quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Aprendendo a olhar o mundo através de um caleidoscópio... Antonino Condorelli

Aprendendo a olhar o mundo através de um caleidoscópio: anotações para uma educação transcultural - Antonino Condorelli

Fonte: site da Rede Social Unifreire - Universitas Paulo Freire


Artigo enviado e aprovado, mas não apresentado, no IV Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares. João Pessoa, Novembro de 2009.



Resumo

O artigo examina, em primeiro lugar, as implicações cognitivas e inter-relacionais da adoção de maneiras de pensar e de interagir com o mundo diferentes das governadas pelo paradigma reducionista-disjuntivo de matriz cartesiana dominante no Ocidente e, como conseqüência primeiro da colonização e sucessivamente de uma mundialização unilateral, também em boa parte do planeta. Em seguida, esboça alguns princípios para uma possível reforma educacional em direção a pedagogias transculturais que não favoreçam apenas a manifestação das diversas maneiras de pensar o mundo e de viver presentes na sociedade, mas reformulem os currículos e as práticas educativas à luz de estratégias polifônicas de produção de conhecimento e de interação com nós mesmos, com os outros e com o mundo. Por último, reconstrói algumas experiências de pedagogia transcultural praticadas pelo autor na perspectiva da ecologia integral, extraindo algumas conclusões das vivências relatadas e das reflexões desenvolvidas ao longo do trabalho.



Palavras-Chave: Diversidade, Pedagogias Transculturais, Ecologia Integral.

Introdução



Respeitar o diverso é viver a diversidade e incorporar a diversidade no viver: a diversidade dos modos de conhecer o mundo, de se relacionar consigo mesmo, com os demais e com todas as diferentes maneiras de ser da matéria e da vida. Enquanto pó de estrelas, temos uma dívida profunda com o universo e com as mais diferentes manifestações da matéria; enquanto seres orgânicos, produto de uma bifurcação inesperada no processo de emergência e evolução da vida, temos uma dívida ancestral com todas as demais espécies animais e vegetais que povoam nossa casa comum, o planeta Terra; enquanto indivíduos porosos (CYRULNIK, 1999) que (re)constroem-se permanentemente na troca com o outro, seres relacionais que estruturam e habitam mundos inter-mentais afastados da experiência e preenchidos por símbolos e representações (CYRULNIK, 1999), entidades uniduais (MORIN, 2003b) que - além de carregarem em cada célula do próprio corpo a história do universo e a da vida na Terra - criam a reproduzem o tempo todo uma “segunda natureza” (MORIN, 2003b), a cultura, enquanto tudo isso temos um dívida impagável com os demais membros da nossa própria espécie, sem os quais simplesmente não seriamos, posto que não se pode ser, apenas estar-com (CYRULNIK, 1999).

Não é necessário apenas conhecer o diverso, mas praticar modos diversos de conhecer. Não basta viver a diferença, é preciso praticar maneiras diferentes de viver.

É possível acionar diferentes estratégias cognitivas, diferentes maneiras de pensar o mundo, construir e dar sentido à experiência, interagirmos com nós mesmos, com os demais seres humanos e com as restantes manifestações da matéria e da vida. Para isso, não é suficiente conhecer outros olhares sobre o real: é preciso praticar olhares diversos, integrá-los na nossa experiência do mundo, mantendo-nos sempre conscientes dos limites estruturais de qualquer ato cognitivo e de qualquer representação, do inacabamento, a incompletude de qualquer construção de si, permanecendo abertos ao inesperado e até mesmo ao impensável, ao inconcebível. É preciso corporalizar, vivenciar na totalidade do nosso ser físico-bio-psico-socio-cultural, no continuum do nosso processo cognitivo-emocional-corporal em permanente (re)produção a nossa unidade na diversidade e a nossa diversidade na unidade, é preciso sentir e viver a nossa filiação ao universo, a todas as formas de vida, a todos os demais membros da espécie humana. É preciso sentir e viver a diferença étnica, social, cultural, cognitiva, de maneiras de viver como um manancial inesgotável de possibilidades de (re)construção coletiva da realidade. É preciso reconhecer a igualdade essencial de todas as formas de pensar a realidade e de vivê-la.

