quarta-feira, 28 de abril de 2010

ovimentos sociais: Perspectivas e desafios

Portal Ecodebate

Sumário:

Movimento social. Perspectivas e desafios
- Ideário em crise. A emergência do paradigma cultural
- Comunitarismo. Um conceito insuficiente ou ainda determinante?
- Relação com o governo Lula. Rompimento da autonomia?
- Perspectivas políticas do movimento social pós-2010
- Os novos movimentos sociais e novas urgências

Eis a análise.

Movimento social. Perspectivas e desafios

O “imaginário de transformação social” que embalou os principais movimentos sociais e as principais lutas nos anos 1980 se perdeu. A convicção de que a realidade pode ser transformada, originário do “comunitarismo” de décadas passadas, perdeu a sua força e o encantamento com a política já não existe mais. Os movimentos sociais vivem uma profunda crise e estão longe de exercerem o protagonismo dos anos 1980 e 1990. Para agravar a situação, a autonomia, conceito caro aos movimentos sociais, encontra-se numa encruzilhada.

Porém, mesmo assim e apesar de sua fragilidade, os movimentos sociais continuam sendo uma referência importante na consciência crítica dos modelos em curso na sociedade e, ao mesmo tempo, estão na dianteira do processo civilizatório, ou seja, são eles que chamam a atenção para os novos temas a serem enfrentados, como a crise ecológica.

As questões acima, entre outras, são destacadas na revista IHU On-Line, dessa semana que tem como tema de capa os movimentos sociais. Foram entrevistados para analisar os movimentos sociais, suas perspectivas e desafios, os seguintes pesquisadores: Rudá Ricci, Maria da Glória Gohn, Silvio Caccia Bava, Ivo Poletto, Ivo Lesbaupin e Marcus Abílio Gomes Pereira.

Ideário em crise. A emergência do paradigma cultural

Uma das principais razões que auxiliam na compreensão da crise dos movimentos sociais está associada ao que o sociólogo e pesquisador do Instituto Pólis, Silvio Caccia Bava denomina de perda do imaginário de transformação social. Segundo ele, “hoje em dia, o nosso imaginário parece ser mais o do consumismo (…) ninguém está falando em transformação da sociedade e, com isso, não se discutem mais projetos de mudanças”. Nesse contexto, assegura, “os movimentos sociais estão fragmentados e também encontram dificuldade de defender propostas de transformação social”.

A pesquisadora e estudiosa dos movimentos sociais, Maria da Glória Gohn tem uma idéia semelhante ao afirmar que os movimentos das décadas anteriores “lutavam para ter ‘direito a ter direitos’ (…), eles não eram voltados apenas para si próprios, olhavam para o outro” e, hoje, segundo ela “o que tem diminuído são movimentos sociais compostos por militantes motivados por causas e projetos coletivos de vida, e não apenas por interesses individuais”.

Na mesma perspectiva, o sociólogo Rudá Ricci comenta que “o ideário dos anos 80 se esgotou e, a partir dos anos 90, lideranças sociais do país ingressaram na lógica da burocracia estatal e perderam a energia e força moral para impor uma nova lógica política. Abdicaram da ousadia”, diz ele.

Na opinião de Ricci, as dificuldades do movimento social estão diretamente ligadas ao desafio de “dialogar com uma população consumista, individualista (mais de 80% deles afirmam, segundo pesquisas recentes, que só confiam na sua família e desconsideram ações comunitárias) e quase fundamentalista no que tange à religião. Alimenta uma religiosidade privatista, voltada para o ganho pessoal e de sua família, para o conforto e não para a solidariedade”.

A percepção dos entrevistados sobre uma das razões da crise do movimento social inscreve-se naquilo que o sociólogo Alain Touraine chama de “paradigma cultural”. Segundo ele, “durante um longo período, nós descrevemos e analisamos a realidade social em termos políticos: a desordem e a ordem, a paz e a guerra, o poder e o Estado, o rei e a nação, a República, o povo e a revolução. Depois a revolução industrial e o capitalismo se liberaram do poder político e aparecem como a ‘base’ da organização social. Foi então que substituímos o paradigma político por um paradigma econômico e social: classes sociais e riqueza, burguesia e proletariado, sindicatos e greves, estratificação e mobilidade social, desigualdades e redistribuição tornaram-se nossas categorias usuais de análise”.

