quarta-feira, 21 de abril de 2010

A economia da Família - Ladislau Dowbor

Março de 2003

Nós nos reproduzimos através de gerações sucessivas. E a unidade básica de organização desta reprodução é a família. Ou pelo menos foi: hoje, o processo está se tornando incomparavelmente mais complexo e diversificado.

A família como unidade econômica

Vísta pelo ângulo da economia, a reprodução de gerações numa família se constrói através de laços de solidariedade. Os pais cuidam das crianças, e dos seus próprios pais já idosos, e serão por sua vez cuidados pelos filhos. A solidariedade é marcada pela panela, pelo fato de um grupo sobreviver em torno do mesmo fogão de cozinha. Não é à toa que “lar” tem a mesma raiz que “lareira”, como é o caso também, por exemplo, de “foyer” e “feu” em francês. Como a criança não tem autonomia para sobreviver, e nem o idoso, a sobrevivência das sucessivas gerações dependia vitalmente no passsado, e ainda depende em grande parte nas sociedades modernas, da solidariedade famíliar.

Em termos econômicos, a fase ativa da nossa vida, tipicamente dos 16 aos 64 anos, pode ser vista como produzindo um excedente: produzimos nesta idade mais do que o consumido, e com isto podemos sustentar filhos e idosos, eventuais deficientes, ou doentes, ou pessoas da família, mesmo em idade ativa, que não tenham como sustentar-se. Em outros termos, a economia da família permite, ou permitia, uma redistribuição interna entre os que produzem um excedente, e os que necessitam deste excedente para sobreviver.

O que está acontecendo, é que a família está deixando de assegurar esta ponte entre produtores e não-produtores. A família ampla, onde se misturavam avôs, tios, primos, irmãos, praticamente desapareceu, ainda que sobreviva em regiões rurais. O capitalismo moderno, centrado no consumismo, inventou a família econômicamente rentável, composta de mãe, pai e um casal de filhos, o apartamento, a geladeira para 12 ovos, o sofá e a televisão. É a família nuclear.

A tendência mais recente, é a desarticulação da própria família nuclear. Nos Estados Unidos, apenas 26% dos domicílios têm pai, mãe e filhos. Na Suécia, seriam 23%. Hoje contam-se nos dedos os amigos que não estão divorciados. Mesmo quando estão juntos, pai e mãe trabalham, os filhos estão na escola (quando está tudo em ordem), e a vida famíliar resume-se frequentemente a uma pequena roda cansada olhando para as bobagens da televisão no fim da noite.

O próprio casamento tem um futuro incerto. Um balanço da situação na Europa ocidental e em países de expressão inglesa, constata que há quarenta anos havia em torno de 5% de nascimentos sem casamento. Hoje, esta proporção ultrapassa 30%. Esta tendência pode ser muito desigual: no Japão, apenas 1%. Entre os hispánicos nos Estados Unidos, são 42%, e entre negros americanos, 69%, enquanto a média geral americana é 33%.[1]

A mudança profunda e acelerada na estrutura famíliar terá sem dúvida profundo impacto sobre um grande número de dinâmicas sociais, a cultura, os valores, as formas de convívio. Interessa-nos aqui particularmente a dinâmica da reprodução social.

O ser humano nem sempre obedeceu à filosofia geral do homo homini lupus, homem lobo do homem. Para além da família, havia as comunidades, os clãs, tribos, quilombos, sociedades mais ou menos secretas e as mais diversas formas de solidariedade social. Ou seja, podia-se procurar o vizinho. Hoje, nesta era da sociedade anônima, uma pessoa está literalmente só na multidão urbana. A urbanização, e sobretudo a metropolizaçao, contribuiram para isto, mas também contribuiram a televisão, a formação dos subúrbios e das cidades-dormitório, e uma série de fatores tão bem estudados por Robert Putnam em Bowling Alone.[2] Voltaremos a isto. O que nos interessa neste momento, é o fato que junto com a família é a própria articulação da comunidade e da solidariedade social que se fragilizam.

Com a revolução tecnológica, o conhecimento torna-se um elemento central dos processos produtivos. Com isto, se uma geração atrás a infância terminava com o quarto ano, hoje, para a maioria das pessoas, a fase dependente no início da vida tende a estender-se cada vez mais, e vemos com frequência jovens que vivem uma pós-adolescência tardia, buscando mais um ano de estudo, à procura de um emprego no horizonte.

Do lado do idoso, havia uma certa lógica nas sociedades de antigamente. Vivia-se até os 50 anos, quando muito, e o tempo de criar os filhos era a conta justa. Hoje, uma pessoa pode perfeitamente viver até os 80 ou mais anos, e a terceira idade assume uma dimensão que cobre entre um quarto e um terço da nossa vida. Trata-se, aqui também, de uma fase de dependência muito precária, pois os sistemas de aposentadoria, tanto em termos de cobertura como de nível de remuneração, são amplamente deficientes, enquanto a família comercialmente correta simplesmente evita o convívio.

Ou seja, o tempo de dependência da nossa vida aumentou dramaticamente, enquanto a família, que assegurava a redistribuição do excedente entre as gerações – e entre as fases remuneradas e não-remuneradas das nossas vidas – está se tornando cada vez menos presente. Este processo torna absolutamente indispensável a presença de mecanismos sociais de redistribuição de renda, suprindo o papel que as famílias estão deixando de desempenhar. Trata-se de uma redistribuição de renda já não só dos ricos para os pobres, mas entre gerações.

Passamos a depender, portanto, de mecanismos formais de redistribuição do excende entre produtores e não produtores. Neste contexto, o ataque generalizado ao Estado, a redução do espaço do Estado de bem-estar – que aliás nunca foi muito amplo entre nós – e sobretudo a privatização das políticas sociais, tornam portanto a situação absolutamente dramática para amplas faixas da população. A continuidade do processo se rompe.

Tentar reduzir o Estado, sobretudo nas suas dimensões sociais, constitui portanto um absurdo, e uma compreensão completamente equivocada do rumo das transformações sociais. Os paises desenvolvidos, que possuem de forma geral amplas políticas sociais, se dotaram de máquinas estatais que gerem, em média, 50% do produto interno bruto. Em comparação, nos nossos pobres países em desenvolvimento o Estado gere em média 25% do Pib.

