sábado, 24 de outubro de 2009

Agricultores Familiares e Pluriatividade: Tipologias e Políticas

AGRICULTORES FAMILIARES E PLURIATIVIDADE: TIPOLOGIAS E POLÍTICAS
Maria José Carneiro


Introdução: alguns esclarecimentos metodológicos

A idéia de classificar e de construir tipologias que distingam e organizem a sociedade é tão antiga quanto a própria existência das sociedades humanas. Como primeiro esforço de apreensão e compreensão do que está em Seu entorno, o homem atribui sentido à realidade e ao aparente caos que o cerca estabelecendo uma ordem entre os objetos e as pessoas. Contudo, esse esforço de classificação, necessário à própria vida social, que resulta em sistemas arbitrariamente construídos, não se confunde com a sociedade (Durkheim e Mauss, 1979). No entanto, é recorrente que os construtores destes sistemas o tomem como sendo a própria realidade, e que tais classificações, institucionalizadas, sejam tomadas como a realidade social.

É importante ter em mente que as categorias classificatórias são construções da mente humana e, como tal, é produto da sociedade, mas não têm uma relação causal imediata com a realidade observada nem resulta obrigatoriamente, de uma necessidade utilitária (Lévi-Strauss, 1989). Saindo do social para a interpretação teórica das socieades, as tipologias ou classificações, nos termos de Weber, apesar de não se refiram à realidade empírica, são construídas em conformidade com esta, encontrando nas relações sociais a matéria-prima para essas construções abstratas. É importante enfatizar que, em nenhum caso, esse modelo pode ser reduzido a um conjunto de relações sociais observáveis em uma realidade dada (Lévi-Strauss, 1970). É necessário buscar o significado dos fatos e das relações sociais (de trabalho, por exemplo) na sua posição na totalidade, já que se apresentam de forma sistêmica, de maneira que cada parte não pode ser entendida isoladamente da outra.

Nesse sentido, os princípios que sustentam uma ordem classificatória são, em certa medida, definidos arbitrariamente pela sociedade dentro de um campo de disputa político-cultural de legitimação. Ao ser legitimada, urna dada estruturação pode assumir o lugar da "realidade" e da "verdade" do senso comum, ou de um campo específico de conhecimento. Essas duas características, a arbitrariedade da lógica de ordenação e a noção de sistema, presentes em todo esforço de classificação, são pontos de partidas fundamentais para a discussão e proposta de qualquer modelo de classificação.

A abordagem e interpretação da realidade pressupõe, portanto, a escolha de uma estruturação teórica que irá definir os princípios de articulação entre os componentes do sistema, ou seja, a maneira como abordaremos um tal grupo, uma dada sociedade. Não há uma estruturação mais verdadeira do que outra, tratemos de alternativas que irão orientar nosso olhar de maneira a enfatizar ou, ao contrário, a menosprezar determinados aspectos da realidade. As classificações servem, portanto, a determinadas ideologias, ou seja, a determinados interesses sobre o social, já que a essa forma de perceber a realidade encontram-se, normalmente associadas práticas e propostas de intervenção. Aceitar a relatividade ideológica de uma classificação tipológica não significa, porém, abolir rigor conceptual e metodológico mas estarmos atentos para os limites do conhecimento sobre a realidade. Nesse sentido, a melhor estruturação, ou o melhor modelo, seria aquele que sendo também o mais simples, dê conta da explicação do conjunto dos fatos selecionados pela observação e, principalmente, seja capaz de legitimar-se como a melhor representação possível da realidade.

Normalmente, os motivos que orientam uma ou outra escolha não são revelados, dando margem à uma leitura positivista da abordagem teórica como se a ela correspondesse à realidade em si mesma e fosse portanto "mais verdadeira” do que outra. Em um esforço de pesquisa é preciso termos em mente que a cada tipo de escolha ganhamos e perdemos algum aspecto da capacidade ele compreensão da sociedade. Resta-nos definirmos com clareza e transparência a nossa posição, ou seja, os interesses é os objetivos que irão nortear nossa aproximação da realidade.

No que nos interessa particularmente neste estudo - a incorporação das atividades não agrícolas à dinâmica da agricultura familiar - caberia esclarecer que, da perspectiva relacional e holística, o significado das atividades, não-agrícolas deverá ser buscado na posição que elas ocupam no conjunto da economia familiar, levando-se em conta as estratégias familiares de reprodução social e, sobretudo, o contexto sócio-econômico em que se insere.

Nesse sentido, a noção de pluriatividade não designa um fenômeno específico, assim como o termo pluriativo não define uma nova categoria social no meio rural. Existem diferentes possibilidades de se associar a atividade não agrícola no interior da unidade familiar agrícola, que implica diversidade de significados que este tipo de combinação poderá assumir na reprodução social e, conseqüentemente, na posição de cada unidade familiar na estrutura social na agricultura. A pluriativídade, nesta perspectiva interpretativa, não é um fato positivo, um tipo, e sim uma noção que designa um processo social plural, o que significa reconhecer processos pluriativos incorporadores de atividades não agrícolas como constitutivos da própria dinâmica social da agricultura familiar. Esta percepção da pluriatividade como um processo social nos capacita a perceber a coexistência de processos sociais distintos, e até mesmo contraditórios, definidos pelo campo de possibilidade de realização dos projetos familiares. Por campo de possibilidade entende-se o espaço para formulação e implementação de projetos, no caso, definido pela combinação das condições sócio-econôinicas e fatores peculiares às unidades familiares, tais como: o capital cultural, o capital material, a fase do desenvolvimento do grupo doméstico, composição etária e sexual dos membros da unidade familiar e posição dos indivíduos que desenvolvem a atividade não agrícola na hierarquia familiar.

Nesses termos, a delimitação do objeto de estudo pela noção de pluriatividade, coisificada, ou positiva - ou ainda como um tipo ideal específico - acabaria por desviar o foco de análise para práticas ou atividades que, apreendidas de maneira isolada, não explicariam o fenômeno em curso. Na direção contrária a este tipo de abordagem, sustentamos que a complexidade do processo de transformação recente no mundo rural brasileiro, que se traduz em uma heterogeneidade das formas de organização social e da produção, só pode ser entendida se orientarmos a análise para as relações entre os agentes sociais na dinâmica de reprodução social.

Falar em agricultura familiar pluriativa, requer ainda incorporar a complexidade das relações sociais que definem e redefinem a família. Nesta perspectiva, toma-se necessário redefinir também o universo de observação, privilegiando-se a família, como unidade social, e não apenas como unidade de produção como normalmente tem sido considerada quando o assunto é a agricultura familiar.