Hoje, diz Touraine, dois séculos depois, temos de “ser capaz de nomear os novos atores e os novos conflitos, as representações do eu e das coletividades que descobrem um novo olhar que faz aparecer aos nossos olhos uma nova paisagem”. Passamos assim do paradigma político para o paradigma econômico e social e agora adentramos no paradigma cultural. O sociólogo francês detecta em suas análises uma mudança de paradigma. Diz ele: “Falava-se de trabalho, de capital, agora se fala de ecologia, de mulheres, de gênero, de sexo, de minorais. Todos estes temas têm algo em comum: são culturais. A explicação mais simples é que passamos de uma sociedade industrial, na qual a sociedade de massas existia somente no nível da produção, a uma sociedade na qual há massificação no consumo, na comunicação, em todas as partes” (n.1).

Segundo ele, portanto, as categorias “sociais”, com as quais se analisava a realidade, perdem centralidade para as categorias de ordem cultural. É a essa passagem, que Touraine vai chamar de “fim do social”, que ele mesmo qualifica de “fascinante e inquietante”. Esse movimento representa a passagem do paradigma econômico e social ao paradigma cultural. Ou seja, doravante, mesmo os fatos econômicos e sociais serão analisados com categorias culturais. A realidade será vista em chave cultural, e não mais exclusivamente em chave econômica e social.

A análise de Touraine é sugestiva na medida em que destaca que é a categoria cultural, sobretudo que auxilia na compreensão das mudanças que perpassam a sociedade mundial. Nesse contexto, as utopias que animaram as lutas sociais dos anos 80, tinham na categoria política a base de sua força e hoje, essa categoria já não é explicativa e tampouco motivadora para a ação social. As motivações para o agir, ou para o deixar de agir, parece que se encontram cada vez mais na categoria de ordem cultural.

Encontramo-nos numa sociedade na qual a subjetividade parece substituir o sujeito, ou seja, são as motivações de ordem individual que animam a pertença à sociedade e não mais as motivações de ordem coletiva. Por aqui se têm uma chave de leitura que talvez possa contribuir na interpretação da crise do movimento social. Os entrevistados pela revista IHU não aprofundam esse tema, mas sugerem como uma das causas explicativas para o descenso das lutas sociais. Por outro lado, destaque-se que é na categoria cultural que encontraremos a emergência de novos movimentos sociais.

Comunitarismo. Um conceito insuficiente ou ainda determinante?

Outro elemento que ajuda na compreensão do caráter da crise do movimento social, segundo os entrevistados pela IHU On-Line, poderia ser encontrado no conceito de “comunitarismo” muito forte e presente na base da ação política e social dos anos 1980, principalmente entre os cristãos que assumiram fortemente a militância. Entretanto, essa constatação não é unânime.

O “comunitarismo” se fez por meio das CEBs, dos círculos bíblicos, das pastorais sociais. Permeia o comunitarismo, também alimentada pela Teologia da Libertação, a idéia algo messiânica de que o “Reino de Deus” – a terra sem males – é inexorável. A iniciação de milhares de cristãos no mundo da política se fez por meio do comunitarismo. Havia uma crença que os valores orientadores da “vida em comunidade”, na pastoral, seriam transferidos, ganhariam o conjunto da sociedade e arrebatariam o poder inaugurando uma nova sociedade.

Rudá Ricci alerta que “a própria concepção de comunidade, nem sempre combina com o de sociedade”. Segundo ele, “na sociologia, comunidade é compreendida como uma relação entre iguais, que se solidarizam a partir do afeto, dos valores mútuos. Forma-se um espírito de corpo nem sempre baseado na razão, na noção consciente do papel individual na construção do coletivo, mas na prática de autodefesa do grupo”. O conceito de sociedade, ao contrário, diz ele, “não é uma soma de comunidades, mas a construção de racionalidade e regras que definem a convivência entre diferentes. Na lógica societária, cada indivíduo precisa saber qual o seu papel para que o todo funcione, mesmo desconhecendo o que é, efetivamente, o outro, que mora em outro bairro distante do seu, que nem sabe que existe. Os laços afetivos criam forte coesão, mas também podem criar forte sentimento de exclusão ou exclusivismo”.