É importante lembrar que as políticas públicas, apesar de todo gosto que temos em criticar o Estado, constituem de longe o instrumento mais eficiente de promoção de políticas sociais, e em todo caso as únicas que permitem o reequilibramento social. Basta constatar a excelência nesta área atingida pelo Canadá, pela Suécia, ou ainda comparar o Canadá com os Estados Unidos, onde com o dobro do gasto não se chega nem longe da qualidade dos serviços de saúde canadenses. Isto sem falar de Cuba, onde a excelência na área da saúde é atingida com recursos extremamente exíguos. A razão é bastante simples, e meridianamente clara por exemplo na saúde: uma empresa privada quer ter mais clientes, o que no caso da saúde significa mais doentes. Com isto se perde a visão essencial da prevenção. Na educação, o processo é semelhante, com as universidades privadas aumentando simplesmente o número de alunos por professor: aluno é dinheiro, professor é custo. As pricipais universidades americanas são privadas, mas sem fins lucrativos. No caso brasileiro, com a forte concentração de renda, o setor privado, quando entra no social, busca naturalmente servir quem pode pagar, e gera o luxo para elites, drenando recursos e privando os serviços humanos do seu papel de reequilibrador social.[3]

No conjunto, portanto, enquanto as fases não remuneradas das nossas vidas se expandem, a família perde o seu papel redistribuidor, as comunidades perdem o seu caráter de solidariedade, o Estado abandona o seu papel de provedor, e o setor privado abocanha os recursos e os direciona para elites, agravando a situação do conjunto. Geram-se assim imensas tensões na reprodução social, tensões acompanhadas de desespero e impotência, porque sentidas como dramas individuais, de crianças e jovens sem rumos, de idosos reduzidos a uma mendicância humilhante, de um clima geral de vale-tudo social. Criança não vota, aposentado não paralisa processo produtivo, mãe que cria sozinha os seus filhos (26% dos domicílios no Brasil têm a mãe como principal responsável) nem tem tempo de pensar nestas coisas.

A poupança famíliar

A tendência é lamentável, pois nunca houve um excedente social – fruto do aumento da produtividade – tão amplo. No nível da família, o excedente se apresenta sob forma de poupança. Esta representa um tipo de seguro de vida individual, ou famíliar. No mundo da agricultura famíliar, a acumulação sob forma de bens ainda é forte: são as galinhas, os porcos, as vacas, as safras reservadas para consumo e semente, os embutidos, as conservas: de certa forma, a unidade de agricultura famíliar forma a sua própria conta bancária, sob forma de produção acumulada. No mundo urbanizado, ainda há gente que poupa através da aquisição de um segundo ou terceiro imóvel, que será alugado, e representa uma garantia de renda para o futuro. Mas no conjunto, passamos todos – os que temos certa poupança – a depender de intermediários financeiros. E quando não a temos, a depender dos crediários. Como as poupanças hoje são representadas por sinais magnéticos, com a correspondente volatilidade, perdemos o controle sobre o que é feito com o nosso excedente.

O caso brasileiro é aqui de uma clareza meridiana. O dinheiro que aplicamos no Banco rende, neste início de 2003, cerca de 10% ao ano. O Banco aplica este dinheiro em títulos do governo, a 26%. O governo, por sua vez, remunera estes títulos com dinheiro público, ou seja, com os impostos. Como 26% menos 10% são 16%, na prática as famílias estão remunerando o banco, via governo e por meio do imposto, 16% ao ano para que ele tenha o seu dinheiro. Trabalhar com dinheiro dos outros desta maneira, para o Banco, é muito estimulante.[4]

Naturalmente, uma remuneração dos intermediários financeiros neste nível de juros, a longo prazo, é insustentável, pois não há contribuinte para cobrir tanta dívida crescente. A dívida atinge algo como 800 bilhões de reais. Nem toda esta dívida é remunerada a 26%, mas de toda maneira atingimos um ponto em que o governo, mesmo apertando o cinto para ober um superávit de 4%, ainda assim mal cobre um terço dos juros, que dirá restituir o principal. Entramos assim, como país, na linha de tantas pessoas que por não poderem pagar um empréstimo, entram no cheque especial, e depois no limite do cartão e assim por diante. O sistema leva o governo a desviar – segundo previsão para 2003 – 146 bilhões de reais, para o serviço da dívida, com o que deixa de prestar boa parte das políticas sociais, razão inicial pela qual pagamos impostos.[5]

O que se passa no setor produtivo? Um produtor pode procurar o banco para financiar o seu negócio, mas como o banco tem a alternativa de aplicar sem risco a 26%, os juros cobrados são proibitivos (na faixa de 60% para o créditos empresarial), e o produtor nacional fica simplesmente inviabilizado. O resultado prático é a estagnação da economia. Com isto fica mais difícil ampliar a receita pública, o que por sua vez enforca ainda mais o governo, obrigando-o a elevar o juro, ou mantê-lo no nível estratosférico atual. A justificativa oficial é que se trata de conter a inflação: na realidade, a partir de um certo nível, a alta taxa de juros, em vez de conter a demanda, apenas aumenta os custos dos produtores, que repassam estes custos para os preços, gerando mais inflação. Quem paga esta inflação, naturalmente, são as famílias que aguardam o reajuste salarial ou da aposentadoria.

O que acontece com o desenvolvimento local? Antigamente – hoje antigamente significa algumas décadas atrás – um gerente de agência conversava com todos os empresários locais, buscando identificar oportunidades de investimento na região, tornando-se um fomentador de desenvolvimento. Hoje, o gerente é remunerado por pontos, em função de quanto consegue extrair. Ontem, era um semeador à procura de terreno fertil. Hoje, é um aspirador que deixa o vazio. O resultado prático, é que inúmeras pequenas iniciativas essenciais para dinamizar o tecido econômico do país deixam de existir. Isto varre do mapa milhões de pequenas iniciativas de acumulação famíliar urbana, tipicamente centradas no pequeno negócio, na chama micro-empresa. Hoje o lema é “pequenas empresas, grandes negócios”...para os intermediários financeiros.

O que acontece com o cidadão comum, que não é nem governo, nem empresário, nem organizador do desenvolvimento local? O cliente abre a conta onde a empresa lhe paga. Este ponto é muito importante, pois significa que para o comum dos mortais, não há realmente concorrência de mercado, e os bancos podem elevar tarifas ou cobrar juros que quiserem, dando apenas uma olhadinha de vez em quando no comportamento dos outros bancos, para não se distanciarem demasiado. O resultado prático é um juro médio para pessoa física é superior a 100%. O efeito sobre o orçamento famíliar é desastroso: os custos financeiros consomem algo como 30% da renda famíliar brasileira. Entra aqui também, naturalmente, o fato que empresas comerciais descobriram que se ganha muito mais dinheiro lidando com dinheiro do que com produtos. O pobre, por ganhar pouco, pode pagar pouco, e se vê obrigado a parcelar a sua magra capacidade de compra, a juros numa altitude onde já começa a faltar oxigênio.[6]

O resultado, é que a capacidade de consumo das famílias, essencial para dinamizar as atividades econômicas do país, é esterilizada, pois grande parte da nossa capacidade de compra é transformada em remuneração da intermediação financeira. Assim, a paralisia atinge o governo, as atividades produtivas, a dinâmica do desenvolvimento local, e o elemento dinamizador tão importante que é o mercado interno.

