Transcrito de gravação de palestra proferida por Max Neef, traduzida por Endre Király
Muito obrigado pelo convite que recebi de participar deste evento. Devo falar sobre empoderamento de comunidades e desenvolvimento alternativo. Isto é algo com o qual tenho estado ocupado por umas duas décadas ou mais. Gostaria de começar com um postulado fundamental e eu o chamo de postulado pois não admite discussão, ou você o aceita ou o descarta. Não tem sentido discuti-lo. Este postulado é que desenvolvimento tem a ver com pessoas e não com objetos. Se vocês aceitarem este postulado, podem seguir-me em algumas conclusões.
Se aceitarmos que desenvolvimento tem a ver com pessoas e não com objetos então a primeira pergunta importante que deveria surgir é: “Como posso determinar que um certo processo de desenvolvimento é melhor do que outro?”. Na teoria econômica convencional temos indicadores macro-econômicos, PNB, e assim por diante, que normalmente são usados para definir que uma sociedade está melhor do que a outra. Mas o PNB em essência, caricaturizando um pouco, é um indicador de crescimento de objetos. Mas agora precisamos de um indicador do crescimento qualitativo das pessoas. Assim diríamos que o melhor desenvolvimento é aquele em que a qualidade de vida das pessoas mais cresce. A pergunta óbvia que segue é: “Como determino qualidade de vida?”.
Eu responderia que : “Qualidade de vida das pessoas depende das possibilidades que elas têm ou não têm de adequadamente satisfazer suas necessidades humanas básicas. Novamente vem uma pergunta óbvia: “Quais são estas necessidades básicas e quem determina quais elas são?”.
Uma importante consideração deve aqui ser feita. Em geral, quando falamos sobre necessidades em nossa linguagem cotidiana, e mesmo que teorizemos sobre isto, parece que as necessidades humanas são infinitas, que elas mudam o tempo todo, que são diferentes em diferentes culturas, que elas mudam ao longo da história e assim por diante. Bem, se isto fosse realmente assim, tanto por razões epistemológicas como metodológicas, seria muito difícil trabalhar com o conceito das necessidades humanas pois cada caso estudado seria único e seria muito difícil fazer qualquer tipo de generalização. Mas é minha impressão de que isto não é realmente assim e que a crença de que as necessidades humanas básicas mudam o tempo todo e são diferentes em culturas diferentes é só a conseqüência do engano, um erro conceitual no sentido de que não distinguimos entre as necessidades humanas propriamente ditas e as coisas que satisfazem tais necessidades. E isto é um grande erro conceitual. Se distinguirmos necessidades daquilo que as satisfaz então podemos dizer que as necessidades são poucas e classificáveis e, mais do que isto, eu ouso dizer que as necessidades humanas básicas são invariáveis. Elas são as mesmas em todos os lugares, sempre foram as mesmas e provavelmente serão as mesmas sempre. O que muda através da cultura e da história não são as necessidades básicas mas as coisas que as sociedades geram para satisfazer tais necessidades. Em outras palavras o que é determinado culturalmente não são as necessidades mas aquilo que satisfaz estas necessidades. Isto leva imediatamente a uma contradição com o antigo conceito de necessidades básicas desenvolvido pelo ILO. Para mim, nenhuma daquelas necessidades básicas é uma necessidade básica. Comida não é uma necessidade: comida é algo que satisfaz minha necessidade de subsistência, abrigo algo que satisfaz minha necessidade de proteção, mas não são uma necessidade. Uma necessidade é por definição um estado interior da pessoa. Portanto uma necessidade não é algo exterior a mim mesmo, ela não pode ser uma coisa, um objeto.
No melhor dos casos aquela coisa exterior é algo que eu posso usar para satisfazer uma condição interior que é uma expressão de uma necessidade. Tendo dito isto, nós propomos que necessidades humanas básicas (quando digo nós refiro-me àqueles do meu instituto que desenvolveram toda uma teoria de escala de desenvolvimento humano) podem ser classificadas de acordo com dois critérios. Eu sublinho básicas pois estas são comuns a todo ser humano e não só a seres humanos mas a muitos animais como vocês verão daqui a pouco.
