A Soma é um processo terapêutico-pedagógico.
Estas duas dimensões de nosso trabalho estão em permanente articulação,
onde a perspectiva terapêutica abre descobertas pedagógicas e
vice-versa. Neste sentido, observar como se dá este processo, quais os
fatores envolvidos e, sobretudo a ética e a política presentes nas
práticas terapêuticas e pedagógicas são de fundamental importância para
nós.
Defendemos a idéia de uma metodologia
que se apóia na pedagogia libertária como paradigma de uma prática que
busque combater os mecanismos de poder, normalmente presentes nas
relações de saber. Assim, para nós, as reflexões libertárias presentes
neste referencial de educação norteiam nosso trabalho.
Durante um período em torno de 10 anos, realizamos nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro o “Curso de Pedagogia Libertária da SOMA”.
Ele representou um encontro onde buscávamos a construção de novos
espaços de debate de idéias e de experiências de convivência. Reunindo
pessoas com desejo de ampliar seus conhecimentos e suas ações, criamos
coletivamente um processo de aprendizado onde tentávamos fugir da
mesmice da pedagogia tradicional autoritária. Neste período, o Coletivo
Anarquista Brancaleone organizou os temas do Curso a partir desta
proposta de renovação constante e dos interesses despertados na
realidade cotidiana. Convidamos pensadores e ativistas para discutirmos
juntos o papel da psicologia na atualidade, a visão libertária do amor,
as manifestações anti-globalização, a arte enquanto expressão da
liberdade e outros importantes temas correlatos à prática da Soma como
terapia anarquista.
Leia abaixo o texto do escritor e
somaterapeuta Roberto Freire sobre Pedagogia Libertária. Este material
foi extraído de seu livro que leva o mesmo nome, e que baseia-se e
retrata a experiência do curso que redimencionou a prática da Soma.
Pedagogia Libertária
por Roberto Freire
por Roberto Freire
Nas ditaduras, o poder é tomado pelas
armas, pela fome e pela morte. O capitalismo se utiliza da democracia
para chegar ao poder pela compra dos votos e pela corrupção da justiça.
De qualquer modo, sempre autoritarismo e violência na gênese do poder.
Mas a manutenção do poder do Estado nas
ditaduras ou nas democracias capitalistas é garantida não mais
diretamente pelas armas e pelo dinheiro. Vem sendo garantida pela
família e pela escola, por meio da pedagogia autoritária, apoiada e
estimulada pelo Estado autoritário.
Wilhelm Reich dizia que “a familial
burguesa capitalista espelha e reproduz o estado”. O mesmo se pode
dizer das escolas onde também se pratica a pedagogia autoritária.
Educadas dessa maneira, as crianças e os jovens tornam-se obedientes e
submissos aos pais, aos professores e ao Estado.
Em verdade, tanto a pedagogia doméstica
quanto a escolar, quando autoritárias, visam reprimir nas crianças e
nos jovens o sentimento e a necessidade da liberdade como condição
fundamental da existência. Sem esse sentimento e sem essa necessidade,
desaparece nas pessoas o espírito crítico e o desejo de participação
ativa na sociedade. São os dependentes. Desgraçadamente, são a maioria.
Na vida familiar, três são as armas
principais da pedagogia autoritária: primeiro, o pátrio poder (os
filhos devem obedecer aos pais, por lei, até a maioridade), o que é um
abuso e uma violência tornados legais; segundo, o amor, sentimento
natural de beleza e gratidão que os pais transformam em instrumento de
dominação e de posse sobre os filhos, fazendo com que se submetam às
suas vontades chantagísticas, usadas para não sentirem a dor do remorso
e a do abandono; terceiro, pela dependência dos filhos ao dinheiro dos
pais e pela ameaça, também chantagística, de afastá-los de casa sem
nenhum recurso financeiro.
Crianças que foram educadas sob uma dessas três formas (ou sob todas) de autoritarismo entram na escola já deformadas e facilmente projetam nos professores o poder dos pais sobre si. Não conseguem criticá-los e, se o fazem, não transformam a crítica em ação, a não ser contra si mesmos, tornando-se indiferentes ao conhecimento e apresentando baixo rendimento escolar.
Crianças que foram educadas sob uma dessas três formas (ou sob todas) de autoritarismo entram na escola já deformadas e facilmente projetam nos professores o poder dos pais sobre si. Não conseguem criticá-los e, se o fazem, não transformam a crítica em ação, a não ser contra si mesmos, tornando-se indiferentes ao conhecimento e apresentando baixo rendimento escolar.
