A águia e a galinha, o sim-bólico e o dia-bólico na construção do humano
Leonardo Boff
Homem vem de humus que significa terra fecunda. Adão, Adam, em hebraico, “criatura humana feita de terra”, provém de adamá que quer dizer mãe-Terra. O ser humano é filho e filha da mãe-Terra. Ele é a Terra em seu momento de consciência, de responsabilidade e de amor. Estas palavras, Homo-humus, Adam-adamá , já apontam para a estreita relação do ser humano para com a Terra e através da Terra para com os seres vivos e todo o universo.
1. A carteira de identidade do ser falante
A história de cada pessoa é parte da história bio-sócio-cultural. Esta, por sua vez, é parte da história cósmica. Esse enraizamento faz com que quatro forças entrem na constituição de sua identidade complexa: a cósmica, a biológica, a cultural e a pessoal.
Uma é a cósmica: somos feitos daquelas partículas elementares que têm a idade do universo (15 bilhões de anos) e daqueles materiais forjados há bilhões de anos no interior das grandes estrelas vermelhas, especialmente os átomos de carbono, de oxigênio, de silício e de nitrogênio imprescindíveis à vida. Segundo informações do Tycho Brahe Planetarium de Copenhagen, cada dia caem cerca de 30 toneladas de poeira cósmica sobre a Terra. Na Groenlândia pode ser vista e recolhida da neve junto com a poeira terrestre (com 2/3 de pureza). Bilhões destas partículas entram na composição de nosso próprio corpo, partículas que podem ser mais antigas que a própria Terra e o sistema solar.
Outra força é a biológica: surgimos a partir de formas primitivas de vida que se anunciaram na Terra há mais de 3 bilhões de anos com todos os seus componentes físico-químicos, morfogenéticos e ecológicos. Essas formas foram se complexificando até aparecerem os homínidas bípedes com uma capacidade imensa de relacionamentos que lhes permitiram implementar seu entendimento. Acresce ainda a formação de um cérebro de 600 centímetros cúbicos, capaz de elaborar as primeiras sínteses dos conhecimentos. Com tal capacidade de conhecimentos e de ordenações, eles podiam, rudimentarmente, construir linguagens, símbolos, representações da realidade e fabricar utensílios e abrigos. Com o evoluir da espécie homínida emergiu, por fim, o homo sapiens com um cérebro de 1500 centímetros cúbicos, do qual nós somos descendentes diretos. Ele não rompeu a linha evolutiva nem perdeu a herança acumulada de toda a trajetória anterior da vida. Prolongou e conferiu uma forma avançada à tradição biológica dentro da qual sempre se situa o ser humano.
A partir do surgimento dos mamíferos há 216 milhões de anos, incorporou o calor afetivo que une mãe/pai/filhos. Soube estendê-lo para um círculo maior na forma de enternecimento, de amizade e de amor.
É nesse nível que aparece a singularidade do ser humano, homem e mulher. Ela reside em sua capacidade de falar e de ser um nó de relações vitais e reflexas, ilimitadas. Ele é um ser falante e ao mesmo tempo desejante. Mas fundamentalmente é pela fala que ele marca o patamar da hominização. A fala é um fenômeno do caráter social e comunitário do ser humano. Sua sociabilidade veio preparada pelos insetos e animais gregários como os primatas superiores (babuínos, chimpanzés e gorilas). Cerca de 98% de sua carga genética nuclear coincide com a do ser humano.
A transformação estrutural dos hominídeos até a sua plena hominização se perde na penumbra de milhões de anos. Não há fósseis que nos permitam reconstruir o momento da emergência da singularidade humana, a linguagem. Ela, provavelmente, se relaciona à vida comunitária e social, pois coletavam alimentos em grupo e repartiam-nos socialmente. Laços afetivos e interpessoais estreitavam a cooperação entre eles.
O entendimento não surge simplesmente porque há um centro nervoso cerebral. O entendimento está ligado ao processo biológico, feito de inter-retro-relações de todos com todos, com troca de informações e estabelecimento de laços de reciprocidade e de comunhão. Todo esse processo vital constitui um aprendizado. O ser humano se insere nesse processo. Sua singularidade consiste em poder falar e pronunciar o mundo. A fala é a maneira de ordenar e dar significação ao mundo. A fala cria o mundo. O olho que vê e fala o mundo, é o mundo que o olho vê e fala.
A partir da fala surge a reflexão e a consciência, como capacidades de descrever a si mesmo, perceber regularidades, discernir mutações e de continuamente construir símbolos e significações junto com outros. O ser humano habita significações feitas a partir de sua interação e comunhão com o real circundante. Essa construção é constitutivamente social. O mundo é sempre construído com os outros. Por isso surge de um ato coletivo de sinergia e de amor. Excluir alguém do mundo é fazer violência ao dinamismo da vida que sempre se constrói pelo jogo das interações e pela criatividade (autopoiese, antropoiese); os seres humanos estão sempre entrelaçados e envolvidos uns nos outros. Eis a base biológica de toda socialidade e de toda relação de amizade e amor.
Bem asseveraram, em seu famoso livro A árvore do conhecimento, Maturana/Varela: “Descartar o amor como fundamento biológico do social, assim como as implicações éticas do amor, seria negar tudo que nossa história de seres vivos, de mais de três bilhões de anos e meio de idade, nos legou... Só temos o mundo que criamos com o outro; só o amor nos permite criar esse mundo em comum”.
Esse amor nos faz ver a unicidade da vida na imensa pluralidade de suas manifestações. Nós seres humanos somos um elo desta cadeia da vida. Nunca nos é permitido esquecer a cadeia, pois o elo considerado em si mesmo perde sentido porque perde sua re-ligação e seu lugar no conjunto dos demais seres vivos.
Em terceiro lugar, temos a força da cultura: o ser humano criou a cultura, realidade especificamente humana. Criou-a a partir de suas falas que lhe abriram a possibilidade de intervir sobre si mesmo e sobre a natureza. Essas intervenções permitiram que criasse o habitat humano que os gregos, com justeza, chamavam de ethos. Ethos em grego, donde vem a palavra ética, é a morada humana enquanto humana. Quer dizer, aquele pedaço do mundo que escolhemos cuidadosamente, demos-lhe um nome, organizamo-lo e nele construímos nossa habitação permanente.
Intervir é trabalhar. O trabalho junto com a linguagem é um dos meios maiores de forjamento da cultura. Ele não só cria instrumentos e aparatos tecnológicos para transformar a natureza, mas também suscita linguagens, conteúdos da consciência, formas de sentir, de valorar, de relacionar-se psicológica e socialmente com os outros. Pertence ao trabalho cultural a criação de linguagens, idéias, mitos, artes, etnias, organizações sociais como a cidade, os estados-nações e hoje a planetização. Cada cultura projetou seu grande sonho para cima e testemunhou seu encontro com o Mistério que se esconde e se revela no universo e em cada coisa. Chamou-o por mil nomes: Olorum da cultura nagô, Javé da cultura hebraica, ALá da cultura muçulmana, Tao da cultura chinesa e japonesa, Pai e Mãe divinos da cultura cristã. Tudo na cultura leva a marca registrada do ser humano que vem marcado também por ela.
Por fim temos a força da própria pessoa: cada um possui um nome próprio, uma descrição de si mesmo, porque cada um representa um ponto onde termina e se compendia o processo evolutivo. Pelo fato de ser falante, reflexivo e consciente, cada um faz uma síntese singular, única, irrepetível de tudo o que capta, sente, entende e ama. Com os materiais acumulados em seu inconsciente coletivo e com aqueles recolhidos em seu consciente, constrói uma leitura e apreciação que só ele e ninguém mais pode fazer. Ele se auto-organiza (autopoiese) e também se auto-regula no contexto da auto-ordenação social. Por isso cada pessoa humana representa um absoluto concreto. Ela é a ponta da pirâmide para onde convergem todas as linhas ascendentes da evolução. Cada um está no topo. Em razão disso se entende a dignidade humana. Entende-se também a afirmação dos filósofos que ensinam: o ser humano singular é um fim em si mesmo e não pode ser meio para nada.
Tal afirmação não deve levar a pessoa à arrogância nem reforçar o antropocentrismo, tão criticado anteriormente, como se ela fosse o centro do universo. A ponta da pirâmide não está isolada. Está unida a toda a pirâmide, com a intrincada teia de solidariedades e interdependências. O ser humano procede da cadeia da vida. Deve-se entender sempre cósmico-bio-sócio-antropologicamente.
Assim como na nossa carteira de identidade estão inscritos os nomes de nosso pai, de nossa mãe e de nosso lugar de origem, assim também aqui, na nossa complexa carteira de identidade humana, aparecem os nossos quatro enraizamentos: o cósmico, o vital, o cultural e o pessoal.
Somos efetivamente um microcosmos. Não precisamos ter vergonha de nossas múltiplas raízes. Ao contrário, temos razões de orgulho de nossa mestiçagem universal. Precisamos humildemente acolher nosso bilionário processo de fazimento. Saudar a imensa riqueza cósmica que em nós deságua e que ganha um perfil pessoalíssimo em cada indivíduo. Ele surge sempre como um mar de interrogações, um amazonas de desejos e um oceano de utopias.