Podemos classificá-las de acordo com dois critérios: um é ontológico ou existencial onde distinguimos as necessidades de ser, de ter, de fazer e de interagir. E do ponto de vista axiomático ou de valor nós distinguimos nove necessidades humanas básicas que são necessidades de subsistência, de proteção, de afeto ou amor, participação, compreensão, ócio, criação, identidade e liberdade. Estas são para nós as nove necessidades básicas e se vocês pensarem um pouco sobre isto é quase que inimaginável uma sociedade de seres humanos que não tenha a necessidade de compreensão, a necessidade de participação e a necessidade de afeto, etc, etc. Se vocês imaginarem isto como uma matriz de ser, fazer, ter e interagir na horizontal e na vertical estas nove necessidades, o que se tem é, simbolicamente, uma matriz. Isto é o que chamamos de sistema das necessidades humanas, querendo dizer com sistema que todos os seus componentes interagem e são inseparáveis; qualquer coisa que aconteça a um deles afeta todo o resto. E se você imagina isto como uma matriz de quatro por nove você tem trinta e seis quadrados.
Estes trinta e seis quadrados estão vazios; você os preenche com aquilo que o satisfaz. E estes são abertos a qualquer cultura, a qualquer povo, a qualquer grupo. Você verá quais deverão ser os atributos do seu ser a fim de satisfazer suas necessidades de compreensão, o que você terá que fazer para satisfazer sua compreensão, o que você precisará ter para satisfazer sua compreensão e que formas de interação são necessárias para satisfazer sua compreensão, ou seu amor, ou sua identidade, ou sua liberdade ou o que você quiser. O que permanece constante são as necessidades mas o que você usa para preencher os quadrados é determinado por uma cultura ou uma circunstância, uma situação, uma ocasião ou um tipo de sociedade ou grupo que você queira analisar.
Agora, se imaginarmos estas necessidades humanas básicas como um sistema podemos imediatamente conceitualizar uma série de coisas e a primeira coisa a reconceitualizar é o conceito de pobreza. Estamos acostumados a identificar pobreza apenas com a subsistência, que é com o que os economistas têm se ocupado. Mas também podemos falar de pobreza de proteção devido à corrida armamentista ou o aumento de violência, insegurança, etc.; pobreza de afeto devido ao machismo, discriminação das mulheres, violência sexual, etc; pobreza de compreensão pois ao invés de termos sistemas educacionais reais temos sistemas de doutrinação ou sistemas mecânicos de ensino sem comprometimento; pobreza de identidade devido a discriminações religiosas e ideológicas ou persecuções, exílio, etc. Vocês podem imaginar cada pobreza por vocês mesmos. Mas agora o ponto importante é que se você pensa em pobrezas e você observa o mundo no qual vivemos hoje, vocês imediatamente perceberão que quando qualquer uma destas pobrezas exceder um certo limiar de duração ou intensidade, ela gera uma patologia. Pessoas não morrem só de fome, mas você pode se destruir devido a uma crise de identidade ou porque você sente que lhe falta muito o afeto ou qualquer outra coisa. Qualquer uma destas pobrezas pode ser totalmente destrutiva.
Mas o que é ainda mais preocupante, quando olhamos para o mundo hoje, é que ao invés de encontrar casos de patologias individuais, isto é casos de indivíduos cujas necessidades estão totalmente insatisfeitas, o que descobrimos cada vez mais são casos de patologia coletiva. E estamos cheios destes casos no mundo: na antiga Iugoslávia e na antiga União Soviética, no Líbano, na Irlanda do Norte, o que lá tem acontecido por décadas e décadas, em alguns casos com extrema violência, é de uma forma ou outra o resultado da destruição desta matriz das necessidades humanas básicas. Particularmente em muitos casos foi assim por necessidades básicas tais como identidade terem sido suprimidas por muito tempo. De repente, bum, é como uma explosão, que sai e se expressa das piores formas.
Agora, se reconhecemos que esta matriz, da forma como ela é satisfeita ou não satisfeita, determina a qualidade de vida das pessoas, deveria ficar claro que a forma de orientar um caminho de desenvolvimento é levá-la em consideração. Em outras palavras: o que estamos fazendo? que projetos estamos desenvolvendo? que políticas econômicas estamos propondo e qual será seu impacto com relação às necessidades humanas? Você pode ouvir uma autoridade econômica dizer por exemplo: “Nestas condições uma porcentagem de desemprego de sete porcento é normal”. Bem , o que acontece com a matriz de necessidades humanas daqueles sete
porcento de seres humanos? Desempregado por uma ano ou mais? Isto destrói a possibilidade de subsistência, cria insegurança, gera crise de identidade, você deixa de compreender, você tem conflitos na sua família que destroem o afeto, pode levar ao divórcio e você fica bravo com seus filhos, etc, etc.