O pressuposto aqui é o de que o núcleo farrúliar é o que dá seritido de orientação (e de referência) às relações sociais. Ao mesmo tempo em que cria e reproduz valores socializados e inculcados nos indivíduos, a família também supõe um processo de individuação que pode negar, romper, modificar e, até mesmo recriar, valores num espaço de negociação e de tensões. Nesse sentido, o núcleo familiar não pode ser concebido como uma estrutura rígida e cristalizada - de indivíduos e valores - mas sim como uma estrutura flexível, plástica, que pode incorporar novos valores e criar novas percepções e práticas. Em suma, aceitar esta noção de família e reconhecer a idéia de dinâmica é fundamental para se evitar o risco de estabelecermos classificações rígidas, de base morfológica, que perdem justamente a capacidade de entender a inserção das unidades familiares na economia e na sociedade, captando a sua flexibilidade e vulnerabilidade. No entanto, essa dinâmica não pode ser entendida meramente como um conjunto de condições de ordem econômica, cultural e política que determinariam rigidamente o espaço da agricultura familiar. Do nosso ponto de vista, é necessário levar em conta a dinâmica interna, atribuída pelo próprio caráter familiar da organização social, que possibilita a essa forma social uma certa margem de autonomia na formulação das estratégias reprodutivas e na articulação com as condições externas. É importante enfatizar que a idéia de autonomia não implica a formulação consciente das estratégias a serem implementadas pelo grupo familiar nem a independência em relação às condições internas. Mas, diferentemente do trabalhador assalariado, a unidade familiar de produção, por ser sustentada pela íntima relação entre relações de trabalho e laços de parentesco, apresenta maior margem de negociação interna na elaboração de caminhos alternativos de reprodução social. É nesse contexto que o recurso a práticas pluriativas deve ser entendido.

A unidade familiar, entidade eminentemente plástica e mutante, tem a capacidade de elaborar novas estratégias para se adaptar às condições econômicas e sociais. Esses rearranjos que, não raro, dialogam com a tradição -- rejeitando-a ou revalorizando-a - não se limitam ao plano das relações observáveis empiricamente e, repito, também não são frutos de uma deliberação individual. Novos valores podem ser formulados ou antigos valores serem resgatados (como a revalorização da vida rural e da natureza ou como a noção de liberdade associada ao trabalho por conta própria, por exemplo) na busca de respostas a crises familiares.

Rompendo com a abordagem morfológica, propõe-se construir uma tipologia voltada para a análise dos processos sociais, centrada na identificação da lógica de reprodução social e nas de diferentes estratégias sociais implícitas. Trata-se, portanto, de dimensionar a capacidade específica das unidades familiares em implementar trajetórias sociais ascendentes ou descendentes. A partir de então, formular projetos que sejam adaptados às necessidades e potencialidades de cada unidade em particular.


A família como universo de observação

A decisão de privilegiar a unidade familiar como universo de análise e não a unidade de produção, se justifica pelas seguintes razões:

1. A família desempenha a função de agente integrador das relações sociais que se desenvolvem no interior dos estabelecimentos de agricultura familiar;

2. A qualidade das relações sociais que são integradas e integradoras da família agrícola é muito diversa, mas é nas interrelações entre os domínios do parentesco - hierarquia e significados - e do trabalho que se encontram os principais sistemas de relações que articulam e estruturam os indivíduos na unidade familiar e na de produção. No entanto, é importante ter em mente que a família - locus de produção e de reprodução de valores - integra relações sociais cujos significados não podem ser reduzidos à lógica do parentesco, à racionalidade econômica ou à divisão do trabalho. Entende-se que a unidade familiar não se limita ao grupo de pessoas formado por laços de aliança ou de consangüinidade, mas que deve ser percebida como um valor (próximo a um "sentimento de identidade") que integra seus membros, dando sentido às suas relações, e informa as estratégias coletivas e individuais.

A dificuldade de separar, em termos analíticos, os princípios que orientam as relações de trabalho e os laços de afetividade ou de solidariedade que conformam as unidades familiares já foi assinalada por diversos autores. A tendência a se reduzir as relações de trabalho aos laços de parentesco é bastante comum nas análises que privilegiam a unidade de produção como foco de observação e de compreensão, o que resulta, normalmente, na busca da funcionalidade econômica dos laços de parentesco, como se um sistema de relações pudesse ser reduzido à lógica do outro. Ao se limitar todos os demais princípios e regras que orientam a prática social à racionalidade econômica, reduz-se também a capacidade de captar as múltiplas racionalidades coexistentes no interior do universo familiar (Neves, 1993). Na intenção de evitar esse reducionismo, cabe ao pesquisador elaborar a distinção analítica entre essas duas esferas do social e buscar, simultaneamente, a lógica que os une no interior do grupo doméstico, sem diluir as diferença entre o que é da produção e o que é da família.

3. A escolha da unidade familiar (e não da unidade de produção familiar) como unidade de análise permite identificar as relações (de força entre os agentes sociais situados diferentemente na esfera do parentt!sco ou da produção. Em um contexto de mudança, será possível, por exemplo, através de uma análise qualitativa, identificar a influência dos valores familiares sobre o comportamento dos indivíduos em suas práticas econômicas fora da família, como é o caso das práticas pluriativas (Cameiro, 1998).

Portanto, eleger a unidade familiar, ou o grupo doméstico, como unidade de observação, revela-se um procedimento fundamental para a compreensão das transformações recentes no campo brasileiro onde o aumento das atividades não-agrícolas, articuladas ou não à agricultura, exige um maior grau de complexidade da análise.

Sendo assim, é importante considerar que a análise das unidades familiares de produção agrícola deve contemplar dois aspectos: de um lado as relações entre os indivíduos e, de outro, os valores que dão sentido a essas relações, já que, como toda relação social, as relações familiares (seja na esfera do parentesco seja na da produção) incluem uma parte ideal, de pensamento ou de representação, que informa as atitudes e comportamentos (Godelier, 1984 e Moreira, 1997). Tais valores conformam uma tradição que é acionada na formulação das estratégias familiares orientando as escolhas coletivas e informando os projetos individuais possíveis.


Agricultura familiar como conceito

A trajetória, ainda curta em termos temporais, do conceito de agricultura familiar, é extensa em termos bibliográficos expressando o intenso debate sobre as características empíricas e o estatuto teórico dessa "nova" categoria de análise.

Apesar das divergências quanto os princípios definidores, é possivel reconhecer um consenso: por agricultura familiar entende-se, em termos gerais, uma unidade de produção onde trabalho, terra e família estão, intimamente relacionados. A partir desse ponto comum, as discordâncias e nuances levantadas apontam para as limitações dessa noção que acaba por englobar em um único conceito uma grande variedade de agricultores, não sendo possível reconhecer um referencial empírico homogêneo (Moreira, 1998). Trata-se de uma noção ampla que inclui um grau de ambigüidade elevado por integrar em um único rótulo grupos sociais bastantes heterogêneos e princípios definidores divergentes. Nesse sentido, não seria adequado identificar o agricultor familiar a uma classe social, como resultado de um processo de diferenciação social onde o termo agricultor familiar seria atribuído à exploração modema, com base no trabalho familiar, orientada pela lógica empresarial capitalista, em oposição ao camponês;. tido como uma categoria social do passado e não capitalista.

