Princípio antroentrópico
13-01-2009 12:32
Princípio entrópico: tudo no universo tende à
desorganização.
Princípio antrópico: todo o
universo só faz sentido se tende à formação de seres conscientes, humanos.
Princípio antroentrópico: toda
organização no universo decorre da observação de seres conscientes,
desejantes, falantes, humanos.
Conclusão: só para esses seres há
mundo, vida, morte e tudo o mais que organizam, mesmo sem saber, pela
linguagem.
P.S.: Princípio enteotrópico: a
criação do verbo é divina, pois está além (e aquém) de toda compreensão.
Crítica da Crise.
13-01-2009 12:35
Le
travail, c'est du capital accumulé; le travail de plusieurs accumulé par un seul, donc le
travail c'est du capital qui ne s'accumule pas. Paul Lafitte
O ponto de partida da análise
são os conceitos marxianos de "fetichismo" e de "valor"
enquanto descrevem a transformação da atividade humana concreta em algo tão
abstrato e puramente quantitativo como o valor de troca, encarnado na
mercadoria e no dinheiro. O "fetichismo" não é, portanto, somente uma
ilusão ou um fenômeno da consciência, mas uma realidade: a autonomização da
mercadoria que segue apenas suas próprias leis de desenvolvimento. "Por
trás" da processualidade cega e auto-referencial do valor não há nenhum
sujeito que "faz" a História. Assim como a mercadoria, todos os cidadãos
são medidos pelo mesmo parâmetro: são parcelas quantitativas de uma mesma
abstração.
O desenvolvimento do capitalismo, com a
dissolução de todas as qualidades que pareciam indissoluvelmente ligadas às
pessoas, tende a desvincular funções como ser operário ou ser dirigente dos
indivíduos empíricos. Assim, o "adeus ao proletariado" chega a ser
definitivo: como grupo social baseado em condições idênticas de trabalho, de
vida, de cultura e de consciência, o proletariado não foi nada mais do que o principal
produto do capitalismo, se não um resíduo feudal. Com sua luta por se integrar
plenamente à sociedade capitalista, o proletariado na verdade a tem ajudado a
avançar e a alcançar sua realização plena: o conceito de luta de classes era,
no fundo, uma teoria da libertação do capitalismo de seus resíduos
pré-capitalistas, ao passo que é na teoria do valor e do fetichismo que Marx
antecipou uma crítica que somente hoje adquire plena atualidade.
O "valor" já
contém em sua forma essencial (descrita no primeiro capítulo d’O Capital) uma contradição insolúvel que
conduz, inexoravelmente, ainda que isso leve muito tempo, à sua crise final.
Esta crise está começando diante de nossos olhos.
Um verdadeiro escândalo é a
transformação de um objeto concreto em uma unidade de trabalho abstrato e então
em dinheiro: as atuais capacidades produtivas, as mais elevadas que já
existiram, graças ao desenvolvimento exponencial da tecnologia - para que se
possa produzir a preços competitivos -
têm que passar pelo buraco da agulha da forma abstrata do valor e da capacidade
de transformar-se em dinheiro.
Então, é inútil opor os ideais
da Ilustração burguesa, como a igualdade e a liberdade, à sua má-realização,
uma vez que reconhece já nestes ideais uma estrutura criada pela mercadoria: o
valor é sempre a um só tempo forma de consciência, de produção e de reprodução
da vida social. O valor é uma "forma ( “fato” ou “fenômeno” - Marcel
Mauss) social total", é uma forma de convivência entre as pessoas. O
resultado é um tipo de relação
social que reifica o ser humano, convertendo-o em coisa e confere um poder
sobrenatural ao mundo autonomizado das mercadorias, uma abstração real que
media e dirige as relações humanas. Daí a centralidade do conceito de
fetichismo na análise crítica da sociedade (pós) moderna, assim como já o era
(e ainda é) em comunidades tribais, de cujo estudo é oriundo.
A tentativa de se ler a história
como uma "história das relações fetichistas", na qual o valor sucedeu
à terra, ao parentesco sangüíneo e ao totemismo, enquanto formas na quais se
expressava a potência humana inconsciente de si mesma, desemboca na afirmação
de que esta pré-história da humanidade está chegando ao fim. Todas essas formas
se converteram em segunda natureza, como instrumentos indispensáveis ao homem,
para diferenciar-se da natureza primeira. Mas hoje em dia é possível, e até
necessário, urgente mesmo, proceder a uma segunda humanização, desta vez
consciente. Se são as relações fetichistas as que fizeram até agora a história
e que criaram, juntamente com as relações de produção, também as formas de
consciência correspondentes, então já não é mais necessário recorrer a
sofisticadas teorias da "manipulação” para explicar como as classes
dominantes conseguiram impor à maioria, durante milênios, um sistema de
exploração.
O fetichismo é uma forma
histórica, uma forma muito longa e importante, mas não é a única forma de
convivência humana. Na sociedade fetichista não pode existir verdadeiramente um
sujeito, porque o sujeito, na sociedade da mercadoria, é a própria mercadoria,
o valor. Os sujeitos existem, mais ou menos, como portadores da lógica da
mercadoria, sem que esteja disso conscientes – ou, a rigor, sejam,
propriamente, conscientes.
Essa distinção entre mundo
interno e externo, objetivo e subjetivo, é uma estrutura tipicamente moderna: a
mesma estrutura do valor, que tem sempre necessidade de dividir o mundo em
fatores objetivos e subjetivos. A análise da crise, ao demonstra que o capitalismo,
como tudo o que existe ou existiu, não pode continuar a existir para sempre,
tanto que ele já deixou de existir em muitas partes do mundo, implica que os
homens serão forçados a inventar outras formas de existência, que também estão
para além da forma tradicional do sujeito.
O
fetichismo econômico comporta sempre um fetichismo jurídico. As pessoas,
existências concretas, são convertidas em sujeitos por relações espectrais,
quer dizer, as relações entre mercadorias: comprar-vender a força de trabalho e
comprar-vender o resto de mercadorias, por meio de contratos em ter sujeitos
capazes – portanto, dotados de autonomia, só que meramente jurídico-formal. De
maneira análoga ao encantamento do universo mercantil, os produtos do
pensamento humano são reificados (substancia-se ou coisifica-se um acidente,
uma idéia) como forças autônomas. A partir da constituição do fetiche “homem”
já pode imaginar-se que é alguém com independência das relações sociais que se
estabelece, que a sua subjetividade antecede essas relações. Assim como as
mercadorias aparecem como portadoras do valor por natureza, os indivíduos
aparecem como portadores de vontade, razão e liberdade. Ao fetichismo econômico
das coisas sucede um fetichismo jurídico das pessoas (e o correspondente
caráter fetichista da subjetividade). No caso da mercadoria exterioriza-se um
valor; no das pessoas interioriza-se um sujeito (uma vontade, uma razão…).
Constrói-se um imaginário social estruturado sobre a linguagem da lei
mercantil: a atribuição de valor à língua ou ao patrimônio cultural; a ‘otimização
de recursos’ (financeiros, humanos ou técnicos); o ‘contrato’ que assinam os
políticos com o povo; o tempo que é ouro e, por isso, não se pode perder – ou
tem-se que ganhar, na forma do “tempo livre”-; as reuniões que se fazem
‘produtivas’; o combate ao ‘esbanjamento’ de recursos. Podemos concluir que a
ruptura com a forma do sujeito capitalista implica necessariamente a ruptura
geral com as relações de fetiche no seio da sociedade.
O proletariado, na lógica
capitalista, como vendedor da força de trabalho, é tão capitalista quanto os
que lhe pagam. Isso significa que não se pode mobilizar uma força social já
existente, enquanto força social, para atribuir-lhe uma capacidade
emancipatória. Isso vale para o proletariado, os imigrantes, os estudantes etc.
