quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A opção pelo não-mercantil Jean Marie Harribey

Le monde diplomatique - novembro 2008


CRISE & ALTERNATIVAS


A opção pelo não-mercantil
A expansão dos serviços públicos gratuitos pode ser uma grande saída, num momento de recessão generalizada e desemprego. Mas para tanto, é preciso vencer preconceitos e demonstrar que a economia não-mercantil não depende da produção de mercadorias. Neste debate teórico, enfrentaremos os liberais e... os marxistas ortodoxos

Jean-Marie Harribey

Em meio a uma crise financeira de enorme gravidade, a ofensiva contra os serviços públicos, a proteção social e o direito trabalhista prossegue sem tréguas. Espaços que até agora não haviam sido contaminados pela lei da rentabilidade e pela obsessão com o lucro [1] estão sendo duramente pressionados. É o caso da esfera não-mercantil – aquela que produz serviços que não estão à venda no mercado, mas cuja remuneração é paga coletivamente, por meio de impostos e cotizações sociais. Ou arriscam-se a entrar em estado crítico, esmagados pelo peso das privatizações, da diminuição do número de funcionários públicos e da redução dos impostos pagos pelo capital e os mais ricos.

Há dez anos, a primeira palavra de ordem do movimento contra a globalização liberal foi “o mundo não é uma mercadoria”. A mensagem dizia, na verdade, que “ele não deve ser transformado numa mercadoria”. Ora, todos os serviços não-mercantis — até mesmo a educação pública e o acesso universal aos tratamentos médicos — estão ameaçados desde que o capitalismo começou a reduzir o raio de ação desses setores, ampliando o da acumulação privada. Infelizmente, não existe hoje nenhuma teoria capaz de fazer frente a esse tipo de disfarce ideológico do discurso econômico liberal. Até a teoria marxista tradicional, a priori pouco suspeita de complacência, permanece agarrada ao dogma segundo o qual os serviços não-mercantis são financiados pela cobrança de tributos sobre a mais valia produzida no setor capitalista. Em conseqüência disso, os trabalhadores desses serviços são declarados improdutivos, [2] e toda tentativa de teorizar o não-mercantilismo encontra uma barreira intransponível, uma vez que a “não-mercadoria” dependeria da existência da mercadoria.

O que está em jogo aqui é a necessidade de forjar uma ferramenta conceitual alternativa. Em primeiro lugar, será preciso passar por uma desconstrução sistemática da visão habitual, compartilhada tanto pelos liberais quanto pela ampla maioria dos pensadores que se dizem marxistas. Ainda que a análise da mercadoria empreendida por Karl Marx no começo de O Capital forneça instrumentos para uma crítica da mercantilização do mundo, o marxismo tradicional deixou abandonado aquilo que poderia constitui uma proteção contra ela.

Trata-se, portanto, de elaborar uma economia política crítica, cujo objetivo é teorizar sobre a esfera não-mercantil — que deve pouco a pouco se ampliar, à medida que trabalho for levando vantagem na correlação de forças com o capital. A primeira etapa consiste em mostrar que, longe de enfraquecer a economia, a produção não-mercantil tem como efeito valorizar a produção mercantil.
Keynes já demonstrou que a intervenção do Estado tem efeito multiplicador. Mas é preciso desfazer o mito segundo o qual a atividade não-mercantil depende da cobrança de impostos sobre a produção de mercadorias

A teoria keynesiana já havia apontado que, numa situação de carência de emprego e redução do consumo, a intervenção do Estado desencadeia um efeito multiplicador mais intenso quando a renda per capita é baixa [3]. Quanto mais a renda é reduzida, mais a proporção do que é gasto com o consumo adquire importância. Trygve Haavelmo [4] acrescentou que essa intervenção é benéfica mesmo se a despesa pública suplementar for efetuada no quadro de um orçamento equilibrado [5]. Mas ainda não conseguimos derrubar a idéia segundo a qual o financiamento de uma atividade não-mercantil proviria da cobrança de impostos sobre o fruto da atividade mercantil.

