sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O trabalho de Humberto Maturana e Francisco Varela : Edla M. F. Ramos



1. Introdução

Humberto Maturana e Francisco Varela desenvolveram um trabalho transdisciplinar centrado no propósito de entender a organização do sistemas vivos com relação ao seu caráter unitário. Para tal, foi preciso que esses pesquisadores levassem em conta os principais desafios que esse entendimento impunha, quais sejam: entender a natureza autônoma da organização biológica e entender como a identidade pode ser mantida durante a evolução que gera a diversidade. Os autores não fazem, pois não são necessárias, distinções sobre nenhuma classe ou tipo de ser vivo, nem descrevem os seus componentes. Apenas explanam quais são as relações que permanecem invariantes entre tais componentes, e que constituem o ser vivo enquanto tal, não importando qual é a sua natureza.
Além de reformular um fenômeno, mostrando como as relações e interações entre seus componentes o geram, como ocorre em toda a explanação, é meta central dos autores (pois têm claro que toda explanação é feita por um observador do fenômeno) distinguir claramente o que pertence ao sistema como constitutivo da sua fenomenologia e o que apenas pertence ao domínio da sua descrição. Esta distinção é uma proposta de atitude epistemológica nova e já demonstrou o quanto é fecunda no próprio trabalho dos seus proponentes.
A abordagem feita é, num certo sentido, mecanicista, pois nenhuma força ou princípio que não esteja no universo físico é invocada. Os seres vivos serão tratados como máquinas, donde os autores precisam responder 'que tipo de máquinas elas são?' e 'qual é a sua fenomenologia, incluindo reprodução e evolução, a partir da sua organização unitária?'. Apesar de mecanicista, a abordagem não é reducionista ou atomista, uma vez que é o caráter unitário do ser vivo que tenta ser compreendido de forma transdisciplinar.
O uso do termo transdisciplinar, ao invés dos termos interdisciplinar e multidisciplinar, é mais adequado para explicar este aspecto do trabalho dos autores, pois, como bem observou Stanford Beer, (no prefácio que escreveu para o livro Autopoiesis e Cognição):
"...se o livro lida com sistemas vivos, então deve tratar de biologia. Se ele diz alguma coisa científica sobre organização, então deve falar de cibernética. Se pode reconhecer a natureza do caráter unitário, deve ser um livro de epistemologia - e também, lembrando a grande contribuição do primeiro autor sobre percepção, deve lidar com psicologia. O livro é indubitavelmente sobre todas estas coisas. Chamaríamos, portanto, esta área interdisciplinar de psicociberbioepistêmica? Faríamos isso se quiséssemos insultar os autores, pois o seu estudo não inter-relaciona disciplinas, ele as transcende. Na verdade, parece que ele as aniquila..." (Beer in Maturana, 1987: 65).
Maturana e Varela desenvolvem uma abordagem em busca de síntese e não de análise e classificação. Segundo estes autores a ciência de hoje teve o seu progresso instrumentalizado por análise e categorização, o que produziu uma visão de mundo difícil de mudar. Nessa visão de mundo os sistemas reais são aniquilados pela própria tentativa de entendê-los, sendo suas relações definidoras(???) perdidas uma vez que não são categorizáveis (???).
Consideram os autores que nenhuma posição ou ponto de vista que tenha alguma relevância no domínio das relações humanas está livre de implicações éticas e políticas. Logo, nenhum cientista pode considerar-se alheio a estas implicações. Tais implicações foram explicitadas pelos autores a partir da resposta à seguinte questão: "as sociedades humanas são ou não são elas mesmas sistemas biológicos? ".
As noções de observador, distinção, unidade, organização e estrutura são os alicerces da teoria de Maturana e Varela. Elas são sintetizadas a seguir.

1.1 O observador

Tudo que é dito é dito por um observador. O observador é um ser humano, portanto, um sistema vivo, e tudo o que se aplica aos sistemas vivos também se aplica a ele. O observador contempla simultaneamente a entidade que ele considera e o universo no qual ela vive. Ele é capaz de operar ou de interagir com a entidade observada e com as suas relações.
Uma entidade é o que pode ser descrito pelo observador, descrever é enumerar as interações e relações atuais ou potenciais da entidade descrita. Isso só pode ser feito se existe pelo menos uma outra entidade distinguível com a qual a entidade descrita pode ser relacionada e interage.
O entendimento da cognição como um fenômeno biológico deve levar em conta o observador como um sistema vivo e o seu papel.

1.2 Unidade

A noção de unidade é fundamental no trabalho destes autores, dado, como já foi dito ao caráter não reducionista da sua abordagem. Eles buscaram entender o ser vivo, não pela enumeração de suas características, mas pela sua organização e seu caráter unitário. A definição dos mesmos para unidade está bem clara na citação abaixo:
"A operação cognitiva básica que nós realizamos como observadores é a operação de distinção. Através dessa operação nós especificamos uma unidade como uma entidade distinta do seu meio ambiente, caracterizamos ambos unidade e ambiente com as propriedades as quais esta operação lhes fornece e especificamos sua diferenciação. Uma unidade assim especificada é uma unidade simples que define através de suas propriedades o espaço no qual ela existe e o domínio fenomenal que ela pode gerar na sua interação com outras unidades." (Maturana, 1980:XIX)
Quando a operação de distinção é aplicada recursivamente sobre uma unidade, os seus componentes podem ser distinguidos, permitindo que ela seja re-especificada como uma unidade composta. Uma unidade pode portanto ser tratada como composta ou simples. No primeiro caso, ela existe no espaço que os seus componentes definem e é através das propriedades dos seus componentes que ela é distinguida. No segundo caso, ela existe num espaço que é definido através das propriedades que a caracterizam como uma unidade simples.
Uma operação de distinção é também a prescrição de um procedimento. Este procedimento separa a unidade distinta do seu meio. Uma distinção é, portanto, uma ação cognitiva, e a unidade especificada existe no domínio cognitivo do observador como uma descrição. Apesar disso, ele especifica no seu discurso um meta-domínio de descrições, pois ele estabelece uma referência que lhe permite falar como se a unidade existisse como entidade separada que ele pode caracterizar denotando as operações responsáveis pela sua distinção.
"Na perspectiva do meta-domínio descritivo, a distinção entre a caracterização de uma unidade e o conhecimento do observador que lhe permite descrevê-la dentro de um contexto, deve ser clara. De fato, conhecimento sempre implica uma ação concreta ou conceitual em algum domínio, e o reconhecimento do conhecimento sempre implica um observador que contempla a ação de um meta-domínio." (Maturana, 1980:XXII)