O processo hoje é global. Como sabemos, boa parte das dívida é denominada em dólares. Isto significa que, se o dólar subir, os especuladores donos destas dívidas poderão receber mais. Os países pobres, do chamado terceiro mundo, não têm como imprimir divisas. Naturalmente, quanto mais o país precisa de divisas para equilibrar as suas contas, maior será a reticência da chamada comunidade financeira internacional em emprestar, a não ser, naturalmente, que o país assegure juros altos, com todas as consequências que vimos acima.

O país pobre tem reservas limitadas. O Brasil tem reservas da ordem de 30 bilhões de dólares, a Argentina algo como 10 bilhões. Para comparar, um especulador médio como Edward Jones maneja, segundo o Business Week, 255 bilhões de dólares, a Merril Lynch algo como um trilhão de dólares. Joseph Stiglitz, premio Nobel de economia de 2001, explica o processo de forma meridiana, usando o exemplo concreto de uma operação na Tailândia. Um especulador pede um empréstimo de um bilhão de dólares aos bancos tailandeses, em moeda local. Como se trata de um grande investidor internacional, os bancos locais ficam encantados. Com este bilhão, o especulador sai comprando dólares no mercado local. Vendo o dólar sumir do mercado, outros banqueiros e especuladores locais também passam a comprar dólares, cuja cotação sobe vertiginosamente. Depois de um tempo, o especulador revende parte dos dólares para pagar o empréstimo local, e sai com um lucro líquido de 400 milhões de dólares para cada bilhão empatado. Não produziu nada, não precisou movimentar um centávo seu, e como o controle do movimento de capitais é pecado mortal na doutrina do que Stiglitz chama apropriadamente de “fundamentalistas do mercado”, o dinheiro sai do país. O especulador não precisou sair de Manhattan.

Como se comporta a teoria oficial do Fundo Monetário Internacional frente a estas dinâmicas? “Os benefícios fundamentais da globalização financeira são bem conhecidos: ao canalizar fundos para os seus usos mais produtivos, ela pode ajudar tanto os paises desenvolvidos como os em via de desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de vida.” (Finance & Development, IMF, March 2002, p. 13).

O processo é inverso. Descapitaliza-se o setor produtivo, o Estado, as comunidades e as famílias. Como o processo implica juros altos, as empresas são levadas a se autofinanciar. Assim, a liberalização dos fluxos de capital que deveria teoricamente “canalizar fundos para os seus usos mais produtivos” leva pelo contrário à drenagem dos recursos para fins especulativos, e leva as empresas cada vez mais a buscarem o autofinanciamento, gerando um feudalismo financeiro em que cada um busca a autosuficiência, perdendo-se justamente a capacidade das poupanças de uns irrigarem os investimentos de outros. O efeito é rigorosamente inverso do previsto, ou imaginado, pelo Fundo, mas rigorosamente coerente com os interesses da especulação. Consegue-se assim montar um sistema articulado de esterilização de poupança, de restrição do consumo e de desincentivo ao investimento que paraliza o país.

E a família? Ora, a fuga de divisas para fora do país, em favor de quem não produziu rigorosamente nada, representa um empobrecimento. Este empobrecimento se materializa em maiores exportações, para ganhar divisas e poder “honrar os compromissos”. São mais bens exportados, e menos bens disponíveis no mercado interno. Os bens importados incorporam o preço alto do dólar, geando a inflação. A alta de preços não é acompanhada pelos salários, e assim as famílias vêm o seu pecúlio reduzido. Em outros termos, quando as poupanças passam para o papel, representam o que este papel pode comprar. Um velho casal de argentinos me perguntava espantado, tentando entender: “Mas era a poupança da nossa vida, como pode ter desaparecido?”. Hoje, na realidade, nem sequer é papel, são sinais magnéticos. Mas não é preciso ir para a Argentina, basta consultar como se sentem os americanos que tinham jogado a sua aposentadoria em papéis da Enron, ou ainda os brasileiros que recebem 6% pela poupança, muito abaixo do que perdem com a inflação.

Insistimos aqui nesta dimensão econômico-financeira do processo, pois é importante que as pessoas entendam que a globalização tem tudo a ver com o nosso cotidiano, com a angústia de qualquer família com o seu futuro, com o futuro dos seus filhos. É significativa a obsessão com a qual famílias relativamente pobres se enforcam para assegurar à nova geração um diploma universitário, forma indireta de garantir o futuro, na ausência de outras garantias confiáveis. Perder o controle da sua poupança representa, para a família, perder o controle sobre o seu próprio futuro.

Em termos econômicos, a família constitui um processo, uma sucessão de situações que constituem a nossa reprodução social. Se todos os elos desta reprodução não estão assegurados, se temos por exemplo uma juventude desorientada ou desesperada, e a dramática mortalidade adolescente por assassinatos, isto faz parte de uma processo que não assegura a própria lógica, tornou-se discontínuo, por mais que tenhamos belos hospitais de cinco estrelas para os executivos atualmente empregados. A perda do controle sobre as poupanças vai ter um efeito direto sobre a forma da família organizar a sua participação nas atividades produtivas, no mundo do trabalho, pois reduz dramaticamente o seu espaço de opções. Nesta fase de globalização, o que o liberalismo está gerando, é rigorosamente a perda de liberdade econômica, e qualquer casal que tenta fechar as contas e planejar o seu futuro, e o dos seus pais e filhos, sente-se crescentemente angustiado.

Família e trabalho

Nas sociedades tradicionais, havia uma certa continuidade na organização da produção, de uma geração para outra. Na era rural de agricultura famíliar, a inserção produtiva ocorria naturalmente, pelo fato de haver coincidência do domicílio e do espaço produtivo. O filho ia gradualmente aprendendo com o pai as fainas agrícolas, organizavam-se diversas formas de divisão de trabalho na família. Em outros termos, e mantendo a nossa visão de que a família constitui um processo de reprodução social, o trabalho representava uma continuidade entre gerações. Esta dimensão não desapareceu. É importante lembrar que o mundo rural representa ainda a metade da população mundial, e de que a metade da população mundial ainda cozinha com lenha. Às vezes ficamos tão concentrados na ponta da sociedade, nos executivos apressados e nos toyotismos modernos, que passamos a achar que só existe isto, e esquecemos que o mundo articula de maneira complexa eras e ritmos diferenciados. No Brasil, com 17 milhões de trabalhadores, o mundo rural ainda representa o maior setor empregador do país. A indústria tem uns 9 milhões de trabalhadores, o comércio algo como 7 milhões.[7]

Mas o mundo do nosso convívio é hoje essencialmente urbano. E nas cidades, são relativamente raros os casos de continuidade profissional, salvo no caso de pequenas empresas famíliares. Não há mais coincidência entre o espaço residencial e o espaço de trabalho, e cada vez mais a casa é para onde se volta cansado à noite, e de onde saem sonolentos pais e filhos para a labuta diária de manhãzinha. Há subúrbios que constituem hoje cidades-dormitório, mas de forma geral as nossas casas viraram casas-dormitório.