Hoje, graças à civilização tecnológica, aprofundamos ainda mais o nosso enraizamento, seja na dimensão micro seja na dimensão macro. Estamos deixando a Terra e lançando-nos para os espaços celestes.
Sim, algo nosso, como a nave espacial Voyager 2, já virou corpo interestelar, pois ultrapassou os confins do sistema solar. Libertada das forças gravitacionais de nosso sistema, viajará, se nada acontecer, por mais de um bilhão de anos ao redor do centro da Via-láctea. Carrega dentro de si um disco fonográfico de ouro contendo nele e no seu invólucro dourado saudações em 59 línguas humanas; uma em língua de baleia; um ensaio sonoro de doze minutos que inclui um beijo, um choro de bebê e o registro eletrencefalográfico das emoções de uma jovem apaixonada; 116 imagens codificadas sobre nossa ciência, sobre nossa civilização e sobre o ser humano; e noventa minutos dos maiores sucessos musicais da Terra, desde músicas primitivas, passando por Bach e Stravinski até os blues modernos. Algo nosso se perenizou no universo.
Se um dia a nave for abordada por seres inteligentes de outros mundos, eles poderão saber da história dos humanos deste minúsculo planeta-Terra do sistema solar. Talvez a Terra e a humanidade possam já ter desaparecido. Ou pela evolução nossa espécie possa ter-se transformado em outra. Permaneceu, entretanto, a Voyager como um sacramento da Terra. Sem qualquer intencionalidade agressiva, ela mesma significa uma mensagem de comunhão, uma busca respeitosa de relação com outros eventuais companheiros de aventura cósmica.
2. O ser humano, o último a chegar no cenário da história
De saída devemos renunciar a qualquer arrogância ou pretensão de privilégio ou de domínio. Não assistimos ao nascimento do universo. Não é a Terra para nós. Nós somos para a Terra. Ela não é fruto de nosso desejo. Nem precisou de nós para produzir sua imensa complexidade e biodiversidade. Nós somos resultado de processos cósmicos, planetários e biológicos anteriores ao nosso aparecimento. Somos os últimos a chegar. Entramos em cena quando já haviam transcorridos 99,98% da história do universo.
Há 3,8 bilhões de anos, nossos antepassados eram micróbios nas fendas profundas dos oceanos. Há meio bilhão de anos éramos peixes. Há 235 milhões de anos éramos dinossauros. Há 150 milhões de anos éramos pássaros. Há 10 milhões de anos éramos primatas pulando alegremente de galho em galho nas florestas africanas. Há um milhão de anos éramos já plenamente humanos tentando domesticar o fogo. Há 100 mil anos enterrávamos com rituais e flores nossos mortos. Há 40.000 anos já nos comunicávamos com as linguagens elaboradas. Há 10.000 anos fazíamos as primeiras plantações e domesticávamos cachorros e galinhas. Desde aquela época a galinha ficou confinada nos galinheiros e virou expressão de uma dimensão humana, da história e do universo.
Viemos desta longa história. Como a vida emergiu da Terra, assim o ser humano emergiu da vida. Somos parentes e consangüíneos de todos os seres e viventes do planeta. Entre os humanos e os chimpanzés há, por exemplo, 99,6% de genes ativos em comum. A versão humana do cromossomo o difere da do macaco reso por um único aminoácido. Das versões do cachorro, da rã, do bicho-da-seda e do trigo por 11, 18, 43 e 53 aminoácidos respectivamente. Poderia haver um parentesco maior entre as espécies que esta? Os primatas superiores não são apenas nossos ancestres. São nossos primos-irmãos junto com os demais seres vivos.
Mas estes quatro décimos de diferença e esse único aminoácido fazem toda a diferença. Precisamos deter-nos nela, pois aí emerge o humano da humanidade.Já vimos acima que ele reside na linguagem que se desdobra na reflexão e na consciência. Aprofundemos, sucintamente, essa perspectiva.
3. O espírito: primeiro no cosmos depois na pessoa
A linguagem com seus domínios lingüísticos se desdobra em reflexão e em autoconsciência mediante as quais o ser humano cria o mundo junto com os outros. Nesse processo, mostra autodeterminação, capacidade de responsabilizar-se e de assim revelar-se um ser ético. Capaz até de tomar decisões em sua desvantagem para defender desvalidos. Demonstra capacidade de compaixão, de enternecimento e de comunhão com todos os seres a ponto de sentir-se um com eles. Põe à luz sua capacidade de criação pela qual modifica seu mundo circundante. Por fim deixa entrever uma abertura ilimitada ao mundo, à cultura e ao infinito. O ser humano é tudo isso e ainda mais. Pois é habitado por uma paixão insaciável que não encontra no universo nenhum objeto que lhe seja adequado e que o faça repousar. Ele é um projeto infinito.
Todas estas determinações podem ser resumidas pela palavra espírito. O ser humano é um portador singular do espírito. Mas não o único como logo veremos.
Para entendermos o espírito precisamos ir além das duas compreensões: a clássica e a moderna. A clássica diz que o espírito é um princípio substancial, parte do ser humano ao lado do outro, a matéria, que é seu corpo. Seria o lado imortal, vital, inteligente, capaz de amor e de transcendência. Convive por um determinado tempo, com o lado mortal, opaco e pesado: o corpo. A morte separa um do outro. O corpo volta à terra. O espírito regressa ao céu. Esta visão é dualista e não responde pela unidade concreta do ser humano. Todo inteiro vivo é aberto, todo inteiro com um desejo de eternidade para o corpo e para o espírito.
A concepção moderna diz que espírito não é uma substância, mas o modo de ser singular do homem/mulher, cuja essência é a liberdade. Ele seria o portador exclusivo da dimensão espírito. Com certeza o espírito no ser humano é liberdade. Pela liberdade ele se constrói a si mesmo (autopoiese) e plasma o mundo. Mas o espírito humano não pode ser compreendido desconectado do processo cosmogênico, do espírito na natureza, na história e no cosmos. Ele não pode ficar ilhado como uma realidade à parte sem relação com o processo global que se apresenta como um sistema aberto e marcado pela indeterminação, pela criação contínua e pela auto-organização.
Há a concepção contemporânea de espírito, elaborada a partir da nova cosmologia. Essa é a que assumiremos. Segundo ela, o espírito se encontra dentro do imenso processo da evolução ascendente. Aí dentro, o espírito foi se constituindo e ganhando crescente emergência e autoconsciência até implodir e explodir numa concretização singular que chamamos de espírito humano.
O espírito possui uma ancestralidade como aquela do universo. Daí a importância de partirmos, primeiramente, do espírito em sua dimensão cósmica. Daí veremos uma realização singular no espírito humano. Que é então o espírito?
Na perspectiva cosmogênica entendemos por espírito a capacidade das energias primordiais e da própria matéria de interagirem entre si, de se autocriarem (autopoiese), de se auto-organizarem, de se constituírem em sistemas abertos, de se comunicarem e de formarem teias complexíssimas de inter-retro-relações que sustentam o inteiro universo. O espírito é fundamentalmente relação, interação e auto-organização em distintos graus de concretização. Desde o primeiro momento da explosão primordial, criaram-se relações e interações, gestando unidades ainda rudimentares que foram se organizando de forma sempre mais complexa. Emergia então o espírito. O espírito é a atividade autocriadora e auto-organizadora de todo o universo, das energias e da matéria. Tal perspectiva foi descrita genialmente pela “teoria de Santiago” (Chile), dos professores Maturana e Varela.
O universo é cheio de espírito porque é reativo, panrelacional, auto-organizativo e complexo. Neste sentido não há seres inertes, à diferença de outros chamados seres vivos. Todos participam, em seu grau, do espírito e da vida. A diferença entre o espírito de uma rocha e o espírito humano não é de princípio mas de grau. O princípio de relação, de interação e de auto-organização complexa se realiza em ambos, apenas de forma diferente.
O espírito humano é este mesmo dinamismo tornado falante. E a partir daí reflexivo e consciente. Sente-se inserido no todo e vinculado a uma parte do universo, isto é, ao corpo animado e vivificado. Através desse corpo entra em contacto com todos os demais corpos e energias do universo. Por ele e não apenas pela mente conhece os outros e a si mesmo. No nível reflexo espírito significa comunicação, irradiação, entusiasmo. Significa também criação e autotranscendência para além dele mesmo, gestando comunidade com o mais distante e o mais diferente, até com a absoluta Alteridade, Deus. O homem/mulher-espírito é o que de mais aberto e de mais universal existe. É um dicionário falante ilimitado, um nó de relações e re-ligações para todos os lados e dimensões por onde organiza morfogeneticamente o conhecimento. A vida consciente, livre, criadora, amorizadora caracteriza a vida humana. É o espírito. É a águia na pujança de sua natureza de águia. É o sím-bolo em sua verdadeira acepção de ligar e re-ligar.
Se o espírito é vida e relação, seu oposto não é matéria mas morte e ausência de relação. Pertence ao espírito também sua capacidade de encapsulamento, de recusa à comunicação com o outro, sua vontade de dominação. Mas nunca o consegue totalmente, porque viver, mesmo negando-se a con-viver, implica sempre estar conectado e conectar-se. A águia pode virar galinha sem nunca perder sua natureza essencial de águia. É o império do dia-bólico como energia de desestruturação e morte, como caos generativo de decomposição.
