Entrevista com o filósofo Michel Onfray
[texto retirado da e-revista Brasileira Escola Pública]
Demissionário
do sistema de educação do Ministério da Educação Nacional Francês e
colocando-se explicitamente dentro da tradição do século 19, o filósofo
Michel Onfray fundou, em 2002, uma universidade popular em Caen,
com o objetivo de democratizar a cultura, proporcionando gratuitamente
o saber para o maior número possível de pessoas - um novo Jardim de
Epicuro, mas fora das paredes, lançando as bases para uma autêntica
"comunidade filosófica" contra o mercantilismo dos saberes. Outros
antes dele haviam pensado em fazer isso, mas sem tomar uma atitude
efetiva-principalmente os militantes da ONG Droits Devant! (Direitos em
Frente!) quando estes ocupavam o prédio da rua du Dragon, em Paris, em
1994. Dentro da lógica de Michel Onfray, a universidade popular se
inspira na universidade tradicional (qualidade das informações,
progressão pessoal, transmissão de um conteúdo antes de todo debate).
Contudo,
ela conserva do café filosófico à abertura para todos os públicos, a
utilização crítica dos saberes e a prática do diálogo. A fórmula
precisa respeitar determinados critérios: os docentes são benévolos; as
aulas são gratuitas; os participantes totalmente livres. Participa quem
quer, sem precisar se inscrever previamente, sem condições de idade ou
de diploma, e sem precisar submeter-se a um controle dos conhecimentos.
Os curso articulam-se entre uma exposição e uma discussão entre o
professor e a plateia. Desde 2003, Michel Onfray oferece, a partir do
mesmo modelo, uma universidade popular de verão no Lazaret de Ajaccio
(na Córsega). Iguais a estas, outras surgiram, contando, em muitos
casos, com o apoio das coletividades locais: perto de Arras
(Pas-de-Calais, norte) e em Narbonne (Aude, sudoeste), sendo agora a
vez de Lyon.
Nesta entrevista Michel Onfray defende o
poder emancipador da pedagogia libertária. A miséria social e moral das
nossas sociedades impõe a necessidade de ensinar a todos um saber
alternativo e crítico, até porque muitos intelectuais deixaram de se
preocupar em tornar popular o saber filosófico.
Le Monde de L'Éducation
- Na sua obra La Communauté philosophique (Galilée, 2004) você escreve
que "o pedagogo libertário trabalha para o seu apagamento pessoal, e
cultiva o poder interrogativo de toda a subjectividade". Por que é que
este poder se encontra esgotado no aparelho escolar, quando ainda
existem certos professores que conseguem despertar e responder ao
desejo de saber dos alunos?
Michel Onfray
- A instituição escolar é esquizofrênica: ela tem um discurso, mas leva
a cabo uma prática nos antípodas daquele discurso. O discurso é este: a
escola forma a inteligência, constrói indivíduos cultivados cujo saber
lhes permitiria desenvolver juízos esclarecidos, ensina a ler, a
escrever, a fazer contas, a pensar, ela formaria o cidadão ao educá-lo
para a liberdade. Mas, a verdade, é que na prática ela negligencia a
inteligência para privilegiar o exercício da memória e da repetição
calibrado em função de um programa feito para isso. A educação nacional
ensina, sobretudo a submissão, a docilidade, a hipocrisia, o
artificial. Só assim se pode explicar que num curso de 7 anos de inglês
se consiga fazer tão poucos jovens bilíngues. O que é que se aprende
durante aquelas intermináveis horas de aprendizagem de línguas senão a
arte de bem funcionar dentro da máquina que permita a passagem para o ensino superior, e a produção de diplomas úteis para o mundo da integração social.
Le Monde de L'Éducation -
Qual é a genealogia dessa pedagogia libertária que você defende?
Estaria no prosseguimento de uma linha que vai de Epicuro a Freinet?
Michel Onfray-
Se o termo libertário significar "o que educa a liberdade", ou "o que
faz da liberdade o bem supremo", sem dúvida, que poderíamos começar com
Sócrates e a sua maiêutica, a sua arte de desenvolver as
potencialidades de cada qual e torná-las em realidades tangíveis,
podemos depois continuar com Diógenes e os filósofos cínicos que usam
um bastão para mandar embora os que procuram um mestre e a submissão.
Prosseguimos com Erasmo, o grande e imenso Erasmo, e, certamente,
Montaigne, que tanto lhe deve, para falar de várias matérias, como a
Educação e tantas outras. Passamos depois para Nietzsche que ensina que
um bom mestre é aquele que aprende aquilo que se desprende de si. Seria
preciso ainda falar, com certeza, dos autores libertários, que a
história conheceu, como Max Stirner e o seu "Falso Princípio da Nossa
Educação", Sébastien Faure, que aplicou o seu método em La Ruche, mas
ainda A.S. Neill e os seus "Jovens livres de Summerhill" que me fizeram
desejar tornar-me professor antes de me desiludir na Escola Superior de
Educação. Seria ainda preciso acrescentar o excelente livro
"Advertência aos estudantes e liceais" de Raoul Vaneigem.
