domingo, 11 de abril de 2010

Mercado e sociedade civil: encontro ou desencontro? Luigino Bruni

Algumas reflexões na perspectiva da “comunhão”

Luigino Bruni
Tradução: José Maria de Almeida

A existência do mercado permite, dentro de uma outra visão, construir uma “sociedade civil” que, de um lado, evite que seja a guerra ou a prepotência a preencher a insuficiência do amor recíproco e, de outro lado, segundo Adam

Smith, afaste o espectro de um mundo feito de poucos benevolentes e de multidões de mendigos “assistidos”. Na tentativa de buscar uma nova relação entre mercado e sociedade, o Projeto da Economia de Comunhão assume um significado profético porque desafia as ideologias dominantes, hoje, na Era da Globalização.

ABBA — Revista de Cultura, São Paulo, Vol. VI, n. 3, pp. 59-70.

1. Quadro de referência

A avaliação ética do mercado e de seu impacto sobre a vida civil sempre foram temas controvertidos no decurso da História, sobretudo da História Ocidental. Os recentes processos de globalização tornaram, porém, particularmente visível e popular o desacordo em torno da relação entre a esfera econômica (que resumidamente podemos chamar de “mercado”) e a sociedade. New global, no-global, liberais e comunitários, são expressões que encontramos não só nos debates culturais, mas cada vez mais também nas primeiras páginas dos jornais. Em certos casos, as posições assumem formas e tons extremados, que não deixam de suscitar apreensões para a vida democrática. É, pois, urgente olhar para além do rumor das polêmicas e das posições ideológicas, e interrogar-nos tentando compreender melhor o que está acontecendo, talvez também detectando os pontos de contato entre as concepções atualmente divergentes em relação a tudo aquilo que, hoje, normalmente, se pensa ou se declara. E o faremos guiados pelas categorias sapienciais surgidas da Espiritualidade da Unidade e a partir do desdobramento das suas expressões sociais, como a Economia de Comunhão, convictos de que estas podem oferecer novos horizontes de esperança.

São duas as posições, culturais e práticas, que se estão confrontando a respeito do modo de entender a relação entre mercado e sociedade. Vendo-as em seus traços essenciais (fazendo, pois, indispensáveis simplificações), constatamos que a primeira — que nestes últimos anos inspirou, por exemplo, a ação de organismos econômicos internacionais, como o Fundo Monetário — considera a empresa e a atividade econômica como uma, senão a principal, expressão de uma sociedade civil madura; o mercado é considerado um componente essencial da sociedade civil; sem ele não há liberdade; na sua falta, a democracia não vinga ou não se desenvolve plenamente. O mecanismo do mercado assegura a eficiência; através das indicações fornecidas pelos preços, orienta os recursos nas direções corretas (evitando obstruções ou desperdícios), torna as pessoas criativas, prudentes, responsáveis, diligentes: “Toda vez que o comércio é introduzido num país, com ele chegam também a honestidade e a pontualidade”, escrevia já em 1763 Adam Smith, um dos mais notáveis representantes desta tradição, o qual explicava o sucesso comercial dos holandeses pelo fato de ser o povo europeu “mais fiel à palavra dada” (Smith, 1978, p. 538).

Todas essas características do mercado fazem com que ele incremente a criação da riqueza, ou seja, aumente a dimensão do bolo que, num segundo momento, será subdividido pela sociedade, segundo divisões e critérios democráticos de solidariedade. O mercado é, pois, social por natureza, porque — melhor do que outros sistemas até então experimentados — permite o crescimento da riqueza, que representa o principal meio para uma boa vida social e individual (Cf. Novak, 2000 e também Sirico, 2001).

A mecânica do mercado seria portanto neutra, no plano dos valores, porque compatível com os registros de valores que só intervêm como critérios na hora de “subdividir o bolo”.

Além do mais, a eficiência, entendida como eliminação do desperdício, é o único “valor” exigido durante o processo produtivo, uma vez respeitadas as regras. Já no século XVIII o mercado era visto como a única alternativa ao outro meio existente para se obter qualquer coisa sem recebê-la de presente: a guerra. O pensador milanês Pietro Verri, retomando uma tese comum no seu tempo, escrevia que “a necessidade empurra o homem às vezes à rapina, às vezes ao comércio” (Verri, 1964, p. 130); e o eonomista napolitano Antônio Genovesi, em

1765, afirmava que o principal fruto do comércio “é levar as nações comerciantes à paz. […] A guerra e o comércio são tão opostos quanto o movimento e o repouso” (Genovesi, A., 1824, p. 290) 1.