Não se trata aqui de repetir o debate que se estendeu da década 70 até a atualidade sobre o caráter capitalista ou não-capitalista das relações familiares de produção. Porém cabe ressaltar, como diversos autores já enfatizaram, a complexidade do processo de diferenciação promovido pela intensificação da exploração capitalista na agricultura (e mesmo em contextos urbano-industriais), alertando para a diversidade inerente a esse processo, onde, na maioria das vezes, prevalece a coexistência de tendências contraditórias. Cabe reter que a expansão de formas capitalistas de produção na agricultura não conduz, obrigatoriamente, à extinção de unidades de produção familiares (pequenas ou médias) nem à sua transformação em uma única forma de produção. Esta dinâmica inclui uma diversidade de trajetórias que supõe uma adaptação contraditória às novas condições de produção. Este processo de adaptação pode implicar a formulação de novas estratégias para formas de produção já estabelecidas ou simplesmente uma nova combinação dos mecanismos já existentes visando a manutenção seja da exploração agrícola, seja do património familiar ou seja a reprodução do grupo doméstico. Nesse sentido, as análises de processos sociais concretos não devem privilegiar uma outra tendência mas dar conta da diversidade de possibilidades.


Sintetizando, podemos destacar algumas tendências nas análises da agricultura familiar.

1. Como já nos referimos acima, as análises têm normalmente, privilegiado como unidade de observação as unidades de produção, centrando na relação entre o produtor e o mercado e nas suas condições de responder às suas demandas. A classificação é feita levando em conta a capacidade de competitividade da unidade de produção que se traduz em taxas de rentabilidade e de produtividade alcançáveis pela absorção de tecnologia e de saberes tidos como "modernos". Já apontamos em outro lugar as implicações do caráter excludente desta análise que acaba por selecionar como agricultores "viáveis" um número reduzido de produtores que se enquadra nessa perspectiva produtivista, deixando de lado uma grande massa considerada, em termos oficiais, como "atrasada", "marginal" ou "periférica" (Carneiro, 1997 e 98).

2. Predomina nas análises centradas na unidade de produção um viés reducionista onde a lógica das relações sociais em todos os demais domínios do social é reduzida à lógica do econômico, transformando o agricultor no hommo econômicus cujas atitudes seriam movidas exclusivamente pelas necessidades do processo produtivo objetivo e da sobrevivência física. Como decorrência desse tipo de abordagem surge a noção de agricultura de subsistência em oposição à agricultura integrada ao mercado, ou "capitalista". A associação entre subsistência e autoconsumo já foi amplamente criticada mas não é demais lembrar que não existe, hoje no país, agricultor (ou camponês) que não esteja vinculado ao mercado. Mesmo o seu consumo familiar e a sua produção tida como de "subsistência" são parcialmente mercantilizados. A relação com o mercado não pode, portanto, servir de critério classificatório, a não ser em termos relacionais onde a natureza do vínculo com o mercado pode oferecer informações sobre o tipo de estratégia das famílias no que diz respeito à atividade agrícola.

3. Distinguindo-se da orientação acima, destaca-se a abordagem que orienta o foco de análise para as dinâmicas de reprodução social e econômica das unidades familiares a partir da noção de estratégias familiares formuladas para esse fim, levando em conta as relações não especificamente econômica que interferem no funcionamento das unidades produtivas, sobretudo as de parentesco e as de ordem moral. Esse tipo de análise parte da consideração da unidade produtiva e o mercado como domínios descontínuos valorizando a especificidade das relações que aí ocorrem, no entanto com o risco oposto, de reduzir à vontade individual a responsabilidade pela estruturação das relações sociais (Neves, 1993).


Agricultura familíar e política pública: o Pronaf

O debate atual sobre a noção de agricultura familiar foi intensificado devido a um fato político: a,opção do govemo de eleger essa forma de produção agrícola como protagonista do desenvolvimento rural, baseando-se em análises que atribuem à agricultura familiar condições mais favoráveis de competitividade quando comparada à agricultura patronal no que se refere aos rendimentos físicos obtidos e mesmo à capacidade de empregar mão-de-obra (Veiga, 1994 e FAO-INCRA, 1994). Reconhece-se assim a potencialidade competitiva da produção agrícola familiar, e elege-se como público-alvo os agricultores chamados "em transição”, ou seja aqueles que apresentariam potencialidade de serem transformados em "empresas familiares viáveis", através da incorporação de tecnologia e de uma racionalidade econômica voltada para as demandas do mercado.

A capacidade competitiva da agricultura familiar e sua eficiência em determinados setores já foi demonstrada em vários estudos (Wilkinson, 1997) e confirmada pelos próprios critérios de seleção do público meta do Pronaf (Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar).

Como enfatizamos acima, em termos conceituais, "agricultura familiar" ou "produção familiar" abrange uma gama variada de agricultores que vai desde a agricultura de subsistência à monocultura tecnificada, orientada exclusivamente para as demandas do mercado. No entanto, com o objetivo de compreender a implementação de políticas públicas - como é o caso da classificação de agricultores familiares em "viáveis", "em transição", e "não-viáveis", fundadora da perspectiva de intervenção do Pronaf - cabe definir o tipo de agricultor familiar que será beneficiado pelas limitadas verbas públicas. Dentro desse contexto, devemos, inicialmente, esclarecer (e redefinir) os objetivos dessa política.

Uma visão naturalizada da agricultura familiar como "atrasada" mas "com potencialidade" tem levado à formulação de propostas políticas que se limitam à modernização tecnológica e ao acesso à informação sobre o mercado e formas "modernas" de produção. Partindo da premissa de uma maior eficiência produtiva dessa forma de produção que não desenvolveu todo a sua potencialidade, orienta-se as propostas políticas ao segmento que apresenta melhores condições (materiais e subjetivas) de superar esse atraso. Esta abordagem que pressupõe a integração dessas unidades à economia limitada apenas ao mercado, tem duas implicações. Primeiro, exclui da participação na economia e na sociedade todo um segmento de pequenos agricultores considerados "sem potencialidade para o progresso". Segundo, associa a competitividade dos demais (os viáveis) à natureza intrínseca da agricultura familiar na medida em que esta forma de produção não incorporaria nem a renda da terra nem os lucros da produção. Portanto, ainda que seja exigido da agricultura familiar uma participação decisiva no desenvolvimento econômico do país, as análises não esclarecem qual seria a capacidade de apropriação do valor produzido pelos próprios produtores. Algumas análises discordantes, têm demonstrado que os baixos custos propiciado pela agricultura familiar moderna não se devem, necessariamente, a uma maior eficiência produtiva ou a uma maior produtividade, da mesma maneira que não se pode atribuir esses baixos custos à "irracionalidade econômica camponesa". Tanto em um caso, quanto em outro, estes baixos custos se devem também à sua situação de proprietário-trabalhador e trabalhador por conta própria: " 'pequenos' na ordem competitiva. Os custos são baixos porque são 'pequenos' em mercados imperfeitos e, como tal, têm um espaço social e econômico de integração restringido" (Moreira, 1997).