1.3 Organização e estrutura

Conta-se uma história, cujo inventor teria sido Einstein, que analisa o ato de descrição dos objetos e seres existentes, mais ou menos assim: “se formos descrever um relógio, com certeza iremos encontrar mais de 20 explicações diferentes e igualmente válidas para o mesmo, talvez nenhuma delas corresponda verdadeiramente àquilo que o relógio é”. O ato de descrição de um fenômeno cria um domínio fenomenológico novo, o domínio da descrição do fenômeno. Maturana e Varela alertam que é preciso fazer uma separação entre estes dois domínios. Os conceitos de organização e estrutura abordam esta questão.
organização de uma unidade ou sistema é o conjunto de relações que estão necessariamente presentes no sistema e que lhe definem a existência. Uma cadeira por exemplo pode ser definida a partir da descrição das relações entre braços, pernas, assento e encosto. Algumas coisas são difíceis de descrever, por exemplo, a classe das 'boas ações', mesmo que tenhamos um razoável entendimento do que seja uma boa ação.
De outra maneira, pode-se dizer que "...as relações entre os componentes que definem uma unidade composta (sistema) como uma unidade composta de um tipo em particular, constituem a sua organização" (Maturana, 1980:XIX). Nesse caso os componentes são vistos somente enquanto participantes na constituição da unidade, nada precisando ser dito sobre suas propriedades específicas, que não sejam requeridas para a realização do sistema. "Os componentes atuais ( com todas as suas propriedades incluídas) e as atuais relações existentes entre eles, que realizam concretamente o sistema como um membro em particular da classe de unidades compostas a qual ela pertence pela sua organização, constituem a sua estrutura." (Maturana, 1980:XX).
O que define um sistema é, portanto, o conjunto de relações existentes entre os seus componentes, independentemente destes componentes. O conjunto de relações que define um sistema como uma unidade é a sua organização. Já o conjunto de relações efetivas entre os componentes presentes numa máquina concreta dentro de um espaço dado, constituem sua estrutura. Dessa forma, a organização de uma máquina nada tem a ver com a sua materialidade, é claro que ela implica uma matéria: uma máquina de Turing, por exemplo, é uma certa organização mesmo que pareça haver um fosso intransponível entre a forma como é definida uma máquina de Turing e suas realizações (elétrica, mecânica etc.).
A organização de um sistema pode se efetivar a partir de muitas estruturas diferentes, na medida em que, o conjunto de relações e propriedades que a definem são um subconjunto daquelas que definem uma estrutura. Por exemplo, o conjunto de relações que definem a realização de um carro, pode ser verificado concretamente a partir de muitas estruturas diferentes. O mais importante nisso é que uma mesma organização pode ser percebida por um observador como pertencente a diferentes classes de unidades compostas, pois ele poderá abstrair subconjuntos diferentes de relações e propriedades em diferentes estruturas pela qual ela se efetive. Mais ainda, para que uma organização possa permanecer invariante, enquanto realizável por diferentes estruturas, existem limites para as variáveis dessa estrutura, que se ultrapassados acarretariam a mudança da organização.
A noção de finalidade de um sistema não é uma característica da sua organização, mas sim do domínio do seu funcionamento, ou seja, ela remete à descrição de uma máquina a um domínio mais vasto que o sistema ele mesmo. Na verdade, a noção de finalidade é usada nas descrições dos sistemas em geral, pois todos os sistemas construídos pelo homem têm uma finalidade específica, e a mesma diminui em muito a nossa tarefa explicativa e descritiva numa explanação. Donde, esses conceitos de finalidade, de objetivo ou de funcionamento são introduzidos pela necessidade de comunicação dentro do domínio do observador. Eles não servem para nada na caracterização de uma classe particular de organização. Um carro, mantida a sua integridade física (donde, mantido o conjunto de relações entre os seus componentes, e, portanto, mantida a sua organização) não deixará de ser um carro se lhe for dada uma finalidade diferente. Por exemplo, ao invés do transporte de objetos e pessoas, um carro poderia servir para escorar uma parede, nem por isso deixaria de ser um carro.
Na definição de organização feita acima, quando a condição de teleonomia (necessidade de um fim ou objetivo) é retirada da descrição da organização de um sistema, os autores imprimem a principal marca da sua perspectiva epistemológica. A exclusão da noção de finalidade na descrição da organização de um sistema é o divisor de águas entre o domínio fenomenológico descrito e o domínio da sua descrição.

2 O ser vivo e a sua organização

A grande questão que norteou o trabalho de Maturana e Varela era "o que é a vida?" ou "o que é próprio dos sistemas vivos desde a sua origem, e permanece invariante durante as suas sucessivas gerações?" A resposta para tal questão no entender dos autores estava implícita na resposta de outra: qual é a organização do ser vivo?
O ser vivo pode ser facilmente reconhecido quando é encontrado. Mais difícil do que reconhecê-lo é dizer o que ele é. Suas características tais como reprodução, hereditariedade, crescimento, irritabilidade, adaptação e evolução, desenvolvimento e diferenciação, seleção natural, e assim por diante, podem ser facilmente enumeradas. Mas quando é que esta lista de atributos será suficiente para definir de forma clara o ser vivo?
Maturana e Varela têm claro que o ser vivo é um tipo especial de máquina, e a partir do paradigma epistemológico que adotam, cabe-lhes então definir de que tipo de máquina trata-se, a partir da sua organização. No entender dos mesmos, seria muito ingênuo dizer apenas que máquinas são sistemas concretos de hardware, que se definem pela natureza dos seus componentes e pelo propósito para o qual foram feitas, pois neste caso, nada teria sido dito sobre a natureza da sua organização.
Para Maturana e Varela os seres vivos são um tipo particular de máquinas homeostáticas, que eles denominam de autopoiéticas. "Existem sistemas que mantém alguns de seus parâmetros, seja imóveis, seja ligeiramente flexíveis no interior de um intervalo restrito de valores. É sobre esta constatação que repousa a noção fundamental de estabilidade ou de coerência de um sistema. " (Wiener apud Varela, 1989:45). Nos sistemas em que o mecanismo responsável pela estabilidade é interno ao mecanismo da máquina, ou seja, nos quais as fronteiras são definidas pela própria organização da máquina tem-se um tipo especial de máquinas chamadas de homeostáticas.
A idéia de autopoiesis é uma expansão da idéia de homeostase em duas direções importantes:

  • ela transforma todas as referências da homeostase em internas ao sistema;

  • ela afirma ou produz a identidade do sistema.
Ou seja, esses sistemas produzem a si próprios, dessa forma produzem a sua identidade distinguindo-se a si mesmos do seu ambiente. Daí o termo autopoiéticos, do grego auto (própria) e poiesis(produção).
Um sistema autopoiético é organizado como uma rede de processos de produção de componentes que:
a) regeneram continuamente, pela sua transformação e interação, a rede que os produziu; e que,
b) constituem o sistema enquanto uma unidade concreta no espaço onde ele existe, especificando o domínio topológico onde ele se realiza como rede.
Dessa forma uma máquina autopoiética é um sistema homeostático onde a invariante fundamental é a própria organização. A organização por sua vez é determinada pelas relações, não entre os seus componentes, mas entre os processos de produção desses componentes. Portanto para classificar um sistema como autopoiético é necessário ter capacidade de dar uma significação precisa aos processos de produção dos componentes e de geração de uma fronteira, pois é na geração da fronteira que se produz a identidade.
Este tipo de organização tem conseqüências evidentes:
(i) máquinas autopoiéticas são autônomas;
(ii) máquinas autopoiéticas têm individualidade;
(iii) máquinas autopoiéticas são unidades que se caracterizam justamente a partir da própria organização autopoiética; e,
(iv) máquinas autopoiéticas não têm entradas ou saídas.
Todas estas conseqüências serão detalhadas neste texto, em outros momentos.
A noção de autopoiesis é necessária e suficiente para definir um sistema vivo. É óbvio que se for aceito que os seres vivos são máquinas, então eles são máquinas autopoiéticas. Não é tão aparente, contudo, o inverso, ou seja, que toda máquina autopoiética é um sistema vivo. A dificuldade em se perceber este fato deve-se, de acordo com os autores, a razões ligadas ao domínio da descrição, são elas: (a) Máquinas em geral são artefatos feitos pelo homem, com propriedades conhecidas e, pelo menos conceitualmente, perfeitamente previsíveis. (b) Enquanto a natureza do ser vivo for desconhecida fica difícil identificar quando um sistema é ou não vivo. (c) A crença que observação e experimentação, sem nenhum recurso à análise teórica, sejam suficientes para revelar a natureza do ser vivo.
Por mais chocante que possa parecer, os fenômenos da reprodução e da evolução não são constitutivos da definição do ser vivo a partir do seu caráter unitário. É preciso lembrar que toda unidade para ser reproduzida precisa já estar constituída, e também que muitos seres vivos não são capazes de reproduzir-se (uma mula, por exemplo). O fato de a reprodução requerer uma unidade a ser reproduzida não deve ser entendido como uma questão de precedência trivial, mas como um problema operacional, sobre a origem do sistema vivo e sobre a natureza do seu mecanismo de reprodução. Este mecanismo é, nos sistemas autopoiéticos, peculiar aos mesmos. Trata-se de um mecanismo no qual uma unidade produz uma outra com a mesma organização que a sua, enquanto produz a si própria, num processo de auto-reprodução.