Além disso, aquilo que sempre tem fascinado os admiradores e os mantenedores do mercado é a sua capacidade, quase miraculosa, de tirar coisas boas das paixões humanas menos nobres: e isso sem fazer muita pressão sobre os bons sentimentos das pessoas (sempre escassos e pouco confiáveis nas atividades econômicas), orienta e transforma os interesses individuais — o amor pelo dinheiro, por exemplo — em

benefícios públicos (a maior riqueza);

[…] não é da benevolência do açougueiro, do padeiro e do cervejeiro

que esperamos o nosso almoço, mas da consideração dos seus interesses; não nos dirigimos ao seu sentido de humanidade, mas ao seu egoísmo, e não lhes falamos de nossas necessidades, mas das suas vantagens. (Smith, 1945, p. 16.)

Proclama Smith, numa das mais célebres frases da História do pensamento econômico.

No extremo oposto dessa concepção otimista encontramos os que, ao contrário, vêem o mercado como destruidor do laços sociais e dos valores autenticamente humanos, o lugar por excelência da exploração e da dominação do fraco pelo forte; a sociedade estaria, então, protegida da incidência do mercado, porque as relações autenticamente humanas (como a amizade, a confiança, a virtude, a reciprocidade não-instrumental, o amor), das quais depende a sobrevivência da conveniência civil no tempo, são corroídos pela lógica individualista e instrumental do mercado. O aspecto econômico e o mercado seriam, pois, de per si desumanizantes, mecanismos destruidores daquele “capital social” constituído pela confiança e pela capacidade de cooperação. Essa é uma tradição também ela antiquíssima (pensemos na desconfiança com que era visto o mercador, na Idade Média), que foi desenvolvida na modernidade por autores como Marx ou K. Polanyi, e que hoje está revivendo em alguns ideólogos do assim chamado “povo de Seattle” (Cf., entre outras, as obras de Serge Latouche), em suas batalhas contra agentes de mercado e multinacionais. Quem hoje sabe observar em profundidade os debates da sociedade civil e política reencontra, subjacente, posições ideológicas que se movem entre esses dois pólos. Estamos, porém, convencidos de que as duas posições estão de fato tão distantes entre si? Ou que essas já estavam presentes nas intenções e nos textos de seus “fundadores”? Provavelmente as coisas não são tão evidentes assim. De uma parte, quem hoje tece louvores ao mercado não tem, muitas vezes, a certeza teórica dos “fundadores” e, de outra parte, quem critica a lógica do mercado tem deste uma visão freqüentemente simplificada e simplista. Por essa razão, procuraremos observar mais de perto o pensamento do

principal defensor do livre mercado, Adam Smith, e depois traçaremos, embora em grandes linhas, algumas idéias-chave da concepção de mercado que surge dessa que podemos chamar de tradição humanista “civil e cristã”, a qual, cremos nós, pode oferecer interessantes idéias para o debate hodierno.

2. Smith, o mercado e o mendicante

Voltemos a Smith e à sua célebre frase sobre a “benevolência do açougueiro”, colocando, porém, aquela frase no contexto do qual foi extraída. Referindo-nos àquelas linhas, percebemos que ele inicia o capítulo da Riqueza das Nações falando da “propensão para se trocar e permutar uma coisa por outra”, que ele considera “um dos princípios mais típicos da natureza humana”, a ponto de “ninguém jamais ter visto um cão permutar um osso com outro cão” (p. 15); por essa razão, quando um cachorrinho quer pegar um osso de seu semelhante,

só pode fazê-lo à força; a outra maneira seria convencer o seu dono a dá-lo, saltitando à sua volta e abanando o rabo. A tendência a permutar coisas com os outros é, pois, para Smith, uma expressão da sociabilidade da natureza humana, que na sociedade civil pode se expressar plenamente graças à divisão do trabalho, que faz com que cada um tenha uma constante necessidade dos outros — não podendo prover sozinho (ou só com a sua família) a todas as necessidades. Ao mesmo tempo, Smith reconhece que seria mais humano e mais interessante obter os serviços dos outros graças apenas à amizade ou ao amor; mas na grande sociedade “a duração de toda uma vida nos permite ganhar a amizade de apenas uns poucos”3. Portanto, a amizade, humanamente superior e preferível em relação às permutas de mercado, infelizmente não basta, nas modernas sociedades, para fazer-nos conseguir dos outros tudo o que necessitamos. Em uma sociedade civilizada, portanto, o amor recíproco ou a amizade — que embora continuem a desenvolver uma específica e essencial função na vida privada — não são mais suficientes para se estabelecer uma vida de boa qualidade.