Moreira chama a atenção ainda para a necessidade de se precisar a noção de competitividade para os mercados agrícolas. "Pode-se afirmar que os mercados poderiam ser considerados competitivos entre os produtores agrícolas. Mas se considerarmos que do outro lado do mercado estão grandes capitais - na esfera financeira, na esfera dos insumos industriais para o setor agrícola e na esfera da agroindústria, por exemplo-, esses mercados certamente não poderão ser considerados competitivos" (Moreira, 1997).

Ora, essa questão é de fundamental importância para discutirmos a situação da agricultura familiar no desenvolvimento econômico do país, Particularmente, no que se refere ao Pronaf.

Um desvio nos objetivos do Programa é atribuído, em parte, à escolha errada dos municípios a serem beneficiados pelo Pronaf-lnfra-estrutura (Abramovay e Veiga, 1998). A seleção de municípios com maior índice de pobreza rural teria impedido que se atingisse a camada de agricultores mais preparada para desenvolver uma agricultura competitiva, portanto, resultando em um insucesso do política. Na interpretação desses autores, no lugar de selecionar os agricultores com capacidade de oferecer melhores garantias reais ao bancos e contrapartidas, além de capacidade de desenvolver uma produção com base em critérios de eficiência definidos pela competitividade, acabou-se, por imposições de ordem política, selecionando-se os mais pobres, o que teria sido, em parte, a causa do desvio nos objetivos desejados: limitou-se à possibilidade de se estimular a competitividade daqueles agricultores considerados "mais aptos" e não foi possível integrar ao mercado, de maneira "eficiente", os agricultores pobres beneficiados.

Associando progresso técnico ao aumento da capacidade produtiva e à imagem do agricultor viável, essa política assegura um enquadramento técnico-ideológico do agricultor familiar que se toma referência para implementação de metas e, sobretudo, um critério para a avaliação da eficácia das medidas adotadas e do desempenho do próprio agricultor.

Sustentada na imagem do "verdadeiro agricultor" - um profissional que seja capaz de sobreviver e reproduzir-se socialmente sustentado exclusivamente por uma única atividade econômica - essa política de valorização da agricultura familiar acaba por eleger um único tipo de agricultor - identificado à imagem de uma agricultura "modema", especializada -como o modelo do tipo de agricultura a ser estimulada no país. Torna-se evidente uma percepção evolucionista (e dualista) de mudança social que opõe a tradição à modernidade. A "tradição", sempre identificada ao atraso, ao não competitivo, ao "irracional".

Pensar o agricultor como "um profissional como outro qualquer", significa enquadrar o agricultor em um padrão calcado nos mesmos parâmetros do trabalhador urbano. De fato implica negar, ou não levar na devida consideração, os componentes culturais dos estilos de vida dos agricultores familiares que normalmente se associam a práticas econômicas diversificadas (Carneiro, 1997).

Vemos que, ao centrar a atuação do Pronaf no estímulo à conipetitividade, o governo estaria não apenas excluindo um grande contingente de produtores classificados como inviáveis economicamente ou inadequados em termo da infraestrutura disponível, como estaria também correndo o risco de desperdiçar recursos. Os critérios de exclusão são fortemente sustentados nas noções ideológicas de "verdadeiro agricultor" e de "competitividade". Estão, portanto, excluídos todos aqueles que, por motivos variados (natureza sazonal da atividade agrícola, impossibilidade de aproveitar, na produção, a totalidade de obra familiar disponível, oferta de emprego na região em situação mais favorável, que a agricultura, redirecionamento dos projetos familiares ou individuais de forma a incorporar novos rendimentos e ampliar a capacidade de consumo, entre outros) são levados a desempenhar atividades não-agrícolas ou a exercer uma forma de agricultura que não seja orientada pelos padrões de produtividade e de rentabilidade exigidos pelo modelo modernizador assumido pelo Pronaf.

Experiências de outro países, sobretudo da França, que vive hoje o esgotamento de um modelo de modernização agrícola semelhante, nos revelam que muitos estabelecimentos agrícolas foram "competentes" e "eficientes" ao desenvolverem um tipo de produção que não corresponde aos padrões estabelecidos pela política modernizadora, demonstrando um excepcional capacidade de adaptação às novas exigências. Por outro lado, um número expressivo de agricultores modernos enfrentam uma crise decorrente das dificuldades crescentes em manter as exigências do mercado em uma situação de superprodução e, conseqüentemente, de preços decrescentes dos produtos agrícolas. Essa crise se expressa não só em termos econômicos (relação entre custo da produção e preço do produto) mas também em termos sociais causada pela inexistência de um sucessor (os filhos se recusando a seguir o mesmo padrão de vida e de produção dos pais)

Neste sentido, instituir o "verdadeiro agricultor" como aquele que aufere a renda familiar quase exclusivamente da atividade agrícola implica excluir a possibilidade de combinar a agricultura com outras fontes de renda que, em alguns casos, são indispensáveis à continuidade da própria atividade agrícola ou representam uma maneira de aumentar a capacidade de consumo, ou de se manter no campo em condições mínimas de cidadania.


Uma proposta alternativa

A reconhecida heterogeneidade dos agricultores familiares a que nos referimos acima, tem sido constatada também em documentos oficiais do governo federal, o que é mais uma evidência de que elaborar uma tipologia para essa categoria ampla e genérica não é tarefa simples; implica assumir, previamente, uma posição metodológica o que, por sua vez, exige a revisão de algumas premissas aceitas de maneira naturalizada como verdades inquestionáveis.

Em um esforço de síntese, indicaremos a seguir algumas premissas que orientam a nossa abordagem da noção de agricultura familiar.

1. Os agricultores familiares não constituem um grupo social homogêneo. Não correspondem, portanto, a uma classe social mas incluem uma diversidade social produzida pelas diferentes condições de produção a que estão submetidos, tais como: tamanho da propriedade, grau de emprego de técnicos agrícolas, acesso a créditos; capital cultural [valores, saberes, tradição] e social [número e sexo dos filhos, rede de relações sociais...] disponível; relação com o mercado (Lamarche, 1993).