Isto só poderá acontecer, a nosso ver, através de uma reforma ao mesmo tempo epistemológica, metodológica e curricular da educação que promova pedagogias transculturais que não favoreçam apenas a manifestação das diferentes maneiras de pensar o mundo e de viver presentes na sociedade, mas reformulem os princípios e as práticas educacionais à luz de estratégias polifônicas de produção de conhecimento e de interação com nós mesmos, com os outros e com o mundo.

Neste artigo, examinarei em primeiro lugar as implicações cognitivas e inter-relacionais da adoção de maneiras de pensar e de interagir com o mundo diferentes das governadas pelo paradigma dominante no Ocidente. Em seguida, esboçarei alguns princípios para uma possível reforma educacional em direção a pedagogias transculturais. Por último, reconstruirei algumas experiências de pedagogia transcultural que pratiquei dentro da perspectiva da ecologia integral de Pierre Weil (1990), extraíndo algumas conclusões a partir das reflexões desenvolvidas ao longo do trabalho e dos processos que vivenciei pessoalmente.

Recompor o universo despedaçado mergulhando na polifonia dos modos de conhecer, de ser e de viver



“Se você for um poeta, verá claramente que há uma nuvem flutuando nesta folha de papel. Sem uma nuvem, não haverá chuva; sem chuva, as árvores não podem crescer e, sem árvores, não podemos fazer papel. A nuvem é essencial para que o papel exista. Se ela não estiver aqui, a folha de papel também não pode estar aqui” (HANH, 2000, p. 14). Seguindo esta pista do mestre Zen vietnamita Thich Nhât Hanh, tentei olhar para o meu corpo com atenção plena, procurando apenas observar, sem nomear. Fazendo-o por um certo tempo, percebi que não é tão fácil como pensava distinguí-lo da minha mente e do meu sistema nervoso, que tudo o que penso, sinto, falo e faço tatua-se em minha carne, encarna-se em sensações, transforma-se em saúde, em doença, afeta os meus órgãos. Tive a sensação de que o meu corpo está conectado ao de outras pessoas, de todas as que conheci, conheço e algum dia conhecerei, pois senti que cada uma das minhas interações produziu, produz – e isto me faz pensar que também produzirá - mudanças que vivenciei na pele, porque cada vez que olhei, falei ou troquei experiências com alguém este “outro” passou a ser parte da minha percepção, do meu universo, mudando os meus metabolismos e as minhas representações, a minha maneira de pensar o mundo. Senti que o meu corpo não está separado da água da chuva, do solo, dos minerais, de tudo o que fez com que os alimentos que ingeri ao longo da minha vida chegassem até mim, incluindo o trabalho de quem os produziu e trouxe à minha mesa, os alimentos que nutriram estas pessoas, as gerações passadas que possibilitaram a sua existência. Senti que não está separado do sol, que sustenta e torna possível a minha vida. Senti que não está separado da história da estrelas, das galáxias, dos planetas, do ar, da água, da terra, das rochas, dos répteis e dos mamíferos, senti que toda a vida orgânica e inorgânica – afinal, como nos diz Atlan (2001), podemos distinguir tão nitidamente o que é vivo o do que não o é? - que pulsou, pulsa e um dia pulsará no universo e na Terra é co-responsável pelo fato de que eu esteja exatamente onde me encontro neste instante, escrevendo estas linhas. Olhando com atenção plena para o meu corpo, sem a interferência da palavra que ao nomear cria o objeto separando-o do magma informe do real (CYRULNIK, 1999), percebi que ele não existe por si só: ele “interexiste” (HANH, 2000) com tudo o mais. Percebi que nenhum de nós simplesmente é, que todos intersomos (HANH, 2000).

Vivenciei na pele a minha natureza de ser global, senti que não há separação entre meu corpo e minha mente, meus pensamentos e minhas emoções, meus aspectos biológicos e meus traços psicológicos, minhas características neurofisiológicas e meus aspectos relacionais, sociais, culturais. Me senti uma entidade unidual (MORIN, 2003a) que carrega a história do universo, a história da vida na terra e cria a reproduz o tempo todo uma “segunda natureza” (MORIN, 2003b), a cultura. Percebi quão arbitrária é qualquer categoria conceitual que nos esquarteja em pedaços e estilhaça o real, que frágeis fundamentos possuem noções quais “o biológico”, “o psicológico”, “o cultural”...