Homens e mulheres criados no ambiente
familiar e escolar autoritários são os que garantem a manutenção das
ditaduras e do capitalismo, bem como as falsas democracias. Eles
“espelham e reproduzem o Estado” são pessoas neuróticas, fracas,
despreparadas, incompetentes e impotentes para a vida pessoal plena e
social satisfatória. Servem apenas para se submeter, obedecer, entrar
em linha de montagem na produção, ser massificadas pela mídia e votar a
favor dos poderosos, mostrando–se indiferentes, se conseguem um
trabalho que os sustente, à miséria da maioria. Como conseguiu estudar
ou trabalhar no sistema, pode suportar, indiferente, a convivência com
os setenta milhões de conterrâneos que vivem na mais completa miséria.
Diante de um quadro desses, torna-se
necessário, absolutamente indispensável, refletir sobre a possibilidade
de interferência no sistema político burguês capitalista, especialmente
sobre a sua pedagogia autoritária. É urgente descobrir alguma forma de
atuação libertária em todos os níveis, desde as creches, passando pelas
escolas primárias e secundárias, chegando, por fim, à universidade.
A luta contra a pedagogia autoritária praticada pela família burguesa capitalista é algo que estamos praticando há trinta anos, por meio da Soma. Hoje temos uma equipe de somaterapeutas trabalhando no Brasil e na Europa, combatendo a pedagogia autoritária das famílias e das escolas.
A luta contra a pedagogia autoritária praticada pela família burguesa capitalista é algo que estamos praticando há trinta anos, por meio da Soma. Hoje temos uma equipe de somaterapeutas trabalhando no Brasil e na Europa, combatendo a pedagogia autoritária das famílias e das escolas.
Em 1994, iniciamos na Casa da Soma, em
São Paulo, um curso bimestral de pedagogia libertária. A ele comparecem
as pessoas ligadas à Soma. O curso tem a duração de um fim de semana, e
trabalham-se de oito a dez horas por dia, com a prática diária da
capoeira Angola. Vou procurar sintetizar neste capítulo os temas
debatidos e as experiências realizadas neste curso. Muitos dos
conceitos expostos aqui nasceram dos debates, das contribuições e das
pesquisas dos participantes do Curso de Pedagogia Libertária da Soma.
Trata-se, pois, de um trabalho de produção autogestiva que depende
igualmente da criatividade individual e da coletiva, bem como da
interação dinâmica entre elas.
Para o nosso primeiro encontro,
colecionei algumas frases, e criei outras para servirem de estímulo à
discussão, buscando descobrir uma definição de pedagogia libertária em
oposição à pedagogia autoritária praticada no Brasil.
Vou colocar as frases uma depois da
outra, como fiz no curso, quando foram escritas em cartazes colados nas
paredes da sala. O leitor deve ler as frases dando um tempo para fazer
a reflexão antes de fazer a leitura da seguinte.
Se não for libertária, toda pedagogia é autoritária.
Não há educação libertária que não seja auto-educação.
Precisamos aprender com os outros apenas o que não nos foi possível aprender sozinho.
A necessidade de aprender é biológica, ela se faz sempre de dentro para fora.
O impulso pela busca do conhecimento é mais importante que a coisa conhecida.
Perguntar é o ato mais
espontâneo e o único realmente indispensável na formação cultural. Não
se é livre para perguntar em ambiente autoritário.
Ensinar o que não foi perguntado, além de inútil, é uma espécie de estupro cultural.
As teorias educativas consistem
em tirar alguma coisa antes de dar, censurar antes de oferecer modelos
válidos, proibir e impor normas antes de socializar a experiência.
Somos todos diferentes uns dos outros, inclusive pelo interesse em conhecer.
A criança aprende tudo sozinha. Basta não impedi-la. Só precisamos ensinar-lhe detalhes tecnológicos.
A auto-educação pode receber
ajuda, sugestão que se torna educativa na medida em que ativa forças
latente ou já em ação no indivíduo.
A pedagogia libertária se
baseia no gosto espontâneo das crianças pelo conhecimento e em sua
capacidade natural de criticar o que lhes ensinam. A pedagogia
autoritária visa fundamentalmente destruir esse potencial crítico.
A necessidade de conhecimento é compulsiva, como a de liberdade e a de oxigênio.
Cada pessoa, após a
leitura, estabelece seu próprio conceito de pedagogia libertária. Então
passamos a trabalhar as dificuldades e os caminhos possíveis para sua
realização na prática cotidiana. O professor José Maria Carvalho Ferreira,
da Universidade Técnica de Lisboa – Portugal, participou de um dos
cursos e nos deixou um texto com suas contribuições. Dele vamos extrair
os pontos que nos pareceram mais importantes.
“A pedagogia pode ser entendida como um
meio de aperfeiçoamento do comportamento humano, nos domínios físico e
cognitivo, de forma a potencializar a sua capacidade de assimilação do
conhecimento. Como um modelo educacional-instrumental, a pedagogia
serve fundamentalmente para melhorar os processos de aprendizagem
cultural e socializar o indivíduo e grupos que vivem nas instituições
escolares.