Nenhuma categoria existente é, enquanto categoria, a portadora da emancipação,
como também não pode sê-lo, com mais razão ainda, a multidão de Toni Negri, em
mais uma teoria que faz o elogio do desenvolvimento das forças produtivas, tal
como o velho marxismo, com a diferença de que, agora, se trata de "forças
produtivas imateriais", e essa nova teoria quer se apresentar como
representante dos novos "trabalhadores imateriais", sem uma crítica
do que se produz hoje com o tal "trabalho imaterial". Tudo isso
somente para convocar, outra vez, os trabalhadores a se apropriarem dos meios
de produção. Essa "multidão" de que nos falam Negri (e Hardt) é
somente um outro nome, mais "pós-moderno", para o proletariado, que é
a classe que produz tudo e que, portanto, deve tomar o controle político da
sociedade em suas mãos. Esse é o velho programa da II Internacional.
Ao mesmo tempo, o fato do
trabalhador produzir o valor é exatamente o problema, porque, para a crítica do
valor, ele é uma categoria negativa e destrutiva. O valor é uma camisa-de-força
para a realidade viva. Para Negri e Hardt, esse fato, de que os proletários –
ou a "multidão" – produzem o valor, é, ao contrário, um fato
positivo. É esse fato que funda a sua reivindicação de poder governar o mundo.
E tudo isso somente parece "pós-moderno" porque é mesclado a mil
outros teóricos, um menos interessante que os outros, para os propósitos de uma
crítica radical, como Deleuze e Guattari.
Normalmente, não há uma crítica
do movimento do capital e do trabalho, nenhuma reflexão teórica sobre as bases
dessa sociedade, isto é, sobre o trabalho abstrato, o valor, o dinheiro e a
mercadoria, categorias mais ou menos aceitas como pressupostos naturais. Quando
muito, a título de crítica, o que se vê é um tipo de polêmica falsamente
anticapitalista, que foi também muito comum no fascismo e outros “socialismos”
ultradireitistas, ou seja, defender o capitalismo atacando somente a
redistribuição parasitária promovida por grupos financeiros. É equivocado, portanto, o discurso
nacionalista, associado à crítica da globalização, porque a resposta para os
nossos problemas não é nos reportarmos ao Estado Nacional, assim como o
problema não é somente o "imperialismo" dos EUA ou das grandes
multinacionais: o problema está na lógica do mercado e do trabalho, difundida
nas consciências desde o Iluminismo, que simplesmente não funciona mais.
Por que é tão importante a crítica do valor? Porque a forma do valor
não deixa de ser uma nova metafísica, neste caso real e secularizada, e
qualitativamente distinta daquelas da consciência pré-moderna (que é mais
imaginária, como objeto exterior de veneração). Abstração generalizada e ‘real’
da forma valor que destrói a referência ao mundo sensível, violadora da
existência e de qualquer referência aos conteúdos ou qualidade própria,
negadora de toda sensibilidade, repressora. A sociedade do valor –
autonomizado, automatizado, fetichizado - é a negação brutal de todo o mundo
sensível e social. A crítica da universalidade abstrata (e da primeira de todas
elas, a universalidade econômica abstrata do dinheiro) sustenta-se em razão
dela não ser mediada por uma comunicação concreta sobre relações sensíveis e
materiais da reprodução comum da vida, mas sim pela abstração do valor, um meio
indireto, abstrato, fetichista, sem sujeito e sem linguagem, como é o
representado pelo valor. O capitalismo faz do valor o seu fim social em si
mesmo.
Resume-o
muito bem Anselm Jappe, em seu livro As Aventuras da
Mercadoria:
Não
se trata do ‘falso’ reflexo da realidade nas mentes humanas, mas de uma
realidade ‘falsa’, porque privada das suas qualidades concretas e em que as
abstrações (…) tornaram-se realidades materiais – por mais que seja difícil,
para a consciência positivista, conceber que uma coisa possa ser, ao mesmo
tempo, uma realidade e uma abstração. A abstração não
é um mau hábito de pensamento que se cura substituindo as idéias falsas pelas
verdadeiras (…), mas somente abolindo a real submissão do
conteúdo concreto à forma abstrata.
Como nos diz
o autor apenas citado, a luta ideológica não pode ser mais a venda de verdades
engarrafadas no vazio para consumo das mentes alienadas da sociedade, mas sim a
alteração radical das regras de jogo e das estruturas (micro e macro) de
relacionamento e reprodução social, começando pelas econômicas e arrematando
por aquelas nas que se moldam a sociabilidade das pessoas: afetivas,
emocionais, grupais…
O certo é que há
um sentimento generalizado de insegurança em relação ao futuro. E se as pessoas
consomem freneticamente, é porque têm a sensação de que tudo é precário, de que
tudo vai terminar de um dia para o outro. E isto atinge não apenas os pobres,
mas também as classes médias. Durante muito tempo, pensou-se que mais depressa
morreríamos de tédio que de fome. A realidade está a se encarregar de desmentir
essa profecia. Não se trata de um processo apocalíptico. Mas o certo é que o
sistema está hoje muito mais em crise do que nos anos 1970: a produção
verdadeira, a acumulação de capital real, perdeu importância face à acumulação
de capital fictício, nas bolsas e na especulação imobiliária. Apesar da
ineficácia das medidas que desde então vêm sendo tomadas, a derrocada de um
sistema em colapso é adiada com ajuda das bolhas financeiras que se manifestam
no endividamento pessoal, das empresas e do estado e na supervalorização das
ações, dos imóveis, das commodities e
outros ativos. A especulação financeira de toda ordem tem criado um volume
absurdo de dinheiro totalmente descolado da produção real, que mais tarde ou
mais cedo terá que prestar contas através da inflação ou da deflação, o que
parece estar cada vez mais próximo. Mas isso não quer dizer que a solução passe
pela reforma do sistema que existe. Pelo contrário. Como dizia um colaborador
da revista Krisis, a globalização é como um barco que já não tem combustível e
que continua a navegar apenas porque vai queimando, pouco a pouco, as tábuas do
convés. É evidente que as saídas se tornaram mais difíceis. Temos pela frente
uma tarefa ciclópica, de grande fôlego, que requer tempo e não passa apenas
pelo próximo slogan para a manifestação de amanhã.
Pode o colapso do
moderno sistema produtor de mercadorias, ao converter em caducas as velhas
ideologias, trazer para o primeiro plano um novo tipo de prática e pensamento?
Corre-se ainda o risco de que na teoria crítica do valor pretenda-se estar se
erguendo como ideologia dos tempos do colapso, fenômeno que obviamente é de
ser, também, combatido.
As construções
históricas da ideologia moderna – ou da modernidade como ideologia, como
prefere Louis Dumont - concorreram para a constituição da forma do sujeito
moderno, masculino e ocidental, permeado pela ideologia do valor e da
dissociação, que deve de ser radicalmente negado e superado. Todas as
categorias ideológicas da modernidade capitalista são deduzidas da forma de
mercadoria geral, derivadas da esfera da circulação. Assim, o universalismo
abstrato da razão revelou-se como mero reflexo da abstração real objetiva do
dinheiro; a liberdade é uma noção jurídica sem valor para as pessoas sem renda
para fazê-la efetiva; a emancipação da mulher é a sua inserção no mercado
laboral e o funcionamento capitalista; o livre-arbítrio para construir a
própria vida utiliza-se só (e não só, mas sobretudo no Ocidente, entendido como
situado principalmente no eixo norte-atlântico) através do consumo.
Depois
de Marx, durante muitos decênios, e apesar das contribuições de autores como
Lukács, Isaac Rubin e alguns outros, toda análise do fetichismo restou diluída
na categoria muito mais ampla e indeterminada de "alienação“; com o que o
fetichismo se convertia em um fenômeno de consciência, em uma falsa
opinião ou valoração das coisas
que de algum modo se podia
relacionar com a tão discutida noção de "ideologia". Só
durante a segunda metade dos anos sessenta o conceito de fetichismo, a análise da estrutura
da mercadoria e do trabalho
abstrato chegaram a ocupar um lugar destacado na discussão, sobretudo na
Alemanha e na Itália.
A crítica
atual da dissociação promovida pelo fetichismo alude àquelas esferas da
reprodução social não mediadas, até a ofensiva neoliberal, pelas relações
mercantis: lazer, assistência a idosos, vida familiar, cultura popular. Grande
parte destas esferas estavam em mãos femininas, em uma esfera subordinada, mas
em certa medida autônoma. A relação de dissociação entre os gêneros é a relação
central da moderna constituição de fetiche que torna de algum modo possível uma
relação de valor. A crítica do valor deve, portanto, superar também a lógica da
dissociação da forma sujeito moderna, capitalista e estruturalmente masculina.