Eis então as duas perspectivas que se abrem diante de nós, ou viver como o cachorrinho ou como o mendigo, que para terem o que comer “dependem da benevolência do açougueiro”, ou por meio do “intercâmbio ou do negócio” com os outros. Seria certamente mais louvável se as pessoas se ajudassem umas às outras na base do princípio do amor recíproco, como acontece no seio de uma família. A existência do mercado, de qualquer modo, faz com que possamos experimentar alguma ajuda recíproca nas necessidades, mesmo na ausência do amor. Aliás, embora Smith afirme que para o bom funcionamento [da sociedade] não é exigida a virtude do amor, ao mesmo tempo, em sua Teoria dos sentimentos morais (1759) lembra-nos que no mercado são exigidas, como elementos essenciais, outras virtudes (agora chamadas de civis), como a prudência e a justiça. O mercado é, pois, para Smith, um mecanismo providencial, e na famosa metáfora da “mão invisível” — à qual ele recorre para explicar a formidável transformação “química” dos interesses particulares em bens públicos feita pelo mercado — não é difícil ver a presença da Providência.

A referência direta à ação da Providência é, ao invés, explícita e central também na tradição civil italiana4, que remonta ao “Humanismo Civil”. Aí é dado grande destaque ao papel da vida civil e das virtudes, pois nem sempre e nem naturalmente os interesses privados se tornam virtudes públicas, mas só na vida civil. Os interesses privados só são guiados pela Providência para o bem comum dentro das instituições e das leis civis que regulam suas dinâmicas espontâneas. A existência do mercado permite, dentro dessa visão, construir uma “sociedade civil” que, de um lado, evite que seja a guerra ou a prepotência a preencher a insuficiência do amor recíproco e, de outro lado, afaste o espectro de um mundo feito de poucos benevolentes e de multidões de mendigos “assistidos” (como era aquele do qual, na época, a Europa estava saindo com dificuldade).

3. Um mercado de várias dimensões

À distância de mais de dois Séculos das obras dos “fundadores” da Economia Moderna, a ação concreta dos mercados é hoje mais complexa do que aquela existente na sociedade do Século XVIII. De fato, hoje sabemos que há algumas condições mínimas que devem ser respeitadas para que os interesses individuais se transformem em virtudes públicas:

a) que haja uma real concorrência entre comerciantes e produtores;

b) que a comunidade puna eficazmente e seriamente as fraudes;

c) que os consumidores tenham uma real capacidade de avaliar a qualidade dos produtos;

d) que os bens sejam privados (como um par de sapatos, um sanduíche ou o automóvel particular) e não públicos (como o ar e o mar não-poluídos).

Essas condições se realizam quase que exclusivamente nos textos dos livros; a realidade histórica só se aproxima disso em determinados momentos e em certos lugares. Na atividade do dia-a-dia dos mercados, as coisas são mais complexas e o resultado dessa “alquimia” é incerto:

1) os comerciantes tendem a se acertar, a fazer acordos, em prejuízo dos consumidores. Dizia Smith que quando os comerciantes se encontram, normalmente conspiram contra os consumidores: sendo poucos e com grandes interesses, têm mais facilidade para fazerem acordos contra os consumidores (como acontece, por exemplo, com a publicidade, que nasce, cada vez mais, de um conchavo entre a mídia e a empresa, o que resulta em um “custo” para o consumidor);

2) os sistemas de sanção, sejam morais ou legais, nem sempre são eficazes, sobretudo em nível internacional, como aconteceu nos famosos casos que envolveram multinacionais, que, pelas leis dos países em que estavam instaladas, “não faziam nada de mal”; sem levar em conta que em muitos desses países os políticos são corruptos e as leis iníquas, e a sociedade civil não está suficientemente madura para estabelecer sanções comerciais, como o boicote a certos produtos;

3) os consumidores não têm, normalmente, todas as informações necessárias para avaliar a qualidade real dos produtos, isto é, existe uma “assimetria informativa” entre comerciantes/produtores e consumidores (pense-se, para ficar na metáfora do “açougueiro”, no caso da “vaca louca”: nesse caso, a assimetria de informações ocorria também entre os açougueiros e os frigoríficos)5;

4) Nas modernas economias, os bens mais críticos não são os bens privados e sim os públicos (como o ar que respiramos ou o meio ambiente), em relação aos quais as regras do mercado fracassam, porque nesse caso o sistema de preços não funciona. Os bens públicos estão em contínuo aumento, pois cada vez mais o nosso

consumo tem efeitos — talvez não intencionais — sobre as outras pessoas (se o meu colega recebe um computador novo, o meu fica um pouco mais velho).