Hoje, embora mantenha laços de
indissolubilidade, com o ser humano e a sociedade, tende a funcionar
como um mero instrumento de adaptação racional dos seres humanos aos
desígnios das instituições escolares, do Estado e do mercado. Torna-se
difícil circunscrever a função da pedagogia exclusivamente no
indivíduo, prescindindo de relacioná-la com todo envolvimento cultural,
político, social e econômico.
Contemporaneamente, persiste uma grande
dificuldade em descortinar o sentido e a lógica de uma pedagogia que se
ideologiza como espontânea, criativa e livre, quando na maioria dos
casos ela não é mais do que um fenômeno de castração do ser humano a
serviço da racionalidade instrumental do mercado e do Estado.
Comparando com a pedagogia libertária,
pode-se dizer que de um lado temos a individualidade, a liberdade e a
espontaneidade e a criatividade dos indivíduos e, do outro, a
instrumentação e a racionalidade do mercado, do Estado, do poder e da
autoridade a agir e a intervir sobre o comportamento do indivíduo de
forma tutelar e hierarquizada.
Iniciando sua análise histórica sobre a
pedagogia na Europa no período da Reforma e do Renascimento, Ferreira
mostra o importante papel da Igreja Católica atuando de modo
autoritário, no sentido em que a razão, a liberdade e a espontaneidade
criativa das crianças são impedidas desde a infância.
Quando em meados do século 18 irrompe o
processo de industrialização e de urbanização das sociedades, a
pedagogia sofre grande transformação, passando a preparar os cidadãos
para as novas funções e tarefas industriais, comerciais e agrícolas,
assim como os transportes e as comunicações, qualificando mãos-de-obra
específicas. O mundo da produção, consumo e distribuição de mercadorias
exigia um tipo de conhecimento que não se adequava mais a um saber
contemplativo da ordem divina.
O Estado passou, assim, a se
responsabilizar por uma educação científica e que atendesse a seus
interesses do mercado. E isso utilizando métodos e técnicas que
potencializavam a percepção do conhecimento num sentido competitivo e
hierárquico. A posição do aluno passa para uma função de passividade e
subalternidade criativa.
Essa pedagogia potencializava relações
hierárquicas de dominação do professor sobre os alunos no processo de
aprendizagem de conhecimentos. Assim veio até hoje a pedagogia
autoritária refletindo a organização e o funcionamento dos Estados
capitalistas e formando cidadãos a ela adequados.
Nesses períodos históricos sempre
apareceram na Europa experiências educacionais e pedagógicas
libertárias. Seus valores principais são: solidariedade, liberdade,
autogestão, espontaneidade e criatividade integrados num todo social
harmônico. Elas nunca separaram a educação e a pedagogia do todo social
em que se integram. O objetivo dessas teorias e experiências era a
extinção das relações de dominação e de exploração que subsistem entre
professores, alunos e funcionários que trabalham e vivem nas
instituições escolares, de forma a permitir que a espontaneidade, a
liberdade, a criatividade e a responsabilidade natural dos indivíduos
pudessem emergir para configurações sociais integradas num modelo
autogestionário de características libertárias.
Na Europa Ocidental, as experiências
históricas e as teorias emergiram desde o final do século 18 até os
nossos dias de pensadores anarquistas: William Godwin (1756-1836), Max
Stirner (1800-1856), Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), Mikhail
Bakunin (1814-1876), Paul Robin (1837-1912), Pyotr Kropotkin
(1842-1921), Sebastien Faure (1859-1909).
Para Godwin, nenhum Estado ou outro
tipo de autoridade moral (professor, Deus etc.) poderia pedagogicamente
sobrepor-se aos desígnios soberanos do aluno como ser essencialmente
livre e criador. Para conquistar essa liberdade e felicidade criadoras
,é preciso que o ser humano, desde criança, ganhe o hábito e crie o
método de aprender por si mesmo, sem depender de qualquer tutela moral,
política ou religiosa. Godwin era as escolas do Estado, porque isso
lhes estimulava o poder sobre os alunos.
Para Stirner o que importava mais era a
soberania absoluta do indivíduo em face de todos os poderes ou
autoridades exteriores a si mesmo. Só o ser humano, enquanto entidade
ontológica única poderia evoluir para uma soberania de indivíduos
livres que constituiriam e desenvolveriam pedagogias e educações
múltiplas, mas simultaneamente passíveis de se integrar numa mesma
síntese societária anarquista.