2. Agricultura familiar não é sinônimo de trabalho familiar. O que distingue a maioria das formas sociais de produção como familiar é o papel preponderante da família como estrutura fundamental de organização da reprodução social através da formulação de estratégia (conscientes ou não) familiares e individuais que remetem diretamente à transmissão do patrimônio material e cultural (a herança) e à transmissão da exploração agrícola (a sucessão). No entanto, não são raras as unidades de produção agrícola sustentadas exclusivamente pelo trabalho do casal ou por apenas 1 dos membros do casal. A autonomização dos membros da família em relação ao mercado de trabalho é uma tendência confirmada em diversos países da Europa, na França sobretudo, e que vem se afirmando também no Brasil. No entanto, o grau de decomposição da unidade de produção familiar é variável.
.3. A forma de exploração agrícola familiar pressupõe uma unidade de produção onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família. Como já foi apontado acima, essa identidade entre propriedade-trabalho-família não pode ser confundida com a identidade dos grupos formados pelo parentesco e pela produção. Eles se articulam, através de princípios oriundos da organização familiar, mas a lógica das relações sociais em uma esfera do social (a do parentesco, por exemplo) não pode ser reduzida à da outra, assim como a composição do grupo de trabalho não corresponde à composição do grupo familiar.

4. Por diversas razões, a agricultura, em algumas regiões do país, vem se tornando apenas um dos componentes da economia familiar, ainda que as estruturas da produção agrícola (propriedade da terra e dos meios de produção) permaneçam ligadas ao núcleo familiar. No Estado do Rio de Janeiro e em algumas áreas do Estado de São Paulo, por exemplo, as famílias rurais estão cada vez menos agrícolas no que diz respeito às atividades desempenhadas por seus membros.

5. O ressurgimento do recurso a práticas não-agrícolas integradas à agricultura familiar é um fenômeno que tanto pode apontar para uma contradição entre a individualização da força de trabalho e o caráter coletivo da economia familiar como pode acarretar o resgate de laços de solidariedade intrafamiliares que se revelam fundamentais para a combinação do trabalho individual com os interesses coletivos representados pela família e expressos na unidade de produção familiar.

6. O caráter familiar de produção não pode ser reduzido à utilização de mão-de-obra familiar. O recurso à contratação do trabalho assalariado externo e o assalariamento de membros da unidade familiar fora do estabelecimento não são suficientes para afirmarmos a decomposição do caráter familiar da unidade de produção. A total separação entre família e unidade de produção ocorreria quando as contradições entre o individual e o coletivo resultassem na preponderância do primeiro sobre o segundo, ou seja, quando fosse rompido o comprometimento do indivíduo com os interesses da propriedade e da exploração econômica que nela se realiza levando à fragmentação da propriedade e à extinção dos laços valorativos ("valor família") que identificam a família à propriedade - quando a terra passaria a ter valor somente como mercadoria.

7. Em termos conceituais, para ser mantido o caráter familiar da produção exige-se a presença de, ao menos, um membro da família que combine as atividades de administrador da produção e de trabalhador. Normalmente, mas nem sempre, esse personagem ocupa as posições de chefe da família e chefe da unidade produtiva, integrando, de um lado, o parentesco ao trabalho e à propriedade e, de outro, a produção ao consumo. No entanto, a necessidade de se distinguir a agricultura familiar da agricultura patronal, resulta na necessidade de se delimitar o número máximo de trabalhadores externos, assalariados, que comporta uma unidade de produção para se manter dentro da classificação de "familiar". Ainda que conscientes, pelo exposto acima, da arbitrariedade desse critério, consideramos que, politicamente, o apoio financeiro ao agricultor familiar deve privilegiar aquele que não emprega mão-de-obra assalariada em caráter permanente. No entanto, tendo em vista a diversidade regional, e a intensificação do processo de individuação dentro da família, com a conseqüente transformação da família em unidade de rendimento - onde a gestão da unidade produtiva seria individualizada -, é prudente incluir no público do Pronaf, famílias com um trabalhador contratado em caráter permanente

8. O trabalho extra-agrícola executado por um ou vários membros da unidade familiar pode desempenhar diferentes funções, de acordo com a lógica da dinâmica de reprodução social da unidade familiar. A renda dele obtida tanto pode servir como complemento que reforça e garante a reprodução da exploração agrícola como pode indicar uma estratégia de secundarização da atividade agrícola na reprodução social. É importante ter em mente que essas situações, muitas vezes, são conjunturais podendo se transformar, de acordo com mudanças, nas condições de produção ,agrícola e no ciclo de vida doméstico. O recurso ao trabalho não-agrícola não indica, por si só, a falência da atividade agrícola mas aponta para a plasticidade dessa forma de produção familiar que não se enquadra nem nos moldes do agricultor-empresário de ponta nem no padrão da chamada agricultura "tradicional". É justamente o caráter familiar dessa forma de produção que lhe dá maior capacidade de resistir a situações críticas possibilitando a seus membros usufruir das condições favoráveis do mercado de trabalho ou retomar a atividade agrícola em momentos de crise de desemprego.

9. A compreensão da situação da unidade de produção familiar não pode ficar restrita à dinâmica econômica (produtividade, rentabilidade, competitividade....). O significado dos próprios fatores econômicos pode ser dado por outras esferas do social já que a produção não ocorre em um vazio social, nem se resume a uma atividade isolada. A interdependência das esferas sociais se traduz em uma multiplicidade de significados das relações sociais que deve ser levada em conta na tentativa de se elaborar políticas voltadas para a ampliação da cidadania e à melhoria das condições de vida. Nesses termos o conteúdo das relações familiares na agricultura não pode ser generalizado como uma realidade naturalizada.

Alternativa metodológica: no lugar de centrarmos a análise na família como unidade de produção, o que a restringe aos aspectos técnicos e econômicos do processo produtivo, devemos eleger como unidade de observação (e de intervenção) a família como unidade social, isto é que administra a reprodução social de seus membros em situações materiais e culturais distintas. É necessário, portanto, levar em conta os aspectos culturais e o caráter, simbólico embutidos nas práticas sociais no interior do grupo familiar, conforme justificamos acima.

Uma tipologia possível

Reconhecendo os limites de uma tipologia, é necessário que comecemos por eleger os critérios que mais se adaptem aos usos da classificação: os objetivos a que se propõe e os interesses político-ideológicos. Nesses termos, se quisermos elaborar instrumentos para ampliar a categoria dos beneficiados pela política pública no sentido de incluir o maior número possível daqueles que historicamente permaneceram à margem do processo de produção de riquezas, devemos privilegiar aqueles que se encontram em situação de reprodução física e social ameaçada.

Rompendo com a abordagem morfológica propõe-se construir uma tipologia voltada para a análise dos processos sociais, centrada na identificação da lógica de reprodução social e nas diferentes estratégias sociais implícitas. Trata-se, portanto, de incorporar a idéia de dinâmica no exercício classificatório, tentando captar muito mais as tendências que situações cristalizadas. Dessa perspectiva, deve-se dimensionar as potencialidades das unidades familiares quanto a sua inversão diferenciada no mercado, o que deve ser resultado de estudos empíricos regionalizados e centrados em dados qualitativos. A partir daí é possível selecionar as categorias que serão privilegiadas por uma política de apoio à agricultura familiar pautada na inclusão de um maior número possível de unidades e na melhoria da qualidade de vida dessas famílias para, então, formular projetos que se adeqüem às necessidades e potencialidades específicas de cada categoria de produtor.