Depois, tentei observar a minha mente com atenção plena durante um certo tempo, procurando me concentrar nos meus pensamentos, as minhas emoções, as minhas sensações e as minhas percepções. Pude, aos poucos, perceber mais claramente como elas nascem, se desenvolvem e desaparecem, como interagem entre si e como inter-retroagem em mim. Percebi, de repente, quão ilusória é a idéia de um conhecimento que não reflita as minhas próprias representações do mundo, os sistemas de significados impregnados em mim pela minha biografia, a minha formação, os meus estados bio-químicos e emotivos (os contingentes e os que se cristalizaram em configurações sináptico-emocionais permanentes), as formas através das quais a minha mente estrutura e atribui sentido às informações que percebo.

Observando o meu corpo e a minha mente com atenção plena durante um certo tempo, senti na pele a impossibilidade de um conhecimento objetivo, a minha irredutibilidade a qualquer uma das minhas hipotéticas “dimensões”, a própria artificialidade destas “dimensões”, pude ver e sentir o quanto elas não são mais do que artifícios mentais e sociais elaborados a partir da minha maneira estruturalmente limitada de perceber o mundo e de todas as “tatuagens invisíveis” que a minha biografia gravou em mim através do ambiente familiar, a formação escolar e acadêmica, os meios de comunicação, as relações sociais, econômicas e políticas que construí e recursivamente me construíram, etc. Ao experienciar a interexistência da qual fala Thich Nhât Hanh, vivenciei em primeira pessoa a ilusoriedade de qualquer idéia de separação entre os indivíduos e entre estes e o seu ambiente. Vivenciei o que afirma Boris Cyrulnik:



Tal como as nossas palavras e os nossos pensamentos têm por função esculpir entidades e fazê-las brotar do real, deduzimos deste conceito que o indivíduo é um objecto coerente, fechado e separado do mundo, o que é falso (...).

O indivíduo é um objecto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser o mesmo quando o biótipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar, a ponto de se tornar ele mesmo um bocado de meio ambiente.

(...) Há organismos, suficientemente separados para que se possam considerar indivíduos, que experimentam, apesar de tudo, a necessidade de estar juntos: estar-com para ser, pressão paradoxal do ser vivo. (CYRULNIK, 1999, p. 91-92).



Antes que prossiga, alguém poderia perguntar: porque falar de mim? O que as minhas vivências e percepções e as reconstruções narrativas das mesmas podem aportar, em termos de conhecimento pertinente, às finalidades deste artigo? Estas dúvidas remetem para um interrogante epistemológico fundamental: existe conhecimento separado do sujeito que conhece?

Para tentar responder esta pergunta, Vergani (2009) recorre à descrição de experiências vivenciadas por físicos que tentavam investigar as propriedades e os comportamentos das partículas subatômicas. Experiências de laboratório descritas por Goswami (1999 apud VERGANI, 2009) mostram que a partícula tradicionalmente considerada como a unidade mínima da matéria, o elétron, possui uma dupla natureza, ao mesmo tempo material e ondulatória. Quando o observamos diretamente se produz um “efeito de coação” (VERGANI, 2009, p. 242) que restringe as suas capacidades de manifestação e o induz a comportar-se apenas como partícula, ou seja, como unidade elementar de matéria que ocupa uma determinada posição espaço-temporal. Porém, fora do nosso olhar e deixando apenas que uma série de aparelhos registrem as marcas de seu comportamento, percebemos uma mudança espantosa:



Mas se nosso olhar o deixar livre de constrangimento, ele cresce indefinidamente, adota a sua “respiração” ondulatória e comporta-se como um halo de possibilidades indeterminadas assumindo patterns irradiantes e gerando múltiplos campos de interferências. (VERGANI, 2009, p. 241).