Os mercados reais são, pois, muito diferentes entre si; naqueles casos em que as condições reais são bastante próximas das teorias dos modelos, eles são lugares de crescimento humano, econômico e civil (pensemos em nossas várias experiências: muitos momentos econômicos são oportunidades de autênticos encontros entre pessoas); em outros casos, em que as condições ideais previstas não se realizam, o mercado é integrado e contaminado por outros princípios. Vejamos por quê.

Não é de se admirar que o mercado, se e quando ele chega, traga consigo honestidade, confiança, eficiência, e o seu exercício reforce os códigos éticos de comportamento. Isso é verdade, porém, se levantarmos a hipótese de que isso aconteça em sociedades onde já existam confiança difusa e códigos éticos compartilhados e sistemas

de sanção eficientes que reforçam esses códigos éticos, isto é, se a “mão invisível” dos mecanismos anônimos do mercado pode apoiar-se sobre o “tecido visível” das virtudes cívicas. Se essas condições não se verificam, a chegada do mercado não traz desenvolvimento econômico e civil, antes, aumenta os problemas sociais e a desigualdade. A História destes últimos anos nos diz que enquanto a pobreza absoluta (o número de pessoas que vive com menos de um dólar por dia) está diminuindo, a pobreza relativa (o diferencial entre ricos e pobres) está em grande crescimento. Há também uma outra consideração, mais fundamental. Quando o mercado estende a sua esfera de influência, com ele se expande a área das relações comandadas pelo sistema de preços ou pela troca de coisas equivalentes. Sabe-se que o mercado funciona se somos capazes de atribuir preços (não necessariamente monetários) às coisas que trocamos.

A extensão do mercado tem diversos efeitos, alguns positivos; outros, menos6. Atribuir valor econômico a coisas que antes não o tinham pode ter uma notável importância, uma vez que a sociedade não reconhece uma realidade dotada de valor e tende a destruí-la. É o caso dos bens ambientais, que até há algumas décadas eram destruídos porque não faziam parte dos custos (e, portanto, dos preços), ou hoje em dia dos “bens relacionais”.

Ao mesmo tempo, porém, existe um mecanismo importante identificado pela ciência econômica sob o nome de deslocamento. Isso foi percebido já pelos mercantilistas do séc. XVII quando diziam que “a moeda ruim afugenta a boa”7. Hoje sabemos que esse mecanismo é muito mais geral e aplica-se a fenômenos muito diferentes entre si, desde as doações de sangue ao mercado de seguros8. É recente a sua aplicação às motivações subjacentes aos comportamentos humanos, em que se verifica que as motivações extrínsecas (monetárias) suplantam as intrínsecas (a gratuidade); se áreas humanas antes regidas por motivações intrínsecas, como a reciprocidade e o dom, são invadidas pelo contrato, este último tende a eliminar as primeiras, a suplantá-las: se

sou pago para dar um sorriso ou para responder gentilmente, tenderei a não fazê-lo mais gratuitamente. Pensemos no que está acontecendo nas sociedades ditas desenvolvidas, nas quais o mercado compreendeu

que o homem tem necessidade de “atenção”, e transformou essa compreensão num item de mercado, surgindo então, hoje, agências que vendem “horas de escuta”9. A extensão dos mercados traz, pois, consigo a extensão da racionalidade instrumental e individualista, que, como afirma o filósofo Martin Hollis, corrói o bond of society

(Cf. Hollis, 1998), isto é, a confiança, o vínculo da sociedade, que a permite subsistir.

Com efeito, se se contrapõe o mercado à sociedade, a eficiência à solidariedade, a troca à reciprocidade, não nos resta senão aceitar a não-compatibilidade entre os dois termos, a sua mútua exclusão: os interesses e as paixões individuais apontam para o bem privado, minando e corroendo os valores sociais — o bem comum — como numa partida de pôquer, na qual as vitórias de alguns (os indivíduos) são iguais e contrárias às perdas de outros (o bem comum).