Para alcançarmos esse objetivo, vamos lançar mão de uma hipótese hoje irreal, mas que vale pela lógica que confere a um raciocínio “no limite”, numa perspectiva dinâmica. Suponhamos que a esfera não-mercantil se amplie progressivamente e que o pagamento dos bens e serviços nela produzidos seja socializado por meio dos impostos. Se a participação dessa esfera na produção total tendesse a aproximar-se do máximo de 100%, seria impossível considerar que o seu financiamento pudesse ser garantido pelas contribuições tributárias da esfera mercantil — que estaria em vias de desaparecer. Com isso, a tese segundo a qual uma atividade em crescimento é financiada por outra atividade em fase de regressão relativa é logicamente refutada.

Dito isso, é preciso generalizar esse resultado e dele concluirmos que são vazias todas as teses que fazem da produção mercantil, em determinado momento e dentro da continuidade do tempo, a fonte da produção não-mercantil. Da mesma maneira, isso permite compreender a notável fraqueza da concepção que prevaleceu na União Soviética, cujo sistema econômico incorporou na atividade produtiva apenas o produto material, por considerar que os serviços não faziam parte da produção.

Na verdade, não existe o caráter produtivo do trabalho em si. Este se define apenas em função das relações sociais existentes. Diante disso, é preciso recuperar conceitos antigos, mas ainda pertinentes, baseados numa dupla distinção. Em primeiro lugar, aquela estabelecida por Aristóteles entre o valor de uso (a capacidade de satisfazer a uma necessidade) e o valor de troca (a capacidade de permitir a acumulação). O primeiro representa uma riqueza que não pode ser reduzida à produzida pelo segundo [6]. Em segundo lugar, temos a distinção, feita por Marx, entre o processo de trabalho em geral e o processo de trabalho capitalista — ou seja, entre o trabalho produtor de valores de uso e o trabalho produtor de valor mercantil e de mais-valia para o capital.
Da mesma forma que os salários pagos serão gastos depois, na compra dos bens mercantis, o pagamento do imposto expressa, após os serviços coletivos terem sido produzidos, o acordo da população com as despesas e seus resultados

Em todas as sociedades capitalistas contemporâneas, estão combinadas entre si três formas de implementação das capacidades produtivas. A primeira, dominante, diz respeito ao trabalho assalariado que resulta numa produção de valor mercantil, destinada a engordar o capital. A segunda é a do trabalho assalariado nas administrações, uma atividade que produz valores de uso monetários, ainda que a sua finalidade não seja mercantil (educação e saúde públicas, por exemplo). Por fim, existe a terceira forma de atividade humana, situada na esfera doméstica ou no campo associativo, cujo produto é não-monetário. A idéia aqui defendida é de que as duas últimas formas não nascem da riqueza gerada pela primeira [7].

Vale, portanto, retornarmos a Marx, mas também a Keynes, generalizando seu conceito de antecipação. As empresas privadas resolvem produzir quando identificam as demandas de mercados com necessidades solváveis para suas mercadorias. Elas efetuam então investimentos e põem salários em circulação. A venda no mercado valida essa antecipação, enquanto baixas vendas a punem.

Quanto às administrações públicas, antecipando a existência de necessidades coletivas, elas efetuam investimentos públicos e também contratam. A validação é então efetuada em função de um benefício econômico esperado (ex ante), como resultado de uma decisão coletiva, e se confunde com a antecipação.

Nos dois casos, a injeção de moeda sob forma de salários e de investimentos privados e públicos põe a máquina econômica para funcionar e engendra a produção — de bens privados mercantis e de bens públicos não-mercantis.

Da mesma forma que os salários pagos serão gastos depois, na compra dos bens mercantis, o pagamento do imposto expressa, após os serviços coletivos terem sido produzidos, o acordo da população para que sejam garantidas de maneira perene a educação, a segurança, a justiça e as tarefas de administração pública. A antecipação de serviços não-mercantis e a sua produção pelos trabalhadores das administrações públicas antecedem, portanto, logicamente seu “pagamento” de pelos usuários.
O contribuinte não “financia” nem a escola nem o hospital — da mesma forma que o comprador de um automóvel não “financia” as linhas de montagem. O financiamento é anterior à produção, quer esta seja mercantil ou não-mercantil

A expressão “os impostos financiam as despesas públicas” é enganadora. A ambigüidade provém da confusão entre as noções de financiamento e de pagamento.

A produção capitalista é financiada pelos adiantamentos de capital em investimentos e salários, adiantamentos esses cujo cresciento no plano macroeconômico é permitido pela criação monetária; e são os consumidores que pagam.