Estas experiências religam diretamente o nosso mundo mental ao mundo que convencionalmente concebemos como “material”, mostrando que os dois não existem de forma separada e que todo objeto de conhecimento co-emerge junto ao sujeito que o conhece, que participa ativamente da sua construção. Como afirma Vergani (2009):



É o nosso olhar que determina (ou atualiza) as possibilidades da matéria. Não existem “coisas”, apenas o conhecimento que temos delas. Esse conhecimento depende do tipo particular de processo que desencadeamos para as observar – contingente, relativo, parcelar, funcional. Do mesmo modo não existem “acontecimentos”, é o nosso olhar que elabora os eventos em cuja realidade acredita (VERGANI, 2009, p. 245).

Conseqüentemente, conclui a autora: “O conhecimento é uma cumplicidade entre nós e o nosso olhar” (VERGANI, 2009, p. 245).

A não-separabilidade de qualquer forma de conhecimento do sujeito que a constrói também é defendida por Morin (2002a), que ressalta que todo conhecimento é estruturalmente caracterizado pela incerteza: incerteza cérebro-mental (todo conhecimento é produto de um processo de tradução e reconstrução da mente), incerteza lógica (a possibilidade de que princípios diferentes e aparentemente antinômicos coexistam para abranger a complexidade de um fenômeno e torná-lo inteligível), incerteza racional (a possibilidade de que a racionalidade, caso não realize uma autocrítica permanente, cristalize os conhecimentos em construções mentais fechadas e dogmáticas) e incerteza psicológica (a impossibilidade de estar totalmente conscientes das influências que sonhos, desejos, fantasias, idéias, emoções, mitos, imagens etc. exercem sobre a nossa percepção da realidade). Aos limites já mencionados acrescenta-se outro fundamental, também identificado por Morin, (2002b), que são o que o filósofo denomina “cegueiras paradigmáticas”, isto é, o controle que o paradigma – entendido como o conjunto dos conceitos e as operações lógicas definidas pela mente como princípios organizadores do conhecimento e inteligibilidade do real – exerce, muitas vezes de forma inconsciente, sobre a forma como a realidade é percebida e compreendida. Sendo assim, pergunta-se Morin no final da introdução do primeiro volume da sua obra O Método (2002c), o sujeito cognoscente está totalmente impregnado em qualquer processo de conhecimento e narrativa sobre o conhecido. Ocultá-lo atrás do biombo de um discurso impessoal implica em compactuar com uma farsa: a de que seja possível expulsá-lo do conhecimento, quando na verdade ao desaparecer do discurso instala-se, de fato, na “torre de controle” do mesmo, isto, é, no núcleo de operações lógicas e axiomas assumidos como fundamentos da “evidência” e motores subterrâneos, inconscientes e não-problematizados, da dinâmica cognitiva.

Por sua vez, Cyrulnik (1993) mostra que a palavra modifica o objeto observado introduzindo a subjetividade do observador que recorta, seleciona, interpreta. Os dois, observador e objeto, não são separáveis: a realidade é uma construção intersubjetiva, um relato compartilhado no qual intervém elementos físicos, biológicos, psicológicos, sócio-históricos, culturais: “Dar um nome à coisa a observar introduz o olhar do observador e modifica o relacionamento” (CYRULNIK, 1993, p. 39).

Se “todo conhecimento sobre qualquer fenômeno é uma construção a partir de indícios, pistas, sinais” (ALMEIDA, 2002, p. 42), uma construção operada dentro dos limites do nosso aparelho cérebro-mental, do paradigma que comanda os processos da inteligibilidade, dos nossos estados bio-químicos e emocionais, da constelação de influências sociais e culturais das quais estamos impregnados – que produzem e recursivamente são produzidas pelas entidades noológicas (o conjunto de idéias, crenças, valores, mitos, ideologias, etc.) que habitamos e pelo qual somos habitados (Morin, 2001) - e, por isto tudo, uma atualização permanente de possibilidades do real, perceberemos que, como afirma Vergani, o conhecimento válido “é uma qualidade do sujeito que observa, investe atenção, adequa e realiza” (VERGANI, 2009, p. 245) e não depende de uma hipotética “aderência” a supostos “objetos reais”. Sendo o ato cognitivo “uma experiência pessoal da ordem da epifania, o poder que temos de co-nascer com o mundo” (VERGANI, 2009, p. 245), os objetos não são mais do que “convenções nominais que evocamos a fim de podermos lidar funcionalmente com as coisas” (VERGANI, 2009, p. 245) ou, como aponta Latour (1994), construtos conceituais convenientes para as operações que desejamos realizar sobre o real.