4. A subjetividade é cósmica e pessoal
Os seres todos do universo, quanto mais complexos, mais vitais se apresentam. E quanto mais vitais, também mais interioridade e subjetividade possuem. Esta interioridade e subjetividade vai, por sua vez, se densificando até atingir um grau eminente no ser humano. Ele possui um centro a partir do qual organiza toda sua vida consciente. Possui profundidade, dimensão ameaçada de desaparecer na cultura materialista de consumo e de massas. Seu eu consciente dialoga com o seu eu profundo. Tão complexo quanto o macrocosmos é o microcosmos interior do ser humano. Vem habitado por energias ancestrais, por falas arqueológicas, por visões e arquétipos abissais, paixões, eventualmente tão virulentas quanto tufões e terremotos. Habitado por anjos e demônios, pelo sim-bólico e pelo dia-bólico, por tendências de ternura e compaixão que podem enxugar qualquer lágrima e desanuviar qualquer abatimento.
Escutar esta fala interior, dialogar com este universo íntimo, integrá-lo a partir de um centro pessoal e livre, canalizar as pluriformes energias, particularmente ligadas à libido, aos arquétipos do masculino, do feminino e do self harmonizar o sim-bólico com o dia-bólico num projeto coerente, autônomo e revelador da pessoa e realizar o processo de individuação/personalização.
Assumir este processo é conferir ao espírito de cada pessoa humana um perfil singular e único. Significa construir a sua própria espiritualidade. Esta espiritualidade pertence à autoconstrução humana, mesmo quando não vem enquadrada num marco religioso. Ela pertence à caminhada de cada um, rumo à escuta e à conquista de seu próprio coração. Obviamente, para uma pessoa religiosa, dialogar com sua realidade profunda, escutar os apelos que afloram de seu centro significa ouvir Deus e obedecer à sua Palavra.
5. Qual a missão do ser humano no universo?
As reflexões que vertebramos acima naturalmente nos colocam a pergunta: qual o sentido do ser humano no conjunto dos seres e no universo?
Vamos logo avançando: certamente ele não foi chamado à existência para dominar, ameaçar e destruir as demais espécies como o faz atualmente e o fizeram os dinossauros outrora. Seria ir contra o sentido da seta do tempo que se rege pela lei mais universal existente: a solidariedade cósmica. Ele é membro, entre outros tantos, da imensa comunidade universal, planetária e biótica.
Por ser portador singular do espírito que pervade todas as coisas, é chamado a proferir a grande fala. Cabe a ele tornar consciente a presença inefável de Deus no universo. Ele sempre estava lá, antes do big bang, no coração do núcleo originário de energia primordial, depois do big bang, em todas as ascensões, em todas as bifurcações, em todas a dizimações, em todas as ordens e sinergias universais. Ele estava lá com seu poder e ternura. Agora, com o ser humano, Ele emerge na fala e assim na consciência e na reflexão. Eis a primeiríssima missão do ser humano-falante: proferir a palavra reveladora daquela Presença que pervadia o universo e cada uma de suas manifestações.
E então, agradecer, celebrar e louvar a indescritível irradiação que se deriva desta Presença, em forma de beleza e de simetria dinâmica da criação. Imbuído desta Suprema Realidade se sente capaz de fazer do caos e do dia-bólico condição para um cosmos mais rico e mais sim-bólico.
A tradição judeu-cristã fala do sábado como o descanso da criação. Os seis dias da criação representam o trabalho de Deus. No sábado Ele mesmo descansou, se alegrou e festejou o resultado de sua ação criadora. O descanso é a plenitude do trabalho e da criação.
Esse relato sim-bólico oferece uma indicação para o ser humano. Há seis dias para trabalhar e produzir. Mas há o dia da gratuidade, do ócio, da festa e da dança. O trabalho é penoso e divide as pessoas por seus vários interesses e distinta repartição de seus frutos. No sábado todos devem olvidar estas diferenças e colocar-se no mesmo chão, iguais e confraternizados, como filhos e filhas da Terra, e irmãos e irmãs universais. Neste dia não cabe produzir, nem obras, nem pensamentos, nem estruturar interesses. Importa festejar, comer, dançar e extasiar-se juntos, na grande comunidade humana, social e cósmica.
Ao viver esta dimensão, o ser humano comparte da profunda gratuidade do universo. Cumpre sua missão cósmica na esteira da festa do próprio Deus. Quando regressa ao cotidiano, trabalhará sem sentir-se escravizado por ele ou vítima da lógica da produtividade.
Por seu espírito e por sua autoconsciência, o ser humano se mostra sempre concriador. Ele intervém no seu mundo circundante. Adapta-se a ele e o adapta ao seu projeto. Ele se faz responsável pelo sentido de sua liberdade e de sua criatividade. Emerge então como um ser ético. Ele pode agir com a natureza ou contra ela. Pode desentranhar virtualidades presentes em cada coisa e em cada ecossistema. Conhecendo as leis da natureza, ele pode usar esse conhecimento para prolongar a vida, reduzir e até anular a entropia dos processos evolutivos. O futuro da Terra dependeria assim do ser humano.
As tradições dos povos e o Gênesis falam do ser humano como jardineiro. Cultiva a terra com cuidado e senso de estética. É um verdadeiro culto que gera cultura. Ele é chamado a completar a criação deixada incompleta; a acrescentar-lhe dimensões que possivelmente sem ele jamais viriam à luz. Tal vocação não deve servir de pretexto para o antropocentrismo e a ideologia da dominação do mundo. Sua intervenção no mundo deve ocorrer sem sacrificar a comunidade planetária e cósmica da qual participa. Ele é vocacionado para ser o sim-bolos e não o dia-bolos da criação.
Ele tem ainda a missão de médico da Terra. Historicamente se mostrou demente. Ameaçou, desestruturou e matou. A máquina que mata pode também salvar. Somos chamados a revitalizar, a animar e a reintegrar o que foi durante séculos agredido, ferido e desestruturado. Não podemos, numa atitude obscurantista, dar as costas a ciência e à técnica e entregar a Terra às suas chagas e enfermidades. Se a ferimos outrora e continuamos a magoá-la, devemos hoje saná-la e dar-lhe condições de saúde integral. As soluções terapêuticas devem inspirar-se em muitas fontes e tradições curativas ensaiadas pelos povos dos mais originários aos mais contemporâneos. Nesse afã não devemos desprezar o concurso de nossa civilização técnico-científica, apesar de ter sido ela a principal causadora de seus traumatismos.
Por fim nossa civilização tecnológica, tão sim-bólica quanto diabólica, suscita uma pergunta radical: qual é seu significado mais transcendente? A que ela, finalmente, se ordena? À dominação da Terra? A fazer-nos apenas mais ricos materialmente, ao preço de ficarmos mais pobres espiritualmente porque mais alienados de nossas raízes vitais e cósmicas? Ao responder a estas indagações, surge outro aspecto da missão humana: a de salvar a Terra e a própria espécie homo.
Importa reconhecer os inestimáveis méritos da civilização tecnológica. Foi ela que nos permitiu sair da Terra. Avançar para dentro do espaço exterior. Levar humanos à Lua e robôs a Marte. Mediante sondas, satélites e telescópios acoplados a estações orbitais, conseguimos estudar quase todos os planetas e luas do sistema solar. Esta civilização tecnológica propiciou a realização de uma das aspirações mais ancestrais da humanidade: poder voar como os pássaros; poder viajar até onde é possível ir.
Até onde podemos ir? Até o sem-fronteiras. Para além do Sol, das estrelas, das galáxias e do inteiro universo. Até o infinito. Pois até lá chega nosso sonho e nosso desejo. E não voamos porque temos aviões e foguetes espaciais. Voamos porque ansiamos voar. E por causa desta sede irreprimível de voar que criamos o avião e os foguetes. É a águia em nós que nos convoca sempre mais para cima e sempre mais para o alto.
A aventura espacial, iniciada nos anos sessenta, revela a dimensão cósmica do projeto humano. Ela nos fornece uma compreensão mais concreta do radical desejo humano de sempre transcender, de violar todas as barreiras e de só satisfazer-se com o infinito.
O céu profundo, acima de nossas cabeças, é o maior sím-bolo desta transcendência. Por isso os seres humanos querem chegar lá. Bem o expressou o astronauta russo Yuri Romanenko, ao retornar à Terra depois de ter ficado dois anos no espaço: “O cosmos é um ímã. Depois de ter estado lá em cima, você só pensa em voltar para lá”. Queremos voltar para o céu porque somos mais do que filhos e filhas da Terra. Somos, na verdade, seres celestiais e cósmicos. Do cosmos viemos e para o cosmos queremos consciente e inconscientemente voltar. Sempre fomos errantes. A partir do neolítico ficamos, por breve tempo, sedentários em moradias, cidades e estados. Agora retomamos nossa errância rumo às estrelas, nossa verdadeira morada. Os materiais que nos constituem não foram formados no seio das grandes estrelas vermelhas há bilhões de anos?