Qual será o papel do imposto, em relação à produção não-mercantil? Ele constitui seu pagamento socializado. O contribuinte não “financia” nem a escola nem o hospital — da mesma forma que o comprador de um automóvel não “financia”, de maneira alguma, as linhas de montagem de automóveis. Isso porque o financiamento é anterior à produção, quer esta seja mercantil ou não-mercantil. O pagamento, por sua vez, é posterior.

Por fim, a atividade produtiva suplementar engendra uma renda suplementar e, portanto, uma poupança suplementar, que irá alimentar o investimento suplementar — tanto privado como público —, que desencadeia mais atividade.

Se a economia capitalista é uma economia monetária, seria possível extrair tributos de uma base que ainda não teria sido produzida e, mais ainda, deveria resultar do produto desses tributos? Já que isso é logicamente impossível, torna-se necessário inverter o raciocínio: a produção não-mercantil, e os dividendos monetários que a ela correspondem, antecedem os tributos. E, no que vem a ser o ponto crucial, que reduz o discurso liberal ao arcaico, isso nos leva à conclusão de que os trabalhadores dos serviços não-mercantis produzem a renda que os remunera.
São os trabalhadores do setor capitalista – e não os consumidores – que criam o valor monetário. E são os trabalhadores do setor não-mercantil – e não os contribuintes – que criam o valor monetário dos serviços não-mercantis

É verdade que o pagamento do imposto – da mesma forma que as compras privadas dos consumidores – faz com que o ciclo produtivo possa se reproduzir sucessivamente. Contudo, existem dois pontos falhos na ideologia liberal. Em primeiro lugar, são os trabalhadores do setor capitalista – e não os consumidores – que criam o valor monetário, do qual os capitalistas embolsam uma parte. E são os trabalhadores do setor não-mercantil – e não os contribuintes – que criam o valor monetário dos serviços não-mercantis. Em segundo lugar, o financiamento designa o impulso monetário necessário para a produção capitalista e para a produção não-mercantil. Em decorrência disso, o impulso monetário deve ser diferenciado do pagamento.

Portanto, diferentemente do que reza a opinião dominante, os serviços públicos não são fornecidos a partir do recolhimento de algum tributo sobre algo preexistente. O seu valor monetário e não-mercantil não é nem drenado, nem desviado. Ele é produzido. Conseqüentemente, dizer que o investimento público concorre com o investimento privado não faz sentido. Da mesma forma, afirmar que os salários dos funcionários públicos são pagos por meio da retenção de tributos sobre a renda gerada pela atividade privada é tão inconsistente quanto afirmar que os salários do setor privado são pagos por meio da retenção de um imposto sobre os ganhos dos consumidores. Isso equivaleria a ignorar que a economia é um circuito cujos dois atos fundadores são a decisão privada de investir para produzir bens e serviços mercantis e a decisão pública de investir para produzir serviços não-mercantis.

Em outras palavras, a arrecadação tributária incide sobre um PIB (Produto Interno Bruto) que já foi acrescido do fruto da atividade não-mercantil. Uma vez que o imposto não subtrai dinheiro da riqueza preexistente, mas cobra o preço socializado de uma riqueza suplementar, não há mais como satisfazer-se com a consideração trivial da “retenção” sobre o produto mercantil (conforme reza a linguagem liberal), ou sobre a mais-valia capitalista (segundo a linguagem marxista). O trabalho e os recursos materiais empenhados numa determinada atividade deixam de estar disponíveis para outra. Mas não há razão alguma para supor que o trabalho empenhado na primeira mantenha a segunda.

As necessidades humanas são satisfeitas por valores de uso materiais ou imateriais — produzidos ou na esfera do capital ou no âmbito da coletividade. O fato de que certos valores de uso não possam ser obtidos senão por meio da mediação do capital, de modo algum implica que o mercantil engendre o não-mercantil. Nem que o valor monetário não-mercantil seja quantitativamente incluso no valor monetário mercantil, o que é obrigatório na visão tradicional.
A riqueza não-mercantil é duplamente socializada: ela utiliza capacidades produtivas em benefício de todos e reparte socialmente o ônus do pagamento. Por tais motivos, é tão condenada pelo modo de ver burguês e especialmente pelo senso comum neoliberal