De acordo com o sociólogo, “o comunitarismo cristão, base da Teologia da Libertação, não conseguiu construir uma lógica política tolerante e voltada para sociedades complexas. Os movimentos sociais que nasceram desta vertente acabaram por se fechar em suas pautas específicas e construíram fortes estruturas organizacionais voltadas para si e não para a sociedade como um todo. Na prática, defendem interesses grupais, e não direitos universais. Muitas vezes, este erro ganha uma roupagem discursiva fundada no conceito de luta de classes”, diz.

O sociólogo Ivo Lesbaupin tem outra opinião: “Não creio que se possa dizer que a origem da CPT ou do trabalho pastoral da Igreja nos anos 60 era um ideário comunitário. Houve, sem dúvida, um grande esforço por parte dos setores progressistas da Igreja católica, na direção da formação de inúmeras comunidades de base por todo o país. Mas as comunidades não são um movimento social, elas são uma forma de organização da Igreja, que continua até hoje (mesmo que reconheçamos que os tempos mudaram, que o apoio da instituição era maior). As comunidades deram nascimento ou apoiaram fortemente inúmeros movimentos sociais, tanto na cidade como no campo. Toda a luta das oposições sindicais contra o peleguismo teve muito apoio das comunidades. Até hoje, em parte significativa das comunidades, seus membros participam de movimentos. Mas o objetivo desta luta não é uma sociedade constituída de comunidades: é uma sociedade justa, democrática, participativa, solidária (o ‘outro mundo possível’)”, diz ele.

Na opinião de Silvio Caccia Bava, o comunitarismo foi importante por algo que se perdeu: o imaginário da transformação social. Segundo ele, “o que mais perdemos, de uma maneira significativa, é esse imaginário da transformação social. Quer dizer, mesmo na época da ditadura, a Teologia da Libertação pregava um outro mundo melhor, ainda que nem explicasse como. E esse imaginário mobilizava as energias de muitos milhares de pessoas”, diz ele.

O educador popular Ivo Poletto defende a atualidade dos ideais do comunitarismo e dá como exemplo o desafio das mudanças climáticas. De acordo com ele, será a retomada da vida comunitária, a ser organizada em cada território que poderá indicar alternativas para esse problema: “Não será a comunidade de outros tempos, é claro, mesmo se contará com a riqueza das experiências dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais, que preservaram por milênios e séculos valores assentados na vida comunitária. A consciência que levará a revalorizar a comunidade de vida será nova. Ela deverá estar assentada sobre a necessidade de recriar as relações com a Terra, assumindo que os humanos são parte dela e que só podem Bem Viver se ela estiver viva e for fonte permanente de vida; e sobre a necessidade de recriar a prática econômica e de intercâmbio de bens e serviços, reduzindo ao máximo o consumo de tudo que provoca aquecimento pela contaminação da atmosfera. Em outras palavras, a busca da comunidade será a via para superar a civilização do consumismo, criando novas formas de sermos humanos”, destaca.

Não foi abordado suficientemente nas entrevistas os limites do comunitarismo na contribuição de um projeto político para o país. Problematizando o tema, talvez se possa dizer que o comunitarismo, de gênese cristã, foi insuficiente para o amadurecimento político da militância e auxilia na explicação da tensão com o mundo da política. Via de regra, a formação política realizada no “comunitarismo” – Ceb’s e pastorais – nos anos 1980 ofereciam uma iniciação simplista e maniqueísta. De um lado, estavam os opressores, os poderosos, os corruptos e, de outro, estava a base, os oprimidos, os justos, os éticos, os bons. A pergunta que se faz é: Será que a Teologia da Libertação não errou ao fazer análises políticas por demais simplistas, transpondo categorias bíblicas sem nenhuma mediação sociológica? Será que não faltou uma exegese mais apurada, rigorosa dos textos bíblicos, capaz de dar conta da complexidade da sociedade contemporânea?