O paradigma básico desta lógica dissociadora é o que se reflete na dissociação
abstrata entre a masculinidade e a feminilidade. O homem e a mulher devem de
ser simplesmente pessoas pensantes, desejantes e sensíveis. O homem e a mulher
assim dissociados e reduzidos às suas abstrações de ‘valor masculino’ e ‘valor
feminino’ não podem servir de fundamento e parâmetro positivo. ‘O valor é o
macho’, diz o título de um famoso ensaio de Roswitha Scholz, publicado na
revista Krisis
n.° 12 (1992). Em certa
medida, sobre esta dissociação histórica construiu-se a estratificação
patriarcal de ocidente. Como refletira magnificamente o freudo-marxista Erich
Fromm, ligado à Escola de Frankfurt, por trás da dissociação entre
masculinidade e feminilidade acha-se num plano histórico a dissociação entre
Estado, lei, guerra, esfera pública e ordem (valores da masculinidade como
ontologia positiva) e esfera privada e íntima, amor, emoções, sentimentos,
filhos, reprodução da vida e família (como valores da feminilidade e valor
subalterno). Outras dissociações transcendentais são as que se estabelecem
entre vida privada e vida pública, trabalho e lazer. No caminho da soldadura de
ambos os pólos a luta contra a dissociação é também a luta por dotar de carga
emancipatória dimensões do quotidiano, como assinalara já há quatro décadas o
situacionismo de Guy Débord e seus companheiros.
Crítica Final
13-01-2009 12:39
Na
sociedade pautada pelo imperativo da produção das mercadorias desaparece o
conteúdo concreto do objeto e do trabalho que o produz, conta somente o
trabalho como mera quantidade de tempo empregado, que Marx chama "trabalho
abstrato". Toda a produção de mercadoria se baseia num processo de
"abstratificação", de "tornar-se-abstrato", porque
prevalece a mera quantidade sem qualidade. Isto é a abstração de cada conteúdo.
O espetáculo com a sua redução do mundo a um mero parecer, à imagem, não é,
portanto, outra coisa senão, como disse o próprio Debord, uma posterior etapa
no processo secular do "tornar-se-abstrato" do mundo, iniciado no
Renascimento e continuado com maior força desde o final do século dezoito. Um
processo que não é fruto de uma misteriosa "metafísica ocidental",
como gostaria talvez um Heidegger, mas que é o resultado de um processo
material e social bem determinado, e por isto, no limite, também modificável. A
televisão é, portanto, uma espécie de apogeu da sociedade da mercadoria, não
somente porque faz vender, mas porque potencializa a estrutura fundamental da
sociedade moderna: a contemplação inerte, isto que o homem criou sem sabê-lo e
igualmente sem querê-lo.
Deve-se,
porém, acenar com um outro elemento de importância capital: o espetáculo assim
como o entende Debord, não chega absolutamente a ocupar a realidade inteira –
muito diferentemente do que acontece segundo Jean Baudrillard, cujas
elucubrações são, para os observadores mais superficiais, parecidas com a teoria
de Debord. Para Baudrillard, cópia e realidade são enfim indistinguíveis, não
existe mais uma realidade, um original, um significado e talvez nunca tenham
existido. A resignação satisfeita é a conseqüência lógica desta perspectiva. A
análise de Debord, muito pelo contrário, considera a invasão das cópias em
detrimento do original, da aparência em detrimento da realidade como um
escândalo. Não porque poderia realmente alguma vez ter êxito no final das
contas . Mas porque são danos bastante reais que infligem a realidade. O
predomínio da mercadoria e do espetáculo significa igualmente um grande
empobrecimento da vida vivida. A mercadoria e o espetáculo são abstratificação
e glacialização da vida, são "uma negação da vida que veio a ser
visível". Estes constituem um reverso negativo, uma forma pervertida da
vida, mas não podemos nunca substituí-la por tudo.
Também
Anders observou já nos anos cinqüenta uma inversão operada pela televisão:
"Quando o fantasma se torna real, a realidade se torna
fantasmagórica", escreveu, precisando que o fantasma não é nem uma
realidade, nem uma simples imagem, mas um ser do meio, com um estatuto
ontológico diferente. Assim, os contatos entre os homens reais e os fantasmas
assumem os contornos das clássicas histórias de fantasmas. Seguramente, aqui,
levantaremos questões para afirmar que o aspecto fraco desta teoria, o seu lado
"envelhecido", superado, seria propriamente o seu apego a noções como
"original" e "real", "cópia" e "aparência"
categorias de forma essencialística e pertencentes a uma procura impossível do
autêntico e do verdadeiro do qual o pensamento contemporâneo nos últimos
decênios estaria felizmente liberado. É evidente que nós assumimos, aqui, um
outro ponto de vista: somente quando finalmente cresceu uma geração – já
mencionada – que desde o seu nascimento não conheceu outra coisa senão a cópia
e a aparência, uma geração para a qual, desde pequena, a realidade era aquela
que transmitia a televisão, e não aquela da qual eventualmente se podia fazer
uma experiência direta, somente quando esta geração chegou às cátedras pôde
difundir-se a tese pós-moderna de que a realidade não existe, e não por acaso
isto aconteceu antes nos países onde a desrealização da vida cotidiana estava
já mais avançada.
É
certo que tese de A Sociedade do
Espetáculo de no. 9 afirma que "num mundo realmente invertido, a
verdade é um momento do falso". Esse aforismo, freqüentemente
mal-entendido, é uma retomada invertida de uma frase de Hegel, de que o falso é
apenas um momento do verdadeiro. Com isso, Debord não quer dizer que não
vivemos num mundo em que não há nada de verdadeiro ou num mundo em que o falso
remete apenas a outro falso. Essa é a apenas a aparente radicalização da teoria
situacionista que podemos encontrar em teóricos pós-modernos como Baudrillard.
De modo que dizer que nesse mundo invertido em que o verdadeiro é um momento do
falso, significa simplesmente dizer que a sociedade espetacular utiliza tudo
que é verdadeiro e coloca-o a seu serviço.
Tem
uma página da revista Internacional Situacionista que reproduz uma imagem que
passou numa televisão holandesa de protestantes em 1967. Nela, de modo muito
escandaloso para a época, mostrou-se uma imagem de uma mulher de seios nus. O
diretor da televisão explicou que eles queriam mostrar apenas que mulheres nuas
podem ser muito bonitas. A revista aponta que no mundo espetacular mesmo as
verdades mais elementares correm o risco de se perderem ou serem críveis apenas
quando afirmadas pelo próprio espetáculo. Essa imagem saiu na televisão em 67,
mas um número da revista que foi publicado em 69, que continuava comentando
essa imagem, dizia que nos meses subseqüentes, ou seja, em maio de 68, o mundo
real começou a atacar esse mundo invertido. Debord mantinha plenamente esse
conceito de inversão do real e do abstrato, um conceito que tem raízes na
análise marxiana da mercadoria e em que se aponta uma relação em que o abstrato
domina o concreto, isto é, uma relação falsa, pervertida. Isso se contrapõe às
teorias pós-modernas, para as quais não existe sequer a possibilidade de um
verdadeiro e um falso. Portanto, a teoria de Debord não é uma teoria que pode
levar a uma espécie de fatalismo ou pessimismo necessário.
Em
última análise, a televisão contribui para criar o homem-mercadoria: um ser
humano que não é simplesmente forçado pela necessidade de entrar no ciclo de
trabalho alienado e consumo de mercadorias, como acontecia nos primeiros tempos
da dominação capitalista na qual existia ainda um real conflito entre uma
esfera capitalista da vida e uma outra esfera – a família, a aldeia, o bairro,
a corporação – não dominada pela lógica da mercadoria, ou não completamente. O
triunfo dos meios eletrônicos, iniciado entre as duas guerras mundiais,
coincide com uma penetração capilar da mercadoria em cada esfera da vida, com
uma "colonização da vida cotidiana", como a chamou Debord. Com a
televisão desaparece o "fora" e o "dentro", não existe mais
uma esfera separada da mercadoria. Exceto para pequenas minorias, não existe
mais o desejo de beber que não seja o desejo de beber Coca-Cola ou um outro
produto publicizado na TV, não existem mais brinquedos feitos pela própria
criança, mas somente aqueles vistos sobre o plano televisivo, não existem
comportamentos amorosos diferentes daqueles das telenovelas, etc.
