domingo, 24 de janeiro de 2010

O crepúsculo dos sábios - Olgária Matos

O crepúsculo dos sábios



Olgária Matos *



"Apática, sem maravilhamento, a universidade pós-moderna se
esqueceu de sua dívida simbólica com as gerações passadas"

O conceito de universidade moderna e a natureza do conhecimento que
ela produziu até os anos 1960 tinham por objetivo formar o cientista.
Este representava o "mestre da verdade" porque capaz de compreender seu
ofício na complexidade dos saberes e da história. Sua autoridade procedia
de sua palavra pública, pela qual se fazia responsável. O cientista era o
intelectual, e para ele a pesquisa não correspondia a uma profissão, mas
a uma vocação.

O conhecimento mantinha sua autonomia com respeito às determinações
imediatamente materiais e do mercado. Sua temporalidade - a da reflexão -
compreendia-se no longo prazo, garantidora da transmissão de tradições e
de suas invenções.

A universidade pós-moderna, por sua vez, converte pesquisa em
produção, constrangendo-se à pressa e à produtividade quantificada do
conhecimento, adaptando-se à obsolescência permanente das revoluções
técnicas, promovidas pelas inovações industriais segundo a lógica do
lucro. A temporalidade do mercado confisca o tempo da reflexão, selando o
fim do papel filosófico e existencial da cultura.

Para a universidade moderna não cabia a pergunta "para que serve a
cultura", mas sim "de que ela pode liberar". A universidade moderna
elevava a sociedade aos valores considerados universais no concerto das
nações que procuravam uma linguagem comum ao patrimônio cultural de toda
a humanidade, devolvendo-o à sociedade com seus maiores cientistas e seus
melhores técnicos. Essa foi a tradição de Goethe que havia formulado a
ideia da Weltliteratur, da literatura universal como cosmopolitismo do
espírito.

A universidade pós-moderna é a da indiferenciação entre pesquisa e
produção. O intelectual cultivado foi destituído - em todos os domínios
do conhecimento - pelo especialista e seu conhecimento particularizado,
cujo contato com a tradição cultural é episódico ou inexistente. Seu
discurso não diz mais o "universal" e se limita a formulações técnicas,
perdendo-se o sentido do conhecimento e seus fins últimos, com a passagem
da questão teórica "o que posso saber" para a pragmática "como posso
conhecer".

Para Gunther Anders, o emblema da conversão do intelectual em
pesquisador, da razão crítica em desresponsablização ética e
racionalidade técnica, foi Fermi na Itália e Oppenheimer nos EUA, cujas
pesquisas sobre a bomba atômica foram tratadas por eles em termos
estritamente técnicos.

A universidade pós-moderna não lida mais com as "grandes
narrativas" nem busca a fundamentação do conhecimento e seus primeiros
princípios. Como o mercado, se pauta pela mudança incessante de métodos e
pesquisas. Nada aprofunda, produzindo uma cultura da incuriosidade, imune
ao maravilhamento. Em sua pulsão antigenealógica, acredita que tudo o que
nela se desenvolve deve a si mesma, não reconhecendo nenhuma dívida
simbólica com as gerações passadas. Essa circunstância, por sua vez, pode
ser compreendida no âmbito da massificação da cultura e da universidade.

Com a ditadura dos anos 1960 no Brasil, a universidade pública
moderna - concebida de início para formar as elites governantes, a partir
do ideário de universidade cultural, científica e com suas áreas técnicas
- começa sua desmontagem, o que e resulta em sua massificação.

Sob a pressão de massas historicamente excluídas dos bens
científicos e culturais, bem como do sucesso profissional aferido pelo
enriquecimento nas profissões liberais, a universidade pós-moderna acolhe
populações sem o repertório requerido anteriormente para a vida
acadêmica.

Face ao ideário moderno baseado no mérito de cada um e não mais no
sistema nobiliárquico do nascimento, e sua incompatibilidade com a
desigualdade real de oportunidades para a ascensão social, a universidade
pós-moderna questiona, contrapondo-os, mérito e igualdade, reconhecendo
no primeiro a manutenção do regime de privilégios e distinções do
passado.