Mas não é a nossa origem estelar que explica a exploração do espaço acima de nossas cabeças. É por uma razão bem mais prática: sentimos a urgência de sobreviver como espécie.
Primeiramente, o desenvolvimento exponencial do projeto técnico-científico deu origem ao princípio de autodestruição. Pela primeira vez na história, nossa espécie pode dizimar-se a si mesma. É natural que as pessoas não queiram aceitar esse eventual veredicto de morte. Os que podem, querem fugir para o espaço, bem longe da casa em chamas.
Em segundo lugar, as ciências da Terra nos forneceram dados bastante precisos dos impactos que o planeta sofreu, durante o tempo de sua formação. Algumas vezes quase todo o seu capital biológico foi destruído, como, por exemplo, no período cretáceo-terciário, 67 milhões de anos atrás. Desaparecem, então, num curto lapso de tempo, os dinossauros. Curiosamente, constatou-se que, todas as vezes que ocorreram dizimações em massa na biosfera, seguiu-se uma proliferação fantástica de novas formas de vida. É uma espécie de vendetta do sistema-vida. A vida quer mais vida.
Sabemos hoje que existem próximos à Terra cerca de 300 mil asteróides com mais de 100 metros de diâmetro. E mais de 2000 com um quilômetro ou mais. Na nuvem de Oort, nos confins do sistema solar (entre 20 a 100 mil unidades astronômicas), existe mais de um trilhão de meteoros, asteróides e cometas, alguns muito grandes. De vez em quanto saem de lá, por razões gravitacionais ainda não esclarecidas, e colidem com os planetas solares. Nenhum planeta, nem a Terra, são imunes contra eles. Caindo aqui fariam estragos formidáveis. Alguns deles, dizem renomados cientistas, poderiam destruir-nos.
Se desaparecer, nossa espécie homo seguramente será substituída por uma outra, inteligente e, esperamos, mais sábia. Será algum ramo direto da espécie homo ou de algum ser complexo de outra linhagem. Biólogos constataram que na árvore da vida, especialmente a partir do surgimento dos animais, verifica-se uma crescente complexificação morfogenética e forte pressão seletiva. Propiciam-se destarte teias de conhecimento mais ricas e a criação de redes neuronais cada vez mais complexas, terminando no cérebro humano. Esse processo se mantém. Ele será responsável pelo tipo de inteligibilidade e de amorização humanos que emergirá como emergiu outrora. Mesmo atualmente, ele leva a humanidade a evoluir na direção de um superorganismo planetário. Tende a fazê-la mais societária, mais comunitária, mais solidária e cooperativa.
O perigo de uma hecatombe biológica é permanente. Em função da salvaguarda da Terra e da biosfera estudam-se hoje tecnologias de deflexão (desvio de rota) dos asteróides. Ou até a ocupação deles por humanos. Criar-se-iam lá condições de vida artificial, aproveitando materiais utilizáveis como os gelos e outros elementos físico-químicos e orgânicos de que são abundantes. E se alteraria sua trajetória para não danificar os planetas solares.
Outros aventam, seriamente, a possibilidade de os seres humanos começarem a terraformar (criação de condições adequadas para a vida, semelhantes às da Terra) os planetas vizinhos, especialmente Marte, a lua de Netuno, Tritão, e a de Saturno, Titã. Aí se desenvolveria parte da humanidade sob condições técnicas favoráveis. Assim os ovos não estariam todos numa mesma cesta. Caso houvesse algum cataclismo na Terra, salvar-se-ia uma porção da humanidade, para dar continuidade ao projeto humano. Tal como na arca de Noé, não se salvariam apenas humanos, mas também outros companheiros da comunidade biótica, microorganismos, plantas e animais.
O sonho alcança mais longe. Com os avanços tecnológicos crescentes, deve-se pensar em viagens siderais. Elas adentrariam a Via-láctea em busca de outros sistemas estelares, possuidores de planetas habitáveis. Há cerca de centenas de milhares de milhões destes na nossa galáxia.
O ser humano se autoconstruiria diferentemente, quem sabe integrando em seu corpo computadores, silicone e outros materiais acoplados ao sistema vital e organísmico. Teria superado de vez a visão antropocêntrica e etnocêntrica. Sentir-se-ia realmente um ser cósmico. Faria sua autopoiese com os mais diferentes materiais orgânicos e inorgânicos. Mas sempre no sentido de potenciação de seu ser-homem. Lá fora, em tais paragens cósmicas, desenvolver-se-ia, gerando culturas diferentes, certamente outro tipo de pessoas, todas versadas em altas tecnologias como nós hoje somos versados no alfabeto ou nas tecnologias dos aparelhos domésticos. Tais pessoas lembrar-se-ão talvez, como diz o cosmólogo Carl Sagan (+ 1996), de seus ancestrais quase míticos que na segunda metade do século XX, no terceiro planeta do sistema solar, a Terra, se aventuraram pela primeira vez pelo mar-oceano dos espaços sidéreos. Sorrirão, com admiração e amor por nós.
Cresce mais e mais esta consciência: ou prolongamos a aventura dos vôos espaciais ou corremos o risco de destruir-nos por nós mesmos, ou de sermos destruídos por algum impacto vindo de fora. Os projetos espaciais norte-americanos, russos e europeus estariam a serviço do inconsciente coletivo da humanidade. De forma antecipatória e prognóstica, o ser humano pressentiria um eventual cataclismo, capaz de interromper a aventura humana na Terra.
Importa ouvir o chamado do inconsciente coletivo, esse grande e sábio ancião que fala dentro de nós, e associá-lo ao Outro chamado que vem da ciência moderna, feita com consciência. Esta nos conclama a entender mais radicalmente nossa missão que é: salvar nossa espécie,junto com representantes de outras espécies, proteger nosso belo planeta contra ameaças de asteróides fatais ou de quaisquer outros perigos vindos dos espaços siderais.
A missão do ser humano alcança mais longe ainda: ao terraformar outros planetas, cabe a ele disseminar vida em toda a sua diversidade. Pelo fato de haver recebido a vida, como dom maior da cosmogênese, deve ele dar vida aos outros. Transportada a outros mundos, a vida fará seu curso. Resistirá às situações adversas. Adaptar-se-á ao ambiente. Criará para si um meio ambiente adequado, como criou um dia a biosfera sobre a Terra. Complexificar-se-á e gerará espécies talvez nunca dantes havidas, todas cheias de propósito e de vitalidade.
Essa missão radical do ser humano - o de disseminador de vida no universo - nos recordará a frase daquele que se entendeu como o Filho do Homem e que, ao seu tempo, disse: “eu vim trazer vida e vida em abundância”. Esta missão é não só do Filho do Homem mas de todos os homens, seus irmãos e irmãs.
Nesta linha de reflexão, a dimensão-águia em nós é despertada como jamais antes. Se nos quedarmos apenas na dimensão-galinha, quer dizer, se ficarmos em casa, melhorando apenas nosso planeta, sem o propósito de ultrapassá-lo, não estaremos a salvo de assaltos possíveis que vêm dos impactos exteriores ou de nós mesmos. A condição de sobrevivência é dar asas à águia para que alce vôo e se salve nos céus. Se o universo está se expandindo, nós seres humanos obedecemos à mesma lógica: estamos nos expandindo também, viajando rumo às estrelas.
Por fim há uma derradeira missão do ser humano que somente e discernível a partir de uma perspectiva espiritual: o ser humano existe para permitir a Deus uma realização única. Com freqüência temos asseverado que o ser humano revela uma abertura para o infinito. Essa abertura se ordena a recepcionar o próprio Infinito dentro de si. É como a taça cristalina. Só realiza sua meta quando acolhe o vinho precioso. Deus criou o ser humano com uma sede infinita para poder autocomunicar-se com ele e saciá-lo plenamente. Mais ainda: Deus sai de si totalmente e se entrega absolutamente ao diferente. Deus se fez humano para que o humano se faça Deus. Quando Deus resolveu sair de si mesmo e ir ao encontro de alguém que o acolhesse totalmente, surgiu então o ser humano. O ser humano é o reverso de Deus. Permitir essa realização divina - a total autocomunicação de si ao outro - é a suprema missão do ser humano, homem e mulher. Para isso ele foi pensado, eternamente amado e colocado na criação. Ele se descobre como um projeto infinito porque hospeda o Infinito dentro de si. A busca dos espaços infinitos no cosmos é símbolo da busca do Infinito real. Somente nele descansa verdadeiramente, porque nele exaure sua capacidade falante e desejante.
6. Polarizações do ser humano
Depois desta longa e necessária introdução, devemos considerar algumas características fundamentais do ser humano. Elas aparecem sob a forma de complexidades, verdadeiras polarizações auto-includentes nas quais surge claramente a mesma estrutura que identificamos no universo e na história: a dimensão-águia e galinha, sim-bólica e dia-bólica.
Seria longo detalharmos esta estruturação complexa. Ela é extremamente fecunda, pois o ser humano se apresenta como o ser mais complexo que conhecemos. Ele, na verdade, representa um dos infinitos que encontramos no universo. Há o infinitamente grande do cosmos, o infinitamente pequeno do microcosmos e o infinitamente complexo da mente e o infinitamente profundo do coração humano. Vamos considerar apenas algumas destas polarizações nas quais emerge a dimensão-águia e galinha, simbólica e dia-bólica. A principal delas, o ser humano como corpo-espírito, já abordamos acima. Não precisamos voltar a ela. Vejamos outras.
