quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Democracia e neurose obsessiva - Olgária Mattos

DEBATE ABERTO

Democracia e neurose obsessiva

Alimentado pela ideologia do consumo, o espectador político é acalentado pela promessa de bem-estar permanente difundida por um “tirano racional”, que promove a beleza e o sucesso. Diante disso, a angústia do perdedor só aumenta e eclode na agressão ao rosto do Presidente italiano.

Olgária Mattos

A idéia de “processo civilizatório” diz respeito ao abrandamento dos costumes e, no Ocidente, surge na oposição gregos e bárbaros. Na tragédia Medéia, de Eurípedes, a oposição entre o grego Jasão e a bárbara Medéia se faz entre o logos ou a palavra racional e o mito ou o irracional.
Irracional são os ritos religiosos com derramamento de sangue humano e, também, o uso do assassinato para decidir conflitos. Assim, quando Aquiles, na Ilíada, quer se vingar do comandante da Guerra de Tróia Agamêmnon - que se apoderou de sua companheira e escrava Briseida - não o mata, mas pronuncia palavras de cólera. O rei ilustre substituía à violência a palavra que se encontra, por isso, na origem da própria civilização.

Civilização e vida civil referem-se ao convívio entre indivíduos, às formas de organização política na polis e, na democracia, à “comunidade dos iguais”. Esta baseava-se em práticas de atenção ao Outro, de estima, respeito e consideração de que nasceram os escritos sobre as “maneiras”, a delicadeza e a graça, como parte da democracia ateniense. Não que os gregos desconhecessem as guerras com outros povos, a guerra civil e o horror dos campos de batalha, mas a política, a filosofia e a tragédia foram construídas por eles como um esforço - nada fácil - e uma barreira contra a violência.

As modalidades de convívio político são tão mais bem sucedidas quanto seus representantes são legais e legítimos. Por isso, na democracia,a noção de autoridade significa mais do que força e poder pois comporta apego aos senhores legítimos e à liberdade. O governante nada faz sem consultar toda a cidade. Não lhe dá ordens, mas pede seu apoio e todos o concedem: artesãos, mercadores, guerreiros, com dedicação alegre e completa. Este remanescente “cavalheiresco” na democracia representativa fazia o servidor igual ao mestre por uma fidelidade voluntária.

A democracia de massa contemporânea é o lugar de uma metamorfose antropológica em que a democracia, onde ela existe, é dominada pelo capitalismo e pela ciência, pelo mercado e pelo especialista que não se ocupa de questões éticas, ambos, mercado e ciência, sucedendo ao declínio da autoridade no mundo contemporâneo. Assim, se Berlusconi se apresenta, na Itália, como um empresário midiático, ele é o “homem sem qualidades”, nada há nele de “ exemplar”, a não ser seu prestígio com as mulheres, sua vida de prazeres e divertimentos. O espectador, como o espetáculo, se apóia em pulsões imediatas, em “estado bruto”, segundo um consumo fugaz e ilusório.

Neste espetáculo total, carregado de informação e comunicação, cada qual seleciona o que lhe apraz, escuta o que lhe convém e acredita no que bem entende. Alimentado pela ideologia do consumo - de bens e de alegrias -,e entretido com seus gadgets,o espectador político é acalentado pela promessa de bem-estar permanente difundida por um “tirano racional”, prestidigitador que promove a beleza,o dinamismo e o sucesso. Diante disso, a angústia do perdedor só pode aumentar e eclode na agressão ao rosto do Presidente italiano.

Na democracia moderna o governante se constrói como alguém que é próximo das massas, como “seu igual e irmão”. Por isso adota a informalidade em palavras e gestos e a promove, operando no espaço público como modelo de pensamento e de ação.

Na neurose obsessiva da igualdade abstrata, não é mais possível diferenciar valores. Dos estudantes que utilizam roupas de festa para ir à escola ao professor autorizado a usar bermudas e havaianas na sala-de-aula, do espancador que atacou com um taco de beisebol a cabeça de um cliente de livraria ao agressor de Berlusconi, das investidas a bengaladas de que foi vítima o ex-chefe da Casa Civil do governo Lula às pedradas contra o governador Mário Covas nos anos 1990, revela-se que a democracia moderna é “passagem ao ato” e desrecalque generalizado.

Com o fim do simbólico - cuja expressão foi a autoridade do governante, do professor, dos pais, do médico, do sacerdote, as práticas de contenção da agressividade e da violência cedem ao linchamento - físico ou moral - por parte daqueles que decidem, em seu pequeno e frágil ego, eliminar o concorrente idealizado pelo capitalismo consumista e seu tédio espetacular.

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.





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