Publicado no boletim Ecodebate
“A biodiversidade que hoje conhecemos (pelo menos em parte) no nosso planeta é o fruto de 3,5 bilhões de anos de evolução biológica através dos processos de seleção natural. Foi este processo, ao longo de todo este tempo, que levou ao surgimento de todas as espécies biológicas conhecidas (e ainda não conhecidas)”. A definição é do professor e pesquisador Roberto Berlinck, em entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line. Ele enfatiza que a espécie humana faz parte da biodiversidade do planeta, mas que nenhuma outra espécie viva da Terra depende dos humanos. “Se a espécie humana for extinta, por qualquer razão, provavelmente a maioria das outras espécies vivas continuarão a existir, como bactérias, fungos, cianobactérias, plantas e animais. A espécie humana deixaria de existir muito antes que as espécies vegetais desaparecessem por completo”, argumenta. Para Berlinck, “as sementes constituem a fonte de informação e de geração de vida de diversas espécies vegetais. Com a perda da biodiversidade, espécies vegetais estão desaparecendo porque não conseguem se reproduzir”.
Roberto Gomes de Souza Berlinck possui graduação em Química pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado em Ciências (Química Orgânica) pela Université Libre de Bruxelles. Atualmente é professor no Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as principais características que diferenciam a biodiversidade marinha e terrestre?
Roberto Berlinck – A biodiversidade marinha e terrestre é fundamentalmente diferente por um motivo simples: o meio marinho é aquoso, salino e, em função da profundidade onde os organismos vivos são encontrados, estes estão sob uma pressão muito grande (em termos de pressão atmosférica). Já os organismos terrestres vivem em um ambiente aéreo, constituído principalmente por nitrogênio (N2, 70% da atmosfera), intensa radiação luminosa e com fortes correntes de ar. Tais características ambientais fizeram com que as espécies terrestres e marinhas adquirissem características muito diferentes ao longo da evolução biológica. Por exemplo, as espécies de animais marinhos tiveram que desenvolver mecanismos para utilizar oxigênio dissolvido na água do mar. Já as espécies terrestres tiveram que desenvolver mecanismos para tolerar uma alta concentração de oxigênio no ambiente em que vivem. As espécies marinhas também tiveram que desenvolver maneiras de tolerar uma significativa concentração de sais no seu ambiente, o que não ocorre no ambiente terrestre. Desta forma, as espécies marinhas apresentam características anatômicas e fisiológicas inexistentes nas espécies terrestres. Por exemplo, vários tunicados (invertebrados marinhos) têm, em seu sangue, átomos de vanádio, um metal relativamente raro, que não ocorre na maioria dos organismos terrestres. Por outro lado, muitos insetos utilizam substâncias químicas voláteis, que se dispersam no ar, para se comunicar, o que não ocorre no ambiente marinho.
IHU On-Line – Como entender a disparidade do número de espécies entre ambiente terrestre e marinho? O que provocou esse fenômeno?
Roberto Berlinck – A resposta a esta pergunta não é simples. Recentemente foi publicado um artigo na revista científica Science que discute exatamente esta questão. O artigo foi comentado no meu blog, Química Viva, e a ideia que os autores do artigo apresentam é que a biodiversidade marinha é muito menor do que a biodiversidade terrestre, quando se considera o número de espécies nos dois ambientes. O levantamento mostra que de cada 10 espécies biológicas, nove situam-se em ambiente terrestre. Tal distribuição é relativamente recente, uma vez que, há 400 milhões de anos, a predominância era de espécies marinhas. Contudo, há cerca de 110 milhões de anos, as plantas terrestres começaram a sofrer um intenso processo de especiação (surgimento de novas espécies), bem como seus respectivos agentes polinizadores, micro-organismos associados e herbívoros predadores. Com a “explosão” das plantas floríferas há cerca de 110 milhões de anos, estas ocuparam praticamente todos os ambientes terrestres onde podiam se desenvolver. Como a dispersão das espécies pelo ar é muito mais rápida e pode atingir longas distâncias, o surgimento de um número excepcional de espécies terrestres foi muito favorecido.