Com a esterilização da poupança das famílias, estas ficam com muito pouca iniciativa sobre o seu trabalho. A pessoa não “organiza” as suas atividades, “busca” emprego no espaço anônimo da cidade. Com o aprofundamento da divisão do trabalho na sociedade, há empresas especializadas para cada coisa, e o acesso ao que nos é necessário na vida cotidiana passa a depender de renda. Não nos damos conta, às vezes, de que na vida famíliar o bolo se fazia em casa, frequentemente o pão, quando hoje cada vez menos se cozinha em casa. O que perdemos, em grande parte, é o sentimento de que a nossa vida depende de nós, do nosso esforço e gosto de iniciativa. Sentimo-nos empurrados por forças cujos mecanismos nos escapam.

Em Imperatriz do Maranhão, o meu pai idoso – já nos noventa – era cuidado por uma jóvem de 80, que além de cuidar do meu pai aproveitava a horta que os netos montaram para ela, em estrados de palmeiras rachadas ao meio, para cultivar cebolinha, salsa, ervas diversas, que ia todo dia vender numa cestinha, pela vizinhança. Cultivava assim não apenas ervas, mas um círculo de amigos. Gerava a sua própria renda, mas cada um na família ajudava. Imagem do passado? Não necessariamente, pois hoje com as novas tecnologias há amplos espaços de colaboração famíliar ou de vizinhança, resgatando novas formas de articulação do trabalho, novas solidariedades.

Não é a volta a um passado bucólico que estmos aqui sugerindo. É essencial entender que o espaço da família era um espaço onde se fazia coisas juntos, como era o caso das comuniddes. O desaparecimento desta dimensão da organização social gera uma sociedade de indivíduos que rosnam uns para os outros na luta pelo dinheiro, e esquecem que a qualidade de vida é uma construção social. Vencer na vida, da forma como nos apresentam diariamente na televisão, é um processo de guerra contra os outros, e resulta em morarmos num condomínio caro e cercado de guaritas. É o sucesso.

Construir uma sociedade civilizada passa por dinâmicas sociais mais complexas, que até as empresas mais retrógradas estão começando a aprender, na linha da responsabilidade social e ambiental.

De certa forma, este raciocínio nos leva ao fato que o trabalho não é apenas uma tarefa técnica que consiste em produzir o mais rápido possível, o mais possível, buscando o máximo de dinheiro possível. O trabalho deve constituir um elemente essencial da organização do convívio social. A ruptura profunda gerada, entre o universo do trabalho e o universo famíliar, tende naturalmente a desestruturar esta última. E o trabalho, privado da sua dimensão afetiva de relacionamento, na correria do just-in-time, na malvadeza cientificamente assumida do lean-and-mean, na patologia cristã de que só é virtuoso o que nos faz sofrer, o que nos sacrifica, gera gradualmente um deserto onde vemos pouco sentido no que fazemos no emprego, a não ser no dinheiro do fim do mês, na compra de mais uma televisão, na troca do sofá.

A sociabilidade no trabalho é funcional, interessada, presa à hierarquia de quem manda e de quem obedece, eivada de rivalidades, ciumes, cotoveladas discretos, sorrisos amarelos. A sabedoria popular brasileira, neste caso, é rica: “cuidado com o calo que você pisa, pode pertencer a um saco que amanhã você terá de puxar”.

Não se trata aqui de um olhar sombrio. Pelo contrário, as tecnologias, os avanços científicos, nos permitem hoje resgatar uma outra cultura do trabalho. As barreiras que criamos são rigorosamente artificiais. Porque uma criança vê o seu pai e a sua mãe desaparecerem diariamente para um espaço misterioso chamado “trabalho”, sem nunca ter oportunidade de visitar as suas empresas, de ver o que fazem? É natural a portaria com todas as suas seguranças? É natural o constrangimento com que uma mãe recebe no emprego um telefonema do filho, do marido? Afinal o trabalho deve ser para nós, ou nós para o trabalho?

Muitíssima gente está mudando os seus enfoques no mundo. O executivo uniformizado de ataché-case, caneta Mont Blanc, e outros apetrechos correspondentes, – versão sofisticada do homem-sanduiche, ostentando um cartaz de sou melhor que você - está sendo gradualmente substituido por gente que se veste à vontade, e busca viver, inclusive no trabalho. Muitas empresas têm hoje salas de sesta, para que o trabalhador possa tomar uma soneca quando precise. A redução do leque hierárquico está na ordem do dia. A qualidade de vida no emprego é amplamente discutida. O filme Beleza Americana, ainda que um pouco forçado, faz parte desta tomada de consciência da forma absurda como estamos sendo organizados para sermos eficientes para a produção, e inúteis para a vida.

A pressão pela redução da jornada de trabalho, essencial para melhorar a nossa produtividade, e para resgatar o elo temporal entre a vida famíliar, a vida profissional e atividades sociais complementares, está gradualmente voltando a constituir uma reivindicação social de peso, como foi a luta pela jornada de 8 horas há décadas atrás.

Na cidade de Lausanne, na Suiça, a prefeita decidiu mudar o tratamento dado ao idoso que vive só: em vez de colocá-lo numa clínica, com enfermeira, papinha e televisão, fez com a ajuda de estudantes universitários uma pesquisa que lhe permitiu identificar vizinhos de cada idoso, dispostos a ajudá-lo. Com um pequeno salário e um pouco de treinamento, organizou na cidade uma rede de solidariedade que lhe permitiu economizar recursos públicos, e melhorar o capital social, o simples gosto de vida das pessoas. Não há dúvida que uma enfermeira especializada, numa clínica bem equipada, saberia ministrar a papinha de maneira mais eficiente (e com custos muito maiores, o que contribui para aumentar o Pib). Mas é disto que se trata? Na Polônia, vimos prédios onde o andar térreo é reservado para pequenos apartamentos onde os idosos podem ficar perto da família que mora nos andares de cima, e ao mesmo tempo guardar certa privacidade. Organizar o convívio social é assim tão complicado?

De certa maneira, trata-se de desarticular um mecanismo perverso, onde o acesso às coisas elementares da vida exige cada vez mais dinheiro, as famílias devem se organizar para maximizar a renda, os filhos já entram na primeira infância na filosofia da competição, pois estão se preparando para a vida, carregando as suas imensas sacolas de material escolar. Perde-se o convívio famíliar, a sociabilidade comunitária, gera-se um bando de zumbis eficientes que não param mais para perguntar o mais evidente: estamos todos correndo para onde?

Trata-se, evidentemente, de inverter a equação. Não devemos organizar as nossas vidas para o trabalho, mas organizar o trabalho para que as nossas vidas sejam agradáveis. A economia é um meio, não é um fim.