6.1. Ser humano: homem e mulher
A espécie humana sempre se manifesta sob uma diferença, na forma de homem e de mulher; na visão judeu-cristã, sob o nome de Adão e de Eva.
Biologicamente são quase iguais. Ambos possuem no núcleo celular 23 pares de cromossomos. Um dos 23 pares, o responsável pela determinação do sexo, é formado, na mulher, por 2 cromossomos X (XX), enquanto no homem é formado por um X e um Y (XY). Sobre essa pequeníssima diferença se constroem as demais que se dão no nível hormonal, psicológico e cultural.
Entretanto, sexo não é algo que os seres humanos apenas têm - sexo genético-celular, genital-gonodal e hormonal - mas é algo que os seres humanos são. Tudo o que o homem e a mulher fazem, fazem-no enquanto homem e mulher. A sexualidade entra, portanto, na definição essencial do ser humano. É a assim chamada sexualidade antropológica. Ela se expressa pelo masculino e pelo feminino.
Feminino e masculino são da ordem do ser. Estão presentes em cada ser humano, homem e mulher. Não são coisas (ter) mas princípios e dimensões (ser) do mesmo e único ser humano. Quer dizer: no homem existe a dimensão masculina e feminina; na mulher existe a dimensão feminina e masculina. Na mulher o feminino se adensa mais que o masculino, por isso a mulher é mulher e não homem. No homem o masculino se adensa mais que o feminino, por isso o homem é homem e não mulher. Os psicólogos falam que o animus (masculinidade) e a anima (feminilidade) são determinações de cada ser humano.
Este fato nos leva a considerar três pontos fundamentais: primeiro, que homem e mulher são sempre diferentes e completos em si mesmos; segundo, que são sempre recíprocos, quer dizer, abertos um ao outro; terceiro, que são complementares; um ajuda o outro a realizar sua própria humanidade plena e juntos mostram a humanidade total. Somente compreendendo o ser humano enquanto masculino e feminino e enquanto homem e mulher, compreendemos algo essencial dele. Se isolarmos homem de mulher e mulher de homem, nos perdemos. Fazemos injustiça a ambos. Abrimos o espaço para a guerra dos sexos com a eventual dominação de um sobre o outro, ora dominando o homem pelo patriarcalismo, ora dominando a mulher pelo matriarcalismo. Foi o que ocorreu historicamente.
Hoje, conscientemente, a humanidade procura superar esta guerra histórica e desenvolver relações de eqüidade entre os sexos. Acolhendo a diferença, incentivando a reciprocidade e valorizando a complementaridade. Os seres humanos contam pelo que são como pessoas, com todas as suas diferenças. Não apenas pelo sexo biológico de que são portadoras.
Que é, enfim, o feminino e o masculino?
O feminino na mulher e no homem é o esprit de finesse que já comentamos. É a capacidade de inteireza, de percepção de totalidades orgânicas, de unicidade do processo vital em suas mais diversas manifestações; é subjetividade, ternura, cuidado, acolhida, nutrição, conservação, cooperação, sensibilidade, intuição, experiência do caráter sagrado e misterioso da vida e do mundo.
O masculino no homem e na mulher é o esprit de géometrie, de objetividade, de análise, de trabalho, de competição, de auto-afirmação, de racionalidade, de capacidade de abrir caminhos, de superar obstáculos e de concretizar com determinação um projeto.
Não devemos monopolizar o masculino somente no homem e o feminino somente na mulher. Tal é o equívoco da cultura dualista ocidental e de outras culturas patriarcalistas. Olvidou-se que homem e mulher têm dentro de si a totalidade masculina e feminina. Cada qual deve realizar a síntese a partir de sua situação concreta ou de homem ou de mulher.
Ambos os princípios, masculino e feminino, devem conviver, interagir, complementar-se e construir cada ser humano, com ternura e vigor, com subjetividade fecunda e com objetividade segura.
6.2. Ser humano: utópico e histórico
Há uma outra polaridade humana já considerada por nós em sua dimensão sociocultural: a utópica e a histórica. Aqui importa revisitá-la na dimensão pessoal. O ser humano é um ser utópico que se desenvolve na história concreta. Como logo veremos, emerge de novo e com naturalidade a perspectiva águia/galinha.
Utopia e seus afins, fantasia e imaginação, não gozam de boa reputação na nossa cultura dominante. São sempre contrapostos à realidade. Face às propostas fascinantes de alguém diz-se: e utopia, e fantasia e pura imaginação. Não obstante, já há vários decênios, a reflexão sociológica e filosófica recuperou a eminente dignidade da utopia, da imaginação e da fantasia.
Para entender seu aspecto positivo, precisamos antes analisar criticamente a compreensão dominante de realidade, já que ela é contraposta à utopia. Que é o real para o homem moderno?
Real é tudo o que pode ser visto, sentido e tocado. Na ciência comum, real é aquilo que é objeto de uma experimentação empírica. Experimentação que pode ser repetida e traduzida por uma expressão matemática (metros quadrados, quanta de energia, etc.) ou por uma fórmula físico-química (miligramas de nitrogênio, de sulfato, de oxigênio, etc.). Real é o que é dado e está aí à nossa consideração, queiramos ou não.
Esta visão é em parte correta e em parte reducionista. É correta porque o real não deixa de ser algo dado. Mas é reducionista ao entender o dado como algo fechado e acabado em si mesmo. As reflexões que fizemos ao longo deste livro sempre insistiram: o dado é feito; tudo está nascendo e não acabou ainda de nascer; tudo vem carregado de possibilidades e potencialidades que constituem, exatamente, a condição da evolução. Se tudo fosse pronto e dado, não haveria evolução. Nós estaríamos ainda, gaiamente, saltando de galho em galho, comendo bananas e descendo das árvores como nossos ancestrais nas florestas tropicais da África, dez milhões de anos atrás.
Mas não. Evoluímos. Ativaram-se possibilidades dentro de nossa realidade. Chegamos ao que hoje somos. E continuarão a ser ativadas outras, nossas e do universo, porque ainda não acabamos de nascer. Estamos em processo de parto, em cosmogênese e em antropogênese.
Precisamos, pois, alargar nosso conceito de realidade. À realidade pertence o possível, aquilo que ainda não é e que pode ser. Por isso a realidade apresenta-se sempre como algo aberto, algo feito e ainda por fazer. A realidade é maior que o dado. Ela inclui uma promessa, um projeto latente, uma virtualidade escondida, uma mensagem que quer comunicar-se. A história é o espaço no qual todas estas dimensões potenciais vêm à tona, se tornam visíveis e sacramentais.
Ora, a utopia e a imaginação vivem do potencial e do possível. Por elas olhamos o dado e discernimos lá dentro suas virtualidades. Com imaginação e fantasia projetamos sua eventual realização no futuro. Nasce assim a utopia: uma imagem ainda não realizada, mas possível, presente dentro da realidade e projetada para frente, no futuro. Por isso a utopia, a fantasia e a imaginação não se opõem à realidade. São parte dela, sua parte melhor. A imaginação, ensinava o filósofo francês Gaston Bachelard, não fornece apenas uma imagem da realidade; ao contrário, é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade. A imaginação vê a realidade grávida de possibilidades. Estas propiciam imagens novas dela. Por isso, também a ultrapassam.
O ser humano é por excelência um produtor de imagens e de utopias. Por elas cria visões que lhe dão um horizonte mais aberto da vida e de seu futuro. Atualmente a grande luta certamente não é mais entre ideologias globais, mas entre visões e utopias. A pergunta básica é: quem projeta uma visão e uma utopia que sejam ao mesmo tempo mais promissoras e viáveis para os problemas da humanidade?
Essa capacidade de criar visões, utopias e imagens é irrenunciável. O ser humano, sublinhava o escritor e filósofo contemporâneo francês Albert Camus (1913-1960), é “a única criatura que se recusa a ser o que ela é”. Ele quer ser sempre mais. Quer desentranhar do bojo de suas fantasias e utopias um ser melhor, mais exuberante, mais inteligente, mais sensível, mais capaz de comunicação e de amor.
Que seria do ser humano se não tivesse utopias, sonhos, desejos, fantasias e imaginações sobre si mesmo, sobre sua família, sobre seus filhos e filhas, sobre sua profissão, sobre sua cidade, sobre seu país, sobre o planeta Terra e sobre a vida além da vida? Seria apático, amorfo, resignado, desacorçoado, um semimorto perambulando por ai. A utopia o faz irradiar, criar, projetar e ter um fogo interior. Ela revela o melhor que se esconde dentro dele. É a águia que desperta, querendo sempre erguer vôo. A galinha tem também suas boas razões. Ela é a realização possível de um sonho; é um dado palpável e concreto. Mas esse dado guarda um projeto maior; ele esconde dentro dele uma águia possível. É a abertura para o infinito, essencial ao ser humano.