Sendo a dispersão no meio marinho muito mais difícil, as espécies marinhas tendem a viver de forma aglutinada, formando comunidades de alta densidade populacional – os recifes de corais. As espécies que vivem intimamente associadas aos recifes de corais se tornam particularmente vulneráveis a doenças, predação e fatores ambientais, como aquecimento e ocorrência de desastres como maremotos e furacões. Tais fatos já foram extensivamente observados nos corais da região caribenha e das Bahamas. Os corais destas regiões estão continuamente expostos a enormes furacões que movimentam as águas oceânicas de maneira extremamente agressiva, deixando um enorme rastro de destruição de corais e suas espécies associadas. São necessárias décadas para que tais recifes voltem a apresentar suas características originais. O mesmo vale para corais da Grande Barreira de Corais da Austrália, que sofrem particularmente com efeito de branqueamento dos corais (morte de zooxantelas e outras cianobactérias) em decorrência de mudanças na temperatura da água bem como nas taxas de dissolução de dióxido de carbono na água do mar.
Outro fator que pode ter contribuído para um aumento significativo na biodiversidade terrestre é o aumento na vascularização das plantas superiores. Tal fator levou a um incremento importante na biomassa das plantas, e pode ter contribuído para a ocupação de nichos ecológicos ainda disponíveis. Em consequência, o número de espécies biológicas terrestres aumentou muito, deixando a biodiversidade marinha muito aquém em número de espécies. Vários fatores podem ter influenciado esta diferença, como a maior densidade da água quando comparada com a do ar, fazendo com que larvas de animais sejam transportadas com muito mais dificuldade no meio marinho do que no terrestre. A dissipação de calor na água é muito mais difícil, tornando os organismos marinhos mais suscetíveis a eventuais variações de temperatura. Desta forma, o ambiente terrestre seria muito mais propício para os processos adaptativos que regem o processo de evolução através da seleção natural.
IHU On-Line – Qual a importância de conhecer e preservar a biodiversidade? Ela é algo bom para quem e para o quê?
Roberto Berlinck – Atualmente, este é um tema constante nos meios de comunicação, e vale a pena enfatizar: somos parte da biodiversidade. O ser humano é um animal como qualquer outro. Não somos especiais. Fundamentalmente, as únicas diferenças entre a espécie humana e as outras espécies biológicas são a consciência e a linguagem. Tais características tornaram a espécie humana única, porém não mais importante ou melhor. Por exemplo, a maior parte da fotossíntese é realizada por microalgas oceânicas (cerca de 80-90% de toda a fotossíntese do planeta Terra é realizada no mar). O processo de fotossíntese captura dióxido de carbono e, na presença de luz e água, transforma o CO2 em matéria orgânica (glicose) e oxigênio. No meu ponto de vista, considero os organismos fotossintetizantes muito mais importantes do que a espécie humana, pois as espécies de algas e plantas que realizam a fotossíntese mantêm a vida de todas as outras espécies que dependem delas. Nenhuma outra espécie viva da Terra depende da espécie humana. Se a espécie humana for extinta, por qualquer razão, provavelmente a maioria das outras espécies vivas continuarão a existir, como bactérias, fungos, cianobactérias, plantas e animais. A espécie humana deixaria de existir muito antes que as espécies vegetais desaparecessem por completo.
A percepção da importância da biodiversidade não se reduz a preservar e conservar a natureza porque ela é boa e bela, e sim porque a vida na Terra é uma gigantesca rede de inter-relações entre animais, vegetais e micro-organismos. Se, por acaso, partes desta rede forem severamente comprometidas, toda a rede estará comprometida. Uma vez que esta rede se estabeleceu, não é possível simplesmente ignorá-la. É preciso conhecê-la, cada vez melhor, para que possamos não apenas gerar conhecimento, mas também utilizarmos a biodiversidade de várias maneiras (na produção de alimentos e medicamentos; como lazer em zoológicos, museus, aquários etc.; em pesquisa biomédica), de forma responsável e sustentada.
IHU On-Line – Qual a especificidade da biodiversidade das sementes?
Roberto Berlinck – As sementes constituem a fonte de informação e de geração de vida de diversas espécies vegetais. Com a perda da biodiversidade, espécies vegetais estão desaparecendo porque não conseguem se reproduzir. Sendo assim, a constituição de bancos de sementes vegetais (atualmente existem vários no mundo todo) é extremamente importante para melhor se conhecer a distribuição dos vegetais na Terra, como estas sementes são importantes para a disseminação de espécies vegetais dos quais dependem insetos, aves e outros animais, bem como para servir de material de referência para análise genética de diferentes tipos de plantas e também propiciar o plantio de espécies raras e nativas que se encontram em extinção.
IHU On-Line – Como relacionar a biodiversidade com o processo de evolução e seleção natural das espécies?