Ou ainda outra questão: Será que a iniciação política no “comunitarismo” não falhou na medida em que não deu conta da complexidade do mundo da política? Quantos não são os cristãos que se perderam no pesado jogo da política por falta de clareza teórica e compreensão da sua complexidade? Ainda mais, a capitulação de muitos diante da lógica do poder e mesmo da lógica do modelo econômico, não traduz a ausência de um projeto político? Por que tantos – de origem no “comunitarismo”, ao chegarem ao poder, aceitaram passivamente o programa econômico de corte neoliberal ensejado pelo governo Lula desde o início?

Relação com o governo Lula. Rompimento da autonomia?

O tema anterior, dos limites e contribuições do “comunitarismo” tão forte e presente na retomada dos movimentos sociais brasileiros nos anos 1890 remetem para o debate da autonomia do movimento social versus o poder. Esse tema ganha ainda mais intensidade quando cotejado com um governo que se forjou a partir das lutas sociais.

O sociólogo Rudá Ricci é direto. Segundo ele, a relação do movimento social com o governo é de subordinação e forte partidarização. Diz ele: “Houve ganhos no governo Lula, principalmente econômicos. Os salários aumentaram. Houve forte ascensão social. Mas, do ponto de vista político e de estrutura de Estado, houve retrocesso. O governo Lula segmentou os movimentos e organizações sociais em temas. Criou câmaras e arenas de negociação de projetos (como o CDES) sem laços com as bases sociais. Prejudicou sobremaneira a articulação política e a transparência das ações de Estado. Transformou grande parte da agenda de Estado em agenda de governo. Criou forte cooptação política via distribuição de recursos públicos. O lulismo se alimentou desta lógica: construiu a imagem de um pai, sábio, sorridente. Personalizou a política. Algo que os movimentos sociais dos anos 80 tanto lutaram para superar. O grande retrocesso é político”.

O sociólogo e editor do Le Monde Diplomatique Brasil, Silvio Caccia Bava comenta que início de 2003, “houve uma certa euforia por parte dos movimentos no sentido de dizer ‘agora estamos lá’, porque Lula era compreendido como uma representação dos próprios movimentos que chegava ao governo”. Segundo ele, “essa é uma questão muito curiosa. Quando Lula assume o governo, ele chama um conjunto importante de lideranças desses movimentos para dentro do governo. O Ministro do Trabalho acaba sendo o ex-presidente da CUT; lideranças do movimento camponês acabam participando do governo também. Acho que é uma expectativa perfeitamente compreensível. Há uma expectativa por parte dos movimentos de que eles venham a participar do processo de formulação das políticas, dos próprios cargos públicos”.

“Acontece, continua ele, que isso gera uma confusão enorme, não se tem mais uma clara diferença do que é movimento e do que é governo. De repente, lideranças que, na sociedade civil, estavam fazendo pressão sobre o governo, no dia seguinte, elas são as autoridades sobre as quais se faz a pressão. Então, isso criou uma promiscuidade e uma dificuldade de compreensão dos diferentes papéis, o que contribuiu muito para desarticular a capacidade de pressão dos movimentos sociais”.

Por outro lado, destaca Caccia Bava, “o governo Lula também criou muitos espaços de consultas, conferências, conselhos, secretarias especiais sobre a questão racial, da mulher, entre outras. Esses foram espaços onde as lideranças da sociedade civil e os movimentos se fizeram representar; atuam, mas não têm um poder deliberativo. São instâncias consultivas que encaminham suas proposições ao governo, que as assume se esse entender que é conveniente. Então, eu diria que o mundo se tornou mais complexo do que era antes. Essa pode parecer uma frase jogada solta, mas não existe mais só o Estado sobre o qual o movimento social faz pressão, existe um Estado onde o próprio movimento está dentro, se reconhece lá, espera mudanças, aposta nelas, mas elas não estão ocorrendo”, conclui.