Não
vale aqui repetir análises já feitas à exaustão sobre como a realidade vem,
enfim, percebida somente por intermédio dos esquemas mentais e perceptivos
impostos pela TV. Anders disse, há meio século, que agora os homens já não
criam a sua própria linguagem, assim como não cozinham mais o próprio pão em
casa. Vale, porém, de sublinhar que isto confirma a análise da mercadoria como
"forma social total": um sujeito em forma de mercadoria, para o qual
cada objeto de percepção, desejo, sentimento ou pensamento é representado sob
forma de mercadoria. Também a função de "democratização" que muitos
querem atribuir à televisão consiste justamente no fato de todos tornarem-se
iguais em frente a ela. A televisão repete nos confrontos dos sujeitos o mesmo
processo universal induzido pela lógica da mercadoria: reduzir tudo a
diferentes expressões quantitativas da mesma substância indeterminada sem
qualidade.
Podemos
também falar de uma verdadeira e própria "antropogênese negativa" ou
"regressiva". Os esforços milenares dos humanos para aperfeiçoar a
própria existência, enriquecendo acima de tudo a sua relação entre si e com o
mundo, correm o risco ainda de anular-se e o homem de cair em um estado de
pobreza existencial que na verdade jamais existiu no passado, em plena
afluência material também nunca antes existente. Günther Anders insiste no
empobrecimento, ou melhor, na quase abolição da experiência individual, quando
todo o mundo se encontra abastecido em casa como acontece com o gás ou com a
eletricidade. Todas as categorias tradicionais do ser-no-mundo, da relação dos
homens com o seu mundo, vêm sendo postas em discussão pela existência do rádio
e da TV, e não somente quando existem 100 canais, mas já quando aparece a sua
estrutura embrionária. O fora e o dentro, a distância e a proximidade, o
particular e o universal, substituídos pela sucessão, a simultaneidade e a
presença verdadeira, o ser e o aparecer: todas estas distinções desaparecem. A
televisão, disse Anders, faz desaparecer o mundo sob a imagem do mundo. O mundo
como mundo se apresenta substituído por um modelo de mundo a uma escala
reduzida que serve para aprender e interiorizar os comportamentos que se deve
ter depois nos confrontos do mundo real.
No
fundo, toda a sociedade da mercadoria é uma tal antropogênese negativa, um
passo atrás da humanidade. Em frente aos ídolos do mercado e da rentabilidade,
da mercadoria e do capital, o homem moderno não demonstra absolutamente uma
maior autonomia tanto quanto tinha o assim dito homem primitivo em frente ao
seu ídolo de madeira, ao qual atribuía aqueles poderes que na verdade eram os
da comunidade humana.
O
entusiasmo com o qual recebemos esta regressão é muito merecedor de uma
explicação. Provavelmente nada é tão comum a todos os habitantes do globo
quanto a vontade de assistir a TV. Sobre alguns conteúdos podem pesar as
diferenças culturais, as bailarinas seminuas suscitam talvez um escândalo na
Arábia Saudita. Mas se se trata de assistir aos desenhos animados, podemos
estar seguros de que pelo menos isto aproximaria palestinos e israelenses,
chechênios e russos, habitantes das favelas e milionários americanos, aiatolás
e atrizes pornográficas. Anders afirmou já no ano de 1956 que muitos dos seus
contemporâneos prefeririam encontrar-se na prisão com uma televisão (ou melhor,
ele diz com um rádio), em vez de ser livre sem um tal aparelho. O que devemos
dizer hoje?
A
primeira coisa que foi feita no Afeganistão depois da derrota dos talibãs foi
recomeçar as transmissões televisivas. Este universalismo da TV se explica, por
um lado, pelo fato de que ela é a vanguarda da mercadoria, também em lugares
onde a mercadoria não existe, ou quase não existe, e mesmo onde é renegada.
Aquela maioria da humanidade que não tem acesso a quase nenhuma das mercadorias
promovidas na TV não se cansa, porém, de olhar a promessa destas, o espetáculo
do espetáculo. No país mais pobre e retrógrado da Europa, a Albânia, em frente
à Itália, do outro lado do Adriático, os habitantes assistiam à televisão
italiana durante a longa ditadura stalinista que lá permaneceu até os nossos
dias, e depois da derrocada do regime, em 1990, uma boa parte deles se colocou
em movimento para alcançar a Itália e ver a terra prometida, de modo que,
finalmente, o ainda primeiro ministro italiano Andreotti, conhecido pelo seu
cinismo, exclamou: "Mas essa gente pensava realmente que toda a Itália
fosse como nos espetáculos televisivos?" E mandou depois o exército
reenviar os iludidos para casa.
Em
uma perspectiva ainda mais ampla, também necessariamente vaga, poderia dar-se
que o triunfo da televisão é, assim, universal, porque ela vem ao encontro de
um profundo infantilismo da humanidade e a um desejo de regressão. Assim como o
indivíduo, também a humanidade poderia sentir cansaço e resistência diante do
processo de tornar-se adulto. A cultura da epopéia ou do romance burguês é
claramente uma cultura dos adultos. De fato, as crianças não entendem um
romance, uma epopéia ou uma poesia. A televisão ao invés, como notava Adorno
nos anos sessenta, dirige-se a um espectador da idade de onze anos. Desde
então, esta idade-alvo foi ainda notavelmente diminuída. Os desenhos animados,
dos quais se falava antes, enquanto produto mais universalmente amado pelos
telespectadores, são perfeitamente desfrutáveis por um menino de três anos. Uma
breve viagem por mar pode mostrar coisas como um ângulo do navio com brinquedos
e desenhos animados proposto às crianças para evitar a vista do mar e da costa.
Mas a maior parte dos espectadores eram pessoas ditas adultas. "Em nenhuma
parte existe acesso para a idade adulta", dizia Debord em um de seus
filmes, e nem sequer à infância verdadeira, podemos acrescentar, mas somente à
"infantilização". Porque nisto tem razão Neil Postman com o seu livro
O desaparecimento da infância, este
publicado já no Brasil: os espetáculos televisivos, indistintamente propostos
aos espectadores de todas as idades, têm de fato abolido aquela infância que a
cultura do livro impresso ajudou a criar, enquanto a televisão trata de novo as
crianças como pequenos adultos – mas adultos por ela tornados infantis, devemos
acrescentar.
Mas
a antropogênese negativa da qual a televisão é um fator poderoso é
verdadeiramente fatal, como afirmam com resignação Postman, Baudrillard e
tantos outros? É bastante cedo para dizê-lo. Posso dizer que em qualquer
povoado, os mesmos idosos que não querem permanecer uma noite em casa sem a TV,
exprimem freqüentemente nostalgia para com o tempo passado, no qual à noite
eles se reuniam nas calçadas para conversar e até cantar, ou no qual as
mulheres lavavam as roupas juntas à fonte, trocando bisbilhotices, em vez de
assistirem cada qual sozinha às telenovelas, com suas bisbilhotices inventadas
e alheias. Outra observação: quando há alguns anos na Itália propôs-se um
plebiscito para pedir a abolição dos spots
publicitários nos filmes, os adversários desta iniciativa – que visava
limitar o grande poder de Berlusconi – procuravam difundir a impressão de que
se tratava de um plebiscito pró ou contra a televisão enquanto tal. Mas, apesar
disso, só uma minoria consistente apoiou o plebiscito!
Não
é impossível o fato que talvez muita gente, se fosse deixada sem televisão,
depois de um momento de perturbação, esfregariam os olhos, perguntando-se de
que coisa despertou. É inacreditável, mas uma semelhante experiência parece
nunca ter sido feita em nenhum país dito civilizado. Qualquer gênero de
experimentação sobre a vida das populações é considerado lícito, do amianto aos
campos transgênicos. Mas, deixar uma pequena cidade um mês sem televisão com o
objetivo experimental, disto nunca se ouviu falar.