2.1 Autopoiesis e autonomia

Para Varela (1989) importa analisar, quando um cão vira a cabeça na sua direção "para poder vê-lo melhor", sobre que bases se tenta imputar uma intenção ao cão. Para o autor, nesse comportamento, o cão recebe as informações que provém do seu ambiente, não como instruções, mas como perturbações que ele interpreta e submete a algum mecanismo de equilibração interna. É esta propriedade particular, que ele chama de autonomia, que será melhor definida a seguir.
Uma das características mais evidentes dos seres vivos é a sua autonomia. A questão da autonomia tem estado até então envolvida numa aura de mistério. Maturana e Varela propõem que o mecanismo que torna os seres vivos autônomos é a autopoiesis. A vida mesmo se especificou, dentro do domínio molecular, a partir de um processo desse tipo, enquanto ela mesmo é um desses processos autônomos. Aqui autonomia tem o sentido usual, ou seja um sistema é autônomo quando é capaz de especificar as suas próprias leis, ou o que é adequado para ele.
A célula é uma unidade que surge de uma sopa molecular a partir da especificação de uma fronteira que a distingue do seu meio. A especificação desta fronteira se faz através da produção de moléculas, que por sua vez necessitam para a sua formação da presença dessa mesma fronteira. Há, portanto, uma especificação mútua, e se esse processo de auto-produção se interrompe, a célula se desintegra. O fenômeno essencial aqui é o seguinte: o fechamento operacional de elementos situados em níveis separados produz um entrecruzamento destes níveis para constituir uma nova unidade. Quando o entrecruzamento cessa, a unidade desaparece. A autonomia surge desse entrecruzamento. A origem da vida não é o único exemplo dessa lei geral.

2.1.1 O fechamento operacional

Varela considera que o conceito de autopoiesis não pode ser confundido com o conceito de autonomia, pois a operação de uma unidade autopoiética produz comportamentos químicos e as suas fronteiras são topológicas e não é este o caso dos sistemas sociais. Contudo o mesmo autor indica que talvez seja possível tirar vantagens disto tudo na busca de um conceito para a autonomia em geral. O que os sistemas autônomos têm em comum com os seres vivos é o fato de que a distinção da unidade está intimamente ligada à organização e ao funcionamento da mesma. Isto é exatamente o que define a autonomia: a identidade do sistema se afirma no e pelo funcionamento do mesmo.
O conceito de fechamento operacional é necessário para a definição de sistemas autônomos. Um sistema autônomo é operacionalmente fechado se sua organização é caracterizada por processos: (a) dependentes recursivamente uns dos outros pela geração e realização desses mesmos processos, e (b) que constituem o sistema como uma unidade reconhecível dentro do domínio em que o processo existe.
Os sistemas autônomos são operacionalmente fechados. Os sistemas vivos desempenham o papel de casos paradigmáticos na caracterização do fechamento operacional. A autopoiesis é um caso particular de sistema operacionalmente fechado e a autonomia dos sistemas vivos não é mais do que um tipo específico de autonomia.
O teorema de Godel e as estruturas fractárias são exemplos de formalismos que representam processos com fechamento operacional. Esse fechamento conduz:
a) a uma coerência, sempre distribuída e jamais totalmente presente, mas compreensível na sua forma geral (como a conhecida figura fractária mítica dos flocos de neve)
b) a existência de propriedades emergentes a nível de unidade que não resultam da simples adição das propriedades dos componentes que participam do processo.
Varela distingue algumas relações entre atividade cognitiva humana e os sistemas operacionalmente fechados. São as seguintes:
a) a atividade cognitiva humana, ou os seus processos mentais, repousam sobre um substrato biológico;
b) as descrições humanas são perfeitamente capazes de auto-descrição a um nível infinito.

2.1.2 Acoplamento por entradas e acoplamento por fechamento operacional

A idéia de auto-organização supõe que uma unidade e seu meio têm um certo grau de independência. Mas o que é esse tal grau de independência? O nível de interação entre uma unidade e seu meio pode variar entre dois extremos. Num lado está o caso em que unidade não pode sequer ser percebida (distinguida) do seu meio (a questão da organização não seria relevante neste caso), do outro, está o extremo de uma ausência total de interações. Estas situações não são interessantes pois são imaginárias , os sistemas reais têm uma superfície de contato com o seu meio, na qual há o entrecruzamento das influências mútuas. Como a ligação entre o sistema e o meio não é total e apenas ocorre em certos pontos esse conceito será denominado de acoplamento pontual.
Varela lembra que a idéia de acoplamento estrutural é bastante familiar para as pessoas em geral e cita como caso paradigmático de acoplamento estrutural o exemplo fornecido pela teoria dos sistemas: na teoria de sistemas um input (entrada) muda toda a dinâmica de estados do sistema.
Para definir esta idéia de forma mais clara, sejam:
I - espaço de entradas (inputs)
S - espaço de estados
T- o espaço temporal
f - a dinâmica de previsão do próximo estado.
temos:
f: T x T x S ® S
ou
f(i,s)t ® s t+Donde Dt, tÎT, iÎI, sÎS.
No exemplo acima o acoplamento pontual é evidente, "já que nós temos que eleger um domínio de entradas para as quais podem ser introduzidos modos de ação específicos, explicitados pela lei de transição f." (Varela, 1989 :191). Esse exemplo é um tipo específico de acoplamento pontual que será chamado de acoplamento por entradas (couplage par input) entre duas séries de eventos.
A autonomia é a característica que certas unidades têm de tornar impossível ou insatisfatória uma descrição em termos de acoplamento por entradas. A idéia de autonomia faz referência a um sistema com forte determinação interna, ou auto-afirmação. A noção de autonomia é tão necessária para compreender os sistemas naturais, como é a célula para compreender os sistemas orgânicos.
Nos sistemas dinâmicos os pontos de contato entre duas séries de eventos independentes (ou inputs) é que são o fio condutor para compreender a dinâmica do sistema. Já no caso dos sistemas autônomos, o inverso é que vale, as transformações internas são o fio condutor, e os pontos de contato não intervém a não ser na medida que certos eventos imprevistos ou circunstâncias ajudem a melhor compreender tal ou qual caminho particular de transformações. Donde no caso dos sistemas vivos os pontos de acoplamento devem mais ser considerados como perturbações do que entradas.
Uma entrada e uma perturbação podem ser descritas de forma diferenciada:
entrada - especifica a única forma pela qual uma transformação de estado dada pode acontecer; uma entrada, ou um input, faz parte integrante da estrutura da unidade; só pode acontecer de forma específica.
perturbação - não especifica o agente; não leva em conta os seus efeitos sobre a estrutura da unidade; não faz parte da definição da unidade apesar de poder estar ligado a ela. Uma dada perturbação pode acontecer de um número indefinido de formas.
Uma forma mais explícita de definir um sistema com este outro tipo de acoplamento, que é denominado acoplamento por fechamento operacional, seria a que segue:
Seja um espaço de estados S e uma dinâmica interna definidos como:
f: T x S ® S ou
f
st ® s t+Donde Dt, tÎT, sÎS
O sistema funciona de forma contínua até que intervém uma perturbação (que pode ter origem interna). O efeito desta perturbação leva o estado e a dinâmica do sistema para uma nova configuração:
(f + df): T x S ® S
(f + df)
(s+Ds)t ® s t+Dcom Dt, tÎT; s,s+DsÎS; f, f + dΠ(S®S)
onde s+Ds e f + df representam, respectivamente, uma perturbação dentro do espaço de estados rumo a um novo estado e uma transformação dinâmica interna rumo a um novo método.
Os seres vivos são também sistemas autônomos ou operacionalmente fechados. A sua organização biológica é caracterizada por um processo que se denomina autodeterminação, ou determinismo estrutural.
"Nas interações entre os seres vivos e o meio ambiente dentro da congruência estrutural, as perturbações do ambiente não determinam o que acontece com o ser vivo; ao contrário é a estrutura do ser vivo que determinará o que deverá ocorrer com ele. Esta interação não tem uma dimensão instrutiva, porque ela não determina (instrui, comanda ou direciona) as mudanças que deverão ocorrer. Já foi usada, para tal, a expressão disparar (to trigger) um efeito. Neste sentido nos referíamos ao fato de que as mudanças que resultam da interação entre os seres vivos e os seus ambientes são ocasionadas por agentes perturbadores, mas determinadas pela estrutura do sistema perturbado." (Maturana, 1992:96).
O conjunto de transformações que um sistema autopoiético pode sofrer é determinado pela sua organização invariante, e é claro pela sua estrutura, neste sentido, ele não possui nem entradas nem saídas, donde os autores indicam que tais sistemas são estruturalmente determinados. Apesar de que as mudanças que um sistema autopoiético possa sofrer sejam determinadas pela sua organização, a seqüência em que tais mudanças ocorrem é determinada pela seqüência de deformações sofridas pelo mesmo. É importante lembrar que as deformações a que se submete um sistema autopoiético podem ter duas origens, uma é o meio externo e outra é o próprio sistema (os estados que se constituem para compensar deformações podem gerar outras mudanças compensatórias). Estas duas fontes de deformações são indistinguíveis na fenomenologia da organização autopoiética e o entrelaçamento das duas forma uma única ontogênese.