Para o sociólogo Ivo Lesbaupin, o tema das Conferência revela-se como uma farsa e afirma que o governo Lula representou um retrocesso na relação com os movimento sociais. Segundo ele, “o governo se apresenta em relação aos movimentos sociais como um governo de diálogo, que recebe suas lideranças como um governo participativo, aberto às conferências. Sem dúvida, há muito mais conferências neste governo do que no anterior, mas da participação à decisão política há uma grande distância, e o governo cede apenas o que quer. Nem com a crise econômica internacional, consequência direta do neoliberalismo dominante, o governo se dispôs a mudar a política econômica: isto não está em discussão. O exemplo mais recente é o PNDH III que, sob pressão dos setores mais conservadores, tem obtido (até agora, pelo menos) o recuo do governo: em função de suas alianças partidárias para manter o poder, ele não vai brigar para manter os avanços mais significativos”.

Ainda sobre o tema das Conferência, Silvio Caccia Bava indica contradições no governo Lula. Segundo ele, com o governo Lula, os movimentos conseguiram uma ocupação progressiva de espaços na sociedade civil e cita como exemplo o Fórum Nacional da Reforma Urbana que reúne movimentos de moradia, ONGs, sindicatos de profissionais como os de saneamento básico, institutos de arquitetos, engenheiros. De acordo com Caccia Bava, “houve um momento em que ele reuniu, inclusive, movimentos de favelas em alguns lugares como no Rio de Janeiro. Esse Fórum teve um papel importante na criação do capítulo de política urbana da nova Constituição Brasileira de 1988; ele também foi fundamental na elaboração do Estatuto da Cidade , ou seja, dessa lei normativa geral que busca transformar as cidades no sentido de inibir a especulação imobiliária, de usar a cidade como mercadoria e fazer prevalecer o valor social dos bens públicos; impulsionou a ideia de que todos os municípios devem ter planos diretores que estejam comprometidos com a redução da desigualdade, com a inclusão social e política dos mais pobres; desenvolveu mecanismos de participação importantes, como o próprio sistema das cidades que tem os conselhos municipais, estaduais, nacional, as conferências – o próprio fundo de habitação de interesse social é uma bandeira desse movimento também”.

Então, se formos observar, diz o sociólogo, “houve grandes conquistas, mas é preciso observar que ocorreram situações onde estas conquistas não foram levadas em consideração. Com o programa Minha Casa, Minha Vida aconteceu algo curioso: todas essas estruturas de participação, de conselhos, instâncias e o próprio Ministério das Cidades não participaram da elaboração desse projeto de um milhão de casas populares. Isso foi feito por outro caminho, sem considerar essas institucionalidades que incluíam a participação cidadã. Quer dizer, existe uma capacidade evidente de pressão e um interesse dessa sociedade organizada em influir nas políticas públicas”.

Retornando à análise da relação do movimento social com o governo Lula, de acordo com Lesbaupin, “o governo procura quebrar a combatividade dos movimentos, dividi-los, desmobilizá-los e mantê-los apenas como massa de apoio quando necessário. Conseguiu, em boa parte, seu intento de colocar como limite máximo de utopia as mudanças dentro dos quadros do neoliberalismo. Muitos, nos movimentos, contentam-se com as pequenas conquistas obtidas. Melhor que qualquer outro líder da direita, Lula conseguiu controlar parte dos movimentos sociais. Não os controla totalmente, é claro, mas reduziu sua força, sobretudo reduziu sua autonomia”, diz.

Porém, Lesbaupin destaca que “existe uma mobilização autônoma, porém, em vários setores, e em vários movimentos: para dar um exemplo, na Assembleia Popular , que é uma articulação de diversos movimentos, pastorais e entidades da sociedade civil. Foi a única articulação que produziu um projeto de sociedade, distinto do vigente, crítico ao modelo neoliberal (“O Brasil que queremos”). Este tipo de articulação pode crescer, porque vem de encontro aos anseios de muitos que estão insatisfeitos”.