Le Monde de L'Éducation - Uma certa concepção da pedagogia libertária - nomeadamente a que defende a espontaneidade do aluno - não fará o jogo
do "novo espírito do capitalismo" que pretende apoiar a participação
dos "atores"? Não contribuirá ela para o idiota útil do
"neoliberalismo"?
Michel Onfray-
Tem razão.Eu sou um ardente defensor de Maio de 68 e do espírito de
Maio, que se definia por uma revolução metafísica antiautoritária. Os
dominados punham em causa os dominantes. Os pares tradicionais -
mulheres/homens, jovens/velhos, empregados/patrões, esposas/maridos -
deixaram de ter um estatuto divino. E tudo isso foi uma coisa boa. Mas
à negação dos velhos valores não se seguiu uma positividade. Destruir é
bom se, e somente se, propusermos a seguir uma reconstrução. Os valores
libertários, por exemplo, mereceriam mais que os simples elogios da
indolência, da espontaneidade, do natural, do porreirismo generalizado
por via da desvalorização do rigor que se mostrou tão pouco democrático
quanto demagógico. Porque esta renúncia à memória, ao esforço, ao
trabalho, à cronologia, e todas essas categorias consideradas
reacionárias fizeram efetivamente o jogo do poder, que prefere ter um
rebanho de inculto embrutecidos que indivíduos apetrechados com o saber
e a cultura. A pedagogia libertária não é a pedagogia liberal pós-anos
1960 que deixa o jovem livre na turma, e que dá plenos poderes à
competição entre classes sociais, e que é, ela própria, geradora de
reprodução social.
Le Monde de L'Éducation -
"Passamos de um ensino autoritário a um ensino clientelar", escreve
Raoul Vaneigem num texto recente sob o título Modeste Propositions aux
Grévistes ( Verticales,2004). "O endoutrinamento suscitava, ao menos, a
revolta, a propaganda estimulava o seu oposto, o desejo de pensar de
outra forma. O feiticismo do dinheiro enfraqueceu o pensamento que ruge
e incomoda." Concorda com esta análise?
Michel Onfray-
Vaneigem é um amigo que me estimula - ele acaba por me ultrapassar pela
esquerda! - mas não partilho o seu otimismo que está, de resto, na
gênese do seu radicalismo político: no meu entender, a autoridade
produz uma submissão massiva, pois o medo, o temor e o desejo de
servidão voluntária são grandes. A revolta não é gerada pela ditadura -
se assim fosse, seria preciso desejarmos a ditadura enquanto momento
dialético das revoltas lógicas - mas por temperamentos rebeldes,
revoltados, insubmissos gerados por razões existenciais que só uma
psicanálise à maneira sartriana - descobrir o projeto original -
permitiria compreender. Conheci períodos da minha vida - nomeadamente
os sete anos de pensionato, quatro dos quais no orfanato dos salesianos
- que fizeram de mim aquilo que sou hoje, mas que também fizeram uma
multidão de indivíduos castrados da vida e orgulhosos de o ser. Uma
mesma causa não produz felizmente os mesmos efeitos em todos nós. É
preciso levar em consideração o prazer de estar submetido, tal como
existe com tantas pessoas.
Le Monde de L'Éducation -
É procurando retomar o que há de melhor nos cafés-filosóficos e nas
Universidades (a liberdade dos primeiros e a seriedade da segunda), ao
mesmo tempo em que rejeita o que há de pior em cada qual (o
extravasamento de um lado e a secura do outro), que você decidiu fundar
a Universidade Popular de Caen. Mas também com o objetivo de retomar e
prosseguir o ideal nascido no tempo da questão Dreyfus. Em que medida é
ela um meio de lutar contra a situação de crise por que a França
atravessa: miséria social, racismo, bloqueios nacionais-populistas etc?
Michel Onfray- O saber é um poder.
Posto isto, é preciso um saber específico suscetível de permitir a
libertação e não a alienação. A filosofia não é de fato um instrumento
de libertação: ensinar as ideias platônicas, falar da Cidade de Deus
de S. Agostinho, das teses tomistas, da aposta de Pascal, do
ocasionalismo de Malebranche, da angústia de Kierkegaard e de tantas
outras matérias da história da filosofia ajudam mais a manter o poder
instalado e permitir o domínio do cristianismo do que a emancipar o
aprendiz em filosofia. Daí o interesse em ensinar quer um saber
alternativo, quer um saber clássico, mas de maneira alternativa, isto
é, crítica. A subversão cínica, o hedonismo cirenaico, a libertação
epicurista, a alegria gnóstica, só para ficar na Antiguidade, são
ilustrações de saberes alternativos; ou então, falar dos saberes
clássicos, mas de maneira alternativa: mostrar que o conceito errôneo
de pré-socrático, desvalorizando os predecessores socráticos, pressupõe
uma escrita platônica da história da filosofia, explicar as razões da
evicção do materialismo de Demócrito (cuja obra completa Platão queria
queimar em auto-de-fé). Estes saberes permitem construir uma
inteligência crítica, mas também realizar um trabalho sobre outras
matérias, nomeadamente as que estão associadas a essa crise que
referiu.