6.3. Ser humano: poético e prosaico
Disse um dos mais inspirados poetas alemães, Friedrich Hölderlin (1770 -1843): “é poeticamente que o ser humano habita a Terra”. E foi completado mais tarde por um pensador francês, Edgar Morin: “e também prosaicamente que o ser humano habita a Terra”. Poesia e prosa são dois gêneros literários diferentes. São diferentes porque supõem dois modos existenciais de ser distintos.
A poesia supõe uma pessoa criadora. A criação faz com que a pessoa se sinta tomada por uma força maior do que ela. Força que lhe traz emoções inusitadas, idéias novas, metáforas significativas, sentidos surpreendentes. A criação pode levar ao êxtase. Sob a força da criação e em situação extática a pessoa canta, dança, cria gestos simbólicos e sai de sua normalidade. Emerge, então, o xamã que se esconde dentro de cada pessoa. O xamã era uma figura central em algumas culturas ocidentais e orientais. Em nós ele existe como arquétipo, quer dizer, como aquela figura capaz de sintonizar com as energias do universo, de harmonizar-se com a sinfonia universal e de vibrar junto com as cordas do coração, do outro, da natureza, do cosmos e de Deus. Por esta capacidade se desocultam novos e surpreendentes sentidos da realidade.
Que significa asseverar que “o ser humano habita poeticamente a Terra”? Significa que ele experimenta a Terra como algo vivo, evocativo, falante, grandioso, majestático e mágico. A Terra é paisagem, cores, odores, imensidão, vibração, fascínio, profundidade, mistério.
Como não se extasiar diante da majestade da floresta amazônica? Com suas gigantescas árvores, quais flechas tentando tocar as nuvens, com o emaranhado de seus cipós e trepadeiras, com as nuances sutis de seus verdes, com a diversidade de suas flores e frutos? Como não se fascinar com as mil vozes do passaredo de manhã quando desperta? Ou com o seu absoluto silêncio após ter comido por volta das 12 horas? Como não quedar-se boquiaberto pela imensidão das águas que calmamente se espraiam mato adentro e descem molemente para o oceano? Como não sentir-se tomado de temor reverencial quando se anda horas e horas pela floresta virgem? Ela se parece a um templo verde habitado por mil divindades. Como não sentir-se pequeno, perdido, bichinho insignificante face à incontável biodiversidade, à pujança do verde e à exuberância das águas? Sim, habitamos poeticamente a Terra em cada momento; quando sentimos na pele a suavidade do frescor da manhã; quando padecemos a canícula do sol ao meio-dia; quando serenamos com o cair esmaecido da tarde; quando nos invade o mistério da escuridão da noite. Sentimos, estremecemos, vibramos, sorrimos, nos enternecemos, nos aterramos e nos extasiamos com a Terra e sua insondável vitalidade. Todos vivemos o modo de ser dos poetas. Somos poetas. É a águia e o sim-bólico que estão em nós que nos transportam para o mundo do enlevo e do encantamento.
Efetivamente, são cegos e surdos e vítimas da lobotomia do paradigma moderno, aqueles que vêem a Terra simplesmente como reservatório de recursos materiais, como um laboratório de elementos físico-químicos e como um conglomerado desconexo de águas e solos. A Terra é Gaia, Pacha Mama, Magna Mater, Grande Mãe.
Mas habitamos também prosaicamente a Terra. A prosa literária recolhe o cotidiano e o rotineiro da vida. O prosaico é outro modo de ser humano, diferente do poético. É o nosso dia-a-dia cinzento, feito de tensões familiares e sociais, de horários, de obrigações, de deveres profissionais, de ocupações, preocupações e discretas alegrias ligadas à subsistência; é urdido de interesses a serem considerados; é influenciado pelo status social que impõe opções e comportamentos.
O prosaico possui o seu valor inestimável. Descobrimos a suave bondade do prosaico e da rotina depois de passarmos longos tempos internados num hospital. Ou quando regressamos pressurosos após muitos meses de viagens fora de casa. Nada mais realizador e integrador do que reingressar na vida cotidiana com o seu sereno e doce caminhar dos horários e dos afazeres caseiros e profissionais. É a dimensão-galinha em nós que nos dá a sensação de paz e de uma navegação tranqüila pelo mar da vida.
Poético e prosaico, águia e galinha são complementares e se revezam de tempos em tempos. Pelo fato de vivenciarmos a dimensão-águia, aprendemos a valorizar a dimensão-galinha. É porque experimentamos a dimensão-galinha que ansiamos alçar vôo e apreciar a dimensão-águia.
A cultura de massas moderna desnaturou a águia e a galinha. O lazer, que seria ocasião de ruptura do cotidiano e liberação da águia, foi aprisionado pela indústria do entretenimento que incita ao excesso, ao consumo de álcool, de drogas e de sexo. Numa palavra, incita ao desfrute desbragado de todos os sentidos, excesso sem êxtase e sem reencantamento do mundo. A águia é coagida a ser apenas galinha, o dia-bólico sem sua referência ao sim-bólico.
A dimensão-galinha mantém o ser humano cativo dentro da opacidade de seu pequeno mundo: submetido à simples luta pela sobrevivência, extenuado de trabalhos, sem esperança de um dia repousar e gozar de seu merecido lazer. E, quando chega ao lazer, perde a liberdade e a força do vôo da águia, pois se sente refém daqueles que já pensaram tudo para ele: como organizar o seu lazer, como propiciar-lhe fortes emoções e como fabricar-lhe uma experiência inesquecível. E o conseguiram. Mas como tudo é artificialmente induzido, sacrificam a dimensão-águia. O efeito final é o vazio existencial e o doloroso empobrecimento do espírito. A galinha reduzida à cerca do seu galinheiro.
Por isso, face a esta cultura do excesso e do esbanjamento, importa resgatar a águia e não permitir que se desnature a galinha.
6.4. Ser humano: ser de necessidade e de criatividade
O ser humano apresenta-se simultaneamente como um ser de necessidade e de criatividade. Dito de Outra forma: como um ser que se auto-afirma e ao mesmo tempo se conecta com outros. Nesta polarização desponta também a dimensão-águia/galinha, o sim-bólico e o dia-bólico.
Antes de mais nada ele é um ser de necessidade. Tem necessidade de comer, de vestir-se, de abrigar-se, de reproduzir-se, de comunicar-se, de ser feliz e de imaginar um sentido último da vida e do universo. A vida depende, na realidade, de um prato de arroz e de feijão, de um pouco de água e de alguém com quem partilhar a caminhada da vida. Grande parte do tempo das pessoas é empregado na dura faina pela sobrevivência. Pois trata-se de necessidades que devem ser permanentemente atendidas. Por aí se garante a estrutura de auto-afirmação.
Entretanto, à diferença do animal, o ser humano não possui nenhum órgão especializado que lhe garanta a sobrevivência. Biologicamente, surge como um ser de carências. Entregue a si mesma, uma criança recém-nascida é fadada a morrer. Não é como um patinho que logo sai nadando e buscando seu alimento. A criança carece de alguém que a alimente e cuide dela.
Para atender às suas necessidades, o ser humano se vê obrigado a abrir-se ao mundo. Cria a linguagem pela qual significa o mundo e inventa o instrumento pelo qual prolonga seus membros. Modifica o mundo, ao mesmo tempo que é modificado por ele. Desta circularidade produz o habitat que lhe dá condições para satisfazer suas necessidades fundamentais.
O conjunto das modificações que faz do mundo e de si mesmo chama-se cultura. A cultura significa uma criação especificamente humana. Ela atende a necessidades infra-estruturais e também àquelas mais gratuitas, ligadas ao sentido da vida e da sociedade.
O ser humano mostra, portanto, a partir de suas necessidades, digamos de sua dimensão-galinha, uma abertura ao mundo. A abertura ao mundo se revela como abertura à cultura. Mas, analisando a dinâmica interior da existência humana, observamos que nem o mundo, nem a cultura preenchem totalmente sua abertura. A abertura permanece sempre virgem. O ser humano é um ser de abertura pura e simples. Está aberto não somente a isto e àquilo, mas à totalidade dos objetos, ao infinito. É o momento-águia de sua vida.
Qual é o objeto terminal de sua abertura, objeto que o repleta e o faz repousar? Deixemos esta questão em suspenso, quebra-cabeça para os antropólogos e para cada pessoa que se perscruta a si mesma. Ela faz suscitar as filosofias e as religiões. Iremos abordá-la logo a seguir.
Junto com a dimensão de necessidade desponta no ser humano também a dimensão de criatividade. Ele não quer apenas matar a fome. Ao fazê-lo, coloca empenho, investe libido, cria arte e beleza. Ele não come apenas com a boca. Come também com os olhos, enfeitando esteticamente seu prato de comida.
Ele é habitado por um potencial fantástico de criatividade e de capacidades que querem expressar-se e realizar-se em todos os campos: na linguagem, na culinária, no arranjo da casa, na forma de vestir-se, na inteligência, na arte plástica, na criação literária, na invenção científica, na produção simbólica da cultura, da filosofia e da religião. Nesses e em outros campos realiza sua liberdade criadora. Essa liberdade se exerce também na sua dialogação com o Supremo, com Aquele que é identificado e venerado como o Criador do céu e da terra.