Utopia? Há uma década, ainda se media os países apenas de acordo com o Pib, na linha das estatísticas do Banco Mundial. Os indicadores de desenvolvimento humano (IDH), a partir de 1990, passaram a comparar também a qualidade de vida, ao acrescentar às comparações dados de saúde e de educação. Na metodologia Calvert-Henderson, no ano 2000, está se passando a avaliar a eficiência das nações a partir da qualidade de vida dos seus cidadãos, em torno de 12 grupos de indicadores: educação, emprego, energia, meio-ambiente, saúde, direitos humanos, renda, infraestrutura, segurança nacional, segurança pública, lazer e habitação.[8]

Isto nos leva ao conceito de produtividade social, ou de produtividade sistêmica. Um plano de saúde, ao maximizar o ritmo de rotação de pacientes por médico, está gerando um taylorismo social que sem dúvida se demostra muito eficiente em termos micro-ecnômicos. Esta eficiência é medida em termos de rentabilidade da seguradora ou do banco que controla o conjunto. E o resultado prático, em termos sociais, é uma saúde deficiente, pois o que assegura a produtividade social da saúde é muito mais o esforço preventivo do que o luxo das instalações hospitalares. Em outros termos, quando hoje falamos em responsabilidade social e ambiental das empresas, levamos cada administrador a levantar um pouco os olhos, para além dos muros da empresa, e a pensar simplesmente: isto é útil para a sociedade?

O Instituto Souza Cruz publicou em janeiro 2003 “Marco Social: Educação para Valores”. O Instituto Souza Cruz é mantido pela Souza Cruz, que por sua vez pertence à British American Tobacco, que investe anualmente centenas de milhões dólares em publicidade para convencer jóvens a fumar: a população alvo predileta é a de 14 anos, quando o vínculo com a nicotina se torna praticamente assegurado para o resto da vida. A publicação, bastante luxuosa, começa com uma citação de Anísio Teixeira (!) sobre os valores, e a diretora do Instituto, no capítulo “Educação para Valores”, afirma que Flávio de Andrade, presidente da Souza Cruz, “nutria uma grande preocupação com o acesso de crianças e adolescentes menores de 18 anos a cigarro, álcool e drogas ilícitas”.

Quem não ficaria comovido? No entanto, um economista tradicional nos saberá explicar que a Souza Cruz gera empregos, dinamiza a plantação de fumo, provoca a expansão de clínicas de tratamento de câncer, estimula a venda de produtos para branquear os dentes, patrocina belíssimas corridas de fórmula 1. Houve até um relatório que demostrou que o cigarro, ao acelerar a morte dos idosos, reduzia o déficit da previdência social, e portanto melhorava as contas nacionais. O que não se faz pela economia!

A visão que queremos aqui esboçar, é que a transformação da família pertence a um conjunto de mudanças mais amplas, e que não se trata apenas de lamentar a sua dissolução: trata-se de repensar o processo de rearticulação do nosso tecido social.

No belíssimo filme Janelas da Alma, Wim Wenders, que já nos deu tantas obras primas de cinema, faz uma afirmação profunda: “Humanity is craving for meaning”, a humanidade anseia pelo sentido das coisas. De certa maneira, o sentido das coisas se resgata numa articulação mais ampla dos diversos universos, do indivíduo, da família, da comunidade, do trabalho, das esferas econômicas, politicas e culturais. Os sentimentos de perda de iniciativa e controle sobre as nossas vidas, de individualismo feroz, de vale-tudo por dinheiro, são tanto mais absurdos quanto o enriquecimento da sociedade permitiria justamente dispormos de mais tempo para a família, de mais convívio social, em clima menos violento.

O nosso sistema sabe aumentar a produção, ou pelo menos sabia, antes do domínio dos gigantes financeiros e da globalização selvagem. Mas a organização social capaz de tornar este aumento de produção socialmente útil depende de dinâmicas totalmente diferentes das dinâmicas de mercado. A vida não se resume a uma corrida desesperada para equilibrar a conta no banco com as contas do shopping. A construção da qualidade de vida – inclusive a sobrevivência da família – constituem um processo de articulação social que não resultará automáticamente dos mecanismos de mercado ou do eventual enriquecimento individual.

Referenciais individuais e sociais

Não é tão difícil assim colocar-se no lugar do jóvem. Sai da escola sem nunca ter visitado uma empresa, uma repartição pública, uma ONG. A separação radical entre as fases de estudo e do trabalho, produz uma geração de jóvens desorientados, à procura da sua utilidade na vida. Se cruzarmos esta situação com as dinâmicas do trabalho vistas acima, a ausência de perspectivas torna-se muito forte, a não ser em alguns grupos privilegiados. Na realidade, no processo produtivo onde os conhecimentos passam a desempenhar um papel preponderante, em vez de estudo e trabalho serem etapas distintas da vida, devem crescentemente constituir um processo articulado onde aquisição de conhecimentos e a sua aplicação produtiva devem emriquecer-se permanentemente.

Sentir-se inútil numa fase da vida em que o jóvem chega disposto a fazer e acontecer, gera sem dúvida um sentimento de profunda frustração. Poder fazer uma coisa útil constitui um favor, alguém deu um emprego. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que no conjunto, o who you know (quem você conhece) tornou-se um fator mais importante de avanço profissional do que o what you know (o quê você conhece, as suas competências). O mundo para o jóvem passa a ser visto como um universo opaco e fechado, gerando desânimo e passividade.

Esta tendência tem de ser colocada numa perspectiva mais ampla. As nossas crianças e os nossos jóvens são criados num referencial de família muito frágil: com os dois pais no trabalho, o trabalho distante da casa, casais frequentemente separados, o silêncio no binômio sofá-televisão: constrói-se assim muito pouco balizamento entre o bem e o mal, muito pouco sentido de vida.

Um outro universo que contribuía muito para a construção de valores era a rua, a vizinhança. Ali, não era ainda o mundo¸ mas também já não era a família, alí a criança e o jóvem testavam a sua presença social, delimitavam gradualmente os valores da amizade, o peso das rivalidades, construiam os seus espaços de sociabilidade. Hoje, nenhuma mãe em sã consciência diz à criança que vá brincar na rua. Fica sossegada quando as crianças estão sentadas no sofá, comendo salgadinho, e vendo “vale tudo por dinheiro”. Porque na rua é o perigo, são as drogas, as gangues, os acidentes de carro, o medo. Não inserimos mais as crianças no mundo, buscamos apenas protegê-las. E quando chega o momento inevitável de sua inserção, desabam sobre elas desafios difíceis de suportar.

Os pais perdidos entram em intermináveis discussões sobre se devem ser mais permissivos, ou colocar mais limites, sorrir ou gritar, e terminam, quando têm dinheiro, lamentando-se com o analista. O analista pode sem dúvida ajudar quando os problemas são individuais, mas não resolverão grande coisa quando se trata de um processo socialmente desestruturador.