Conseqüentemente, a separação rígida entre sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, cultura e natureza, mente e corpo, razão e sentimento, ser humano e outros estados de ser da matéria e da vida - uma fragmentação operada pelo paradigma reducionista-disjuntivo (Morin, 2001) surgido no século XVII, sistematizado por René Descartes e dominante no Ocidente e hoje, como conseqüência primeiro da colonização e sucessivamente de uma mundialização unilateral, também em boa parte do planeta[1], seja nas visões de mundo do chamado “senso comum” como nos saberes e métodos de produção de conhecimento científicos – não é mais do que a cristalização em estruturas mentais rígidas de uma atitude cognitiva funcional à operacionalidade do pensamento humano: a de distinguir para melhor compreender. Todavia, como mostra Bohm:



[...] quando este modo de pensamento é aplicado de uma forma mais ampla à noção do homem a respeito de si mesmo e a respeito do mundo em que vive (isto é, à sua visão de mundo pessoal), então, ele deixa de considerar as divisões resultantes como meramente úteis ou convenientes e começa a ver e a experimentar a si próprio e ao seu mundo como efetivamente constituídos de fragmentos separadamente existentes. (BOHM, 1998, p. 20-21).



Esta percepção despedaçada da realidade gera um mundo onde entidades isoladas (indivíduos, grupos, etnias, classes sociais, países, civilizações etc.), que se experienciam como independentes umas das outras, encontram-se em choque permanente, em constante conflito pela afirmação e a hegemonia dos respectivos interesses, desejos, necessidades, ambições, sonhos, etc. Esta visão repercute tanto nas relações interpessoais como nas relações étnicas, as de gênero, as sócio-econômico-políticas e as entre ser humano e natureza não-humana, isto é, e outras formas de vida ou estados de ser da matéria.

A minha experiência pessoal em uma forma de conhecer a realidade e conhecer-me a mim mesmo não disjuntiva, onde sujeito e objeto, mente e corpo, sentimento e razão não encontram-se dicotomizados, mas inter-retroagem e moldam-se mutuamente configurando uma percepção integral da minha condição de homem e uma visão simbiótica das relações entre ser humano, matéria e vida mostra, como afirma Almeida, que “é possível acionar outros pólos cognitivos para conhecer e viver, para projetar e fazer acontecer formas de pensar e viver a condição humana” (ALMEIDA, 2002, p. 45).

Superando as “monoculturas da mente”: anotações para umas pedagogias transculturais



À luz do que descrevi, acredito que trabalhar a diversidade na educação signifique essencialmente romper com a ocidentalização do pensamento (cfr. nota 1), geradora de uma “monocultura da mente” na sugestiva metáfora de Vandana Shiva (2003), e promover uma ecologia dos saberes que supere a fragmentação do paradigma reducionista-disjuntivo e insira o sujeito na complexa rede de inter-retroações entre vida, matéria, pensamento, cultura, sociedade e, acima de tudo, impulsionar pedagogias transculturais que possibilitem não apenas a expressão das diferentes experiências do mundo, as diferentes estratégias de conhecer e de viver presentes no seio de uma sociedade mestiça como a brasileira, mas permitam re-fundar as práticas pedagógicas e curriculares conceitual, axiomática e metodologicamente de forma a reconstruir o processo educativo assentando-o em novas bases paradigmáticas miscigenadas. Umas pedagogias que, como propõe Almeida, facilitem “uma aprendizagem mestiça capaz de transformar experiências singulares em configurações mais híbridas, simbólicas e exodependentes” (ALMEIDA, 2008, p. 111). Reformular as práticas pedagógico-curriculares em uma perspectiva transcultural implica, portanto, em promover estratégias cognitivas, afetivas e relacionais mestiças que, integrando os aportes de diferentes maneiras de ser, conhecer e estar no mundo, permitam estimular uma visão interdependente e simbiótica de si e do “outro”, de indivíduo e sociedade, de cultura e natureza, de saberes científicos e saberes da tradição, de pensamento lógico-racional e pensamento mítico-simbólico, de mundo vivo e mundo não-vivo.