A interpretação de Ivo Lesbaupin sobre a Assembleia Popular deve ser problematizada. Se, por um lado é verdade que é nela que ainda subsiste o debate sobre um projeto político para o país, poder-se-ia aqui também acrescentar a Consulta Popular que mantém vivo o debate de projeto de nação; por outro, faz-se necessário destacar a fragilidade da Assembleia Popular que ao invés de crescer está diminuindo de tamanho. A Assembleia Popular “começou” grande num grande encontro em Brasília em 2005 que contou com a participação de oito mil pessoas. No próximo mês, maio, a Assembleia Popular fará a sua segunda Assembleia nacional e não deverá reunir mais do que duas mil pessoas. A explicação pode ser de ordem metodológica, mas é evidente que a organização da Assembleia Popular definha nos estados.

O filósofo e teólogo Ivo Poletto destaca um aparente paradoxo, o de que o principal retrocesso do governo Lula, está relacionado com o avanço: “Sou do parecer que a eleição de Lula foi fruto da decisão livre da cidadania, mobilizada politicamente, em boa medida, pelos movimentos sociais urbanos e rurais, incluindo aqui também a ação das pastorais sociais (…) o principal avanço está no fato de que ninguém mais poderá dizer que uma ou um brasileiro simples não pode ser presidente da República. O principal retrocesso é relacionado com o avanço: está no fato de Lula e seu governo não terem possibilitado todo o amadurecimento da consciência e da prática democrática que se tornaram possíveis com sua eleição. São referidas muitas desculpas, muitas indicações de impossibilidade, muitas justificações para o “realismo” da política do possível. Podem ter elementos de realidade, mas não consigo convencer-me que não foram criadas condições para maiores avanços na prática governamental verdadeiramente democrática”.

A pesquisadora Maria da Glória Gohn, comenta que assiste-se a uma mudança na relação do Estado com os movimento sociais. Segundo ela, “o Estado alterou sua forma de relação com o setor social. De um lado, significa reconhecimento social, especialmente de identidades culturais reivindicadas pelos movimentos; de outro, passou a haver um maior controle social – de cima para baixo, pois as identidades têm sido formatadas em ‘políticas de identidades’, e não em processos de assegurar ‘identidades políticas’ construídas pelos próprios sujeitos participantes”.

Segundo ela isso apresenta implicações importantes, pois, “a mudança na ordem dos termos muda o sentido da ação social. As políticas públicas passaram a ser eixo estruturante das ações coletivas, organizadas sob um leque de temáticas com formas variadas. Ao mesmo tempo em que vários movimentos sociais tiveram mais condições de organização, tanto interna como externa, dado o ambiente político reinante, eles perderam muito sua autonomia e consequentemente, sua força política, por diferentes razões. Alguns se transformaram em ONGs ou estruturas de gestão das políticas públicas. Outros ficaram na resistência, meio que congelados, produzindo esporadicamente eventos de efeitos midiáticos, efeitos que ocupam as pautas das manchetes da mídia e morrem com o fim do evento, sem repercussão no atendimento de suas demandas, ou alteração em suas práticas, ou nas ações e diretrizes de seus opositores”.

Ainda sobre a relação do movimento social com o governo Lula, reproduzimos a análise do sociólogo Werneck Vianna, que não se encontra entre os entrevistados, mas que é elaborador da tese de que na questão dos movimentos sociais Lula evoca o Estado Novo do período getulista. “Qual foi a operação que o Estado Novo getuliano fez? Exatamente esta: tudo o que era vivo na sociedade ele trouxe para si. Tal como agora. Trouxe para si e, de cima, formula políticas para a sociedade”, diz ele. Segundo Werneck, “um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado”. “Ele [Lula] tem força, carisma, para segurar essa colcha e essa federação é boa para todos”.

A interpretação de Werneck Vianna é a de que o governo Lula engoliu a todos. O movimento social grita, reage, mas no limite não rompe com o governo; a direita esperneia, protesta, mas rende-se ao governo de coalizão; o capital produtivo e financeiro reclama, mas está contente com Lula. No máximo o presidente, deixa “que os dissídios internos amadureçam e no final arbitra e decide”. Lula tornou-se o conciliador de classes.

Rudá Ricci comenta ainda um outro problema relacionado a autonomia dos movimentos sociais. Segundo ele, “vários movimentos sociais e organizações populares se enredaram numa forte crise de financiamento e até hoje não acharam uma saída que lhes garanta autonomia política efetiva”.