AIguns autores têm entendido a pluriatividade como um produto da contradição gerada-pelo progresso técnico cuja mecanização transformou a atividade agrícola numa atividade individual, exercida pelo chefe, descaracterizando as unidades produtivas que deixariam de ser engajadas exclusivamente na agricultura (Lacombe, 1984).

Contrapondo a esse tipo de interpretação, sugerimos que o esforço classificatório dos agricultores familiares deva levar em conta dois fatores: a tradição cultural, ou seja, a identidade com a terra e com a agricultura (o saber e os valores) e a trajetória das unidades familiares. A análise desses fatores possibilitará identificar a tendência ascendente ou descendente da trajetória familiar, e portanto as suas potencialidades, e o peso que a atividade agrícola desempenha nessa trajetória - já que o objetivo da política é estimular a agricultura familiar -, seja qual for a categoria de agricultor familiar em que a família se enquadre.

Recuperando nossa postulação inicial sobre a pluriatividade como articulação de atividades não-agrícolas na dinâmica da agricultura familiar, cumpre então, em primeiro lugar, reconhecer uma agricultura familiar "pluriativa" e outra "não-pluriativa", ou seja, exclusivamente agrícola. Entre as do segundo tipo encontram-se as formas sociais que dedicam-se tanto à monocultura como à policultura; produtores totalmente integrados aos mercados agrícolas, como também aqueles que combinam a produção de autoconsumo com a produção mercantil. As formas exclusivamente agrícolas, nesse sentido, podem apresentar situações de sucesso como de insucesso econômico e níveis diferenciados de bem estar social e cultural. Além disso, a vivência do sucesso econômico não significa, necessariamente, a vivência de bem estar social e cultural, como pode ser o caso de um sucesso econômico, medido em termos de incremento de produtividade e renda, mas que esteja acompanhado de uma intensificação da exploração da força de trabalho ou da destituição de laços de solidariedade e da desestruturação familiar. Todas essas formas podem ser enquadradas na categoria genérica de “verdadeiro agricultor", não no sentido de terem "sucesso econômico" ou de serem "profissionais" mas no sentido de terem sua reprodução social - econômica e cultural - garantida pela produção agrícola.

As unidades pluriativas, por sua vez, também podem vivenciar situações de sucesso ou de -insucesso econômico associadas a padrões diferenciados de bem estar social e de integração aos mercados (agrícolas e não agrícolas). Da mesma maneira que as de outro tipo, nessas formas pluriativas a atividade agrícola pode se aproximar tanto da monocultura como da policultura. O que é importante reconhecer, nesses,.casos, é que, seja por razões de ordem econômica, cultural ou ambas, a reprodução social incorpora atividades de setores distintos da economia, conformando o que alguns de nós temos denominado de "nova ruralidade" ou de "novo rural".

Introduzimos, assim, um critério de classificação que associa uma performance econômica (sucesso ou insucesso em termos de produtividade) - mais impessoal, de aferição provida pelo mercado - e uma performance cultural-psicológica (graus diferenciados de bem estar) - mais pessoal, de aferição provida por valores priorizados pelos indivíduos e famílias, ou ainda pelos valores locais e regionais.

Construir classificações e tipologias que envolvam estes dois elementos constitutivos implica reconhecer a obrigatoriedade de incorporar análises qualitativas às análises quantitativas. No que diz respeito à combinação de atividades não-agrícolas à agricultura familiar, somente uma análise qualitativa poderá oferecer elementos para respondermos a questão do lugar da pluriatividade na dinâmica das unidades familiares na agricultura. Nesse sentido é importante destacar que as categorias "atividade não agrícola" e "pluriatividade" exprimem uma ampla diversidade de possíveis inserções nos mercados - comércio, prestação de serviços diversos, turismo, manufaturas, artesanatos, transformações agroindustriais etc - que assumem significados distintos nas trajetórias familiares, impossíveis de serem homogeneizados simplesmente pela sua magnitude econômica, como por exemplo, 20 % da renda familiar. As diferentes implicações do recurso a práticas não-agrícolas podem expressar trajetórias sociais, culturais e econômicas variadas que afetam, de forma diferenciada, as dinâmicas das formas sociais da agricultura familiar com efeitos sobre seus padrões de bem estar social e cultural.

Caberia perguntar sobre os elementos propulsores da pluriati idade. Sem dúvida, a queda da renda agrícola tem sido apontada como um desses elementos, no entanto, é também verdade que este fenômeno é bem mais ampIo do que o exercício da pluriatividade. Em outras palavras, a insuficiência da renda oriunda da agricultura atinge um contingente de agricultores muito maior que aqueles que recorrem à pluriatividade. Logo, a questão permanece: o que faz como que alguns se tomem (mesmo temporariamente) pluriativos e outros não? É nesse aspecto que a tradição cultural, o saber fazer, a rede de sociabilidade - enfim, o patrimônio cultural - se colocam como elemento definidor do recurso às práticas não-agrícolas. As estratégias familiares vão depender, além do capital econômico disponível - e, obviamente, das condições do mercado (de trabalho, sobretudo) - do patrimônio familiar, ou seja, das capacidades (individuais e coletivas) existentes para enfrentar a situação de queda do rendimento familiar e, então, inovar ou reinventar a tradição.

Por outro lado, é necessário considerar também que, nem sempre, as estratégias familiares são formuladas visando responder exclusivamente a determinações de ordem econômica. Por exemplo, o esforço de manutenção de uma unidade produtiva agrícola que é reconhecidamente inviável em termos econômicos, pode mobilizar estratégias familiares (pluriativas) motivadas pelo valor cultural expresso no patrimônio territorial e na atividade agrícola. Mas, é importante ter em mente que a dinâmica interna da unidade familiar agrícola não se realiza em um ambiente "harmonioso" onde o "bem coletivo" se impõe ao individual. Essa dinâmica é resultado de um jogo de disputas e de negociações que, não raro, resultam em conflitos e tensões que expressam as contradições cada vez mais presentes entre a individualização crescente no interior da família e os interesses poderes familiares. Nesse contexto, é importante avaliar os efeitos desse processo na transformação da unidade produtiva em unidade de rendimento e de conservação do patrimônio.

A tendência à individualização do processo de produção agrícola introduzida pela mecanização e pela combinação da atividade agrícola com outras fontes de renda é marcante em vários paises da Europa. No caso brasileiro, contudo, cabe um esforço de levantamento de dados qualitativos que nos permita dimensionar e qualificar o caráter dessa "individualização". Pois, experiências de campo pessoais nos indicam que os laços familiares no Brasil são muito mais fortes e presentes do que na França, por exemplo, fazendo com que grande parte dos familiares disponíveis sejam acionados em determinadas fases do processo produtivo, mesmo em famílias onde a responsabilidade sobre a produção recai sobre apenas um membro. É o caráter familiar da produção, ai fortemente presente, que permite acionar irmãos que já migraram para a cidade, noras e até mesmo suas empregadas domésticas, num esforço "coletivo" de dar conta das necessidades de mão-de-obra em determinadas fases do processo de produção. É o caráter familiar da propriedade e da produção que define esse trabalho como "ajuda" e permite lhe atribuir um sentido de remuneração distinto da do mercado. O número de trabalhadores sazonais empregados pelas unidades de produção, assim "individualizadas", vai depender justamente da dimensão dessa "ajuda" familiar.