A esse respeito, o fato de alguns cálculos econométricos entenderem as despesas públicas como atos de consumo não deve iludir ninguém. De um lado, estamos analisando a despesa pública livre de infra-estruturas, de equipamentos e de despesas de consumo intermediárias. Ou seja, a despesa medida em função dos salários pagos, e que constitui, portanto, a contrapartida de uma nova produção de valores de uso. De outro lado, não há razão alguma para considerar de maneira diferente o adiantamento de salários pelas empresas privadas e o efetuado pelas administrações públicas. Nos dois casos, trata-se de uma “despesa” do empregador. Toda produção implica despesas – é uma trivialidade dizer isso –, e todo discurso que se esquecesse disso seria inconseqüente. O que importa é distinguir as formas de produção que permitem um trabalho produtor de mais-valia para o capital (validado pelo mercado) daquelas que permitem um trabalho produtor de valores de uso (cuja validação se deve a uma escolha coletiva democrática).

A riqueza não-mercantil, portanto, não é fruto de uma arrecadação financeira sobre a atividade mercantil, mas sim um “valor adicional” proveniente de uma decisão pública de utilizar forças de trabalho e equipamentos disponíveis ou subtraídos ao lucro. Ela é socializada em dois aspectos: pela decisão de utilizar coletivamente capacidades produtivas e de repartir socialmente o encargo do pagamento. Ou seja, um mecanismo insuportável para o modo de ver burguês, e mais particularmente para o senso comum neoliberal.

A elucidação do enigma da produção não-mercantil participa da redefinição da riqueza e do valor, o que é indispensável para deter o processo de mercantilização da sociedade. A teoria liberal confunde riqueza com valor. E as teorias hostis ao capitalismo não devem permanecer obcecadas pelo fato de que esse sistema tende a reduzir todo valor àquele destinado ao capital. Nesse plano específico, um reexame crítico das categorias utilizadas tradicionalmente pela economia política e pelo marxismo é indispensável para a elaboração de uma economia política da desmercantilização.

Em resumo, trata-se de se livrar do liberalismo econômico e de certas interpretações do marxismo para retornar aos fundamentos de Marx, que definia o “valor” como “o caráter social do trabalho, na medida em que o trabalho existe como emprego de força de trabalho ‘social’” [8]. O reconhecimento de que o trabalho efetuado para atender a necessidades sociais fora da esfera da mercadoria é parte do controle que a sociedade exerce sobre aquilo que vem a ser o seu bem-estar — ou seja, a “verdadeira” riqueza [9]. E, por gerar tão valiosa contribuição, a riqueza socializada não é menos riqueza do que a riqueza privada, pelo contrário.


[1] “Nós precisamos redobrar esforços em prosseguir as reformas”, repetiu o governo francês depois do discurso de Nicolas Sarkozy em Toulon, em 25 de setembro de 2008.

[2] Até mesmo André Gorz, apesar de ser um crítico em relação ao marxismo tradicional, concorda com essa visão. Ecologica, Paris, Galilée, 2008.

[3] É a parte de um aumento de renda que é consumida.

[4] Economista norueguês, Prêmio Nobel de economia em 1989. Para saber mais, consultar a Wikipedia (em inglês) ou a Fundação Nobel(em inglês)

[5] Trygve Haavelmo, “Multipliers effects of a balanced budget”, Econometrica, vol. 13, outubro de 1945.

[6] Aristóteles, A Política, Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama KURY. 3ª ed. Brasília: UNB, 1997. 317p. ISBN: 85230001109. Uma versão da mesma obra pode ser baixada (grátis) na internet Para uma análise esclarecedora dessas questões, ver Le Petit Alter, Dictionnaire altermondialiste, Paris, Mille et une nuits, 2006.

[7] O fato de os ganhos de produtividade serem geralmente mais reduzidos nos serviços, mercantis ou não, não deve ser confundido com o caráter produtivo em si. Essa é precisamente a confusão que Gorz comete implicitamente, op. cit.

[8] Karl Marx, “Notas críticas sobre o Tratado de Economia Política de Adolph Wagner” (1880). Este e outros textos de Marx são tema do artigo "Marx tardio: notas introdutórias", de Pedro Leão da Costa Neto, publicado em Crítica Marxista, edição 17 (2003). O artigo pode ser baixado (em pdf) aqui.

[9] Concordo plenamente com o título do último capítulo do livro de Gorz, op. cit., “Riqueza sem valor, valor sem riqueza”. Para uma abordagem complementar, ler Jean-Marie Harribey, L’économie économe, Paris, L’Harmattan, 1997.

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