A escola pequena, de bairro, frequentada por pessoas que convivem de uma maneira na escola, e de outra nas ruas da vizinhança, mas pertencendo ao mesmo tecido de relações sociais, era outro espaço de construção de referências. Boa parte disto subsiste no interior. Nas grandes cidades, e frente a uma construção escolar onde se buscam absurdas economias de escala (quanto maior, mais barato), gera-se um universo de gente que só se encontra na escola. Os universos sociais do local de residência e do local de estudo só se cruzam eventualmente. Na própria classe média, é patético ver mães que passam horas no trânsito para levar uma criança a brincar com outra no outro lado da cidade, porque já não aguenta a solidão em casa. E no outro lado da cidade, o coleguinha terá os mesmos video-games, o mesmo “vale tudo por dinheiro” na televisão. Se juntarmos os efeitos de desestruturação do referencial famíliar, da ausência do referencial de vizinhança, e da perda da presença social local da escola, e acrescentarmos o cinismo dos valores martelados horas a fio na televisão, que valores queremos que eles tenham?

Os pais ficam indignados: eles bebem, eles fumam, eles se drogam, eles transformam o sexo numa aeróbica banalizada, eles não vêm sentido nas coisas...O que é que nos fizemos para dar sentida às suas vidas? Todos nós estamos ocupados em ganhar a vida, em subir nos degraus absurdos do sucesso¸ como é que as crianças vão entendem o nosso sacrifício como útil?

A compreensão de que se matar de trabalho para construir uma vida sem sentido, ainda que com a garagem que ostenta um belo carro, e entulhada de esteiras de ginástica e outras relíquias de entusiasmos consumistas passageiros, sem tempo para fazer as diversas coisas que poderiam ser agradáveis, ou belas, – filtra gradualmente para dentro das nossas consciências, ainda que continuemos todos a correr sem rumo. Será que os nossos filhos realmente não vêm o absurdo das nossas próprias vidas? E que rumo isto aponta para elas? A verdade é que a vida reduzida a uma corrida individual pelo sucesso econômico, com a ilusão de que tendo sucesso, e portanto dinheiro, compraremos o resto, é uma absurda ilusão que nos levou à civilização de guetos de riqueza e miséria que hoje vivemos.

É significativo que em muitos lugares jóvens, e até crianças, às vezes com apoio dos professores – outra classe á procura do sentido do que ensina – estão arregaçando as mangas e começando a tomar iniciativas organizadas. Vimos na Itália um movimento de crianças pela recuperação das praças. Um filme-reportagem feito pelas próprias crianças mostra a passeata, a negociação com a prefeitura, e o resgate progressivo de praças transformadas em estacionamento, para que voltem a ter água, árvores, espaço para brinquedos e jogos, uma dimensão de estética, de lazer, de convívio. Em muitas cidades já há câmaras-mirins, e não se podem aprovar projetos de espaços públicos sem o aporte do interesse organizado das crianças. Em muitos lugares, foram organizados trajetos seguros, acompanhando as principais rotas das crianças entre as escolas e lugares de lazer, parar melhorar a sua mobilidade e sentimento de liberdade: a tecnologia é simples, são aqueles passinhos pintados na calçada, semáforos, algum reforço de policiamento. O que estas experiências têm em comum, é o sentimento, por parte das crianças, de estarem recuperando o seu direito à cidade, à cidadania.

Em Valparaíso, vimos uma experiência de crianças de rua que, com o apoio de uma ONG, passaram a resgatar os espaços vazios de um bairro, a organizar as suas próprias bandas de música, eventos culturais, a ponto que hoje as seis escolas formais do bairro se associaram ao projeto, e desenvolvem atividades de resgate dos espaços públicos, fazem aulas sobre meio-ambiente melhorando o próprio meio ambiente, estudam ciências sociais melhorando o ambiente social. Aqui também, a cidade é dêles, e fazer uma coisa útil e prazeirosa não é o resultado de um emprego que lhes “dão”, mas de uma iniciativa que lhes pertence.[9]

O que isto aponta, na realidade, é que estamos evoluindo de uma visão em que a organização social se resume a um Estado que faz coisas para nós, e de empresas que produzem coisas para nós, para uma visão em que a sociedade organizada volta a ser dona dos processos sociais, e articula as atividades do Estado e das empresas em função da qualidade de vida que procuramos. A expansão das organizações da sociedade civil, a força do terceiro setor, o resgate das funções sociais do Estado, o surgimento da responsabilidade social e ambiental das empresas, a crítica às grandes corporações da especulação financeira, do monopólio de produtos farmacêuticos, de comercialização de armas, o próprio surgimento muito mais amplo da noção de um outro mundo é possível, pertencem todos a um deslocamento profundo de valores que estamos começando a sentir na sociedade em geral.

Como indivíduos, podemos melhorar a nossa casa, batalhar o estudo para os nossos filhos, comprar um carro melhor. Mas as mudanças sociais dependem de organização social. O sentimento de desorientação é sentido como sofrimento individual, mas as raízes são mais amplas.

Sofá, TV e salgadinho

Curiosamente, quando fazemos o que todos fazem, e não nos sentimos felizes, conseguimos nos convencer que os culpados somos nós. Parece que não somos normais. Mas é importante entender que o sentimento de frustração é geral. Manifesta-se neste sentimento difuso de perda de controle sobre a nossa realidade, sobre o que queremos fazer, sobre o mundo que nos cerca. O trabalho não é sofrimento: batalhar o futuro, fazer coisas que dão certo, ainda que com mil dificuldades, brincar com os amigos, tudo isto é essencial para o nosso senso de equilíbrio.

O que isto sugere de maneira ampla, é que as dinâmicas econômicas atuais geram simultâneamente mais produtos para elites, e menos sentimento de realização individual. O que nos venderam como visão de mundo, é que a felicidade consiste em ter em torno de nós apenas o esposo ou esposa, e os filhinhos, todos em idade simpática, um apartamento de dois quartos, sala, sofá e televisão. As opções de vida são relativas à cor do sofá, ao modelo da geladeira.

É importante ver a dupla face deste problema. Primeiro, todos devem ter o direito a ter os dois quartos, a saúde, a comida na mesa. Inclusive, assegurar o necessário a todos é uma condição preliminar para que possamos viver a vida em paz. Já dizia Marat na revolução francesa: “nada será legitimamente teu, enquanto a outrem faltar o necessário”. Este objetivo consiste sem dúvida num ideal social maior pelo qual temos de batalhar.

Mas este “necessário” não é suficiente. Quando temos os dois quartos e o sofá, a primeira coisa que queremos fazer é sair, é fazer alguma coisa. E este fazer alguma coisa envolve outras pessoas, convívio, festas, brincadeiras, esporte, coisas que nos façam sentir vivos. A sociedade atomizada em micro-unidades, que descartou os idosos para o asilo, os deficientes mentais para o manicômio, os revoltados para a cadeia, os pobres para a periferia, é uma sociedade desintegrada que parou de assumir a construção dos seus próprios espaços sociais, apenas administra privilégios.