3 O sistema nervoso, a cognição, o domínio comportamental e a aprendizagem

O conceito de determinismo estrutural é fundamental para compreender as questões a serem a seguir analisadas. Esse determinismo não significa previsibilidade nem controle de fora do sistema. Uma predição revela o que um observador espera que ocorra, quando ele considera o estado presente de um dado sistema e apregoa que deve haver um estado subseqüente que resultará da dinâmica estrutural do sistema. Os autores falam de determinismo estrutural com um sentido totalmente diferente do da abordagem determinista tradicional.
Os autores mencionam um experimento muito interessante para compreender toda a problemática do determinismo estrutural. Para se alimentar, os sapos aproximam-se da presa (insetos pequenos) e lançam sua longa e fina língua retraindo-a rapidamente para dentro da boca com a presa ali aderida. Um bom cirurgião pode tomar um girino e cortar o seu nervo óptico, ligando-o depois com uma rotação de 180º. O animal cresce nessas condições e então observa-se que com o olho normal coberto ele não é mais capaz de capturar a sua presa, pois a sua língua é sempre lançada a um ponto que apresenta também um rotação de 180º com o ponto onde está a mesma. Para esse animal não há em cima, ao lado, etc, o que há é "...somente uma correlação interna entre o lugar da retina que recebe uma perturbação e uma contração muscular que move a sua língua, pescoço, e, de fato, todo o corpo do sapo." (Maturana, 1992:126).
Este exemplo, como muitos outros, são uma evidência de que a operação do sistema nervoso é uma expressão da sua conectividade ou acoplamento estrutural e de que o comportamento se origina nas relações de atividades internas do sistema nervoso.
Os sistemas nervosos aparecem nos organismos metacelulares, eles formam uma rede de células chamadas de neurônios que incluem receptores e efetores. Os neurônios conectam elementos sensores e motores que estão distantes, permitindo que substâncias sejam carregadas de um ponto a outro distantes no organismo sem afetar o meio circundante. Um neurônio conecta com muitos tipos de células do organismo mas principalmente com outros neurônios através das sinapses, estruturas que permitem influências recíprocas entre grupos de células distantes.
A visão mais usual existente atualmente considera o sistema nervoso um instrumento onde os organismos guardam informações do ambiente, no sentido de construir uma representação do mundo, que eles usam como base, para calcular qual deve ser o comportamento adequado para a sua sobrevivência ( quase o mesmo que construir um mapa para depois usá-lo na definição de uma rota). Isto tem repercussões diretas na compreensão do processo da percepção e da aprendizagem. Esta visão segue o paradigma das teorias do comando, na qual o sistema nervoso e particularmente o cérebro funcionam como um computador, aceitando como dogmas os postulados seguintes:
i) o sistema nervoso 'recolhe' informações provenientes do meio e as 'trata';
ii) esse 'tratamento da informação' é adequado pois ele traz uma representação do mundo exterior ao cérebro do animal ou homem.
Para Maturana e Varela o sistema nervoso funciona como um sistema operacionalmente fechado, estruturalmente determinado, sem entradas ou saídas, ou seja, funciona como um sistema autônomo. Os resultados das operações do sistema são as suas próprias operações.
Este conceito é neurofisiologicamente correto, o resultado da atividade neural é a própria atividade neural. Donde as atividades dos neurônios se definem mutuamente. É importante notar que fechamento aqui não é o mesmo que impermeabilidade, ou seja o fechamento aqui quer apenas dizer que os resultados do funcionamento se situam no interior das fronteiras do sistema, não se pressupõe que o sistema não interaja com o ambiente.
"O acoplamento por entradas consiste em considerar que o sistema nervoso é essencialmente determinado por entradas. Consideramos geralmente que essas entradas são ou refletem certas características ou qualidades do ambiente, que são absorvidas pelo sistema nervoso como matéria bruta, que em seguida é trabalhada no interior. Sucintamente o sistema nervoso funcionaria a partir de um conteúdo informativo de instruções que provém do ambiente, elaborando uma representação operacional desse ambiente...O acoplamento por fechamento operacional, ao contrário, consiste em pensar que o sistema nervoso é definido essencialmente por seus diversos modos de coerência interna, decorrente da sua inter-conectividade. Mais precisamente, ele é definido por seus comportamentos próprios que resultam da aplicação cruzada entre suas diversas superfícies internas (neuro-anatômicas)." (Varela, 1989:199).
A maneira como o sistema nervoso opera é limitada pela sua organização anatômica e esta é basicamente uniforme; as mesmas funções e operações (excitação, inibição, interação lateral, inibição recursiva, etc.) são desempenhadas em todas as suas partes, apesar dos diferentes contextos e diferentes modos de integração. Um observador pode pôr-se a questão, o que é uma entrada para o sistema nervoso? e a resposta depende inteiramente do ponto de observação escolhido. A unidade básica de organização do sistema nervoso pode ser expressa da seguinte forma: tudo que é acessível para o sistema nervoso em um determinado momento são estados de atividade relativa entre as células nervosas, e tudo que pode ser originado de um particular estado de atividade relativa são outros destes estados em outras células nervosas. Isto tem uma conseqüência fundamental: a menos que eles impliquem sua origem, não há distinção possível entre estados de atividade nervosa interna ou externamente gerados.
O que ocorre em um sistema vivo é análogo ao que ocorre em um vôo instrumental onde o piloto não tem acesso ao mundo exterior e deve funcionar somente como um controlador dos valores mostrados nos seus instrumentos de vôo. Sua tarefa é assegurar um caminho para a leitura dos seus instrumentos, de acordo com um plano prescrito, ou de acordo com um especificado a partir da própria leitura, donde um sistema vivo não tem entradas. Na organização dos sistemas vivos o papel da superfície efetora é somente manter constante um conjunto de estados da superfície receptora, não é agir sobre o ambiente, não importa quão adequada uma descrição possa parecer para a análise da adaptação, ou qualquer outro processo.
A situação aqui é semelhante ao estar-se sobre um fio de navalha tendo de um lado a armadilha do representacionismo e do outro lado a cilada da não objetividade (solipsismo), onde tudo será possível caoticamente. A saída então será aprender a caminhar no rumo do próprio fio da navalha, indo adiante da contradição e mudando a natureza da questão para atingir um contexto mais amplo. A questão é simples: os seres humanos como observadores podem ver uma unidade sob diferentes domínios. Podem considerar o domínio da operação dos componentes de um sistema e, nesse caso, para sua dinâmica interna o meio ambiente não existe (solipsismo). Ou, podem considerar uma unidade que também interage com o seu ambiente e descrever a sua história de interações com ele, considerando apenas as relações observadas entre certas características do ambiente e o comportamento da unidade, nesse caso é a sua dinâmica interna que é irrelevante.
Estas duas descrições são necessárias. É o observador quem as correlaciona da sua perspectiva externa. É ele quem reconhece que a estrutura do sistema determina as suas interações especificando quais configurações do ambiente podem disparar mudanças estruturais no mesmo, e que não é, portanto, o ambiente quem direciona ou especifica as mudanças estruturais do sistema. Não é possível desconhecer a estrutura interna do sistema se deseja-se compreender o fenômeno cognitivo.