Talvez
se verá um dia, contudo, ações mais fortes. Segundo uma tradição citada por
Walter Benjamin nas "Teses sobre o conceito de história", durante
a Comuna de Paris de 1871 ou segundo uma
outra versão, devida a Elias Canetti, em seu Massa
e Poder, após a Revolução de Outubro de 1917 da Rússia, ou ainda
durante a revolução espanhola de 1936, os revolucionários disparavam nos
relógios públicos. Quem sabe não veremos em breve, ainda que tardiamente,
outros disparos, agora nas televisões?
Crítica da Mercadoria
13-01-2009 12:41
A mercadoria é um produto destinado
desde o princípio à venda e ao mercado (e não muda grande coisa caso seja um
mercado regulado pelo Estado). Em uma economia de mercadorias não conta a
utilidade do produto, mas sim unicamente sua capacidade de ser vendido e de
transformar-se, por mediação do dinheiro, em outra mercadoria. Por conseguinte,
só se acede a um valor de uso por meio da transformação do próprio produto em
valor de troca, em dinheiro. Uma mercadoria enquanto mercadoria não se acha
definida, portanto, pelo trabalho
concreto que a produziu, mas sim que é uma mera quantidade de
trabalho indistinto, abstrato; quer
dizer, a quantidade de tempo de
trabalho que se gastou em produzir-la.
Disso deriva um grave inconveniente: não são os homens mesmos quem regulam a
produção em função de suas necessidades, mas que há una
instância anônima, o mercado, que regula a produção post
festum. O sujeito não é o homem, mas sim a mercadoria enquanto “sujeito
automático” (Marx). Os processos vitais
dos homens restam abandonados à gestão
totalitária e inapelável de um mecanismo cego que eles alimentam, mas
não controlam. A mercadoria separa a produção
do consumo e subordina a utilidade ou nocividade concretas de cada coisa
à questão de quanto trabalho abstrato, representado pelo dinheiro, esta
seja capaz de realizar no mercado. A redução
dos trabalhos concretos a trabalho
abstrato não é uma mera astúcia técnica nem uma simples operação mental. Na sociedade da mercadoria, o
trabalho privado e concreto só se faz
social, ou seja, útil para os demais e, por isso, para seu produtor, a troco de
despojar-se de suas qualidades próprias e de se fazer abstrato. A partir daí,
só conta o movimento quantitativo, quer dizer, o aumento do trabalho abstrato, enquanto a satisfação das necessidades se converte em um efeito
secundário e acessório que pode se dar ou não. O valor de uso se transforma em
mero portador do valor de troca, a diferença do que sucedia em todas as
sociedades anteriores. Ainda assim, sempre deve haver um valor de uso; fato
este que constitui um limite contra o que choca constantemente a tendência do
valor de troca, do dinheiro, a incrementar-se de maneira ilimitada e
tautológica. A melhor definição do trabalho
abstrato, depois da de Marx, foi dada nada menos que por John Maynard
Keynes, ainda que sem a menor intenção
crítica: "Desde o ponto de vista da economia nacional, cavar
buracos e em seguida enchê-los é uma
atividade inteiramente sensata".
Em
um texto denominado As sutileza
metafísicas da mercadoria podemos encontrar um resumo do pensamento de
Jappe a esse respeito. Ali, destaca que, em geral, a existência de mercadorias
costuma ser considerado um fato inteiramente natural, pelo menos em qualquer
sociedade medianamente desenvolvida, e a única questão que se coloca é sobre o
que fazer com elas. Pode-se afirmar, desde logo, que há pessoas no mundo que
têm demasiado poucas mercadorias e que se teria de lhes dar um pouco mais, ou
que algumas mercadorias estão mal-feitas, ou que contaminam o ambiente e que
são perigosas. Mas com isso não se diz nada contra a mercadoria enquanto tal.
Se pode desaprovar certamente o "consumismo" ou a
"comercialização", isto é, pedir à mercadoria que fique em seu lugar
e que não invada outros terrenos como, por exemplo, o corpo humano. Mas tais
observações têm um sabor moralista e, além disso, parecem
"antiquadas", e ser antiquado é o único crime intelectual que ainda
existe. Tudo se passa como se a mercadoria tivesse existido sempre e sempre
existirá, por mais que mude sua distribuição.
Se
entendermos por mercadoria simplesmente um "produto", um objeto que
passa de uma pessoa a outra, então a afirmação da inevitabilidade da mercadoria
é sem dúvida verdadeira, porém também um pouco tautológica. Esta é, no entanto,
a definição que tem dado toda a economia política burguesa depois de Marx. Se
não queremos nos contentar com essa definição, temos de reconhecer na
mercadoria uma forma específica de produto humano, uma forma social que só
desde há alguns séculos - e em boa parte do mundo, desde há poucos decênios –
chegou a ser predominante na sociedade. A mercadoria possui uma estrutura
particular, e se analisarmos a fundo os fenômenos mais diversos, as guerras
contemporâneas ou as quebras dos mercados financeiros, os desastres
hidro-geológicos de nossos dias ou a crise dos Estados nacionais, a fome no
mundo ou as mudanças nas relações entre os sexos, achamos sempre na origem a
estrutura da mercadoria. Conste que isso é conseqüência do fato de que a sociedade
mesma reduziu tudo a mercadoria; a teoria não faz mais que tomar nota disto.
Talvez
a mercadoria e sua forma geral, o dinheiro, tenham tido alguma função positiva nos primórdios, facilitando a
ampliação das necessidades. Porém, sua
estrutura é como uma bomba-relógio, um vírus inscrito no código genético da
sociedade moderna, especialmente quando começa a induzir falsas necessidades,
que por sua vez, em um consumismo desenfreado, retro-alimentam a produção
desenfreada de inutilidades. Quanto mais a mercadoria se apodera do controle da
sociedade, tanto mais vai minando os alicerces da sociedade mesma, tornando-a
de todo incontrolável e convertendo-a em uma máquina que funciona sozinha. Não
se trata, por tanto, de apreciar a mercadoria ou de condená-la: é a mercadoria
mesma que se inviabiliza, a longo prazo, e talvez não só a si mesma. A
mercadoria destrói inexoravelmente a sociedade da mercadoria. Como forma de
socialização indireta e inconsciente,
esta não pode deixar de produzir desastres.
Este
processo, no qual a vida social dos
homens se transferiu para suas mercadorias, é o que Marx chamou o fetichismo da
mercadoria: no lugar de controlar sua produção
material, os homens são controlados por ela; são governados por seus
produtos, que se fizeram independentes, o mesmo que sucede com a religião. O
termo "fetichista" entrou na linguagem cotidiana, e freqüentemente se
diz de alguém que é um fetichista do automóvel, da roupa o do telefone celular.
Este uso do termo "fetichista" parece vincular-se, no entanto, antes ao sentido em que o
empregava Freud, a saber, o de conferir a um mero objeto um significado emotivo
derivado de outros contextos. Ainda que os objetos de tais fetichismos sejam
mercadorias, parece pouco provável que esse "fetichismo" cotidiano
seja o mesmo que o "fetichismo da mercadoria" de Marx. Por um lado,
porque resulta mais difícil admitir que a mercadoria enquanto tal, e não só
algumas mercadorias particulares, possam ser para nós, os modernos, objeto de
um culto comparável ao que os chamados selvagens rendiam a seus totens e a seus
animais embalsamados. O amor excessivo a certas mercadorias é somente um
epifenômeno do processo pelo qual a
mercadoria enfeitiçou toda a vida social, porque tudo o que a sociedade tem ou
pode ter se projetou nas mercadorias.