Proudhon foi um dos autores anarquistas
que mais preocupação tiveram em relação à pedagogia libertária, na
medida em que considerava o trabalho como fonte criadora da ordem
social econômica da sociedade futura. O seu projeto educacional e
pedagógico está muito ligado ao mundo da produção. Para libertar o
trabalho pedagógico da opressão e da exploração capitalista e estatal,
numa sociedade libertária, a instrução e a educação dos trabalhadores
assumiam uma importância capital. Para ele haveria três modalidades
para praticar a educação e o ensino: pelos pais nas famílias e
domicílios, pelas escolas privadas em obediências aos seus
particularismos profissionais, ideológicos e geográficos e, ainda, as
escolas públicas com maior abrangência social, baseadas em pressupostos
federalistas. As relações entre professor e alunos inscreviam-se num
quadro estrutural autogestionário, mutualista e federativo. Proudhon
defendia a “escola-oficina”, que permitia um aprendizado politécnico.
Bakunin inscrevia a educação e a
pedagogia como partes integrantes da revolução social. Mais do que
privilegiar as relações entre professor-aluno havia que abolir o Estado
e as relações capitalistas em níveis de toda sociedade e, logicamente,
o tipo de autoridade hierárquica de dominação que emerge da instituição
escolar.
Para Kropotkin era importante formar
jovens de forma a torna-los responsáveis e ativos enquanto agentes de
transformação radical da sociedade capitalista. A pedagogia e a
educação libertárias deveriam desenvolver-se em sintonia com a
assimilação de um conhecimento compatível com as necessidades de
produção, de distribuição e de consumo de bens e serviços inerentes ao
funcionamento de uma sociedade libertária.
No campo das experiências libertárias,
a primeira foi realizada por Paul Robin no orfanato Cempuis, na França,
entre 1880e 1894. Embora enquadrado institucionalmente no sistema
público da França, fundamentou-se na revisão libertária de Robin como
professor. Todos os princípios libertários foram postos em ação, mas
tal liberdade, tal criatividade e tal autogestão incomodaram a Igreja e
o Estado. E a escola do Cempuis foi fechada depois de ataques
difamatórios.
Em 1904, Sebastien Faure criou uma
escola denominada A Colméia. Militante anarquista radical, ele procurou
dar à sua escola um caráter nitidamente libertário, sobretudo na
autogestão. Criou também a cooperativa A Colméia, por meio da qual o
ensino tratava das relações de produção, de consumo e de educação por
mecanismos autogestionários e libertários. A coeducação e a relação de
liberdade e de igualdade entre rapazes e moças eram também estimuladas.
Financiada por Faure e pelo sindicalismo revolucionário francês, com o
advento da Primeira Guerra Mundial A Colméia teve que fechar as portas
em princípio de 1917.
Francisco Ferrer foi sem dúvida a
figura mais proeminente no campo da luta por uma educação e uma
pedagogia libertárias. Por sua perspectiva racionalista e laica, logo
recebeu com a criação da sua Escola Moderna a oposição da igreja. A
escola começou a funcionar em 1904, em Barcelona, depois seu projeto
pedagógico ganhou vários outros pontos da Espanha, chegando até o
Brasil. Numa sociedade como a da Espanha naquela época, modelada
psicológica e fisicamente pelo poder de espírito despótico do ensino
clerical da Igreja Católica, criar e dinamizar um projeto educacional e
pedagógico libertário por todas as regiões da Espanha revelavam-se no
mínimo um perigo e uma afronta a todos os poderes instituídos: Estado,
burguesia e Igreja. A escola era financiada pelos pais dos alunos e
pelos alunos adultos, dependendo da capacidade financeira de cada um.
Com o fuzilamento de Francisco Ferrer
em 1909, em Barcelona, por ordem de Afonso XIII, a experiência
libertária da Escola Moderna sofreu um duro golpe. Mas isso não
impediria que a sua força simbólica no campo das experiências
pedagógicas e educacionais libertárias deixasse saldos para sempre no
imaginário coletivo anarquista, quer na Espanha, quer no resto do mundo.
Alguns impulsos importantes para o
desenvolvimento da pedagogia libertária ocorreram também durante a
Revolução Espanhola de 1936. Houve o projeto pedagógico apresentado
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNT) no Congresso de
Saragoza, em maio de 1936.
Era o projeto da Escola Nova Unificada,
que não conseguiu se realizar plenamente, embora na região da
Catalunha, onde a CNT exercia certa influência, tenha sido implantado.
A experiência da Escola Nova Unificada se encerrou junto com o epílogo
da Revolução Espanhola em 1939.
De todas as escolas libertárias
européias, vale a pena ainda citar a criada por Alexander Neil,
iniciada em 1921, Summerhill (Inglaterra) e as Comunidades Escolares de
Hamburgo, iniciadas em 1919 na Alemanha e, finalmente, o Coletivo
Paidéia em Mérida (Espanha), mais recentemente”.
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