Promover pedagogias transculturais é uma escolha que requer uma ruptura epistemológica radical, mas inevitável a partir do momento em que se concebe o conhecimento como uma construção subjetiva e intersubjetiva produto da interação do(s) nosso(s) olhar(es) com o mundo: o reconhecimento de que todas as formas de conhecer e interagir o mundo possuem o mesmo status cognitivo-operacional, de que não existem culturas ou métodos de produção de conhecimento mais válidos, mais legítimos, em definitiva, “superiores” a outros. Como mostra Vergani:



Uma cultura é a expressão temporal de um ponto de vista singular e irredutível sobre o mundo. O homem não vive só do seu pensamento ou das suas capacidades cognitivas, mas também do desenvolvimento da sua sensibilidade, do seu sentido crítico, das suas faculdades criativas. Dependendo a sua felicidade das condições que permitem a sua realização harmônica e integrada, cada cultura oferece uma “forma de vida” capaz de possibilitar esta globalidade de bem-estar humano original e histórica. (VERGANI, 1995, p. 24-25).



O pensamento lógico-racional e o método disjuntivo de produção de conhecimento são apenas uma das possíveis formas de conhecer e operar sobre o mundo e, vistas as conseqüências sociais e ambientais do modelo de desenvolvimento humano decorrente da cristalização deles em paradigma, aparece mais urgente do que nunca perceber seus limites, relativizar seu poder cognitivo e operacional sobre o real e integrá-lo em estratégias mais amplas, complexas - no sentido atribuído à expressão por Morin (2003a), ou seja, estimuladoras de uma aptidão do pensamento que religa ao invés de desunir – e ecológicas de construção de conhecimentos e modos de vida. Como afirma Vergani (1995), a suposta superioridade do modelo ocidental:



[...] costuma justificar-se pelo desenvolvimento de uma ciências que determina a face tecnológica do progresso. Ora a ciência, enquanto sistema particular de representação, é uma subcomponente da cultura; e a técnica, enquanto sistema particular de acção, é apenas a concretização da ciência aplicada à materialidade do nosso quotidiano. Donde a carência tecnológica nunca poderá ser sinônimo de pobreza cultural. De resto, a ciência limita-se a disciplinar o que o pensamento lógico pode dominar. Não controla o “excesso disponível de significado flutuante” que permite à sensibilidade estática a gestação da(s) arte(s), e às capacidades intuitivas em geral a concepção do conjunto das expressões renovadas da criatividade humana. Os cientistas redescobrem hoje o fantástico poder deste irracional, ou deste imaginário que voluntariamente reclamam enquanto princípio de pensamento inovador. Sabem também que o pensamento simbólico e o pensamento mítico possuem o mesmo grau de coerência que o pensamento racional. (VERGANI, 1995, p. 26).



Umas pedagogias transculturais implicarão, então, tanto numa re-organização curricular profunda que incorpore uma forma transdisciplinar e complexa de entender e construir o conhecimento científico, promovendo a consciência da unidualidade (MORIN, 2003a) de ser humano e natureza não-humana, eu e tu, nós e “eles”, matéria e vida, razão e sentimento, o que quer dizer “reacender a memória de nossa condição humana mestiça[2]” (ALMEIDA, 2008, p. 112), como ampliar as experiências cognitivas, corporais, afetivas e relacionais de forma a promover uma vivência integral do diverso, incentivar um conhecimento abrangente e interligado do mundo, desenvolver a criatividade e a sensibilidade como vias de aproximação ao real tão válidas quanto a lógica identitária-dedutiva[3] e a racionalidade baseada nesta última e, acima de tudo, corporalizar uma maneira de conhecer, ser e viver fundamentada na percepção plena da unidade na diversidade e a diversidade na unidade.