Perspectivas políticas do movimento social pós-2010

Tendo presente o tema da política e a relação da autonomia versus poder, quais são as perspectivas do movimento social para o pós-2010? Convidados a falar sobre esse tema, os entrevistados pela IHU On-Line deram suas opiniões. Rudá Ricci considera que “com Dilma presidente, a agonia [do movimento social] aumentará, porque ela é muito mais dura e tecnocrática que Lula. Não tem compromissos históricos e pessoais como Lula com os movimentos sociais. Não dará as costas, mas continuará e acentuará a lógica atual”.

Com Serra, diz ele, “já sabemos que o enfrentamento será uma tônica. Veja o tratamento que confere à greve dos professores paulistas. Trata como elemento de disputa partidária porque o PSDB nunca conseguiu ter peso nas lutas sociais brasileiras. É mais analista de gabinete que ator social. Em suma: não teremos dias muito profícuos na próxima gestão”. Entretanto, Rudá comenta que “com Serra, é possível que as lutas sociais ganhem intensidade. Parecerá uma volta, mantendo os velhos problemas. E poderá se partidarizar ainda mais. A solução estará na superação dos próprios fantasmas. Se movimentos sociais e organizações populares não enfrentarem seus fantasmas, estaremos sempre dependentes do próximo eleito. O que é muito pouco para aquilo que desejavam na fase de redemocratização do país”, afirma.

O professor e sociólogo Ivo Lesbaupin tem a opinião que “qualquer que seja o presidente eleito, há uma grande vantagem: o governante não será o Lula, será possível uma postura mais crítica em relação ao governo. Hoje, para muitos, como disse Chico de Oliveira, Lula virou um mito. Mesmo parte dos militantes de esquerda justifica o que ele faz claramente à direita, em continuidade à política macro-econômica de Fernando Henrique, a serviço do capital financeiro. Mesmo que sua candidata vença, não será a mesma coisa: haverá a possibilidade de uma postura mais independente. É claro que um governo do PT procurará continuar o esforço de cooptação, isto é, de neutralização de movimentos sociais, mas a margem para resistir será maior”.

O pesquisador do Pólis, Silvio Caccia Bava destaca que “neste momento, estamos vivendo uma promiscuidade entre os movimentos sociais e estas instâncias de governo que envolvem a participação, que priorizaram a negociação nesses espaços ao invés das formas tradicionais de pressão dos movimentos sociais: gente na rua, mobilizações, denúncias. Se continuarmos dentro desse quadro político no próximo mandato presidencial, possivelmente continuaremos tendo essa ambiguidade e fragmentação que os movimentos sociais apresentam hoje”.

Segundo ele, “se o quadro eleitoral mudar, pode haver também uma mudança forte na própria lógica dos movimentos porque, certamente, em um governo que não represente continuidade, todas essas lideranças sociais voltam para a sociedade civil. Então, o movimento é uma relação de processar conflitos e demandas. De um lado, pessoas exigem direitos e, de outro, instâncias públicas tentam responder a isso, ou não. Justamente esse jogo de processar demandas e conflitos é importante, é aí que está o núcleo da democracia. Democracia é como se processa o conflito de uma maneira negociada numa sociedade. Mas, para isso, é preciso ter saldos de ganho da parte de quem está demandando porque, do contrário, se desacredita no processo de negociação”.

Silvio Caccia conclui: “Hoje, o que estamos vendo é que os benefícios que os mais pobres estão tendo não estão passando por resoluções de negociações de conflitos; estão passando por políticas de iniciativa do próprio governo, que faz um cadastramento de pessoas e que trata os movimentos e as entidades de representação coletiva de uma maneira distinta das clientelas das suas políticas”.

O educador popular Ivo Poletto, destaca outro processo que considera importante. Segundo ele: “Há uma frase, repetida nos espaços da Assembleia Popular, que também vive suas crises, que me parece indicar o melhor rumo a ser seguido pelos movimentos sociais: ‘em outubro, nosso candidato é o projeto popular’. Isso significa que não se deverá repetir o equívoco anterior, a saber: apostar todas as fichas em eleições, num partido, num candidato. A prática ensinou que, se não crescer a capacidade sociopolítica dos movimentos sociais, pode-se perder a disputa pela orientação política do governo eleito”.