Após essas considerações sobre a possibilidade de distinguir modos de conduzir a agricultura mas que não definem categorias de agricultores, nos, arriscamos, cientes de todos os limites inerentes a uma tipologia genérica, a propor dois cantinhos de classificação, como ponto de partida para estudos de detalhamento futuros.

Começaremos pela classificação das unidades familiares agrícolas segundo os princípios que orientam sua reprodução social. Caracterizando-se pela íntima relação entre trabalho, terra e família, a distinção entre elas repousa sobre a maneira específica de combinar as alternativas colocadas à disposição, pelo contexto sócio-econômico (condições extra-familiares) e pelo campo de possibilidades (condições internas à família) específicos para realizarem suas escolhas e formularem suas estratégias particulares.

Seguindo esse recorte é possível reconhecer as seguintes categorias

1. Família agrícola de caráter empresarial (ou o chamado, "verdadeiro agricultor"): cuja lógica de reprodução social é determinada pela realização de uma produção orientada para o mercado, obedecendo à satisfação de índices de rentabilidade e de produtividade crescentes; caracterizar-se por uma conjunção de fatores econômicos, técnicos e uma situação patrimonial (e social) favorável à rentabilização da exploração. Esses agricultores, beneficiados por uma situação favorável no passado (capital patrimonial herdado, acesso a saberes técnicos específicos, condições físicas de produção etc...) lograram implementar trajetórias ascendentes pautadas no padrão hegemônico de modernização agrícola.
2. A família camponesa: cuja lógica da atividade agrícola não é dada, em termos de prioridade, pela busca de taxa de Produtividade e de rentabilidade crescentes mas pelo esforço de manter a família em determinadas condições culturais e sociais, isto é, a manutenção da propriedade familiar e da exploração agrícola. A família é um valor que se impõe à produção embora seja indissociável da propriedade e da exploração agrícola. A multiplicidade de estratégias individuais e familiares deriva das fracas condições de produção: recorre-se a vários meios para manter a unidade de produção e garantir a reprodução social estruturalmente ameaçada. O esforço de preservação do patrimônio territorial familiar se confunde, aqui,.com o exercício da atividade agrícola ainda que esta, em muitos casos, não seja mais suficiente para a manutenção do grupo familiar.

3. A família agrícola "rurbana": não se orienta prioritariamente pelos padrões produtivistas mas também se distingue da "família camponesa" apesar de resgatar alguns de seus valores e de expressar um forte vínculo com uma localidade particular. Esse modelo de família rural repousa sobre um sistema de valores próprios (em elaboração) que orienta a produção agrícola, não em função do lucro e da produtividade crescentes, mas para a melhoria da qualidade de vida, sem deixar de considerar a realidade do mercado e, obviamente a capacidade de retomo em termos de rendimento. A diversificação da produção e das fontes de renda - o recurso à pluriatividacie - são características dessa tipo de agricultura familiar. A identidade entre família e unidade de produção, típica do modelo produtivista e da família camponesa, é colocada em xeque com a prática de atividades não-agrícolats inaugurando um movimento contraditório onde a indlvidualização da força de trabalho convive com o caráter unitário da economia doméstica. Essa nova forma de unidade familiar de produção agrícola se caracterizaria não mais pela organização coletiva (familiar) do trabalho e do consumo, mas pela capacidade de gerar coletivamente o capital econômico, social e cultural visando a reprodução biológica e social dos indivíduos. Essa categoria de família rural estaria sendo engendrada pelos novos processos sociais no campo caracterizados pela diversificação das atividades econômicas e pela incapacidade da agricultura em prover renda suficiente para essas famílias se manterem em condições dignas de vida (Graziano da Silva e Del Grossí, 1998). Em se tratando de uma categoria em formação e da atualidade dos processos sociais que a engendram, a sua definição carece de estudos mais aprofundados.

Como colocamos acima, a pluriatividade é uma possibilidade que se apresenta para qualquer das categorias acima, mas sendo menos provável de ser exercida pelo chamado "verdadeiro agricultor". Sendo assim, é impossível distinguir um tipo de família simplesmente pelo recurso à atividade nâo agrícola ou pelo tempo de trabalho dedicado à agricultura. Restaria identificar e compreender o significado (e o peso) das práticas não-agrícolas nas estratégias reprodutivas de cada tipo de família no sentido de reconhecer a tendêrtcia de sua trajetória futura em relação à agricultura e às demais opções de renda, o que exigiria um aprofundamento qualitativo da análise dessas famílias.

Afora essas categorias de agricultores familiares reconhece-se outros tipos de famílias rurais relacionadas à propriedade mas cujo tratbalho não é familiar e nem sempre pautado pela atividade agrícola. Entre eles destacam-se os chamados neo-rurais que, desenvolvendo atividades produtivas agrícolas ou não, caracterizam-se pela ausência de uma tradição assentada na atividade agrícola, pelo caráter essencialmente mercantil da exploração econômica da propriedade (produtiva ou de serviço) e pelo recurso à mão-de-obra assalariada, assumindo o proprietário a posição de mero administrador da produção (Giulianni, 1990).

Destacam-se ainda os recém-assentados rurais de oriqern urbana, para quem a relação com a terra é uma alternativa às restrições do mercado de trabalho urbano onde a baixa remuneração da mão-de-obra desqualificada e o crescente custo da reprodução social na cidade impulsionaram a migração cidade-campo como uma alternativa às limitações impostas à sobrevivência na cidade (Alentejano, 1997).

Para cada uma dessas categorias é possível estabelecer uma outra classificação baseada nas estratégias familiares associadas a graus diferenciados de compromisso com a atividade agrícola e com o patrimônio familiar podendo-se reconhecer trajetórias ascendentes ou descendentes. Entre essas estratégias destacam-se basicamente dois tipos: as que investem na manutenção da atividade principal agrícola e as que tendem a diminuir o peso da atividade agrícola na renda familiar reorientando o uso da propriedade e da mão-deobra familiar para outros setores. Em cada uma delas a atividade não-agrícola vai responder a necessidades distintas.

