiva dos factos, quando alguém está pretensamente a pensar sobre chocolates, não se encontraram pensamentos sobre chocolate — tudo o que há são correntes eléctricas no seu cérebro; logo, não há tais pensamentos. O mesmo se poderia dizer, curiosamente, da causalidade e das leis da natureza, sem as quais as ciências da natureza, que o positivista considera o modelo do conhecimento, não poderiam existir. Depois de se fazer uma lista exaustiva dos factos, nunca se vê causas nem efeitos nem leis — tudo o que se vê são acontecimentos a seguir uns aos outros.

Assim, não há boas razões para aceitar o subjectivismo quanto ao sentido da vida. Uma vida com sentido não é apenas uma vida subjectivamente realizada; nem apenas uma vida valorizada pela comunidade. Uma vida com sentido é uma vida activamente empenhada em valores objectivos. Mas estes valores são-nos familiares: são os valores estéticos, éticos e cognitivos. Uma forma de não compreender o problema do sentido da vida é pensar que tudo depende da existência de um valor especial — diferente de todos os valores estéticos, éticos e cognitivos que nos são familiares. As pessoas que sofrem de problemas emocionais e se interrogam que sentido faz a sua vida têm tendência para desprezar qualquer resposta razoável porque o que desejam é uma resposta a um problema pessoal: querem que a sua vida faça sentido sem que isso implique a entrega activa a valores familiares. Daí que o divã do psicanalista, a New Age ou a religião constituam reacções comuns ao problema, ao passo que a única reacção razoável é a entrega activa a valores éticos, estéticos ou cognitivos. Evidentemente, esta reacção também não agrada a quem procura uma resposta para o seu egocentrismo: ninguém tem um valor cósmico acima de todos os outros seres dotados de inteligência e consciência. Mas daqui não se segue que ninguém tem valor algum, do ponto de vista do universo. A vida de cada um tem sentido, do ponto de vista do universo, na exacta medida em que trouxer activamente valor ao universo.
Desidério Murcho
King's College London
Leituras

Thaddeus Metz apresenta uma panorâmica obrigatória da bibliografia especializada sobre o problema do sentido da vida, publicada entre 1980 e o final do século passado: "Recent Work on the Meaning of Life" (Ethics 112, 2002).

O livro de Albert Camus tem por título O Mito de Sísifo: Ensaio Sobre o Absurdo (Lisboa: Livros do Brasil, 2002). Os capítulos "Morte" e "O Sentido da Vida", do livro Que Quer Dizer Tudo Isto?, de Thomas Nagel (Lisboa: Gradiva, 1995), apresentam algumas ideias centrais. Robert Nozick discute o problema em "Philosophy and the Meaning of Life", no livro Philosophical Explanations (Oxford: Oxford University Press, 1981). David Wiggins procura refutar o subjectivismo no capítulo "Truth, Invention and the Meaning of Life" do livro Needs, Values, Truth (Oxford: Clarendon Press, 1987). Peter Singer discute brevemente o tema na secção "Porquê Agir Moralmente?" do livro Ética Prática (Lisboa: Gradiva, 2000), e apresenta a sua perspectiva desenvolvidamente no livro Como Havemos de Viver? A Ética Numa Época de Individualismo (Lisboa: Dinalivro, no prelo).

A citação de Schopenhauer foi retirada de "On the Vanity of Existence", que se encontra na antologia The Meaning of Life, org. por E. D. Klemke (Oxford: Oxford University Press, 2000). O artigo "The Meaning of Life", de Kurt Baier, encontra-se na mesma antologia, assim como um excerto da obra My Confession, de Leão Tolstoi, e o artigo "The Meaning of Life", de Richard Taylor. Outra antologia essencial é Life and Meaning: A Reader, org. por Oswald Hanfling (Oxford: Blackwell, 1987).

A ideia de que o sentido emerge quando há uma entrega activa a finalidades com valor é defendida por Susan Wolf no influente artigo "Happiness and Meaning: Two Aspects of the Good Life" (Social Philosophy & Policy 14, 1997). A carta de Epicuro encontra-se em Epicurus, The Extant Remains, edição de Cyril Bailey (Nova Iorque: Georg Olms Verlag, 1970). As ideias pessimistas de Thomas Nagel são defendidas em "Death" e "The Absurd", no livro Mortal Questions (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), e em "Birth, Death, and the Meaning of Life", do livro The View From Nowhere (Oxford: Oxford University Press, 1986).

Ensaio retirado de Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade, de Desidério Murcho (Quasi, 2006)
Imprimir · Termos de utilização
Reproduza livremente mas, por favor, cite a fonte.
Copyright © 1997–2009 criticanarede.com · ISSN 1749-8457
Reproduza livremente mas, por favor, cite a fonte.
Termos de utilização: http://criticanarede.com/termos.html.
Copyright © 1997–2009 criticanarede.com · ISSN 1749-8457 · xhtml 1.1

Nenhum comentário:

Postar um comentário

SER(ES) AFINS