Roberto Berlinck – A biodiversidade que hoje conhecemos (pelo menos em parte), no nosso planeta, é o fruto de 3,5 bilhões de anos de evolução biológica através dos processos de seleção natural. Foi este processo, ao longo de todo este tempo, que levou ao surgimento de todas as espécies biológicas conhecidas (e ainda não conhecidas).
IHU On-Line – O que significa para o mundo o conhecimento de que nossa biodiversidade é tão rica? Quais as implicações da abundância da biodiversidade para os outros setores da nossa sociedade, como a economia, por exemplo?
Roberto Berlinck – Como indiquei anteriormente, a biodiversidade é a parte mais importante de uma enorme rede, extremamente complexa, que chamamos de VIDA. O fato de o Brasil ser um país denominado “megadiverso” o coloca em destaque no cenário internacional, uma vez que possui entre 15% e 25% de toda a biodiversidade da Terra. É um dos poucos países que ainda possui uma biodiversidade tão extensa, boa parte ainda desconhecida. Portanto, é extremamente importante que sejam criados programas de pesquisa, desenvolvimento e aplicação de processos e produtos oriundos da biodiversidade brasileira. Estima-se que o valor da biodiversidade brasileira seja de 2 trilhões de dólares por ano, muito maior do que o PIB do Brasil. O potencial de utilização dos recursos oriundos da biodiversidade brasileira é incalculável. Apenas uma parte muito, mas muito pequena mesmo, destes recursos foi pesquisada e se tornou produtos de importância econômica, cultural e social. É importante assinalar que a exploração racional da biodiversidade também pode gerar produtos culturalmente importantes. A história do Brasil está intimamente relacionada à sua biodiversidade, a começar pela exploração do Pau-Brasil. A culinária brasileira está intimamente ligada à sua biodiversidade, como várias plantas do gênero Piper (que são os diferentes tipos de pimentas), peixes da região norte e centro-oeste, diferentes tipos de mandioca, uma enorme variedade de frutas, alimentos que fazem parte da cultura social. Além disso, muitas plantas foram (e ainda são) utilizadas na construção civil, móveis, embarcações, e que atualmente estão felizmente protegidas.
A biodiversidade brasileira não somente deve ser explorada para fins econômicos diretos, mas também para gerar conhecimento. Não se conhece quase nada sobre os mais diversos tipos de micro-organismos, insetos, plantas e organismos marinhos que podem gerar produtos de alto valor tecnológico agregado, como enzimas. Tais produtos podem beneficiar enormemente a população brasileira de diferentes maneiras: promovendo avanço científico, gerando conhecimento, possibilitando a geração de processos e produtos de interesse para a saúde humana, para a agricultura, e de muitas outras formas. Por isso, é muito importante que se estimule a pesquisa e o conhecimento sobre a fauna e a flora brasileira. Existem inúmeros pesquisadores no Brasil inteiro que se dedicam a estudar a biodiversidade brasileira, como forma de melhor conhecer e possibilitar a utilização racional dos recursos naturais. Tais pesquisas devem ser muito estimuladas, e o acesso à biodiversidade brasileira deve ser facilitado para os pesquisadores e estudantes que queiram se dedicar a melhor conhecer as plantas, animais e micro-organismos do Brasil.
IHU On-Line – Como a perda da biodiversidade pode influenciar na longevidade da vida terrestre, inclusive da sobrevivência da espécie humana?
Roberto Berlinck – Como eu disse acima, a espécie humana é parte da megarrede de VIDA do nosso planeta. Porém, não é parte essencial desta rede. Existem outros organismos que são muito mais importantes nesta rede, como aqueles que fazem fotossíntese (plantas, algas e microalgas) e os que degradam a matéria orgânica (bactérias e fungos). Se o desenvolvimento humano prolongar a utilização não-racional, não planejada, irresponsável e não-sustentada da biodiversidade, é muito provável que em algum momento esta rede de vida fique comprometida. A própria sobrevivência da espécie humana depende de ações que minimizem a exploração da biodiversidade de maneira inconsequente. Infelizmente, parece que os governos de muitos países ainda não estão cientes do problema real e não estão implementando ações efetivas que minimizem a perda de biodiversidade. Porém, a história da humanidade nos mostra, várias vezes, que é melhor se conhecer a fundo potenciais problemas que nos cercam, para tentar evitar que estes problemas se tornem crônicos, para que eventualmente possam ser solucionados. A conservação e preservação da biodiversidade não são diferentes. É extremamente difícil prever quais seriam as consequências de uma perda significativa de biodiversidade. Tenho certeza que ninguém gostaria de vivenciar esta experiência.
(Ecodebate, 13/04/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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