Entender o desafio da pobreza, - coisa que devemos fazer sistematicamente – pode ser mais fácil do que entender a desarticulação social e o malestar que se generaliza. Este sistema leva, de um lado, a uma privação de grande parte da população mundial dos bens essenciais para uma sobrevivência com um mínimo de dignidade, e por outro lado, gera um perfil de produção e formas de organização socio-econômica que não trazem respostas aos que sairam desta privação. Quando vemos as cidades-dormitórios, os bairros sem uma praça ou áreas de sociabilidade, lazer e convívio, os condomínios fechados com as suas cercas eletrificados, arames farpados e guardas privados, temos de ir além do problema do modelo ser elitista e privar os pobres do essencial: a própria lógica é absurda.

Ghoje as grandes empreiteiras de São Paulo, por exemplo, formam um pacto corrupto com políticos, e levam à construção de uma cidade inteiramente organizada em função do automóvel, chegando, entre túneis e elevados, a formar vários andares de vias, enquanto batalham contra qualquer uso público do espaço urbano, considerado “desperdício”. Um rio limpo não gera contratos, enquanto um rio poluido gera imensos contratos de despoluição, de desassoreamento, de canalização. A lógica das habitações é criar o máximo de construções para pequenas famílias, desarticulando o convívio entre gerações. De certa maneira, a capacidade técnica e gerencial das empresas evoluiu, mas a redução dos objetivos ao lucro imediato torna estes avanços socialmente pouco úteis. Isto porque a empresa não pensa no convívio social e nas infraestruturas correspondentes, mas na capacidade de compra individual do cliente.

É interessante a notícia de que uma atualização do famoso Kinsey Report de cinquenta anos atrás, quando foi feito o primeiro grande estudo sobre o comportamento sexual da população nos EUA, mostra que hoje se faz sexo incomparavelmente menos do que há meio século. Isto com a pílula, a permissividade, cinemas pornôs, camisinha, out-doors de poses as mais extravagantes em qualquer esquina, motéis por toda parte. Parecemos inundados por sexo. No entanto, parece que o comportamento amoroso se retrai. É viável uma mulher sentir um grande ardor sexual por seu simpático barrigudo de chinelo e camiseta, sentados anos seguidos no mesmo sofá, vendo as mesmas bobagens da tv? Trancar um casal num casulo é uma idéia romântica para vender como publicidade, e permite vender muitos apartamentos, mas é mortal para o convívio matrimonial.

Estamos aqui no limite do quanto um economista pode responsavelmente penetrar em áreas alheias, ainda que faça parte da tradição do economista poder dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto. O que aqui tentamos delinear, é o fato das dinâmicas econômicas poderem ter um imenso impacto sobre a vida pessoal, a felicidade do casal, o nosso interesse amoroso.

Não é a família que está doente: é o processo de reprodução social e econômico que se tornou absurdo, levando a família de rodo.

O programa americano de TV “Sixty Minutes” levou recentemente ao ar uma reportagem sobre fast-food, a indústria do hamburguer. Estas empresas pesquisaram e concluiram que a excitação das papilas gustativas na criança está centrada no açucar, na gordura e no sal. Assim, temos o refrigerante que acompanha o hamburguer e as batatas fritas. Até aí, tudo bem. Mas as grandes redes como Burger King, McDonald e outros estão fazendo gigantescas campanhas de televisão para fazer as crianças preferir este tipo de comida, e constituem hoje as maiores redes de distribuição de brinquedos e outros brindes para estimular este consuno. Hoje, a grande ofensiva é para se instalar nas escolas, banindo as nutricionistas. Tentar oferecer frutas, legumes e outras comidas tradicionais ao lado deste tipo de estabelecimento, é covardia.

O resultado prático é que hoje, entre hamburgers e salgadinhos, a obesidade atinge 30% dos jóvens norte-americanos. Não é difícil imaginar o que é a vida de uma menina que, com 13 anos é obesa. Ou o que esta vida será. O programa entrevistou o dono de uma grande empresa de publicidade de fast-food, que visa público infantil, e inclusive utiliza crianças na geração da publicidade: perguntado se não achava covardia empurrar este tipo de comida para crianças que precisam de alimentação variada para crescer normalmente, o dono da empresa, um psicólogo, corrigiu: “nos não empurramos produtos, nos informamos as crianças para que possam fazer uma escolha responsável”.

No conjunto, isto significa que somos empurrados sim a nos comportar de acordo com as necessidades das empresas, com os interesses econômicos, em vez das atividades econômicas responderem ás nossas necessidades.

Não é à toa que os gastos mundiais com publicidade atingem somas astronômicas, hoje da ordem de 500 bilhões de dólares. As empresas gastam este dinheiro, porque a publicidade funciona. Não porque somos bobos, mas porque somos influênciaveis, provavelmente uma das características mais ricas do ser humano, porque vinculada à sensibilidade.[10]

É patético as pessoas caminharem solitárias sobre uma esteira, que tiveram que comprar, e que depois de uma semana fica parada num canto, porque já não há mais espaço para jogar bola na vizinhança. Qual o sentido de pedalar numa bicicleta montada na garagem quando podemos utilizar bicicletas de verdade, para passear, através de ciclovias e controle de trânsito. Fabricamos tanta coisa inútil, geramos tanto desperdício, com um ritmo de trabalho que nos esfola e nos priva da simples alegria de viver.

Há lugar para vida inteligente

Havia um tempo em que os brados pela mudança vinham das esquerdas. Hoje, um prêmio nobel de economia como Stiglitz, que foi economista chefe do Banco Mundial, diz que o sistema como está não pode continuar. Hazel Henderson, uma das economistas mais importantes hoje no planeta, diz que a competição não serve mais como regulador geral da economia, e desenvolve a visão do win-win, literalmente ganha-ganha, mostrando que pode-se desenvolver um sistema onde todos ganham. David Korten, que denuncia o absurdo gerado pelos interesses das empresas transnacionais, não vem de movimentos de contestação, vem dos programas americanos de ajuda ao desenvolvimento, e elaborou uma das críticas mais bem estruturadas da forma de organização econômica que hoje prevalece. J. K. Galbraith aponta para uma “sociedade justa”. Peter Drucker, o antigo guru da administração empresarial, hoje dirige uma organização não-governamental e busca os rumos da “sociedade pós-capitalista”. E faz uma constatação óbvia mas poderosa: “não haverá empresas saudáveis numa sociedade doente”.[11]

A lista é muito grande. As pessoas que conhecem as dinâmicas do sistema, porque ajudaram a montá-lo, hoje tendem a tomar um pouco de recúo, buscam o sentido das coisas. O o sentido é relativamente claro: a economia deve servir-nos, para que tenhamos uma vida com qualidade, e não constituir um mecanismo complexo acessível apenas aos espertalhões, que termina por nos jogar em conflitos entre ricos e pobres, criando angústia e insegurança.