Porém,
também aqueles a quem a mercadoria não deveria parecer-lhes tão
"normal", quer dizer, os supostos marxistas, se mostraram pouco
dispostos a reconhecer-se como selvagens. Tal renitência se viu coadjuvada pelo
fato de que o "fetichismo da mercadoria" e seus derivados - dinheiro,
capital, juros - ocupa na obra, por assim dizer, canônica, de Marx um
espaço quantitativamente muito reduzido, e não se pode dizer que ele
mesmo o tenha colocado no centro de sua teoria, considerando que tais temas o
ocuparam mais em sua, por assim dizer, juventude, na primeira metade do século
XIX. Ademais, a definição marxiana do fetichismo, como toda sua teoria do valor
e do trabalho abstrato, é tremendamente
difícil de entender, especialmente se não se leva em conta sua produção
inicial, que veio a lume quando já se haviam estabelecido diversos dogmas e
mal-entendidos do marxismo tradicional ou “exotérico”; o que não se deve, por
certo, a que Marx foi incapaz de expressar-se devidamente, mas antes ao fato de
que, como ele mesmo disse, o paradoxo da realidade se expressa em paradoxos
lingüísticos. O desdobramento de todo produto humano em dois aspetos, o valor
de troca e o valor de uso, determina quase todos os aspectos de nossa vida e,
sem embargo, desafia nossa compreensão e
o senso comum, quiçá um pouco como a teoria
da relatividade. Era difícil fazer do fetichismo um discurso para as
massas, como se fez com a "luta de
classes" ou a "exploração". Ademais, a análise marxiana do
fetichismo indicava uma espécie de
núcleo secreto da sociedade burguesa, núcleo que só pouco a pouco veio
fazendo-se visível; durante quase um século, a atenção permaneceu fixada nos efeitos secundários da forma-mercadoria, tais como a
exploração das classes trabalhadoras.
Não é em vão que Marx utiliza, quando
fala do caráter de fetiche da
mercadoria, em poucas páginas os termos
"arcano", "sutileza metafísica", "caprichos
teológicos", "misterioso", "extravagâncias
admiráveis", "caráter
místico", "caráter enigmático",
"quid pro quo", "forma
fantasmagórica", "região
nebulosa", "hieróglifos", "forma extravagante",
"misticismo", "bruxaria" e "feitiço". O
fetichismo é o segredo fundamental da sociedade moderna, o que não se diz nem
se deve revelar. Nisso se parece ao inconsciente psicanalítico, donde se
compreende que Lacan não estava fazendo mais uma de suas blagues quando atribui
a Marx, no seu célebre Seminário, a descoberta do inconsciente; e a
descrição marxiana do fetichismo como
forma de inconsciência social e como cego processo auto-regulador mostra interessantes analogias
não só com a teoria freudiana, mas
também com outras, mais recentes, com aquela da autopoiese, formulada em nível
biológico por autores como Humberto Maturana, e em nível sociológico por
outros, como Niklas Luhmann, amplamente incorporada, por exemplo, na mais
recente descrição habermasiana da sociedade atual. Não surpreende, portanto,
que o fetichismo, tal como o inconsciente, empregue toda sua sutileza
metafísica e toda sua astúcia de teólogo para não se dar a conhecer. Durante
muito tempo, tal ocultamento não foi muito difícil: criticar o fetichismo teria
implicado em pôr em questão todas as categorias
que inclusive os supostos marxistas e os críticos da sociedade burguesa
tinham interiorizado por completo, considerando-as dados naturais sobre os
quais só se podia discutir o mais ou o menos, o como e,
sobretudo, o "para quem", porém sem questionar sua existência em si:
o valor, o trabalho abstrato, o dinheiro, o Estado, a democracia, a
produtividade. Só quando a luta pela distribuição desses bens conduziu, durante o período do (segundo) pós-guerra, a uma situação de
equilíbrio no welfare state fordista,
resultou possível colocar no centro das atenções a mercadoria enquanto tal e os
desastres que produz.
Apesar de que a economia –
mercadoria e dinheiro – se nos afigura como sendo “tudo”, esta forma de
totalidade abstrata aparece ideologicamente como individualizada enquanto
esfera funcional da chamada economia, cujo espaço institucional é o mercado. À
sua vez, as chamadas políticas econômicas são
as ideologias legitimadoras correspondentes ao âmbito das relações de
produção.
Por isso a política não é
mais que uma forma de automediação do sistema que não pode desaparecer porque é
depositária da forma jurídica, como administrador daqueles recursos que se
tornaram condições gerais de todo o processo de valorização, sem poder valorizar
diretamente o dinheiro (porventura o caso mais claro seja o das
infraestruturas). E a encarnação mesma da política como forma de automediação e
arbitragem para a valorização é o Estado (que é tanto como dizer o poder).
Assim, a política, no estrito sentido conceitual, nada mais é que a atividade
relacionada positivamente ao Estado (ao poder). A esfera funcional da política
tem como espaço institucional o Estado, que fica definido como universalidade
abstrata jurídica de uma sociedade de produtores de mercadorias. ‘Abstrata’ em
razão de não ser mediada por uma comunicação concreta sobre relações sensíveis
e materiais concretas de reprodução comum, mas pela abstração do valor.
Se a esfera funcional da
política – cujo espaço institucional é o Estado, à sua vez encarnação do poder
-, que existe só em função da abstração economizada do mundo, as principais
lutas e antagonismos político-ideológicos na modernidade, derivados da cisão
estrutural do sistema produtor de mercadorias nas esferas ‘independentes’ da
economia e da política, são de algum jeito enganosas e fictícias. Permanecem
presentes, mas apenas como invólucros vazios, gastos e desbotados. Que batalhas
se livram hoje da esfera funcional da política para se subtrair à abstração
economizada do mundo, ao império inexorável das leis naturalizadas do mercado,
quando a economia cavalga desbocada? Apenas se pode tentar montar na besta,
para domá-la?
A suposta autonomia da
política é desmentida já pelo fato de a esfera política não dispor de nenhum
meio próprio de influência. Todo o que o Estado faz por intermédio da política
tem que fazê-lo por intermédio do mercado, quer dizer, na forma do dinheiro.
Cada medida e cada instituição precisam ser financiadas. A dependência da
política do financiamento - assim como de ambos da ciência tecnologizada (ou a
tecnologia cientificizada, como queiram) - é absoluta, já que a esfera
político-estatal não pode criar dinheiro autonomamente (ou, se o faz, é à custa
de depreciações, nas que o próprio mercado volta a ditar as regras). Apesar
disso, a idéia do comando político-estatal sobre a economia, quer como poder revolucionário
ou reformista do trabalho, quer como um centro imperialista, vagueou sempre com
novas variantes no marxismo e trabalhismo, que jamais pensaram a superação da
forma mercadoria. Para Kurz, muito certeiramente, é ingênuo o aparentemente
incorrupto paradigma da esquerda sobre o ‘economicismo’, quando a política
aparece já forçosamente como economizada e quando tende a se reduzir de forma
cada vez mais aberta e unidimensional à política econômica. A crítica do
economicismo compensa esta omissão da forma mercadoria através de fantasias
politicistas.
Se em caso contrário se optar
por uma política econômica nacional do outro pólo ideológico da modernização –
e fazendo abstração das dificuldades imensas que se põem a este objetivo no
atual contexto global-, ficaria incólume outra vez o campo total do sistema
produtor de mercadorias: a transformação incessante do trabalho em dinheiro e,
como isso, a valorização ou economização abstrata do mundo. A política
econômica nacional seria apenas uma macro-política capitalista de Estado, um
capitalismo coletivo ideal virado para fora.
Há outros aspectos ligados a
esta reflexão que são igualmente
pertinentes, porque nos ajudam a abrir novas perspectivas. As esquerdas
continuam muito atadas a certo fetichismo jurídico que impossibilita, muitas
vezes, repensar as políticas econômicas convencionais. Será que porventura
entre as cegas leis do mercado e a propriedade estatalizada (capitalismo de
Estado) não se acha nenhuma fenda de superação progressiva da pretensão totalitária da economia? A teoria crítica do
valor achega algumas idéias muito interessantes na hora de falar, por exemplo,
da forma de aproveitar coletivamente os recursos da terra:
No socialismo de Estado até já não
havia propriedade privada. Mas a propriedade do Estado sobre a terra sem dúvida
significava igualmente uma separação jurídica dos seres humanos dos seus
elementares meios de produção. A propriedade jurídica da terra foi
estabelecida, no sentido da afirmação de Marx, para negar a graça do simples
possuir, isto é, da utilização à moda da auto-administração comunal (Kurz).