Então, o que aquela autoridade considera normal pode ser, se você olha nos olhos das pessoas, totalmente destrutivo. Estamos hoje vivendo sob um sistema econômico neo-liberal e eu os convido a percorrerem com absoluta honestidade esta lista de necessidades humanas básicas e ver como este sistema econômico está contribuindo para a satisfação ou não destas necessidades básicas.
Subsistência; entre 1960 e 1991 a desigualdade no mundo dobrou. Em 1960 a relação da renda dos 20% mais ricos em relação aos 20% mais pobres era de 30 para 1. Em 1991 é de 61 para 1. A desigualdade entre extremos dobrou! Este é só um exemplo de como a pobreza está crescendo num nível global.
Proteção: nós temos uma das maiores autoridades mundiais aqui, o que é uma imensa honra para nós, que poderia dizer o que está acontecendo com a proteção no mundo mas nós até sabemos, não é?
Afeto: destruição de famílias, destruição por todo lado do tecido social, como conseqüência de um sistema onde cobiça e acúmulo são valores fundamentais.
Compreensão: vejamos. Sou reitor de uma universidade e estou perfeitamente consciente do que está acontecendo com as universidades do mundo hoje. São como fábricas de lingüiças: você produz profissionais tão rapidamente quanto possível para serem tão eficientes quanto possível e tão sem cultura quanto possível pois se você tiver muita cultura pode se tornar perigoso: você pode pensar demais, refletir demais e o que você deve ser é uma pessoa eficiente.
Participação: de que tipo de participação podemos falar se uma das destruições sistemáticas que estão ocorrendo é precisamente a destruição da comunidade? Comunidades estão desaparecendo por todo lado. Num país como a Espanha, nas últimas duas décadas, 3600 cidades e vilarejos foram abandonados. Estamos vivendo num sistema econômico onde não só formas de produção se tornam inviáveis mas também lugares onde nascemos, onde pessoas morreram, onde amaram, trabalharam, sonharam, lutaram, dançaram, foram felizes, deixam de ser viáveis. O que acontece com aquelas pessoas que viveram nestes 3600 vilarejos? Isto também está acontecendo na vizinha França, uma cultura também composta por vilarejos, onde aquele vilarejo, que tem aquele tipo especial de queijo, também está colapsando. Não há mais lugar para tal coisa que deve ser substituída por algo mais eficiente como um Mc Donald’s ou um Kentucky Fried Chicken. Isto é desenvolvimento. Percorra a lista e você saberá honestamente quais destas necessidades humanas básicas está sendo realmente atendida e gloriosamente satisfeita pelo sistema que estamos todos aceitando. Exceto depois do jantar, em conversas onde estamos fazendo críticas. Mas quando vamos para casa todos praticamos mais do mesmo. Como cientista sei que não posso predizer o comportamento de sistemas complexos e um sistema vivo é um sistema complexo. Mas a intuição ajuda.
Não estou fazendo uma previsão mas tenho a intuição, a forte intuição, de que quando daqui a 40 ou 50 anos as pessoas estiverem estudando o que aconteceu nas últimas décadas do século vinte, chegarão à conclusão de que passamos por uma gigantesca loucura coletiva. Estamos todos doentes e isto é, no meu modo de ver as coisas, como o que acontece com um alcoólatra. Se você quiser se curar do alcoolismo, você precisa primeiro reconhecer que você é um alcoólatra.. Caso contrário você nunca superará seu alcoolismo.
Da mesma forma penso que precisamos reconhecer que somos parte de uma grande doença. Nunca houve na história um período em que tudo que fazemos fosse tão auto-destrutivo. E isto é uma gigantesca patologia coletiva e se nos dermos conta dela poderá ser o primeiro passo para alcançarmos uma cura adequada.
(ver anexo - Escala das necessidades humanas de Max Neef
Obrigado pela tradução, me ajudou muito.
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