A percepção, nesse entendimento, é um processo de compensação que o sistema nervoso efetua no curso de uma interação. Um espaço perceptivo é uma classe de processos compensatórios que um organismo pode sofrer. A percepção e os espaços perceptivos não refletem as características do ambiente, mas sim refletem a invariância da organização anatômica e funcional do sistema nervoso no curso de suas interações.
Sob esse mesmo ponto de vista cada homem pode se perceber como sujeito da sua própria experiência. Todo homem é fechado dentro de um domínio cognitivo do qual não pode escapar, ou seja não há um outro mundo além daquele que se oferece a sua experiência e que faz dele o que ele é. Cada vez que ele tenta buscar a origem de uma percepção ele se depara com algo como "a percepção da percepção da percepção...".(Varela, 1989:29).
Se o sistema nervoso não constrói uma representação interna do mundo tal como ele é, então qual o papel da objetividade? Já foi esclarecido como o sistema opera, mas não como ele existe no seu mundo, já que não pode construir uma representação interna do mesmo.
A resposta consiste em perceber que o modo como um fechamento operacional se dá pode fazer emergir um mundo de significados. Um exemplo interessante pode ser encontrado num autômato anular. Nestes, a regra pela qual se processa o fechamento operacional juntamente com a história do acoplamento do sistema com o seu ambiente faz surgir uma regularidade que não estava explícita na dinâmica do próprio fechamento operacional. Esta regularidade cria uma significação. Por exemplo, é possível estudar como uma cor emerge do comportamento próprio dos neurônios, que a fazem surgir como uma dimensão do acoplamento estável com o nosso ambiente.
O sistema nervoso participa do fenômeno cognitivo de duas maneiras complementares: o primeiro se dá pela expansão do domínio de estados possíveis do organismo; o segundo é abrindo novas dimensões de acoplamento estrutural e tornando possível no mesmo a associação de muitos estados internos diferentes com diferentes interações nas quais o mesmo está envolvido.
Podemos dizer que as propriedades dos neurônios, como sua estrutura interna, sua forma ou sua posição relativa, determinam a conectividade do sistema nervoso, e lhe constituem como uma rede dinâmica de interações neurais... Estando dado que as propriedades dinâmicas dos neurônios se transformam durante a ontogênese do organismo, a conectividade do sistema nervoso se modifica de uma forma que é recursivamente submissa a esta ontogênese. Ainda mais, como a ontogênese do organismo é a história da sua autopoiesis, a conectividade do sistema nervoso é dinamicamente submissa a autopoiesis do organismo." (Varela, 1989, :149).
Nesse contexto podemos chamar de aprendizagem às transformações que se processam no conjunto dos estados possíveis de um sistema nervoso. Estas por sua vez estando ligadas a sua ontogênese em razão das suas interações com o seu meio. Donde a tradicional definição de aprendizagem como mudança de comportamento observável é insuficiente. Pois uma mudança no comportamento observável é apenas um sintoma tardio e parcial do fenômeno da aprendizagem (o que é visível não expressa mais do que apenas uma pequena parte das transformações ocorridas), já que, o que é observável, não é mais do que um dentre os múltiplos caminhos possíveis na ontogênese de um indivíduo em particular.
A aprendizagem enquanto um processo consiste na transformação, através da experiência, do comportamento de um organismo de uma maneira que, direta ou indiretamente, está ligada à manutenção da sua circularidade básica. Este é um processo histórico no qual cada modo de comportamento constitui a base sobre a qual um novo comportamento se desenvolve. O organismo assim está num processo de mudanças contínuo que é especificado através de uma seqüência interminável de interações com entidades independentes que as selecionam mas não as especificam.
O que é comportamento então? Da forma como costumeiramente se descreve ...
"...o comportamento não é alguma coisa que o organismo vivo faz nele próprio (para ele há somente mudanças estruturais internas) mas alguma coisa, que nós indicamos ('point to'). (Maturana, 1992:138).
Mas é preciso avançar nessa compreensão para entender que...
“ ...desde que as mudanças estruturais de um organismo dependem de sua estrutura interna e esta estrutura depende da seu acoplamento estrutural histórico, as mudanças de estado de um organismo em seu ambiente serão necessariamente apropriadas e familiares ao mesmo, independentemente do comportamento ou ambiente que estejamos descrevendo...O sucesso ou falha de um comportamento é sempre definido pela expectativas que um observador especifica." (Maturana, 1992:138).
É preciso entender o comportamento na fenomenologia do sistema. Neste caso: "o comportamento é a transformação estrutural que um organismo pode sofrer em função da conservação da sua autopoiesis". (Maturana, 1992:146). Essa definição contradiz a tendência que se percebe em biologia e mesmo em psicologia em identificar o comportamento com algo facilmente observável (ou com o movimento, que é o que há de mais observável). Os autores citam o exemplo de uma planta que muda completamente sua estrutura quando submersa ou imersa na água (sem se mover, a mudança é lenta e só perceptível depois de muito tempo). De acordo com a definição feita acima, essa mudança estrutural é um comportamento.
Do ponto de vista do observador o comportamento observado no organismo é justificado por alguma experiência passada, ou seja, o observador tem a impressão que o organismo incorpora alguma representação do meio ambiente que, então, atua modificando o seu comportamento. Apesar disto, o sistema funciona sempre no presente, e para ele o aprendizado ocorre como um processo de transformação intemporal. Um organismo não pode determinar à priori quando mudar ou não mudar durante o curso de sua experiência, e nem qual é o estado ótimo que deve alcançar. Conseqüentemente o que o observador chama de memória, não pode ser um processo através do qual o organismo confronta cada nova experiência com uma representação armazenada do seu nicho antes de tomar uma decisão, mas, a expressão de um sistema que ao se modificar é capaz de sintetizar um novo comportamento relevante ao seu presente estado de atividade.
Concluindo, o aprendizado não é um processo de acumulação de representações do ambiente, ele é um processo contínuo de transformação estrutural que um organismo pode sofrer em função da conservação da sua autopoiesis. Ou de outro modo, ele é um processo contínuo de transformação do comportamento através de mudanças sucessivas na capacidade do sistema nervoso para sintetizá-lo. A lembrança não depende de uma retenção indefinida de uma invariante estrutural que representa a entidade (uma idéia, uma imagem ou símbolo), mas da habilidade funcional do sistema para criar, quando certas condições recorrentes são dadas, um comportamento que satisfaça a demanda recorrente, o que o observador classificaria como uma reedição de uma anterior.

4 O fenômeno social, o domínio lingüístico e a consciência

Como pode ser entendido o fenômeno social a partir desta nova concepção do ser vivo? Este fenômeno deve nascer sempre que a conduta de duas ou mais unidades é tal que é gerado um domínio onde estas condutas passam a ser interdependentes. Neste caso, diz-se que elas estão acopladas naquele domínio.
Pode o fenômeno social ser entendido como um sistema autopoiético de ordem superior? Como o fenômeno da comunicação pode ser explicado a partir desta nova percepção da vida? Ao responder a estas questões Maturana e Varela conseguem resposta a uma outra questão de abrangência enorme: eles explicam como a consciência humana nasce a partir das interações sociais e da estrutura biológica.

