Introdução
O trabalho tem estado no centro de profundas e radicais transformações provocadas pelo capitalismo no final do século passado e início deste novo milênio. O impacto da revolução tecnológica em curso tem sido tão grande que ainda estamos como que no meio do redemoinho por ela causado. Muitas idéias, pensamentos e práticas tidas como certas e que serviram de portos seguros para interpretar a realidade social e mais especificamente a realidade do mundo do trabalho, se esvaeceram. Os fenômenos do desemprego, da flexibilização, da desregulamentação e da precarização relacionados ao trabalho tomaram de assalto sociedades inteiras. Já não há um que possa se sentir seguro nesta nova sociedade que vai emergindo. O capitalismo parece mesmo ter feito desta situação de insegurança generalizada um princípio de organização social e do trabalho.
Muito já se refletiu, escreveu e divulgou sobre o trabalho, sua natureza, seu estatuto e suas atuas mutações. Foi abordado desde ângulos muito diferentes e desde pontos de vista não raramente contraditórios. Tem-se a impressão de que tudo já foi descoberto e escrito sobre o tema. Mas, por outro lado, por vezes emerge o sentimento de que nada se sabe a seu respeito; um espesso véu de ignorância o cobre.
Dizemos isso não porque queremos através destas reflexões trazer todas as luzes sobre o assunto, o que seria pretensão demais da nossa parte, mas, antes, dizer com que cuidados queremos tratar deste tema. Nossa pretensão é, isso sim, a de nos aproximar do tema do trabalho conduzidos pela mão de um pensador que, a nosso ver, conhece muito bem o tema e cuja reflexão nos tem seduzido intelectualmente. A nossa reflexão sobre as transformações sofridas pelo trabalho e, mais amplamente, pela sociedade do trabalho; sobre a urgência de repensar conceitualmente a noção de trabalho; sobre possíveis saídas para ousar o êxodo da sociedade salarial, será sempre conduzida de perto por André Gorz.
Gorz, seu nome verdadeiro é Gerhard Horst, é austríaco de nascimento e está radicado na França há muitos anos. Nasceu em 1923 e vive atualmente perto de Paris. Jornalista por profissão, Gorz é reconhecido também como filósofo e sociólogo. O tema do trabalho sempre tem sido uma constante na sua produção teórica. Gorz foi militante de esquerda e sempre refletiu tendo o socialismo como horizonte. Mas, por conta da sua concepção de trabalho e o lugar deste na sociedade Gorz tem desafiado a esquerda tradicional a repensar o socialismo.
Nossa reflexão, em primeiro lugar, não pretende ser sobre a vida e a obra de André Gorz, mas uma reflexão sobre o trabalho a partir da sua contribuição. Em segundo lugar, não nos interessa toda a obra de Gorz. Nos interessa a produção teórica realizada por ele a partir do final da década de 1970, mais especificamente a que vai da obra “Adeus ao proletariado” (publicado em 1980 na França) em diante. Este livro reflete uma importante inflexão no pensamento de Gorz, razão pela qual é considerado um divisor de águas na sua produção teórica. Ele passa do campo dos essencialistas ao campo dos historicistas, como veremos no segundo capítulo. E essa mudança é cheia de conseqüências políticas, econômicas e sociais. Gorz não acredita mais na possibilidade de a classe operária se liberar no trabalho e passa a ser um ardoroso defensor da libertação do trabalho.
Mas, por que a reflexão de Gorz pode contribuir para uma nova compreensão do trabalho? Em que reside a ousadia apresentada pelo pensamento de Gorz? Diremos, basicamente, por três grandes razões.
A primeira razão diz respeito basicamente à leitura que Gorz faz da “crise” da sociedade salarial. Uma revolução tecnológica, a revolução informacional, está na base das transformações ocorridas principalmente no último quartel do século XX. Gorz chama a atenção para a diferença dessas tecnologias em relação à quelas que proporcionaram o surgimento da revolução industrial. A revolução informacional é ao mesmo tempo poupadora de trabalho, de tempo de produção e maximizadora da produtividade. E isso faz toda a diferença, quando são apropriadas unilateralmente pelo capital. A sociedade do pleno emprego acabou e não voltará mais. Para Gorz, não se trata de lamentar as chances e oportunidades perdidas, mas aproveitar-se das chances não realizadas.
Num segundo momento tratamos de esmiuçar a segunda razão. Por trás da crise do emprego há algo mais. Essa forma particular de trabalho, o emprego, é uma invenção da modernidade, ou seja, o emprego é contemporâneo da indústria, do capitalismo industrial. Por trás da crise do emprego Gorz enxerga a necessidade de se diferenciar conceitualmente as noções de emprego e de trabalho. E concluímos afirmando com ele que o que está em crise é uma determinada forma de trabalho, o trabalho entendido como emprego, isto é, aquilo que foi submetido à racionalidade econômica. O trabalho guarda uma riqueza que não pode ser confundida sem mais com o emprego. Resgatar essa diferença torna-se crucial para uma melhor compreensão dessa realidade, ao mesmo tempo em que aponta para as conseqüências políticas e sociais oriundas desse rigor conceitual.
Gorz, como partidário do campo historicista, defende a limitação da racionalidade econômica. Para ele é preciso arrancar do domínio do capital o máximo de tempo das pessoas e não fomentar que, para solucionar o problema do desemprego, mais atividades não-remuneradas sejam incorporadas ao campo das atividades remuneradas. Mas, sabe-se que a criação de novos empregos significa muito freqüentemente trabalho mais precário, mal remunerado e mal protegido.
Terceira razão. A crise do emprego e a diferenciação conceitual estabelecida entre as noções de emprego e de trabalho abrem um vasto leque de possibilidades para se pensar uma sociedade não mais organizada principalmente sobre o trabalho. Uma sociedade de multiatividades pode ser fonte de uma densa rede de relações, de proximidades, de entre-ajudas, capaz de desenvolver as potencialidades presentes em cada pessoa. Não há mais a preocupação em desenvolver somente aquelas potencialidades requeridas e úteis à s empresas.
Gorz desenvolverá algumas propostas ou conjunto de políticas que farão possível ousar o êxodo da sociedade salarial ou do trabalho: a redução do tempo de trabalho e a renda de cidadania, universal e suficiente. Ambas devem ser tomadas em conjunto. Isoladamente podem correr o risco de se verem transformadas em medidas pontuais e, portanto, fadadas ao fracasso.
É por essas razões que o pensamento de Gorz é extremamente instigante e desafiador.
As reflexões que seguem são realizadas com a firme convicção de que estamos num momento crucial da história e de que o trabalho pode contribuir decisivamente para uma nova organização das nossas sociedades. Ele poderá nos ajudar a escolher mais mercado ou mais sociedade.
- )
Artículos recientes en esta misma categoría:
- 1. Pelo êxodo da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz - 27-08-2004
- 1.1 A revolução tecnológica - 27-08-2004
- 1.2 O trabalhador pós-fordista - 27-08-2004
- 1.3 A "Brasilianização" do mundo do trabalho - 27-08-2004
- 1.4 A crise da sociedade salarial - 27-08-2004
- 2. O conceito de trabalho em André Gorz - 27-08-2004
- 2.1 A invenção moderna do trabalho - 27-08-2004
- 2.2 A emergência da racionalidade econômica - 27-08-2004
- 2.3 O trabalho como essência do homem - 27-08-2004
Nenhum comentário:
Postar um comentário