Le Monde de L'Éducation -
Você costuma recordar que intelectuais como Alain, Péguy, Bergson e
tantos outros, frequentaram e animaram cursos de educação popular,
lançados pelo tipógrafo anarquista Georges Deherme. Os intelectuais dos
anos 2000 esqueceram o seu papel de educadores e a ideia de tornar
popular, a filosofia?
Michel Onfray-
A nossa época midiática produziu dois tipos de intelectuais: o
primeiro, especializou-se na miséria limpa, uma miséria longínqua que
permita uma postura declamatória à maneira teatral, reproduzida logo de
imediato pelos mídia. Tendente a ser midiatizada, e não precisando de
nenhum outro compromisso que não seja o verbo, a carta postal ou a
consulta de um livro, ela permite tocar o trompete dos grandes
princípios maiúsculos: Humanidade, Liberdade, Direitos do Homem etc. O
segundo, ocupa-se antes da miséria suja, a que envolve os explorados,
os operários, os miseráveis e os excluídos do sistema, as vítimas e
outros dejetos do liberalismo, a ideologia defendida pela maior parte
dos primeiros. Os intelectuais dos anos 2000 não cuidam da educação
popular nem de tornar popular a filosofia: o seu saber é utilizado para
fins financeiros, traduzíveis em moedas reais ou simbólicas, mas nunca
com o objetivo de uma crítica social.
Le Monde de L'Éducation - Um curso magistral pode ser libertário?
Michel Onfray-
Sim, se o magistério do curso magistral for aquele que indiquei ainda
há pouco: um mestre libertário que cuida antes de tudo em cartografar e
de identificar o conjunto das situações que estão em jogo, fornecendo
depois uma bússola e o seu modo de emprego, isto é, convidar cada qual
a fazer a sua própria viagem.
Le Monde de L'Éducation
- A Universidade popular histórica acabou por desaparecer antes da
Primeira Guerra Mundial em razão de causas e desinteligências internas.
A Universidade popular tem tido um grande sucesso. Como evitar os
perigos?
Michel Onfray- A
Universidade popular é um organismo vivo e, como tal, mortal. Os três
anos da sua existência já permitem identificar alguns vírus, erros e
ataques. Tudo normal. A Universidade popular tem tido efetivamente um
grande sucesso público e popular, gerou uma verdadeira energia
alternativa, propõe um intelectual coletivo - para usar a fórmula de
Bourdieu - eficaz, que logo perturba e incomoda. É normal que a nossa
aventura atraia invejas e revele os medíocres, os invejosos, e outras
figuras de ressentimento que não existem e não vivem senão por e para a
destruição. Mas nós somos uma comunidade de amigos, no sentido
epicurista, que vamos experimentando o verdadeiro poder da amizade
epicurista. E, depois, sejamos nietzscheanos, o que não mata
fortalece-nos. Para o resto, só o Deus das universidades populares
poderá dizer se a experiência desaparecerá - sim, porque ela sempre
desaparecerá -, seja como vítima da síndrome do recém-nascido ou do
catarro dos velhos, seja por suicídio próprio na flor da idade ou por
um esgotamento centenário.
Le Monde de L'Éducation - Uma educação "elitista para todos". Esta fórmula do dramaturgo Antoine Vitez adaptada à educação mantém-se atual?
Michel Onfray-
Mais atual do que nunca. Gosto mesmo do oxímoro, uma figura de estilo
que, associando dois termos aparentemente contraditórios, gera um
sentido novo: universidade popular é realmente um oxímoro espantoso! O
elitismo para todos, também. Percebe-se que, para além da pura e
simples justaposição verbal, para além do simples jogo de palavras, uma
nova significação emerge à luz do dia. A expressão elitismo para todos
supõe uma outra definição de cada um dos termos; trata-se de dar o
melhor ao maior número, porque o melhor existe, sem dúvida, mas
normalmente só é dado aos melhores, pelos menos, aqueles que assim são
qualificados pela máquina social. Quando é destinado a todos, ao maior
número - é essa a minha definição de popular, e também a de Michelet -
o elitismo brilha com outra clareza, que muitos se têm esquecido, e que
é a da luz do iluminismo.
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