A vivência multidimensional do diverso: experiências de pedagogia transcultural em uma perspectiva ecológica integral



Umas pedagogias transculturais como as que esbocei - intrinsecamente transdisciplinares e que não separem os processos cognitivos dos afetivo-corporais, integrando-os de forma vivencial – implicam, a meu ver, na adoção e na incorporação nas políticas e as práticas curriculares de uma visão ecossistêmica da educação, isto é, uma percepção do educador e do educando como holons (MORAES, 2009), totalidades indivisíveis de corpo, mente, emoções e instintos onde cada esfera afeta todas as outras, híbridos onde vida, psique e imaginário inter-retroagem e (re)produzem-se reciprocamente, totalidades integradas de forma interdependente ao resto do existente, seja os demais indivíduos (sociedade) como tudo o mais que integra o universo (as diversos modos de ser da matéria e da vida). Uma perspectiva que muda radicalmente o foco do processo educativo. Como mostra Moraes:

(...) [o aluno é] um “sujeito coletivo”, inserido numa ecologia cognitiva da qual fazem parte outros humanos, cujo pensamento é também influenciado pelas pessoas integrantes do ambiente, a partir de uma relação contínua existente entre o pensamento e o ambiente em geral, dois aspectos inseparáveis de um único processo, cuja análise em partes distintas já não faz mais sentido. (MORAES, 2009, p. 15).



É com base nesta visão que, nas minhas experiências de educação popular no âmbito de projetos de organizações-não-governamentais sobre interculturalidade e religação entre ser humano-natureza não-humana, tenho apostado em uma reformulação das práticas pedagógicas e assessorado na re-elaboração dos currículos de escolas rurais na perspectiva da ecologia integral de Pierre Weil (1990), enriquecida com aportes de diferentes matrizes cognitivo-culturais, tanto presentes no tecido social brasileiro como originárias de outras civilizações.

A pedagogia ecológica integral fundamenta-se na tríade composta por ecologia pessoal, ecologia social e ecologia ambiental (WEIL, 1990). A ecologia pessoal visa promover no indivíduo uma percepção de si como uma totalidade dinâmica e indivisível, ao mesmo tempo autônoma e dependente de tudo o mais, um ser híbrido onde matéria, vida, sentimentos, razão, cultura se afetam e moldam reciprocamente de forma dialógica e recursiva, onde as energias de caos, ordem e organização operam o tempo todo de maneira complementar e antagônica, um ser que ao mesmo tempo (re)produz e é permanentemente (re)produzido pelo seu ambiente, junto ao qual co-emerge a cada instante. A ecologia social busca a integração dialógica do ser humano com a sociedade promovendo a percepção da interdependência entre o “eu” e o “outro”, entre as diversas estratégias de pensamento e produção de conhecimento, entre as diversas maneiras de ser e de viver. A ecologia ambiental objetiva a integração do ser humano com a natureza não-humana, estimulando processos de transformação pessoal e social no sentido da adoção de estilos de vida individuais e coletivos não-agressivos para com o planeta. Trabalhar a ecologia ambiental implica na superação da visão antropocêntrica, própria da cultura ocidental e o paradigma de pensamento ocidentalocêntrico, e na geração de solidariedade e de um sentimento de comunhão/interdependência/dívida com os demais seres vivos e não-vivos.

Nas minhas ações de educação popular, tendo a disposição pouco tempo, tenho me concentrado apenas no aspecto vivencial da prática pedagógica, privilegiando as experiências corporais, emocionais e relacionais, embora todas elas tenham produzido modificações significativas na esfera cognitiva, estimulando novas formas de conhecer, perceber, pensar e dar sentido à realidade.

Na perspectiva da ecologia pessoal, tenho implementado e sugerido a incorporação nos currículos de práticas de geração de atenção plena inspirados em tradições meditativas orientais e proposto o direcionamento da atenção assim gerada para o corpo, para as emoções, sensações e percepções e para os pensamentos. Desta forma, tenho tentado estimular em educadores e educandos uma maior compreensão da maneira como os pensamentos, as emoções e as sensações corporais surgem e agem em nós, das transformações que produzem em todos os níveis e das maneiras como interagem e afetam-se mutuamente. Nos módulos sobre ecologia pessoal tenho utilizado também outra prática meditativa oriental tradicional, as visualizações internas, direcionando a atenção plena para elementos como a terra, o ar, o sol, os alimentos que normalmente consumimos, as pessoas que freqüentamos etc., para gerar uma compreensão maior de como cada elemento e cada ser aparentemente “externo” a nós interage conosco e nos sustenta, permitindo-nos existir e no desenvolver, favorecendo um sentimento de confluência do corpo físico no corpo maior do planeta e do universo.