Conclusões

Após esta excursão pelos território da História das idéias e pelas teorias econômicas, podemos tirar algumas primeiras conclusões referentes à relação entre mercado e sociedade.

Se o mercado for só troca instrumental, temos razão de ficar preocupados e temer que ele se estenda. Existe o fenômeno do “deslocamento” e poderemos encontrar-nos num mundo de contratos perfeitos, com um preço para cada coisa, mas sem o “algo mais” da gratuidade, que, embora existindo, ficaria confinada apenas na esfera estritamente particular. A árvore da gratuidade é frágil e deve ser protegida contra o poder do mecanismo que se baseia nos incentivos mais fortes (como os incentivos monetários), uma vez que estes derivam diretamente dos instintos primários do ser humano. As coisas mais importantes, porque mais autenticamente humanas, da vida em comum não podem ser regidas só por contratos, mas devem poder apoiar-se em motivações intrínsecas, que encontram a própria recompensa na bondade mesma da ação social.

De outro lado, vimos que o mercado não necessariamente se opõe à vida civil, desde que seja acompanhado por virtudes cívicas e boas instituições. Um mercado assim pode reforçar e alimentar a confiança e a cooperação, provocando um mecanismo virtuoso entre economia e virtudes civis. E se falamos de virtude, abandonamos imediatamente o registro da pura instrumentalidade, pois — como já nos dizia Aristóteles — a virtude, para ser tal, necessita de genuinidade, não pode ser totalmente instrumental. Por isso, a mensagem que chega hoje da primeira tradição econômica, ainda enraizada na mensagem cristã, é que o mercado se torne civil e civilizador, caso contrário, ele se apóia sobre a pura instrumentalidade, uma vez que, como nos dizia Antonio Genovesi, “toda política, toda economia que não é fundada na justiça, na virtude e na honra, destrói a si mesma”; destrói não só a sociedade, mas... também a si mesma, implodindo por causa da sua própria parcimônia.

De tudo o que foi dito fica mais clara a ação concreta da experiência da Economia de Comunhão, um projeto sobre o qual já publicamos muitas outras vezes nas páginas desta Revista10. Na tentativa de buscar uma nova relação entre mercado e sociedade, a Economia de Comunhão assume um significado profético porque desafia as ideologias dominantes, hoje, na Era da Globalização. Ela mostra, com sua própria existência, que a ação econômica pode e, portanto, deve abrir espaço para outros princípios. De fato, se ela concebe a empresa como uma comunidade, se procura viver as relações comerciais e trabalhistas como ocasiões de encontro autêntico entre as pessoas; quando pensa a empresa como um bem social e como um recurso coletivo, vai além da idéia de mercado como lugar típico de relações instrumentais, apenas.

Isso surge com força também da lógica que prevê a divisão em “três partes” dos lucros das empresas da Economia de Comunhão. De fato, um terço dos ganhos permanece na empresa, para que esta possa permanecer no mercado e crescer; um terço vai para a formação cultural (para a difusão da assim chamada “Cultura da Partilha”); e um terço é destinado diretamente aos pobres, isto é, a pessoas que não conseguem ainda entrar na reciprocidade de mercado, embora desenvolvam um papel ativo, doando as próprias necessidades (cf. Lubich, 2002). Pensando e vivendo a economia desse modo e permanecendo, para todos os efeitos, como empresas inseridas na dinâmica dos mercados (recordemos que as empresas da Economia de Comunhão são também empresas como as outras, isto é, não são empresas sem finalidade lucrativa), a experiência da Economia de Comunhão liga-se à tradição clássica, humanista e cristã da economia e acolhe o desafio de conjugar mercado e vida civil, eficiência e solidariedade, economia e comunhão.

Há cinco mil anos a humanidade começou a usar a escrita por três motivos: para orar, para expressar a própria angústia (uma das mais antigas incisões egípcias é O diálogo de um suicida com sua alma) e para expressar as necessidades econômicas (contratos e notas comerciais). Hoje, num dos momentos mais cruciais da História humana, a economia está diante de uma escolha decisiva, pode encontrar-se tanto com a espiritualidade e a oração — e, portanto, abrir-se ao outro —, como pode fechar-se no individualismo e na própria angústia. É uma escolha de grande responsabilidade, que nos interpela a todos, sem excluir ninguém.

Bibliografia

Becattini, G., 2002. Miti e paradossi del mondo contemporaneo. Roma

: Donzelli.

