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Revista CULT – Ed. 122
Cem anos de Evolução
Evolução criadora, livro polêmico que tornou Henri Bergson um dos autores franceses mais traduzidos no mundo, revolucionou a categoria filosófica de tempo
por IZILDA JOHANSON
No início de um ensaio de 1930, “O possível e o real”, Henri Bergson declara que pretende retomar um assunto sobre o qual já falara e que, mais que isto, continuava a comprovar a todo instante, a saber, o jorro de criação contínua e de imprevisível novidade que parece se seguir no universo.
Aprofundar o tema da criação associada à imprevisibilidade vinha sendo, desde sua primeira obra, os Ensaios sobre os dados imediatos da consciência (1889), até Evolução criadora – cuja publicação completou 100 anos e pela qual recebeu o Nobel de Literatura de 1927 – algo bastante inquietante e inovador para a filosofia e ciência da época. Sobretudo se levarmos em conta a peculiaridade bergsoniana de propor não simplesmente teorias ou discursos sobre seus objetos de investigação, mas de promover um conhecimento que nada deve em rigor ao conhecimento científico, que não rivaliza com a ciência, mas que diante dela afirma sua especificidade; uma modalidade do saber que não se separa da experiência efetiva, do vivido ou do que é passível de ser vivido.
Vale a pena lembrar que o rápido e decisivo progresso da ciência positiva ao longo do século 19 assegurou uma soberania incontestável do saber científico. Setores do conhecimento procuravam estabelecer leis inflexíveis e determinismos rigorosos. O mundo, dessa perspectiva, afigurava-se a um vasto sistema mecânico, no qual causas e efeitos combinariam de tal maneira que a previsão do futuro e mesmo das ações humanas passariam a ser apenas questão de adequação a uma inteligência suficientemente aplicada. Àqueles que pretendessem reservar ao espírito sua liberdade, o associacionismo respondia alegando que as sensações, os sentimentos e as idéias são produtos de atividades orgânicas e que estas também se submetem às leis e ao princípio de causalidade, tanto quanto o movimento dos astros estaria em relação às leis de Newton. Dentro deste quadro, caberia à filosofia apenas aceitar a sistematização pragmática do pensamento; à psicologia, os mecanismos associacionistas; à arte, a primazia da técnica e dos novos meios tecnológicos, colocando o elemento propriamente criador a reboque destes últimos; e à vida em geral nas cidades, no trabalho, na própria família, a conformidade pragmática aos determinismos sociais e políticos que a revelação de “leis naturais” em sociedade produz.
Spencer e o evolucionismo
O evolucionismo do britânico Herbert Spencer (1820-1903) é bastante característico desse cenário. Procurava aplicar o conceito então recente de evolução também à psicologia e à sociologia. Pela marcha contínua do homogêneo ao heterogêneo, do difuso ao denso, ou da matéria mais simples e rudimentar à mais complexa, antes mesmo de Darwin, Spencer explicava, a partir da idéia de “sobrevivência dos mais aptos”, a progressão como diferenciação e diversidade de seres e espécies na natureza, e também de órgãos e instituições da sociedade. A chave para a compreensão dessa ciência estava na idéia de progresso. E foi essa idéia que acabou levando Bergson à filosofia de Spencer, logo no início de seus estudos. Mas apenas até se deparar com a idéia de progresso ali compreendida, as quais em seu fundamento, diria posteriormente Bergson, ignora, assim como as demais ciências positivas, a verdadeira natureza do tempo.
No aprofundamento de seus primeiros estudos de “filosofia da ciência”, Bergson se deparou naturalmente com algumas das questões fundamentais desta última, entre elas, a do tempo, comum à mecânica e à física. Foi a análise da noção de tempo que virou pelo avesso seu propósito investigativo, como declara tempos depois à William James, numa carta de maio de 1908: “Percebi, para meu grande espanto, que o tempo científico não dura, (…) que a ciência positiva consiste essencialmente na eliminação da duração”. Ora, o essencial no tempo é durar, nos diz Bergson. Ou melhor, o tempo é essencialmente ato, ação contínua, é o que garante a passagem, a transformação, a evolução mesma de tudo o que existe. De modo que eliminar a duração do tempo é o mesmo que concebê-lo em termos simbólicos apenas, isto é, representacionais, como sucessão de instantâneos justapostos, uma seqüência de pontos a serem percorridos numa linha imaginária: algo fixo portanto, imóvel e passível de mensuração.