Ao exercitar suas capacidades, o ser humano demonstra que foi criado criador. Concria junto com as forças diretivas do universo e com o Spiritus creator Co-pilota o processo evolucionário. Coloca sua marca registrada em todas as coisas que toca e com as quais se relaciona.
Não basta atender às necessidades básicas e com isso fazer a revolução da fome. Importa criar espaço para o exercício das capacidades humanas e da criatividade. Por isso é necessário completar a revolução da fome com a revolução da liberdade criadora. Por aí se garante sua dimensão de conexão com os outros e com o mundo.
O socialismo fez apenas a primeira, o capitalismo somente a segunda. Não ter operado esta revolução completa, da fome e da liberdade, criou um impasse fundamental nos dois sistemas sociais que atravessaram todo o século XX. Ambos têm uma concepção reducionista do ser humano: ou o vêem apenas como ser de necessidades a serem atendidas (socialismo com sua planificação centralizada e coletivização), ou somente como um ser de liberdade que deve ser vivida a qualquer custo, mesmo oprimindo os demais (capitalismo com o seu liberalismo e individualismo).
Nem o “nós” coletivista, nem o “eu” individualista representam a forma mais adequada de organização social, mas o “nós” democrático, de uma democracia de base, fiel à sua significação etimológica que é o poder vindo do povo, exercido pelo povo diretamente ou através de seus representantes, e controlado pelo povo. Portanto, democracia popular, que vem de baixo para cima, participativa, cotidiana, assentada no funcionamento das associações da sociedade civil, solidária, libertária e espiritual. Este é o projeto que está sendo gestado e já antecipado na vasta rede do movimento popular em quase todos os países do mundo. Ele integra a águia com a galinha, o sim-bólico com o dia-bólico, a luta com a festa, a produção com a poesia, a eficácia com a beleza, a criação com a espiritualidade.
Bem disse um notável pensador revolucionário do Peru, José Carlos Mariátegui (1894-1930): “devemos não apenas conquistar o pão, mas também conquistar a beleza”. Com mais ênfase e precisão o asseverou um poeta cubano, José Fernández Retamar: “o ser humano está à mercê de duas fomes: da fome de pão que é saciável e da fome de beleza que é insaciável”. Eis aqui a presença articulada da águia e da galinha, do sim-bólico e do dia-bólico.
Articular as dimensões-galinha e águia de tal forma que se contrabalancem na satisfação das demandas do ser humano, de sua infra-estrutura material e na manutenção de sua abertura infinita: eis o desafio permanente para qualquer organização social e política que queira ser fiel à complexa natureza do ser humano, que, por um lado, se auto-afirma e, por outro, se relaciona com todos e com tudo.
6.5. Ser humano: terrenal e divino
Qual é o objeto que preenche a abertura infinita do ser humano? Esta interrogação ficou em suspenso nos parágrafos anteriores. Precisamos respondê-la. Na verdade, ela já foi respondida pela humanidade desde a mais remota ancestralidade. Para isso criou uma das construções culturais mais complexas e intrigantes que existe: a religião em sua imensa diversidade de ritos, doutrinas, tradições e místicas.
Podemos emitir a opinião que quisermos sobre a religião, seguir ou não uma prática religiosa. O que não podemos é desconhecer a persistência e o significado do fenômeno religioso universal. Ele resistiu a todas as críticas, a todas as perseguições e ao intento de sua aniquilação, que não faltaram ao longo dos séculos.
Por que esta força invencível da religião? Porque a religião se remete a um dado anterior a ela, de fundamental significação: a espiritualidade. A espiritualidade,já o dissemos, significa o encontro vivo com a suprema Realidade. Trata-se de uma experiência de choque. Ela muda o estado de consciência do ser humano. Redefine sua identidade e o significado de sua vida e de sua morte. Esta experiência se expressa culturalmente. A religião é sua tradução nos códigos pessoais e culturais. Pela religião o ser humano dá e deu uma resposta à questão, sempre presente em sua agenda: quem vai realizar meu desejo infinito? Que nome dar ao norte para onde aponta sempre a agulha da bússola? Encontrou uma palavra de reverência: Deus, Tao, Brahma, Javé, Olorum, Quetzalcoatl, Pai-Filho-Espírito-Santo.
Mas atentemos bem: Deus aqui somente possui significado existencial e concreto se for a resposta à abertura infinita do ser humano. Não se trata de um Deus qualquer, Deus ex machina, já construído uma vez por todas e feito objeto de credos, dogmas e ritos, gerenciados pelas instituições religiosas. Mas trata-se de um Deus vivo, encontrado na experiência humana mais radical, na espiritualidade: na vontade de trabalhar, de criar, de responsabilizar-se por este planeta, de escutar a si mesmo e de manter-se sempre aberto para aprender e para deixar-se tomar pelo novo e pelo ainda não ensaiado. Nesta diligência o ser humano se descobre como realmente referido a uma abertura ilimitada, a um “mais”. Esse “mais” tem as características do indecifrável, pois, quando quer abraçá-lo, sempre lhe escapa. Desloca-se mais à frente. Rasga uma nova abertura. Nem por isso o ser humano deixa de continuamente persegui-lo.
As religiões trabalham a partir deste “mais”. E é neste contexto que se pronuncia com reverência e sumo respeito a palavra Deus. Sua experiência recebe mil outros nomes além desse de Deus.
Alguns religiosos referidos a uma compreensão mais objetivista dão-lhe títulos. Criam assim um objeto de veneração e culto. Chamam-no, como dizíamos antes, de Javé, Alá, Wotan. Outros, orientados por uma compreensão mais energética, invocam-no como Espírito, Atma, Olorum, Santíssima Trindade. Outros ainda, negando-se a qualquer representação, pois todas são inadequadas, nominam-no de Tao, Nirvana, Shi, Mistério. Pouco importam os nomes. Todos eles estão a serviço deste “mais” e desta experiência originária de abertura que busca sua adequação.
A religião afirma, com determinação, que não encontra neste mundo nenhum objeto que lhe feche a abertura e assim tenha a função de Deus. Por isso, a religião protesta contra uma cultura que apresenta suas conquistas, tais como a ciência, o mercado mundial e a abundância das mercadorias, como se fossem divindades. Elas sim satisfariam plenamente, dizem, a abertura infinita do ser humano. Grande ilusão. São ídolos e fetiches enganadores. Por isso há tanto vazio existencial coletivo, falta de solidariedade, de sensibilidade, de piedade para com as vidas e o destino dos seus semelhantes e da natureza.
A religião quer transcender este mundo, até o universo, para poder descansar naquela instância que é adequada à abertura humana. O buraco dentro do ser humano é do tamanho de Deus. Somente Deus pode plenificá-lo. Somente diante d’Ele o ser humano se cala e cai de joelhos sem perder a dignidade.
Mas a religião é penalizada por esta sua atitude iconoclasta face aos ídolos. É caluniada como um saber ingênuo e fantástico. É distorcida como ópio e falsa consciência de quem ainda não se encontrou ou, caso se encontrou, voltou a perder-se. É tratada psicanaliticamente como ilusão de uma mente neurótica, fixada no desejo de proteção paterna e materna, procurando em vão pacificar o desejo de aconchego e tornar o medo suportável.
A religião, em sua sanidade, não é nada disso. Algumas de suas expressões poderão ser patológicas. Por isso com razão devem ser criticadas. E o foram pelos profetas, por Sigmund Freud (1856-1939) e por Karl Marx (1818-1883). Afinal tudo o que é sadio pode ficar doente. Mas ela constitui a forma sadia e normal que os humanos encontraram para responder à sua abertura infinita. Por isso ela é profundamente terapêutica, a clínica que a maioria da humanidade freqüenta. Cura o mal infinito do ser humano.
Embora seja sempre experimentado no “mais”, no mais para frente, no mais para cima, no mais profundo, no mais para além deste mundo, Deus não é vivenciado como uma Realidade desconectada deste mundo e fora de nossa vida. Ele é vivido como a nossa mais profunda interioridade. Ou a nossa mais alta superioridade. Sentimos que estamos ligados umbilicalmene a Ele e Ele a nós.
As religiões o expressaram afirmando que somos da família de Deus. Somos imagem e semelhança de Deus. O templo sagrado que abriga Deus no coração. Elas nos convencem de que somos também divinos, pois somos filhos e filhas de Deus. Bem o expressou S. Paulo, conversando com os filósofos na praça pública de Atenas: “Somos da família de Deus. Ele não está longe de nós. Nele vivemos, nele nos movemos e nele existimos”. Os místicos, aqueles que se encontraram diretamente com o Supremo, testemunham: nós estamos tão unidos a Deus e Deus a nós, vivemos tão interpenetrados mutuamente que somos Deus por participação. Deus é a nossa própria e misteriosa Profundidade.
A religião que fala assim de Deus cumpre uma função imprescindível de saúde para a vida humana pessoal e social. Por ela se veicula aquela experiência que buscávamos e que nos faltava. Bem o expressou o sábio psicanalista C.G. Jung (1875-1961): “Em todos os meus doentes na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de trinta e cinco anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por terem perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos aos seus seguidores, e nenhum curou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isso, está claro, não depende absolutamente de adesão a um credo particular ou tornar-se membro de uma igreja”.