O
"fetichismo da mercadoria" não significa somente uma adoração dos
bens de consumo, um excessivo investimento afetivo sobre eles, como o termo
poderia fazer pensar à primeira vista. Não indica, nem mesmo, somente uma forma
de consciência mistificada, que vela o verdadeiro funcionamento da exploração
capitalista, como quer a vulgata marxista. O conceito de fetichismo indica,
sobretudo. isto: na sociedade capitalista da mercadoria, a produção não
acontece para o seu conteúdo, para o seu valor de uso. Acontece para
incrementar o valor, o valor de troca das mercadorias, e este valor é
determinado pela quantidade de trabalho que foi necessária para produzir a
mercadoria – quer seja material ou imaterial não tem importância. Não é
determinado pela quantidade de trabalho concreto e real, mas de trabalho
simplesmente, de trabalho indiferenciado, de trabalho abstrato, como disse
Marx. Na ótica da produção capitalista de mercadorias, a produção de objetos
concretos é somente um aspecto secundário; o que conta é transformar o trabalho
vivo em trabalho morto, objetivado, passado, e esta transformação deve
acontecer segundo os parâmetros de produtividade vigentes naquele momento. O
destino de um produto, e de toda a produção, não depende da sua real utilidade
para alguém, nem da sua beleza, nem do seu valor simbólico, mas da sua
capacidade de ser vendido, de modo que o valor de troca contido nele volte a
alimentar um ciclo sempre ampliado de produção e consumo. A questão de, por
exemplo, se produzir caças bombardeiro ou pães não depende de uma decisão
consciente e coletiva que leva em conta as necessidades sociais, mas depende do
proveito que se pode obter com uma ou outra coisa. Isto, todos nós sabemos. Não
se trata, contudo, somente de uma aberração moral, ou de um defeito imputável
exclusivamente à avidez de certos indivíduos ou classes sociais. A sociedade
baseada na produção de mercadorias se apresenta a cada um como um sistema já dado.
Embora esta sociedade seja incontestavelmente um produto da ação humana, ela é
opaca e impõe a cada um as suas regras. Na sociedade da mercadoria o sujeito
não é o homem, o sujeito é o valor e a mercadoria, o dinheiro e o capital, o
mercado e a concorrência. São estas criações do homem a governar a sociedade
humana sem que nela exista sequer a consciência deste fato, porque este
processo se apresenta como "natural" aos sujeitos envolvidos. Nem
toda sociedade é, porém, uma sociedade da mercadoria, porque a mercadoria não é
uma categoria supra-histórica como o "bem" ou o "produto",
mas é uma determinada forma histórica deles.
A
sociedade da mercadoria criou forças muito maiores do que aquelas de que
dispunham outras sociedades, chegando ao ponto de poder devastar o mundo
inteiro. Mas ao mesmo tempo, o homem moderno tem ainda menos poder sobre estas
forças do que seus predecessores. Não pode fazer outra coisa senão
contemplá-las e fazer-se governar por elas. Pode-se renunciar aqui às
considerações sobre outras formas de alienação e fetichismo que reinavam em
sociedades precedentes que naturalmente não constituíam um Éden. "Não se
pode fazer outra coisa" não significa que se trata de um destino
invencível em absoluto, mas que esta é uma conseqüência lógica enquanto se vive
em uma sociedade da mercadoria.
Crítica da Arte
13-01-2009 12:43
Para Guy Debord, "(A) revolução de
que se trata é uma forma das relações humanas".
Nessa forma de
"subjetivismo", é possível reconhecer as raízes existencialistas da
teoria situacionista. Se o pensamento de Debord é radicalmente distinto daquele
que predomina na década de 60 - por volta de 68 tudo o que se acredita
"moderno" é rigorosamente anti-hegeliano, mesmo quando se pretende
marxista, enquanto ele, assumidamente, era um “hegelo-marxista” -, em
contrapartida pertence, sob muitos aspectos, à geração filosófica que se
afirmou nos anos 50. O marxismo humanista e historicista de Sartre apresenta
mais de uma analogia com as idéias dos situacionistas, ainda que eles
manifestem um extremo desprezo por esse pensador considerado um stalinista, um
eclético ou simplesmente um "imbecil" (Internationale situacionniste, n° 10, p. 75). Os situacionistas,
como Lefebvre antes deles (cf. Henri Lefebvre, Critique de la vie quotidienne, vol. I: Introduction, Paris: L'Arche, 1946; segunda edição com um novo
prefácio, 1958; vol. II: Fondements d'une
sociologie de la quotidienneté, Paris: L'Arche, 1961), criticavam o
existencialismo por partir do vivido tal como se apresenta e por identificá-lo
com todo o horizonte possível do real. Mas é inegável que já se encontra em
Sartre, ainda que em termos diferentes, os temas da "situação", do
"projeto", do vivido e da práxis. A firme convicção de Sartre de que
o homem cria na história seu próprio destino, a oposição que estabelece entre
as "coisas" e os "homens", ou seja, o papel central de um
"sujeito" forte, “desejante”, encontram eco em Debord. Mesmo que não
se possa falar de "influência" em sentido estrito, é difícil imaginar
que Debord não tenha assimilado um certo clima cultural predominante na sua
juventude, como seria inevitável. Enfim, os que se reuniram em torno da Revista
Socialisme ou Barbarie também tinham,
de alguma forma, ligações com a fenomenologia - Claude Lefort, por exemplo, era
aluno e amigo de Merleau-Ponty e se encarregou da edição de seus textos
póstumos.
Ao contrário da necessidade, o desejo é um prazer e
deve ser aumentado ao máximo. No início, a Internationale situacionniste anuncia que "a direção realmente experimental
da atividade situacionista é a constituição, a partir de desejos reconhecidos
de modo mais ou menos nítido, de um campo de atividade temporária favorável a
tais desejos. Só sua constituição pode acarretar o esclarecimento dos desejos
primitivos e o aparecimento confuso de novos desejos" (Internationale situacionniste, no. 1, p. 11); mas reconhecer, especificar e
desenvolver os próprios desejos é uma atividade consciente. Ao contrário, a
necessidade que, evidentemente, não pode ser suprimida, opõe-se amiúde ao
desejo e se presta à manipulação interessada: "O hábito é o processo
natural através do qual o desejo (satisfeito, realizado) se degrada em
necessidade [...] Mas a economia atual está em contato direto com a fabricação
dos hábitos e manipula pessoas sem desejos" (Internationale situacionniste, no. 7, p. 17). O capitalismo cria, continuamente,
necessidades artificiais que nunca foram desejos e que impedem a realização de
desejos autênticos. Para Debord, os desejos não são uma parte da vida que se abandona depois de satisfeitos para
voltar às "coisas sérias": todas as atividades humanas poderiam
desenvolver-se sob a forma de realização de desejos e de paixões. O que não é
possível sem o controle do seu próprio ambiente e de todos os meios materiais e
intelectuais, e significa, a longo prazo, a reconversão de todas as atividades
produtivas em jogo. Tal visão - alguns se surpreenderão com isso - é muito
próxima da de Marx, tão amiúde acusado de "fetichismo do trabalho".
Marx, nos Principes
d'une critique de l'économie politique, lembra a composição musical como exemplo de uma atividade que
combina o aspecto lúdico com uma aplicação séria. Aqui, novamente, vêm-nos à
lembrança autores como Benjamin e seu editor italiano, Giogio Agamben.