Mas se a ciência e mesmo o senso comum lidam com o tempo dessa maneira inerte, isso não é sem razão. Pois é preciso imobilizar, fixar o real para que dele possamos fazer previsões, estudos e intervenções nos eventos que perpetuam a vida, a fim de garantir a própria sobrevivência da espécie. Contudo, Bergson enfatiza que a perspectiva da ação não é a mesma da do conhecimento, ou melhor, que se por um lado é justificável e mesmo desejável, em virtude das necessidades práticas, conceber o tempo em termos espaciais – e não duracionais -, por outro, isso não significa que seja essa sua realidade. Em outros termos, se o que se busca é um conhecimento acerca do que é, será preciso então reconhecer a verdadeira natureza do que se investiga; em segundo lugar, e como conseqüência, deve-se identificar os falsos problemas que resultam desse engano fundamental, para, enfim, compreender e poder gozar das satisfações que porventura esse conhecimento mais preciso da realidade possa proporcionar – nisto consiste, no mais, a tarefa primordial da filosofia, segundo Bergson.
Um novo conceito de tempo
Entre esses falsos e, por isso mesmo insolúveis problemas resultantes da inobservância da natureza própria do tempo, da distinção entre duração e sua representação espacial, está o impasse entre mecanicismo-finalismo, relativo às investigações acerca da evolução da vida à época de Evolução criadora. A tese mecanicista concebe o universo como uma estrutura comparável a uma grande máquina, cujas peças se engrenam de modo a obedecer leis causais rígidas e previsíveis. É antípoda do finalismo, segundo o qual existe um princípio ordenador da realidade orientado a um fim de especialização e aperfeiçoamento das espécies. Mas, segundo Bergson, mecanicismo e finalismo coincidem num ponto fundamental, que os levam às suas respectivas aporias: o futuro, para ambos, é previsível, porque está sempre contido no presente, sob a forma de um possível que antecede o real.
A este pressuposto Bergson responde ressaltando que o tempo é processo, ou seja, é justamente aquilo que impede que tudo seja dado de uma só vez. Prognósticos são feitos a partir de um tempo representacional, espacializado, inerente à lógica da retrospecção, que transforma a idéia de algo dado no presente – uma descoberta científica, uma obra de arte, uma mobilização social, por exemplo – como aquilo que no passado já existia, sob a forma de possibilidade. Então, se a realidade presente já estava contida, sob a forma de um possível, no passado, também a realidade futura deverá estar contida no presente, sob o mesmo signo da possibilidade. Mas se tempo é processo, elaboração, indaga Bergson, a existência do tempo não provaria que há indeterminação nas coisas?
Um dos propósitos de Evolução criadora é mostrar que a Totalidade possui a mesma natureza do indivíduo, a saber, a de um movimento, um impulso de liberdade criadora que se insere e transforma a matéria incessantemente. E se a Totalidade pode ser alcançada e compreendida, deverá ser por um aprofundamento tanto mais completo de si. De sorte que a distinção entre espaço e duração possui um alcance ainda maior e certamente mais valioso para todos e cada um de nós hoje e sempre: ela diz respeito à nossa própria existência. Trata-se, portanto, da compreensão de uma distinção que não é apenas teórica: nossa experiência é o próprio ato de continuação e de conservação na duração.
É a essa experiência que Bergson se refere no início de “O possível e o real” e a qual a Evolução criadora desenvolve a fundo: a própria imprevisibilidade, realidade que exige de nós que sejamos criadores, ainda que a matéria inerte constitua os obstáculos da criação. Assim como a natureza, que cria seres e formas incessantemente, somos continuamente impelidos pelo impulso de vida à criação: de improváveis e insuspeitáveis formas de arte; de nosso próprio caráter; de sociedades inteiras, com seus valores e princípios; e de um mundo onde viver seja mais do que repetir e reproduzir mecanismos consolidados que comprovadamente não proporcionam a verdadeira satisfação do espírito.
Izilda Johanson é autora do livro Arte e intuição: a questão estética em Bergson (Humanitas, 2005)
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