4.1 O fenômeno social

Na autopoiesis de unidades compostas por outros sistemas autopoiéticos, o sistema composto atinge o seu estado autopoiético através da produção das relações de constituição, especificação e ordem que define um novo espaço autopoiético de segunda ordem. Quando isso acontece o componente autopoiético fica necessariamente subordinado, na maneira pela qual ele realiza sua autopoiesis, à manutenção da autopoiesis de ordem superior. Organismos multicelulares são exemplos de entidades autopoiéticas de segunda ordem.
Nesta perspectiva o fenômeno social é identificado como aquele fenômeno que é espontaneamente gerado pelas acoplamentos estruturais de terceira ordem. Sempre que este acoplamento ocorre, mesmo que por um curto espaço de tempo, ele gera uma particular fenomenologia interna, na qual "...as ontogêneses individuais de todos os organismos participantes ocorrem fundamentalmente como parte da rede de co-ontogênese que elas produzem na constituição das unidades de terceira ordem." (Maturana, 1992:193).
"Vamos agora considerar o que acontece quando um organismo com sistema nervoso entra em acoplamento estrutural com outro organismo que também possui um sistema nervoso. Do ponto de vista da dinâmica interna de um dos organismos, o outro representa uma fonte de perturbações indistinguíveis daquelas oriundas de fontes não bióticas. Estas interações podem contudo adquirir no curso da sua ontogênese uma natureza recorrente. Isso irá necessariamente resultar nos seus desenvolvimentos estruturais subseqüentes: co-ontogênese com envolvimento mútuo através da seu acoplamento estrutural recíproco, cada um conservando sua organização e sua capacidade de adaptação. " (Maturana, 1992:180).
Os insetos sociais, as abelhas, formigas, vespas e cupins, fornecem o mais clássico e impressionante exemplo de acoplamento de terceira ordem. Num mesmo grupo, estes indivíduos apresentam marcantes diferenças morfológicas, o que indica diferenças de papéis dentro do mesmo (reprodutores, trabalhadores, guerreiros ...). Para estes insetos, viver socialmente é necessário inclusive para a sobrevivência dos indivíduos, eles não são capazes de sobreviver quando isolados. Nestes grupos o acoplamento estrutural ocorre a partir de uma troca de substâncias químicas (divisão dos seus conteúdos estomacais), inclusive hormônios e a ontogênese de um indivíduo em particular é contingente com a ontogênese dos outros.
Um grupo de antílopes, quando em perigo, move-se formando uma fila, na qual os filhotes ficam no centro, protegidos, e na retaguarda posiciona-se o macho mais jovem. Os lobos quando vão atacar uma presa adotam uma estratégia coordenada grupal que lhes permite abater animais de porte e força muitas vezes superior à de um lobo isoladamente. Nestes casos o acoplamento estrutural de terceira ordem também ocorre como no caso dos insetos sociais, mas aqui a interação se dá através de muitas formas: química, visual, auditiva, e etc.
A diferença entre os insetos sociais e os vertebrados, deve-se a grande flexibilidade que o sistema nervoso, juntamente com o acoplamento visual-auditivo, fornece a estes últimos. Muitos outros modos e estilos variados de integração podem ser observados entre os primatas.

4.2 O domínio lingüístico

A linguagem é uma forma especial e sofisticada de interação entre dois organismos vivos. Como ela se origina? Primeiramente é preciso definir o que é o fenômeno da comunicação.
Quando dois organismos interagem um pode modificar o comportamento do outro de duas maneiras básicas:

  • Por interações que direcionam o comportamento de ambos de forma que o comportamento subseqüente de cada um é sempre estritamente dependente do comportamento do outro. Uma cadeia de comportamento fechada é assim gerada.

  • Quando, apesar de nenhuma cadeia de comportamento ser diretamente gerada, ocorrer que o comportamento de um organismo oriente o comportamento do outro. Nesse caso, não se teria dependência estrita, mas apenas parcial, ou melhor dizendo as condutas observadas são geradas de interações independentes, mas paralelas.
No primeiro caso os organismos simplesmente interagem, já no segundo caso eles se comunicam, e tem-se aí a base de todo comportamento lingüístico.
Comunicação é, portanto um comportamento coordenado ou mutualmente disparado entre os membros de uma unidade social. Comunicação é portanto um tipo especial de comportamento e logo como em todo comportamento, é possível a distinção entre a comunicação intuitiva e a aprendida, ou entre formas filogênicas (desenvolvimento da espécie) e formas ontogênicas (desenvolvimento individual) de comunicação.
Os animais fornecem belos exemplos de formas de comunicação. Há um certo tipo de pássaro que canta um dueto quando se acasala. Esta coordenação vocal do comportamento do acasalamento sonoro é um fenômeno ontogênico, já que cada casal produz uma melodia única na história da espécie. A imitação é um outro belo exemplo; alguns pássaros numa região da Inglaterra aprenderam a furar a tampa de papel das antigas garrafa de leite e o comportamento rapidamente se espalhou por todas as ilhas rapidamente. A imitação é um modo de interação que permite que um comportamento vá além da ontogênese de um indivíduo, não necessitando portanto ser reinventado a cada geração.
Os comportamentos que são adquiridos ontogenicamente na dinâmica comunicativa de um meio social e que são estáveis por várias gerações são chamadoscomportamentos lingüísticos.
Quando dois ou mais organismos interagem recorrentemente eles geram um acoplamento social. Nestes acoplamentos os comportamentos adquiridos, são chamados de domínio lingüístico uma vez que os mesmos, por serem passíveis de descrições semânticas constituem a base para a linguagem. Dizer que um gato ao caminhar sobre as teclas do piano pela manhã está ‘querendo’ acordar o seu dono, é fazer uma descrição semântica. Ela só foi possível porque este comportamento comunicativo do gato foi aprendido, e portanto é contingente a sua história particular. A chamada ‘linguagem’ das abelhas não é verdadeiramente uma linguagem, pois apesar de haver, neste comportamento, uma fração aprendida, o mesmo se constitui basicamente na estabilidade genética da espécie, ele é filogenético.
Os seres humanos não são os únicos animais a gerarem domínios lingüísticos na sua existência social, mas nesse processo eles, exclusivamente, geram o fenômeno novo da linguagem.
"No fluxo das interações sociais recorrentes a linguagem aparece quando as operações num domínio lingüístico resultam em coordenações de ações sobre ações que pertencem ao próprio domínio lingüístico. Da mesma forma que a linguagem, os objetos também surgem de distinções lingüísticas sobre distinções lingüísticas que obscurecem as ações que eles coordenam. Assim a palavra ‘mesa’ coordena nossas ações com respeito às ações que nós realizamos quando manipulamos uma ‘mesa’, obscurecendo as ações que (como operações de distinção) constituem uma mesa produzindo-a." (Maturana, 1992:209).
Dizendo de outra forma, o uso da linguagem é uma ação reflexa, ou uma ação de coordenação sobre outras ações. Estas se constituem em distinções lingüísticas.
O entendimento da origem evolucionária da linguagem natural requer o reconhecimento de uma função biológica básica na mesma. Este entendimento tem sido impossível porque a linguagem tem sido considerada como um sistema denotativo e simbólico para a transmissão de informação. Mas, se ao invés de ser considerada como denotativa a mesma fosse considerada como conotativa, e se fosse também considerado, como sua função, orientar o organismo dentro do seu domínio cognitivo, e não, apontar para entidades independentes, a origem não lingüística da linguagem começaria a aparecer nas interações aprendidas e orientadas. Essas interações, sob uma pressão seletiva para aplicações recursivas, podem originar, a partir da evolução, o sistema de interações cooperativas e consensuais entre organismos que é a linguagem natural.
A descrição semântica, ou a atribuição de significado, atribui uma função denotativa à linguagem que reside apenas no domínio cognitivo do observador e não na efetiva operacionalidade da interação comunicativa. Donde, falar de transmissão de informação é normalmente aceito pois o ser falante assume que o ouvinte é idêntico a ele e, portanto, tem o mesmo domínio cognitivo. Tal só é verdade para sistemas de comunicação criados pelo homem, pois só nesse caso o emissor e o receptor da mensagem são explicitamente desenhados pelo projetista, e a mensagem, necessariamente seleciona o mesmo conjunto de estados que foram representados na emissão. Não é esse o caso das linguagens naturais.
Isto leva a concluir que biologicamente não há transmissão da informação na comunicação, como o que ocorre na metáfora do tubo. Nesta metáfora uma mensagem é gerada num ponto, ela viaja através de algum meio (tubo) e é recebida no outra ponta. Esta metáfora é usada para indicar a informação contida numa pintura, objeto, ou mesmo a palavra impressa ou falada. Esta metáfora não é adequada, segundo os autores, pois ela desconsidera o determinismo estrutural dos seres que se comunicam e empresta uma dimensão instrutiva à interação. Para ser ouvido não basta falar. “O fenômeno da comunicação depende não do que é transmitido, mas do que acontece com a pessoa que recebe a mensagem.” (Maturana, 1992:196)
Neste sentido não há transferência de pensamento do organismo falante para o seu interlocutor; o ouvinte cria informações reduzindo a sua incerteza a partir de interações no seu domínio cognitivo. O consenso surge das interações cooperativas nas quais o comportamento resultante de cada organismo se torna subserviente à manutenção de ambos.
As interações lingüísticas orientam mas não especificam o curso da conduta, pois, a função da linguagem não é a transmissão da informação nem a descrição do universo, mas a criação de um domínio de comportamento consensual entre os sistemas lingüisticamente interagentes, através do desenvolvimento de um domínio de interações cooperativas.

