domingo, 2 de maio de 2010

CONCEITO DE COMUNIDADE - Dee Hock

Extraído do livro Nascimento da Era Caórdica - Editora Cultrix




Há um conceito sobre o qual a Mente de Macaco Velho e eu temos pensado bastante, uma idéia fundamental e antiga, a idéia de comunidade. A essência da comunidade, seu coração e alma é a troca não monetária de valor: coisas que fazemos e compartilhamos porque nos interessamos pelos outros e pelo bem do lugar. A comunidade é composta de coisas que não tentamos medir, que não guardamos no arquivo e pelas quais não pedimos recompensa. A maioria delas não conseguiríamos medir nem que tentássemos. Como não podem ser medidas, elas não podem ser avaliadas em dólares, ou em barris de óleo ou em alqueires de milho – coisas como respeito, tolerância, amor, confiança, beleza – cujo suprimento é irrestrito e ilimitado. A troca não-monetária de valor não vem apenas de motivos altruístas. Vem da compreensão profunda, intuitiva, geralmente subconsciente, de que o interesse próprio está inseparavelmente ligado ao interesse da comunidade, de que o bem individual é inseparável do bem geral, de que, de alguma forma, geralmente além de nossa compreensão, todas as coisas são, ao mesmo tempo, independentes, interdependentes e intradependentes – de que o “um” singular é simultaneamente o “um” plural.

Numa verdadeira comunidade, a unidade do “um” singular e do “um” plural se estende além das pessoas e das coisas. Aplica-se também às crenças, propósito e princípios. Alguns são comuns a todos os membros da comunidade. Outros, só a alguns deles. Outros, são só nossos. Numa verdadeira comunidade, toleramos e respeitamos os valores dos outros, mesmo quando não compartilhamos deles, porque sabemos que nossas crenças também vão exigir respeito ou tolerância ou porque conhecemos tão bem aqueles que têm crenças diferentes, que compreendemos e respeitamos a humanidade comum que é base de todas as diferenças. Sem uma abundância de valores não-materiais e uma igual abundância de troca não-monetária de valor material, nunca existiu nem nunca existirá uma verdadeira comunidade. Comunidade não tem relação com lucro.

Tem relação com benefício. Confundi-los é um risco. Quando tentamos monetizar todo o valor, desunimos metodicamente as pessoas e destruímos a comunidade. A troca não-monetária de valor é o sistema mais eficaz e construtivo que já foi inventado. Ele vem sendo aperfeiçoado há milhares de milênios pela evolução e pela natureza. Não exige moeda, contratos, governo, leis, tribunais, polícia, economistas, advogados, contadores. Não exige especialistas ungidos ou diplomados. Exige só pessoas comuns, interessadas.

A verdadeira comunidade exige proximidade, interação e contato contínuo e direto entre as pessoas, o lugar e as coisas de que é composta. Ao longo da História, a pedra fundamental, a quintessência da comunidade, foi sempre a família. É ali que ocorre a maior troca não-monetária de valor. É lá que os mais poderosos valores não-materiais são criados e trocados. É dessa comunidade que todas as outras são formadas. A troca não-monetária de valor é o coração e a alma da comunidade, e a comunidade é o elemento essencial, inevitável da sociedade civil.

Se quiséssemos criar um sistema eficaz para a destruição metódica da comunidade, nada que criássemos seria melhor do que o atual esforço para monetizar o valor e para reduzir a vida à tirania da medida. A comunidade é mais do que um megabalancete em que, na última linha, aparece o valor. Dinheiro, mercados e medida têm seu lugar. São ferramentas importantes. Devemos respeitálos e usá-los. Mas estão muito aquém da divinização que seus apóstolos exigem de nós, e diante da qual nós prontamente caímos de joelhos. Só os tolos veneram suas ferramentas.

Não pode haver sociedade sem comunidade. Na verdade, não pode haver vida sem ela. Toda a vida, toda a natureza e todos os sistemas terrenos são baseados em ciclos fechados de dar e receber, com exceção apenas da dádiva de energia que vem do Sol. Não pode haver vida sem ciclos equilibrados de dar e receber.

A troca não-monetária de valor implica uma diferença essencial entre receber e obter. Recebemos dádivas. Obtemos posses. É um erro confundir comprar e vender com dar e receber. É um erro confundir dinheiro com valor. É um erro acreditar que todo valor pode ser medido. É um erro colossal tentar monetizar todo valor.
Quando fazemos essa tentativa, substituímos metodicamente o mais eficaz sistema de troca de valor pelo menos eficaz. Como não podemos medir matematicamente a troca de valor não-monetária e voluntária, não podemos provar para nossa mente racional a eficácia do todo ou das partes. Não podemos tampouco planejar ou controlar o que não conseguimos medir. A troca não-monetária de valor frustra nosso desejo de previsibilidade perfeita e de controle, coisas que ela sempre promete – mas nunca cumpre.

Quando monetizamos o valor, temos uma medida, por mais enganosa que seja, para calcular a eficácia relativa de cada parte do sistema. Construímos assim mecanismos para “resolver” problemas que nossas medições revelaram. É uma coisa estranha: criamos os problemas ao medi-los, e depois tentamos fabricar sua solução. Não percebemos o erro fundamental que é destruir um sistema extremamente eficaz, cujos valores não podemos calcular, para calcular a suposta eficiência de um sistema ineficaz. Não percebemos também o erro que é fabricar uma sociedade e estruturas institucionais baseadas em medição matemática. Diz o ditado: “o que se mede se faz”. Talvez seja precisamente esse o problema.

Não se pode medir o dar e o receber. Uma dádiva com expectativas não é dádiva. É barganha. Numa troca não-monetária de valor, dar e receber não é uma transação. É uma oferta e uma aceitação. Na natureza, quando um ciclo fechado de dar e receber se desequilibra, logo vem a morte e a destruição. E assim é na sociedade.

Quando reina a fanfarrice do dinheiro, passamos a acreditar que a vida é um direito que contém um direito, que é o direito de obter e ter. A vida não é um direito. A vida é uma dádiva que traz uma dádiva, que é a arte de dar. E a comunidade é o lugar em que podemos dar nossas dádivas e receber as dádivas dos outros. Quando a consciência, individual e coletiva, fica receptiva a novos conceitos de organização que essa maneira de pensar implica, a sociedade e suas instituições podem entrar em harmonia com as riquezas e com a abundância do espírito humano e da Terra, da qual é parte inseparável. Essa é a voz que agora canta para nós, e a canção está começando a ser ouvida pela terra.

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