Como
já sublinhamos várias vezes, os diferentes marxismos sempre evoluíram no interior da socialização criada pelo
valor, limitando-se a pedir-lhe uma organização mais "justa". A
libertação dos obstáculos do trabalho abstrato, do dinheiro, do Estado e da
produção como um fim tautológico em si estava, no melhor dos casos, postergada para
um futuro muito longínquo, e somente depois que tivesse estendido para toda a
sociedade as formas sociais criadas pela mercadoria. Mesmo os marxismos
heréticos pediam, substancialmente, apenas uma gestão mais radical ou mais
democrática desse processo. Pode-se afirmar, portanto, que só nas vanguardas
artísticas e, de um modo mais consciente, no surrealismo - mas também na
tradição utopista francesa, como em Fourier - é que se encontra, embora
expressa de modo ingênuo, a exigência de uma libertação do concreto, exigência
que já remetia para além do horizonte da sociedade industrial. Somente aí é que
se encontram os rudimentos de um pensamento que supera as categorias criadas
pela forma-mercadoria. Esta herança permitiu justamente que Debord chegasse a
um patamar que iniciativas como Arguments
ou Socialisme ou Barbarie não
haviam podido atingir. Suas tentativas para rejuvenescer o marxismo não partiam
de Marx e não compreendiam então que o economicismo que combatiam podia ser
criticado de modo mais eficaz através do recurso à "crítica da economia política" marxiana. Ao
contrário, tentavam suprir os defeitos do "marxismo", tomado em
bloco, pela introdução de elementos tomados alhures. Socialisme ou Barbarie, apesar de todos os seus méritos na crítica
da União Soviética, de um lado continuava vinculada a um banal marxismo
sociologista, muito afastado de uma crítica da forma-valor ou do fetichismo e,
de outro lado, assimilava de modo não crítico diversas outras disciplinas, como
a antropologia e a psicologia. Esta combinação puramente exterior de elementos
indiscutíveis em si mesmos levava, naturalmente, a resultados pouco
satisfatórios; assim, não surpreende que os Morin e os Castoriadis, após alguns
anos, tenham abandonado completamente toda crítica social séria.
A
arte vanguardista e formalista, entre 1850 e 1930, muito mais do que uma
elaboração de novas formas, foi um processo de destruição das formas
tradicionais. Este processo tinha uma função eminentemente crítica, ligada à fase histórica em que se impunha a organização
social baseada no valor de troca. A relação entre a arte moderna e o
desenvolvimento da lógica do valor de troca era ambíguo sob mais de um aspecto.
De um lado, a arte moderna registrou negativamente a dissolução das formas de
vida das comunidades tradicionais e de seus modos de comunicação. O choque por
meio da "incompreensibilidade" visava a tornar evidente esse
desaparecimento. Já muito antes das vanguardas em sentido estrito, a nostalgia
de uma "autenticidade" do vivido, que havia sido perdida, se tornara
um dos temas centrais da arte, como em Flaubert. De outro lado, a arte viu
nessa dissolução uma libertação de novas potencialidades e um acesso a
horizontes não explorados da vida e da experiência. Entusiasmou-se por um
processo que consistia, de fato, na
decomposição das formações sociais pré-burguesas e na libertação da
individualidade abstrata das coerções pré-modernas. Entretanto, a arte concebia
essas coerções não só em termos de exploração e de opressão política - como era
o caso do movimento operário - mas igualmente sob o ângulo da família, da
moral, da vida quotidiana e também das estruturas da percepção e do pensamento.
A arte, bem como o movimento operário, não sabia reconhecer nesse processo de
dissolução o triunfo da mônada abstrata do dinheiro. Acreditava poder
reconhecer nele o início de uma desagregação geral da sociedade burguesa,
incluindo o Estado e o dinheiro, ao invés de ver aí uma vitória das formas
capitalistas mais desenvolvidas - como o Estado e o dinheiro - sobre os restos pré-capitalistas.
É assim que a arte moderna traçou, involuntariamente, a via para o triunfo
integral da subjetividade estruturada pelo valor sobre as formas pré-burguesas.
A arte moderna esperava que a desorganização dos modos de produção, realizada
pela evolução capitalista, tivesse como conseqüência lógica provocar a reversão
das superestruturas tradicionais, de Sociedade do Espetáculo a moral sexual até
o aspecto das cidades. Acusava a "burguesia" de se opor a isso com o
objetivo de conservar seu poder. Mas a arte enganava-se pesadamente quando
pensava que seria necessário reivindicar essa desorganização. "A
destruição foi minha Beatriz", de Mallarmé, realizou-se de modo muito
diferente do que pudera imaginar o poeta. A própria sociedade capitalista é que
arruinou tudo. Efetivamente, foi possível assistir à abertura de novas vias e
ao abandono dos modos tradicionais, não para libertar a vida dos indivíduos de
vínculos arcaicos e asfixiantes, mas, sobretudo, para destruir todos os
obstáculos à transformação total do mundo em mercadoria. A entrega às pulsões
inconscientes, o desprezo pela lógica, as surpresas inesperadas, as combinações
arbitrárias e fantásticas foram realizados pelo progresso da máquina
econômico-estatal, mas de um modo bem diferente do que esperavam os
surrealistas. A decomposição das formas artísticas torna-se então completamente
isomorfa ao estado real do mundo e não pode mais exercer uma ação de choque. A
falta de sentido e a afasia, como em Beckett, a incompreensibilidade e o
irracionalismo não podem parecer senão uma parte integrante e indistinta do
mundo circundante, transformando-se de crítica em apologia.
Os
representantes da parte mais consciente das vanguardas foram os primeiros a
reconhecer que a continuidade de seu trabalho crítico exigia uma revisão. Os
situacionistas eram os sucessores dessa autocrítica das vanguardas. O
"irracionalismo" declarado de inúmeros dentre eles constituía um
protesto contra o aprisionamento, nos limites de uma "racionalidade" estreita
e duvidosa, das potencialidades humanas prefiguradas no imaginário e no
inconsciente. É bastante característico do desenvolvimento deste século a
crítica do modo de vida da sociedade capitalista ter sido inaugurada pelos
surrealistas como uma crítica do racionalismo
excessivo, enquanto os sucessores dessa crítica tiveram que constatar que
mesmo o racionalismo mesquinho do século XIX, do qual os surrealistas tanto
zombaram, hoje apareceria como bem comportado em comparação com a
irracionalidade galopante do espetáculo. Debord critica nos surrealistas
exatamente seu irracionalismo, doravante
útil à sociedade existente, e insiste sobre a necessidade de "racionalizar
mais o mundo, primeira condição para torná-lo apaixonante". Se os
surrealistas apresentaram, em 1932, suas "pesquisas experimentais sobre
algumas possibilidades de embelezamento irracional de uma cidade", Potlatch apresentou, em 1956, um
divertido "Projeto de embelezamentos racionais da cidade de Paris".
Do surrealismo, os situacionistas recusavam exatamente a concepção idealista da
história que só vê nela a luta entre o irracional e a tirania do
lógico-racional (Internationale
situacionniste, n° 2, p. 33). Igualmente, os situacionistas não gostavam da
desordem como um fim em si: segundo Debord, "a vitória será daqueles que
souberem provocar a desordem sem gostar dela" (Internationale situacionniste, n° 1, p. 21).
É
possível fazer considerações semelhantes a respeito da cultura humanista e da
relação com o passado. Os situacionistas sempre desprezaram o humanismo das
boas almas que, afinal de contas, não pedem nada mais do que um pequeno lugar
no espetáculo; sustentavam que é inútil opor os maus mass-media à boa "grande cultura" ou à
verdadeira satisfação artística (Internationale
situacionniste, n° 7,
p. 21) que, na realidade, não são menos alienadas. No início os situacionistas
afirmavam que "os artistas livres e a polícia" disputam o controle
das novas técnicas de condicionamento dos homens, ao passo que "é toda a
concepção humanista, artística, jurídica, da personalidade inviolável,
inalterável, que está condenada. Nós a vemos desaparecer sem desgosto" (Internationale situacionniste, n° 1, p. 8).
Compreende-se,
então, que o conceito de "sociedade do espetáculo", onde o homem é
reduzido a um papel de espectador, imerso em uma contemplação passiva, indica
uma sociedade historicamente bem determinada, isto é, a sociedade da mercadoria
plenamente desenvolvida, assim como veio a existir, grosso modo, dos anos vinte
em diante. De fato, a primeira frase do livro A sociedade do espetáculo soa assim: "Toda a vida das sociedades modernas nas quais predominam as condições
modernas de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos";
esta frase é idêntica à primeira d’O
Capital de Marx, que começa precisamente com uma análise fundamental da
mercadoria. Debord somente substituiu a palavra "mercadorias" pela
palavra "espetáculos", com a técnica situacionista do desvio.
Compreende-se logo, isto: que o espetáculo do qual fala Debord é um estágio no
desenvolvimento da mercadoria. O segundo capítulo do seu livro se chama "A
mercadoria como espetáculo", e os primeiros dois capítulos juntos
constituem uma retomada extremamente importante da análise marxiana do
fetichismo da mercadoria.
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