Assim, a universidade atual adapta-se à fragilidade do ensino
fundamental e médio, passando a compensar as deficiências dessa formação.
Para isso, a graduação retoma o ensino médio, a pós-graduação a
graduação, o doutorado o mestrado, cuja continuidade é o pós-doutorado,
tudo culminando na ideia da "formação continuada" e de avaliações
permanentes. Ao mesmo tempo, a ideia de pesquisa moderna anterior
transforma-se em fetiche pós-moderno, tanto que a iniciação científica se
faz para estudantes em preparação para a vida universitária adulta, mas
constrangidos a publicações precoces.

O paradoxo é grande, uma vez que, maiores as carências nos anos de
formação do estudante - como a precariedade no acesso à bibliografia em
idiomas estrangeiros e dificuldades de expressão oral e escrita na língua
nacional -, mais estreitos são os prazos para a conclusão de mestrados e
doutorados.

Prazos e métodos, por sua vez, migram das disciplinas científicas
para todos os campos do conhecimento, sob o impacto do prestígio da
formalização do pensamento, como é possível reconhecer, em particular no
estruturalismo e, mais recentemente, no linguistic turn, sua legitimidade
garantida pelo rigor científico de suas formulações. Acrescente-se o
abandono da ideia de rigor na escrita e o fim do estilo, com o advento do
gênero paper e a multiplicação de congressos no mundo globalizado.

Massificada a cultura, proliferaram, com a ditadura militar, a
privatização do ensino e seu barateamento, as universidades particulares
- salvo as exceções de praxe - prometendo ascensão social e acesso ao
"ensino superior" e decepcionando suas promessas. A universidade moderna
que a antecedeu garantia o exercício da formação especializada e se
encontrava na base dos cursos técnicos com formação humanista para todos
os que não se encaminhavam para a pesquisa, devendo atender à
profissionalização, mas também à felicidade do conhecimento.

A emergência da universidade pós-moderna diz respeito ao abandono
dos critérios consagrados até então a fim de democratizá-la. Mas a
democratização pós-moderna é massificação. A sociedade democrática
comportava diversas representações das coisas: os partidos representavam
as diferentes opiniões, os sindicatos os trabalhadores, a Confederação
das Indústrias os empresários.

Na sociedade pós-moderna, o consenso é produzido pela mídia e suas
pesquisas de opinião, através da eficiência persuasiva da televisão, que
primeiramente cria a opinião pública e depois pesquisa o que ela própria
criou. Razão pela qual massificação significa perda da qualidade do
conhecimento produzido e transmitido, adaptado às exigências de massas
educadas pela televisão, com dificuldade de atenção e treinadas para a
dispersão, mimadas por uma educação que se conforma a seu último ethos.

A cultura pós-moderna é a da "desvalorização de todos os valores".
Sua noção de igualdade é abstrata, homóloga à do mercado onde tudo se
equivale. Em meio à revolução liberal pós-moderna, a universidade presta
serviços e se adapta à sociedade de mercado e ao estudante, convertido em
cliente e consumidor, como o atesta a ideologia do controle dos docentes
por seus alunos.

Em seu ensaio Filosofia e Mestres, Adorno diz, temendo incorrer em
sentimentalismo, que o conhecimento exige amor. Sua universidade, a de
Frankfurt, era moderna, humanista, como era humanista o professor de uma
fita italiana dos anos 1970. No filme, estudantes impedem o franzino
docente de literatura românica com seus compêndios eruditos de entrar na
sala de aula onde discutem questões do curso.

Sentado em um banco, o mestre escuta o vozerio e ruídos de cadeiras
sendo arrastadas. Por fim é chamado e, quando entra, os estudantes em
suas carteiras estão em círculo, e o professor senta-se entre eles.
Discutem então o que o professor deveria ensinar-lhes. Como não chegam a
nenhum consenso e o dia se faz crepuscular, decidem finalmente deixar que
o professor se manifeste. Ao que o professor, retomando seu lugar junto à
lousa e diante de todos, anuncia: "Estou aqui para ensinar a vocês a
beleza de um verso de Petrarca".

Metáfora rigorosa para a educação, da escola maternal à
universidade, o conhecimento, como escreveu Freud, é uma das tarefas mais
nobres da humanidade no longo processo de sua humanização.

* Olgária Matos é professora de filosofia da USP. Artigo publicado
em "O Estado de SP" em 15/11/09

Nenhum comentário:

Postar um comentário

SER(ES) AFINS