Esta mudança passa por uma alteração de formas de organização social. Em particular, temos de organizar nas nossas cidades sistemas descentralizados e participativos de decisão sobre como organizamos os nossos espaços urbanos, pois sem isto continuaremos vítimas das incorporadoras, imobiliárias, empreteiras e outros especuladores urbanos. Não se trata aqui apenas do fato que é um processo corrupto: é um processo corrupto que organiza a sociedade de forma pouco inteligente.

Não basta reorganizar o nosso espaço urbano, para que seja user-friendly como dizem hoje os informáticos. Temos de reorganizar o tempo, principal recurso não renovável de que dispomos para viver de maneira agradável e inteligente. Reduzir a jornada para 6 horas já seria um bom passo, abrindo possibilidades para o convívio, o lazer, a cultura, a família, e com isto dinamizando um consumo mais rico e mais inteligente.

Temos também de aprender a nos organizar. A máquina do Estado e o mundo empresarial são insuficientes, simplesmente porque ambos devem servir à sociedade, e uma sociedade não organizada não tem como impor as suas prioridades. As ONGs, as organizações de base comunitária, as associações dos mais diversos tipos precisam desempenhar um papel chave, e tornar-se parte do cotidiano de cada um de nós.

Temos de democratizar a informação. A descentralização das formas de comunicação, com rádios comunitárias, emissoras locais de TV, constitui um elemento essencial de criação de um vínculo local, de promoção cultura, de integração dos diversos grupos e atores, de divulgação de iniciativas. A principal novela é a nossa própria vida, e vale a pena.

Temos de criar mecanismos que nos permitam resgatar o controle das nossas poupanças. Há inúmeros exemplos de bom funcionamento de formas inovadoras, que vão desde as formas socialmente responsável de aplicações financeiras desenvolvidas nos Estados Unidos, até as cagnottes na França, o crédito solidário no Brasil. Os bancos trabalham com o nosso dinheiro, e devemos aprender a fazer valer o nosso direito em assegurar que as nossas poupanças sejam utilizadas em iniciativas socialmente úteis, e não em especulação.

E temos, óbviamente, de resgatar o imenso fosso social que o processo capitalista está gerando, entre ricos e pobres. Não haverá paz social, não haverá tranquilidade nas ruas, não haverá convívio enriquecedor nas comunidades enquanto dezenas de milhões de pessoas continuarem numa miséria dramática e revoltante.

E a família? A família tem justamente de ajudar na reconstrução deste entorno econômico, social, urbanístico, trabalhista, cultural que a viabilize. Não bastam discursos ideológicos de que a família é o esteio da sociedade. É preciso viabilizá-la, e com isto viabilizar a própria sociedade desnorteada que criamos.

Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “A Reprodução Social”, “O Mosaico Partido”, ambos pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org


[1] Rodger Doyle – Going Solo: unwed motherhood in industrial nations rises – Scientific American – January 2002, p. 22 – ver também www.sciam.com/2002/0102issue/0102numbersbox1.html ; o dado para o Japão corresponde a 1990, os outros correspondem a meados ou fins dos anos 1990

[2] Robert Putnam – Bowling Alone: the collapse and revival of american comunnity – Simon & Schuster, New York, 2000 – O livro de Putnam é uma excelente introdução às transformações sociais geradas pelas novas tecnologias e pelas formas de organização urbana. Veja resenha em http://dowbor.org

[3] Lester Salamon utiliza o conceito interessante de serviços humanos, onde se expande rapidamente o chamado Terceiro Setor. Ver entrevista na Roda Viva da TV Cultura, 3 de março 2003.

[4] A inflação não modifica muito este quadro. No caso de uma inflação de 10%, significaria que a remuneração real pela nossa poupança é zero, e que o banco continua a ganhar 16%. Na média, o “spread” que é a diferença entre o que o banco paga para captar dinheiro, e a sua remuneração, é de 25% segundo Guilherme Barros, editor de Folha Dinheiro, Folha de São Paulo, 16 de fevereiro de 2003, p. B1; na realidade mesmo as aplicações mais rentáveis como DI remuneram a nossa poupança menos que a inflação: em valores nominais a nossa aplicação cresce, enquanto o poder de compra diminui. O que perdemos em poder de compra é transferido para os intermediários. Ver Folha de São Paulo, 8 de março 2003.

[5] Ver artigo de Ney Hayashi da Criz, Folha de São Paulo, 8 de março 2003, p. B4

[6] - ANEFAC – Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade – (www.vidaeconomica.com.br/famílias.htm ) Pesquisa realizada entre junho e agosto 2002. O estudo apresenta o gasto despesa famíliar médio com despesas financeiras como sendo de 29,83%. Estas despesas variam de 35,43% para famílias entre 1 e 5 salários mínimos, e 19,08% para famílias com renda acima de 50 salários mínimos. Dados da Anefac foram publicados pels revista Época.

[7] Ver cifras detalhadas no nosso O que Acontece com o Trabalho, Senac, São Paulo, 2002

[8] Os dados do IDH podem ser consultados em www.undp.org/hdro e os indicadores Calvert-Henderson estão sistematizados em Calvert-Henderson Quality of Life Indicators: a new tool for assessing national trends - Bethesda, USA, 2000, www.calvertgroup.com – Um raciocínio ajuda a entender a importância da mudança das metodologias de avaliação dos nossos avanços: com os critérios estreitamente econômicos do Banco Mundial, somos a 9ª potência mundial; ao olharmos as nossas condições reais de vida, na perspectiva dos Indicadores de Desenvolvimento Humano, o nosso lugar baixa para um modesto 69º.

[9] Os exemplos são inúmeros. Há algum tempo, ajudamos a elaborar um livro chamado Cities for Children, que apresenta idéias sobre como poderiam ser organizadas as cidades se levássemos em conta as crianças. Significativmente, o título original era Managing Cities as if Children Mattered, gerindo as cidades como se as crianças tivessem importância. Sheridan Bartlett et al., Cities for Children, Earthscan, London 1999 www.earthscan.co.uk

[10] Sobre este tema, ver L. Dowbor, O. Ianni e Hélio Silva – Os desafios da comunicação – Vozes, Petrópolis 1999, em particular o nosso Economia da Comunicação

[11] Joseph Stiglitz – A Globalização e os seus descontentes; Hazel Henderson – Construindo um Mundo onde Todos Ganham, editora Cultrix; Davida Korten –O Mundo Pós-Corporativo - Editora Vozes, Petrópolis, 2000; J.K. Galbraith – A Sociedade Justa – Editora Campus, Rio de janeiro 1996; para escritos recentes de Peter Drucker, ver www.pfdf.org

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