Portanto, a re-ligião nos permite identificar o elo perdido. Re-Iigar todas as coisas e todas as experiências. Re-ligar todos os eventos cósmicos para constituir uma cadeia coerente. Re-ligar todas as etapas da cosmogênese e da antropogênese para dar unidade ao processo evolucionário. Re-ligar o mundo ao eu, o eu empírico ao eu profundo, à sociedade, à história, ao universo e, por fim, re-ligar tudo, tudo à sua origem secreta, Deus. Deus empapa tudo, penetra tudo, anima tudo, re-liga tudo. Tudo está em Deus e Deus está em tudo (panenteísmo, diferente de panteísmo que diz erroneamente: tudo é Deus, Deus é tudo).
Um ser humano que cultiva esta re-ligação não se sente perdido, nem angustiado, nem desesperado. Tudo o que acontece faz sentido. Acontece dirigido pela mão invisível de Deus, mesmo os absurdos que constituem uma cruz para a inteligência e uma chaga para o coração. Mas a religião faz ver que eles são como o reverso do tapete, uma confusão de fios de todas as cores e em todas as direções. Mas é apenas o reverso. O verso forma uma belíssima rosa. Por causa do verso, o reverso ganha sentido. E é acolhido com generosidade.
Concluindo, o ser humano é terrenal. Tem no cosmos e na Terra suas raízes. É parte e parcela de um todo que o desborda completamente. É sua dimensão-galinha. Mas simultaneamente deixa para trás o todo porque é divino. Porque é habitado pelo Infinito que se revela como fome insaciável de beleza e como abertura, só plenificável pelo Infinito mesmo. É sua dimensão-águia.
6.6. Ser humano: sapiens e demens, sim-bólico e dia-bólico, decadente e resgatável
O ser humano não é apenas sim-bólico, luminoso. É também dia-bólico, tenebroso. E o é simultaneamente. Já consideramos largamente sua capacidade destrutiva da natureza e autodestrutiva de si mesmo, atingindo nos dias atuais um limite perigoso.
Como chegou a isso? Confrontamo-nos aqui com um acontecimento misterioso, como misterioso foi o fato da águia ter-se transformado em galinha. Trata-se de um fenômeno tão devastador que desafia a razão analítica. Por isso, as religiões o abordam mediante outro exercício da razão, através de narrativas míticas ou grandes símbolos e metáforas.
Há uma base objetiva que torna possível a situação decadente do ser humano. É a defasagem natural entre o utópico e o histórico, entre o desejo ilimitado e seus objetos, sempre limitados. Numa palavra, não somos o Criador. Aqui nos defrontamos com uma decadência que é inocente e inevitável. Cada ação visa realizar o sonho. Mas o que realiza não é ainda o sonho. Apenas uma aproximação dele. Esta ação, por melhor que seja, é decadente face à excelência do sonho ou quando confrontada com o Criador. É neste sentido que devemos entender a decadência, não como um juízo moral (valor de uma ação), mas como um juízo ontológico (natureza limitada, não divina de um ser e de uma ação).
A própria evolução vive sob esta situação objetivamente decadente, pois, entre o ilimitado número de probabilidades, apenas algumas se realizam. Ela mesma se encontra num crescendo, é perfectível, pois vai do imperfeito para o mais perfeito. Evolução significa, propriamente, passagem de formas simples para complexas, de situações de caos para outras de ordem e de elegância. O próprio Deus deixou sua criação perfectível. Agora as coisas não têm uma bondade acabada, porque sua tendência à perfeição ainda não se completou.
No contexto humano esta decalagem objetiva entre o utópico e o histórico e entre a promessa e sua realização futura é feita consciente e vem subjetivizada. O ser humano pode acolher essa situação jovialmente e aceitar o longo caminho processual que o leva ao paraíso lá na frente, no futuro. Ou pode recusá-la, protestar contra ela ou fechar-se a uma fase do processo. Pode absolutizá-la ou pretender, ilusoriamente, ser ele mesmo o fim da história e do universo. Aqui ocorre a decadência num sentido ético, como aquilo que não precisava e não devia ser. O ser humano assume a responsabilidade pelo seu ato de recusa. Aparece então a culpa e o pecado.
Pecado é, pois, negar-se a crescer. É recusar-se a evoluir. É fechar-se sobre si mesmo e seu mundo. É recusar-se à abertura infinita.
Essa atitude subjetiva configura uma ruptura - seja com o sentido do universo que está sempre aberto para frente e para cima, seja para com Deus que quis esta lógica processual e ascendente. Ele não quer ser encontrado somente no termo do processo, mas em cada momento dele e em cada dobra da existência. Ele marcou encontro no transitório, no imperfeito e no processual. Rompendo com o sentido do universo e com o seu Criador, destrói-se a re-ligação fundamental com todas as coisas. É a decadência querida e efetivada, fruto de uma liberdade que assim perversamente se autodeterminou.
A tradição judeu-cristã chama essa atitude de pecado original, pecado que faz perder a graça original. Esse pecado não deve ser visto como um ato isolado, mas como uma disposição permanente, uma atitude. O relato deste antievento no livro do Gênesis não pretende ser uma descrição do que ocorreu na origem cronológica de nossa história. Mas uma indicação do que ocorre permanentemente na dimensão profunda e originária do ser humano, de cada ser humano.
Que é essa dimensão originária? É a teia de ligações e re-ligações que cada ser, e especialmente o ser humano, entretém com todas as coisas e com seu Criador. Pecado original é a ruptura da re-ligação universal porque - repetimos - é recusa a evoluir como todos evoluem. Não apenas rompe com Deus. Rompe com a comunidade humana, terrenal e cósmica. Ela é a causa secreta da violência do ser humano contra a natureza e seus semelhantes. De sapiens se transformou em demens, de sim-bólico se fez dia-bólico, de ereto, em encurvado e decadente.
Mas essa situação não é natural. É contramovimento da natureza que busca sempre a sinergia e que faz o caos (dia-bolos) ser generativo e ocasião de criatividade (sim-bolos).
Por isso o ser humano pode sempre autocorrigir-se e buscar a redenção de sua natureza original. Pode contar com salvadores que se apiadam de sua situação decadente e lhe oferecem chances de vida, como o naturalista que teve compaixão da águia, transformada em galinha, tentando fazê-la voar. Na verdade, cada um deve ser messias, salvador para o outro. Pode ouvir os apelos que o chamam para a altura, como a águia ao mirar o Sol. Cada um deve ser um profeta proclamador do verdadeiro sentido de re-ligação universal para o outro. Cada pessoa pode entrar num processo de refazer sua segunda natureza histórica, com o a águia pôde paulatinamente recuperar seu ser de águia. Pode orientar sua vida pela direção do Sol e descobrir sua vocação celestial. De águia cativa se transfigurará em águia livre para voar. Cada um pode ser pastor para o outro na busca de sua verdadeira natureza.
É convicção de todas as religiões e tradições espirituais que o ser humano é resgatável. Que a ruptura da re-ligação fontal será superada e que triunfará a sinergia e o abraço de paz entre todos os seres e entre todos os viventes. O sim-bólico suplantará o dia-bólico. Todos estarão sob o arco-íris da graça original, bebendo da mesma fonte de vida, de bem-aventurança e de eternidade.
6.7. Conclusão: o ser humano, nó de relações totais
Que é o ser humano homem e mulher? Um paradoxo. Um mistério da terra e do céu. Representante da criação e de Deus. Ele é verdadeiramente um microcosmos, pois seu ser resume e compendia todas as dimensões da realidade, também da Última. Ele pode ser definido como um ser de potencial infinito de fala, um nó de relações voltado para todos os lados. Por isso somente se realizará na medida em que ativar todas as suas capacidades de comunicação, de relação e de re-ligação. Essa sua natureza aparece na linguagem, singularmente sua, e cuja performance é ilimitada como ele mesmo.
Esta definição, na verdade, define muito pouco. Apenas indica uma direção na qual se vislumbra o ser humano essencial e se descortinam suas virtualidades inumeráveis. Elas só se tornam reais na medida em que se transformam numa prática concreta dentro de um processo histórico. Por isso o ser humano é um ser de prática e um ser histórico. Constrói sua existência, historicamente, prolongando o processo evolucionário cósmico-bio-social, junto com outros, no mundo e em diálogo consigo mesmo, com os demais seres e com o Absoluto; praticando sua liberdade e tomando decisões a partir das potencialidades que encontra em si, nos outros e no mundo. O que resulta desta prática é sua essência concreta e histórica em contínuo perfazer-se.
O ser humano, na verdade, nunca termina de construir-se. Cada fim é um novo começo. Vive distendido entre a galinha que permanentemente quer a concreção e a águia que sempre busca a superação. Entre um dia-bólico que o mergulha na obscuridade e o sim-bólico que o anima para a luz. Ele é uma abertura sem fim. Assim é no tempo. E assim será também na eternidade. O ser humano é um projeto infinito, conatural ao infinito de Deus. Deus mesmo, por participação.
BOFF, Leonardo. O despertar da águia: O dia-bólico e o sim-bólico n
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