Entre as que tendem a secundarizar a atividade agrícola em função da implementação de atividades não-agrícolas podemos distinguir, basicamente, três estratégias:

1. Com a desvalorização da produção agrícola, a propriedade familiar é mantida seja como reserva de valor ou como bem simbólico associado à família, sem que a produção nela desenvolvida seja suficiente para manter os membros do grupo doméstico. A pluriatividade permite preservar o funcionamento da exploração agrícola mesmo que esta não reverta em benefícios econômicos imediatos para a família. Seja pela área reduzida da propriedade, seja pela ausência de meios para intensificar a produção agrícola, a atividade agrícola é secundarizada. A motivação ideológica para manter a exploração agrícola está, normalmente, associada ao interesse em preservar o patrimônio familiar e uma identidade social sustentada na utilização agrícola desse patrimônio, na maioria das vezes identificado à figura do pai que é mantido na agricultura graças à ajuda financeira de filhos que já se estabeleceram em outros setores.

A partir de uma maior interação com valores urbanos decorrentes da unificação dos mercados econômico e simbólico, uma nova transformação do sistema de referência do mundo rural se produz. A inserção individual crescente no mercado de trabalho e a intensificação da subordinação da família rural à sociedade industrial, neutraliza o papel da família como instância privilegiada de mediação entre o indivíduo e a sociedade abrindo espaço para estratégias concorrentes e antagônicas entre indivíduo e família, acelerando o processo de individuação no interior da família e a transformação definitiva da terra em mercadoria. Assim, em situações em que atividade agrícola é meramente residual e tem a função social de manter a residência e a ocupação de membros da geração mais velha, a tendência é de abandono da atividade produtiva após a morte dos pais acarretando a fragmentação da propriedade familiar acompanhada normalmente de mudanças nas regras de transmissão da propriedade: a herança cede lugar a transações de compra e venda entre os herdeiros. Observa-se a ruptura dos laços entre família, propriedade e trabalho com a conseqüente perda da identificação da propriedade à exploração agrícola, abrindo-se espaço para novas utilizações do patrimônio fundiário e para a elaboração de novas identidades sociais no meio rural.

2. Investir na formação educacional dos filhos visando ampliar sua capacidade de inserção no mercado de trabalho, pode ser uma outra estratégia que mobilize a família agrícola a desativar ou secundarizar a produção agrícola buscando novas alternativas de,renda. Privilegiar a formação profissional dos filhos longe do meio agrícola pode ser uma opção que se insira numa trajetória de abandono, a curto termo, da propriedade como unidade de produção agrícola. Essa estratégia atinge particularmente os jovens que, liberados da responsabilidade de manter o funcionamento da unidade de produção, podem alcançar níveis de escolarização mais elevados que outros jovens, cujos pais insistiram em preservar a exploração agrícola. Sob tais condições, contraditórias para a reprodução social da unidade familiar, a exploração agrícola toma-se desinteressante para os filhos de agricultores, inaugurando-se uma crise motivada pela ausência de sucessor para o chefe da unidade produtiva e que pode acarretar o abandono do investimento familiar na exploração agrícola.

3. A diversificação do investimento econômico procurando setores mais rentáveis, como o comércio (Garcia Jr., 1989) ou a prestação de serviços (pousadas, restaurantes, pesque e pague..) é reconhecida como uma estratégia de ampliação da capacidade de capitalização da propriedade que pode levar à secundarização da atividade agrícola enquanto durarem as condições favoráveis para os outros investimentos ou ao abandono definitivo da atividade produtiva.


Bibliografia:

ABRAMOVAY, Ricardo, CAMARANO, A. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos útlimos cincoenta anos. Manuscrito apresentado na XXI Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, 1998.

___________________ , VEIGA, José Eli da. Análise (diagnóstico) da inserção do PRONAF na política agricola. (Relatório Final), Convênio IIIEA/FIPE, 1998.

ALENTEJANO, Paulo Roberto. Reforma agrária e pluriatividade no Rio de Janeiro: repensando a dicotomia rural-urbano nos assentamentos. Rio de Janeiro : CPDA/UFRRJ, 1997. (Dissertação de mestrado)

CARNEIRO, Maria José. Camponeses agricultores e pluriatividade. Rio de Janeiro : Contra Capa Livraria, 1998.

___________________ . Política pública e agricultura familiar: uma leitura do Pronaf. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 8, abril, 1997;

DURKHEIM, Emille, MAUSS, Marcel. Primitive classification. Chicago : University Chicago Press, 1979.

FAO-INCRA, Diretrizes de política agrária e desenvolvimento sustentável. Versão Resumida Final do Projeto UTF-BRA/o36. Brasília, Novembro, 1994.

GARCIA JR. , Afrânio. Sul: o caminho do roçado. São Paulo Ed. Marco Zero, 1989.

GIULIANNI, Gian Mario. Neo-ruralismo; o novo estilo dos velhos modelos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.14, ano 5, out. 1990;

GODELIER, Maurice. L'idéel et le matériel. Paris : Librairie Arthème Fayard, 1984;

_______________ . Transitions et subordinations au capitalisme. Paris : Ed. Maison des Sciences de I'Homme, 1991.

GRAZIANO DA SILVA, José, DEL GROSSI, Mauro. E. A evolução do emprego rural não-agrícola no meio rural brasileiro. Seminário lnternacional Campo-Cidade. Curitiba, Paraná. 1998 (mímeo).

LACOMBE, Phillpe. La pluriativité et l'évolution des exploitations agricles. IN Association Ruraliste Française. La pluriactivité dans les familles agricoles. Paris : ARF, 1984;

LAMARCHE, Hugues (Org.) A agricultura familiar; comparação internacional. Campinas : Ed. UNICAMP, 1993.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento selvagem. Campinas : Papirus, 1989.

___________________ .Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1970.

MOREIRA, Roberto José. Agricultura familiar e assentamentos rurais: competitividade, tecnologia e integração social. IN: FERREIRA, A. D. D., BRANDENBURG, A (Orgs.). Para pensar outra agricultura. Curitiba : Ed. da UFPR, 1998.

_______________________ . Agricultura familiar e sustentabilidade: valorização e desvalorização econômica e cultural das técnicas. Estudos, Sociedade e Agricultura, n. 8, abril 1997.

NEVES, Delma. Agricultura familiar, artimanhas da classlficação. À Margem. Revista de Ciências Humanas, Niterói, ano 1, n. 3, 1993.

TEIXEIRA, Vanessa. Pluriatividade e agricultura familiar na região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, CPDA/UFRRJ, 1998. (Dissertação de mestrado)

VELHO, Otávio. Capitalismo autoritário e capesinato. São Pau!o : Difel, 1976.

WANDERLEY, Maria Nazareth. O camponês: um trabalhador para o capital. Campinas : UNICAMP/Grupo de Estudos Agrários, 1979. (mimeo)

WILKINSON, John. Mercosul e produção familiar: abordagens teóricas e estratégias alternativas. Estudos, Sociedade e Agricultura, n.8, abril, 1997.

YANAGISAKO, S.J. Famly and household. The analysis of domestic groups. Annual Review of Antropology, 1979.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

SER(ES) AFINS