4.3 A consciência

A vida social humana, com sua intensa dependência lingüística, foi capaz de gerar um fenômeno novo: a mente e a consciência humana. A linguagem torna os humanos capazes de descrever a si mesmos e também as circunstâncias através das quais as distinções lingüísticas das distinções lingüísticas se processam. A autoconsciência emerge como um fenômeno de auto-descrição através da aplicação de um processo recursivo de descrições.
O sistema nervoso não cria a cognição, ele expande o domínio cognitivo do sistema vivo tornando possíveis interações com "relações puras". Como conseqüência, existem organismos que incluem como um conjunto das suas interações possíveis, interações com os seus próprios estados internos, como se eles fossem identidades independentes, gerando o paradoxo aparente de incluir no seu domínio cognitivo o seu próprio domínio cognitivo. Nos humanos este paradoxo é resolvido pelo que se chama de pensamento abstrato, uma outra expansão do domínio cognitivo.
A expansão do domínio cognitivo proporcionada pelo sistema nervoso (relações puras) permite, ainda, interações não físicas entre organismos, de forma que estes orientam-se mutuamente para interações nos seus respectivos domínios. Este comportamento orientado se transforma em representação das interações que foram orientadas, e unidades de interação em seus próprios termos. Aqui temos outro paradoxo aparente, pois há organismos que geram representações das suas próprias interações. Este paradoxo se resolve simultaneamente por duas maneiras:

  • esse organismo pode vir a ser um observador a partir de interações recursivas com estados lingüisticamente gerados, ou seja, esses estados podem ser tratados como objetos de interações futuras, gerando um meta-domínio de distinções consensuais;

  • quando um destes organismos interage com aqueles estados descritivos que são descrições lingüísticas de si próprio, ele passa a ser um observador de si próprio e adquire autoconsciência. A autoconsciência é então auto-observação e toda observação necessariamente permanece num domínio descritivo, que é relativo ao domínio cognitivo. Nenhuma descrição absoluta da realidade é possível.
"Assim é que o aparecimento da linguagem nos humanos e o contexto social global desse aparecimento gera este novo fenômeno da mente e da autoconsciência como a experiência mais íntima da raça humana. Sem uma história apropriada de interações é impossível entrar neste domínio humano...A mente não é alguma coisa que está dentro do cérebro. Consciência e mente pertencem ao domínio da dependência social. Este é o locus da sua dinâmica...A linguagem não foi nunca inventada por ninguém somente para perceber um mundo externo. Portanto, ela não pode ser usada como uma ferramenta para revelar este mundo. O fato é que, é através do linguajar que o ato do conhecimento, da coordenação comportamental que é a linguagem, constitui um mundo. Nós elaboramos nossas vidas numa mútua dependência lingüística, não porque a linguagem nos permite revelar a nós mesmos mas porque somos constituídos na linguagem em uma contínua evolução que produzimos uns com os outros. Encontramos a nós mesmos nesta dependência co-ontogênica, não como uma referência já existente nem com referência a uma origem, mas como uma contínua transformação na evolução do mundo lingüístico que construímos com os outros seres humanos." (Maturana, 1992:234).

5 Implicações epistemológicas e éticas da organização autopoiética

A chave para o entendimento de toda a fenomenologia biológica é o entendimento da organização individual.
O desenvolvimento da teoria evolucionista de Darwin teve um impacto que foi além da explanação da diversidade e da sua origem nos sistemas vivos. Esta teoria pareceu explanar a fenomenologia de uma sociedade competitiva, e também justificar a subordinação do destino dos indivíduos a valores transcendentais supostamente incorporados em noções como humanidade, estado, sociedade etc. É verdade que sob as leis da seleção natural os indivíduos mais aptos sobrevivem, e é óbvio que os que não sobrevivem não contribuem ou contribuem menos para o destino da espécie. Isto parece dar bases à lei do mais forte. Mas esta visão do mundo animal como egoísta, ou a visão das “garras e dentes vermelhos de sangue” é errada. Há instâncias de comportamento altruísta para todos os lados que se olhe. Se o ponto de referência é o grupo, pode parecer que o indivíduo seja irrelevante. Para o indivíduo contudo é a sua manutenção que importa. E não há contradição aqui. O comportamento do antílope jovem que se coloca atrás do grupo para defendê-lo é altruísta considerando o grupo e, ao mesmo tempo, é egoísta pois resulta do seu acoplamento estrutural ao ambiente que inclui o grupo, donde expressa a sua busca de sobrevivência individual. Maturana diz que o antílope é, ao mesmo tempo, altruisticamente egoísta e egoistamente altruísta.
Ter claro o papel do observador na explanação do fenômeno foi outra preocupação básica da perspectiva epistemológica proposta que permitiu aos pesquisadores concluírem que cumpriram a tarefa de construir uma teoria do conhecimento que mostra como o próprio conhecimento gera uma explanação do conhecimento. O propósito dos autores foi encontrar uma via média entre o objetivismo e o solipsismo: entender a regularidade do mundo que o homem experimenta a cada momento, mas sem qualquer ponto de referência independente dele mesmo.
Varela assinala que as reflexões trazidas por ele e seu parceiro remetem a uma história que tem início precisamente em março de 1946. Esta é a data do primeiro encontro que é conhecido pelo nome de "Conferências MACI sobre a Cibernética". Nesses encontros dois pensadores deram os rumos de todo o trabalho científico posterior na área: John Von Newmann - um dos arquitetos da bomba H e da política nuclear americana que pouco tempo antes da sua morte em 1955 chegou a recomendar um ataque a URRS e - Norbert Wiener - criador da cibernética que criticou abertamente o desenvolvimento das armas nucleares e passou boa parte da sua vida refletindo sobre a questão da ética na ciência.
Varela destaca também que quanto ao fenômeno da cognição esses dois homens orientaram duas perspectivas opostas. Para Von Neumann a cognição é fundamentalmente orientada para a resolução de problemas, esse ponto de vista fornece um guia para a construção de máquinas artificiais para o estudo dos seres vivos. Esta visão enfatizou a noção de tratamento da informação na discussão dos processos cognitivos. Para Wiener, a cognição é uma atividade autônoma, auto-criativa, e este aspecto do ser vivo é essencial para a compreensão do processo cognitivo.
O esquema a seguir, elaborado por Varela, exprime de forma sintética as duas teses fundamentais que tiveram grande impacto depois de 1946 (1989:219), em muitos domínios, dentre eles estão as neuro-ciências, a teoria da evolução, a imunologia, a terapia familiar, a inteligência artificial, a teoria da administração e a lingüística. Na maioria desses domínios, a atitude heterônoma tem tido, e mantido, um papel dominante.