Na perspectiva da ecologia social, tenho implementado e sugerido a incorporação nos currículos de práticas relacionais transculturais que ajudam a estimular uma percepção interligada das dimensões individual e social e o reconhecimento vivencial da não-alteridade do “eu” e o “outro”. Baseando-me em estratégias relacionais presentes tanto em algumas populações africanas como em certas culturas indígenas brasileiras, onde o contato corporal desempenha um papel decisivo na comunicação interpessoal e grupal, promovi exercícios de “reconhecimento” do outro através do olhar nos olhos, o pegar nas mãos, o abraço e a partilha de narrativas biográficas – traço típico das culturas tradicionais africanas, onde a oralidade é um elemento matricial da reprodução cultural e social - em presença mental, isto é, pedindo que toda a atenção daqueles momentos estivesse focada naqueles atos. A razão de ser destes exercícios é gerar uma experiência viva - ao mesmo tempo corporal e afetiva - do diverso, quebrar as barreiras físicas, afetivas e cognitivas que, muitas vezes inconscientemente, se criam entre indivíduos que se percebem como entidades rigidamente autônomas e independentes. Nos módulos sobre ecologia social, tenho promovido também vivências de manipulação artística do corpo do outro como pintar, vestir e ornamentar, tradição característica de muitas populações indígenas, com o intuito de estimular ao mesmo tempo a sensibilidade ao outro, a ludicidade – que, como apontam Maturana e Verden-Zöller (2004), é um dos elementos centrais para um desenvolvimento humano integral, isto é, que interconecte mente, corpo e emoções – e uma criatividade não mais concebida como processo individual, mas como produto de uma complexa teia de inter-retroações com o outro.

Nos módulos sobre ecologia ambiental, tenho estimulado e sugerido a incorporação nos currículos de estratégias pedagógicas que incentivem a experiência corporal direta e em presença mental da natureza não-humana – estratégia cognitivo-relacional de interação com o mundo própria de muitas populações indígenas – para permitir que educadores e educandos sintam o planeta Terra como um organismo vivo do qual a espécie humana é um elemento indissociável e com quem compartilha um destino comum, incentivando assim uma consciência mais clara da conexão entre pensamentos, sentimentos, atitudes e comportamentos individuais e equilíbrio ambiental. Para isto tenho realizado trilhas na mata atlântica, na caatinga, em manguezais e outros ecossistemas com educadores e alunos, assim como banhos de rio, de mar ou de cachoeira e sessões de observação e contato corporal com árvores, plantas, rochas, algumas espécies animais e outras manifestações da natureza não-humana, pedindo que tais experiências fossem vividas em presença mental. Isto tem permitido que fossem experienciadas de forma integral, com o corpo e a mente completamente mergulhados nas sensações, emoções e intuições que brotam naturalmente das inter-retroações com outras espécies orgânicas e inorgânicas.



Considerações finais



As experiências de educação popular que tenho implementado no âmbito de projetos de organizações-não-governamentais monstram que estratégias diferentes – com relação ao paradigma reducionista-disjuntivo de matriz ocidental - de conhecer e interagir com nós mesmos, com os outros membros da espécie humana e com os diversos modos de ser da matéria e da vida podem não apenas ser incorporadas nas práticas pedagógicas contribuindo de forma eficaz no desenvolvimento cognitivo, emocional e relacional dos sujeitos envolvidos no processo educativo e na promoção do respeito e a valorização da diversidade, como re-fundar a própria maneira de fazer educação – a partir da organização curricular – superando a visão de mundo ocidentalocêntrica que a estrutura e assentando-a em bases complexas e mestiças como o são os indivíduos, a sociedade e a própria vida no planeta.

Hoje em dia, face à ameaça de uniformização planetária do pensamento, as estratégias cognitivas e os modos de vida que uma mundialização unilateral está impondo - sorrateira ou abertamente - a todos os povos, com conseqüências dramáticas não apenas em termos de empobrecimento cultural global, mas da própria sobrevivência da espécie humana e das outras formas de vida, a promoção de uma pedagogia transcultural que viabilize estratégias para estimular a religação do eu com o outro, do homem com a Terra não é apenas um processo desejável, mas uma necessidade urgente e improrrogável.

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