Então, diz Poletto, “o caminho a ser seguido, e que pode ser permanente e autonomamente definido, é o reforço dos movimentos sociais, aprofundando seu enraizamento em sua base social; capacitando com consciência crítica mais lideranças; avançando na capacidade de trabalhar em rede; articulando-se para ser expressão democratizante do poder popular; democratizando as relações no interior dos movimentos, redes e articulações, para democratizar o Estado através da mobilização política da sociedade brasileira”.

Os novos movimentos sociais e novas urgências

Há o consenso de que alguns movimentos sociais – especialmente o operário – sofreram um declínio por razões diversas: desmonte neoliberal (Ivo Lesbaupin), perda do “imaginário de transformação social”, relação confusa ou “promíscua” com o governo (Caccia Brava). Ou mesmo perderam sua hegemonia.

Outros – como o MST – mantêm sua importância. Em parte porque souberam atualizar seu repertório de enfrentamentos, como destaca Caccia Brava: “Vejo, não só o MST como o movimento mais importante que organiza pressões, mas como um grupo que busca novos paradigmas. O MST trabalha com a noção da agroecologia, não aceita a utilização do agrotóxico, busca fortalecer a unidade produtiva familiar, que é o que gera emprego nesse país. Ele tem um papel de integração, coesão e inclusão social muito forte”. Entretanto, há também divergências entre os entrevistados a esse respeito.

Mas, novos movimentos sociais fizeram sua entrada em cena na virada de século e milênio. O movimento ambientalista é um deles. Convém destacar que o movimento ambientalista é muito mais amplo que o punhado de ONGs que atuam na área, muitas vezes tecnológica e estruturalmente bem dotadas. O movimento ambientalista – talvez seja mais correto chamá-lo de movimento ecológico – compreende uma ampla gama de lutas que compreendem setores de igrejas, como no caso da oposição à transposição do Rio São Francisco, os povos indígenas na sua luta para reconquistar as terras em Roraima, na Bahia, no Mato Grosso do Sul, bem como na resistência às usinas projetadas para serem construídas na Amazônia, especialmente a de Belo Monte, os movimentos “Xingu Vivo”, “Tapajós Vivo”, os movimentos – muitas vezes difusos – contra as monoculturas de todo tipo, etc.

Como observa Ivo Poletto, “o que se percebe de novo, talvez, é a emergência da consciência e de objetivos ecológicos nos movimentos recentes. Além disso, como nascem de desafios muito concretos, as forças sociopolíticas mobilizadas são diversificadas; menos com viés de ‘classe’, se desejarmos”.

Alan Touraine compreende os “novos movimentos sociais” como aqueles que “não têm por princípio transformar as situações e as relações econômicas; defendem a liberdade e a responsabilidade de cada indivíduo, sozinho ou em coletividade, contra a lógica impessoal do lucro e da concorrência. E também contra uma ordem estabelecida que decide o que é normal ou anormal, permitido ou proibido” (n.2).

Nessa definição cabe o movimento ecológico, como observa Poletto, mas também os “os movimentos específicos, em defesa de identidade ou de igualdade, o movimento de mulheres, o movimento negro, o dos homossexuais, os GBLT, o dos quilombolas…”, como observa ainda Ivo Lesbaupin. E os povos indígenas, como já apontamos anteriormente.

Algo novo – e nem sequer mencionado nas entrevistas – é o movimento de defesa dos direitos dos animais. Esses movimentos trazem novas sensibilidades, nem sempre percebidas pelos “antigos” movimentos sociais, mais atentos ao corte de classe social.

Notas
1 – Entrevista publicada no Boletim CEPAT Informa n. 117, jan. 2007, p. 27-31).
2 – TOURAINE, Alain. Um novo paradigma. Ed. Vozes, 2006, p. 180.

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura da revista IHU On-Line – edição 325, 19-04-2010 – Movimentos sociais. Perspectivas e desafios. A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

(Ecodebate, 22/04/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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