Sistemas heterônomos
Sistemas autônomos
Lógica fundamental de operação
correspondência
coerência
tipo de organização
entrada/ saída
funções de transferência
fechamento operacional
comportamentos próprios
modo de interação
um mundo dado com instruções e representações
um mundo emergente de significados
base teórica
John Von Neumann
Norbert Wiener
Tabela 6. As visões autônoma e heterônoma sob vários domínios

Na verdade, as visões heterônoma e autônoma não são a negação uma da outra. As críticas feitas à visão representacionista não pretendiam negá-la, uma vez que, desta forma, emergiria uma visão de sistema autistas ou isolados, inventando o mundo de forma solipsista. É preciso chegar-se ao ponto onde se produza a co-emergência das unidades autônomas e de seus mundos.
As principais conseqüências éticas resultantes da nova conceituação proposta por estes autores foram sintetizadas por Maturana no prefácio que escreveu para a edição norte-americana do seu livro "De maquinas e seres vivos" (Maturana, 1987). Apresenta-se a seguir uma síntese das mesmas.
A existência humana ocorre em um domínio lingüístico e cognitivo que é constitutivamente social. São centrais para o entendimento da dinâmica do processo social a resposta às seguintes questões: O que é um sistema social? Como ele pode ser caracterizado? Como os sistemas vivos e os seres humanos em particular, participam na constituição dos sistemas sociais que eles integram?
Distinguir um sistema social não é descrever um deles em particular, é definir um sistema que se posto em operação geraria um domínio fenomenal indistinguível daqueles próprios aos sistemas sociais. Maturana propõe, então, que tal sistema é composto por uma coleção de sistemas autopoiéticos que, através da realização da sua autopoiesis, interagem uns com os outros constituindo e integrando um sistema que opera como um meio no qual eles realizam suas autopoiesis. Daí decorreria que:

  • A realização das autopoiesis dos componentes é constitutiva do sistema;

  • uma coleção de seres vivos integrando uma unidade composta através de relações que não envolvem a sua autopoiesis não é um sistema social;

  • A estrutura de uma sociedade como um particular sistema social é determinada pela estrutura dos seus componentes autopoiéticos e pelas relações que os prendem enquanto integrantes daquele sistema social;

  • Numa sociedade, a todo momento, a estrutura dos componentes determina as suas propriedades, e estas compreendem a estrutura da sociedade. Esta estrutura da sociedade, por sua vez, opera como um seletor da estrutura dos seus componentes, na medida em que é o meio no qual realizam a sua ontogênese;

  • Um sistema autopoiético participa de um particular sistema social, somente se ele realiza as relações próprias dos componentes daquele sistema social. Nesse caso, uma unidade autopoiética pode entrar ou sair de um sistema social a qualquer momento e pode, ainda, participar de vários sistemas sociais ao mesmo tempo.
São as interações recorrentes entre os mesmos sistemas autopoiéticos que constituem um sistema social e para que tais interações ocorram é preciso uma estabilização biológica das estruturas. Nos seres humanos o fator de estabilização básico é fenômeno do amor: a visão do outro como parceiro em alguma dimensão da sua vida. A escolha por um particular meio de vida é uma escolha ética, cujo problema fundamental é: a justificação das relações particulares de subordinação da autonomia e da individualidade que ele demanda para ele próprio e para os outros membros da sociedade que ele gera e valida com a sua conduta.
Um sistema social é essencialmente um sistema conservativo. A sociedade opera como um sistema homeostático que estabiliza as relações que a definem como um sistema social de um tipo em particular, isto se dá porque ela é gerada pelas interações dos mesmos componentes para os quais constitui o meio seletor dos caminhos de mudanças estruturais ontogênicas.
Uma mudança nas relações que definem uma sociedade como um particular sistema social, pode somente ocorrer a partir de uma mudança nas propriedades dos componentes que a tornam real. Numa sociedade humana mudanças só podem ocorrer na medida que as condutas dos homens mudem.
As interações entre as unidades participantes de uma sociedade devem confirmar as relações que a definem, noutro caso o organismo que interage deixa de ser componente da mesma. Daí que a criatividade na geração de novas relações sociais sempre implica interações fora da sociedade e gera novos modos de conduta que mudas as relações definidoras da sociedade ou separa os indivíduos criativos da mesma.
"O curso espontâneo das transformações históricas de uma sociedade humana como uma unidade aponta para o totalitarismo; isto é assim porque as relações que produzem a estabilização histórica são aquelas que tem a ver com a estabilidade da sociedade como uma unidade em um meio dado, e não com o bem estar dos seus componentes humanos que podem operar como observadores. Qualquer outra trajetória requer um escolha ética; ela não será espontânea, ela será um trabalho de arte, um produto do projeto estético humano. " (Maturana, 1987:XVIII).
Nem todo ser humano apanhado pela malha de relações geradas num sistema social, participa do mesmo como um ser social. Se sua participação não envolve a sua autopoiesis como uma característica constitutiva do mesmo, este ser humano está sendo usado pelo sistema social mas não é um dos seus membros.
Apesar de que todas as sociedades sejam biologicamente legitimadas, em muitas delas um ser humano não desejaria viver. O homem tem a capacidade "...como um sistema social centrado na linguagem, de se transformar num observador, que pode, se ele tem a experiência adequada, contemplar esta sociedade que ele integra, como se fosse externo a situação em que ele mesmo se encontra, e gostar ou não gostar dela . " (Maturana, 1987:XXIX). Uma sociedade totalitarista restringe as experiências que os seus membros podem ter, donde eles não podem funcionar como observadores, ou então são desacoplados como dissidentes e não lhes permitem seduzir a outros.
"Quando um ser humano A encontra outro ser humano B e o ama, ele vê B num contexto social e se transforma num observador da sociedade que B integra. A pode gostar ou não do que ele vê em referência a B e agir neste sentido, se transformando num ser anti-social se sele não gosta do que ele vê. Uma sociedade totalitária absoluta deve negar o amor como uma experiência individual porque o amor, cedo ou tarde, leva a uma avaliação ética da sociedade que o ser amado integra." (Maturana, 1987:XXIX).
"Uma sociedade humana na qual ver todos os seres humanos como equivalentes a si próprio, e amá-los, é operacionalmente legitimado sem exigir dos seus integrantes subordinação da sua autonomia e individualidade além do que eles estariam dispostos a aceitar por si mesmos enquanto integrantes, é um produto da arte humana, isto é, uma sociedade artificial que admite trocas e aceita cada ser humano como não dispensável. Esta é necessariamente uma sociedade não hierárquica na qual todas as relações de ordem são constitutivamente transitórias e circunstanciais para a criação de relações que continuamente negam a institucionalização do abuso humano. Tal sociedade é na sua essência uma sociedade anarquista, uma sociedade feita para e por observadores que não submetem a sua condição de observadores enquanto clamam por liberdade social e respeito mútuo." (Maturana, 1987:XXX)

Extraído de www.luizalgarra.blog.br

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