Bruni, L., 2003. “A economia civil e o princípio da gratuidade”. In: ABBA

— Revista de Cultura. São Paulo, Vol. VI, n. 2, pp. 73-84.

—, e Zamagni, S., 2003. “Lezioni di economia civile”. In: Vita. Febbraio

e Marzo/2003.

Frey, B., 2002. Inspiring Economics. [s. n.] : Elgar.

Genovesi, A., 1824. Lezioni di commercio o sia di economia civile. Milano

: Società Tipografica dei Classici Italiani.

Hollis, M., 1998. Trust within reason. Cambridge : CUP.

Lubich. C., 2002. Economia di Communione. Storia e profezia. Roma

: Città Nuova.

Novak, M., 2000. L’impresa come vocazione. Rubbetino : Soveria

Mannelli.

Sirico, R., 2001. Il Personalismo economico e la società libera. Rubbettino

: Soveria Mannelli.

Smith, A., 1945. La ricchezza delle Nazioni. Torino : UTET.

—, 1978. Lectures on Jurisprudence. Oxford : Oxford University

Press.

Verri, P., 1964. Del piacere e del dolore ed altri scritti. Milano :

Feltrinelli.

1) Genovesi, A., 1824. Lezioni di commercio o sia di economia civile. Milano : Società

Tipografica dei Classici Italiani, p. 290. Hoje as relações econômicas são mais complexas;

de um lado, há ainda um mercado que se alimenta de guerras, de outro lado, há

uma grande fatia da economia, certamente majoritária, que teme as guerras (e isto é

verdadeiro não só para a indústria do turismo ou para as companhias aéreas, mas em

geral, para todos aqueles mercados que têm necessidade de expectativas otimistas e

de confiança para se desenvolver).

2) Para um tratado mais amplo dos aspectos históricos aqui apenas mencionados, remetemos

ao artigos de Bruni, L.–Zamagni, S. publicados na Îtália, no Semanário “Vita”, nos meses

de Fevereiro e Março de 2003, sob o título de Lezioni di economia civile.

3) Smith, portanto, move-se numa direção oposta à de Mandeville (A fábula das abelhas, 1725)

ou Hobbes (Leviatã, 1751). Eles pensavam, respectivamente, que, na grande sociedade, a

amizade e as virtudes civis eram não só inúteis como também danosas e que o fato que

nos obriga a firmar um contrato com os outros é o medo de sermos mortos.

4) Pense-se em Vico ou em Antonio Genovesi que apresentam teses muito semelhantes às de

Smith, mas com maior e mais explícita referência à mensagem cristã (aliás, não ausente

no próprio Smith).

5) Sobre esses pontos, cf. Becattini, G., 2002. Miti e paradossi del mondo contemporaneo.

Roma : Donzelli.

6) Para avaliar a existência de preço de mercado pensemos — para permanecer na esfera

do cotidiano — no mal-estar que alguém pode experimentar quando um conhecido lhe

vende um bem dizendo “pague-me quanto você achar justo”, obrigando-o a um ingente

trabalho de imaginação e intuições, que freqüentemente não o satisfaz ou não satisfaz

a outra parte.

7) Era um fenômeno que se verificava quando no mercado existiam moedas com o mesmo

valor nominal, mas algumas eram “raspadas”, isto é, continham uma quantidade menor

de ouro ou prata. Acontecia, então, que as pessoas tendiam a reter a moeda boa e a

utilizar para as compras só a má, com o resultado que no mercado permaneciam só as

moedas ruins, aquelas raspadas.

8) Sobre o fenômeno do “deslocamento” cf. Bruni, L., 2003. “A economia civil e o princípio

da gratuidade”. In: ABBA — Revista de Cultura. São Paulo, Vol. VI, n. 2, pp. 73-84.

9) Se durante anos dou asssitência gratuita a um doente e, a partir de um certo momento,

começo a ser pago por isso, a tendência será a de uma diminuição, e em certos casos até

do desaparecimento, da assistência gratuita; é este um aspecto do complexo tema dos

incentivos monetários e não monetários, que mereceria espaço bem mais amplo. Para

aprofundar o tema cf. FREY, B., 2002. Inspiring Economics. [s. n.] : Elgar.

10) Veja-se, por exemplo, o n. 3, Vol. IV, 2001, de ABBA — Revista de Cultura inteiramente

dedicado à reflexão cultural sobre a Economia de Comunhão.

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