A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA SOCIAL E PSÍQUICA NO PENSAMENTO DE
CORNELIUS CASTORIADIS
THE CONSTRUCTION OF SOCIAL AND PSYCHOLOGICAL AUTONOMY IN THE
TOUGHT OF CORNELIUS CASTORIADIS
Izabel Christina Friche Passos1
RESUMO
O artigo aborda a idéia de autonomia proposta pelo filósofo e psicanalista Cornelius
Castoriadis (1922-1997), segundo a qual a suposição do inconsciente, com o
conseqüente descentramento do sujeito e desmistificação do sujeito consciente de si,
é plenamente compatível com, e mesmo condição para, a construção de uma
subjetividade autônoma. A existência do inconsciente e a busca de autonomia não
seriam pressupostos excludentes, opostos ou incompatíveis e sim complementares.
Palavras-Chave: Autonomia, Subjetividade, Cornelius Castoriadis.
Já é lugar comum atribuir-se a Freud uma espécie de revolução copernicana da
subjetividade contemporânea, ou do sujeito psíquico, na esteira do que teria feito
Nietzsche com o sujeito filosófico ao enunciar a morte de Deus.
O sujeito moderno tendo visto abalada, por Copérnico e Galileu, a crença numa
finalidade teológica ou antropológica para a ordem do mundo, permaneceu,
entretanto, guardião da crença na razão plena e na certeza da consciência
racionalmente guiada. Segundo certa leitura antropológico-filosófica, que propõe a tal
revolução freudiana na cultura, ao modo do que teria feito Copérnico, nas ciências
físicas, e Darwin, nas ciências naturais, teria sido necessária a acumulação de
contradições e mazelas, da nova e já deletéria ordem social industrial moderna, para
que um novo abalo se produzisse na razão auto-iluminadora e autoconfiante do sujeito
moderno com a invenção da psicanálise, na virada do século XIX para o XX.
O sujeito contemporâneo (como sujeito psicanalítico e como sujeito filosófico)
descobre-se descentrado em relação a si mesmo, em sentido duplo. Como
subjetividade, esse sujeito se descobre como não mais senhor de si, de sua
consciência, posto que marcado por uma cisão radical a engendrar nele uma dimensão
irracional e inconsciente que lhe escapa, e, em grande medida, lhe determina. O
radicalismo de tal ferida narcísica residindo no fato de não se tratar de uma falha
circunstancial ou superável, mas, sim, de um aspecto constitutivo do psiquismo
humano. Como sujeito filosófico-epistêmico, isto é, como sujeito de conhecimento, o
sujeito contemporâneo se descobre portador de uma razão contraditória, não mais
garantidora de qualquer verdade transcendental, posto que presa permanente de
equívocos, interesses e contingências.
Aprendemos, também com Freud, a reconhecer certo mal-estar na cultura a
impingir limites intransponíveis para a realização plena dos desejos individuais e da
paz definitiva entre os homens (Freud, 1976 [1920 e 1930]). No entanto, estes
pressupostos psicanalíticos – do sujeito descentrado em relação a si mesmo e da
tensão permanente entre civilização e psiquê – podem ser presas fáceis de um
ceticismo niilista, que ao fim e ao cabo, muito ao contrário de representar uma
verdadeira revolução, se consumiria num conservadorismo incapaz de reconhecer aos
sujeitos a autenticidade de seus projetos de emancipação e autonomia.
Trago para discussão a idéia de autonomia proposta pelo filósofo e psicanalista
Cornelius Castoriadis (1922-1997), segundo a qual a suposição do inconsciente, com o
conseqüente descentramento do sujeito e desmistificação do sujeito consciente de si,
é plenamente compatível com, e mesmo condição para, a construção de uma
subjetividade autônoma. E, mais ainda, que esta última é o leitmotiv do próprio
projeto psicanalítico. A existência do inconsciente – concebido como dinâmico ou como
estrutural – e a busca de autonomia não seriam coisas excludentes, opostas ou
incompatíveis, como querem muitos críticos da idéia de autonomia, mas
complementares.
De fato, essa é uma idéia que tem, contraditoriamente, suas raízes no
iluminismo setecentista e sua consolidação no romantismo coletivista de século
dezenove, como demonstra Figueiredo (1994); isto é, possui vínculos com os ideários
modernos, tanto liberais, quanto românticos. No primeiro caso, do liberalismo,
assumindo um conteúdo político individualista. No segundo caso, do romantismo,
assumindo conteúdos utopistas, coletivistas e espontaneístas, que hoje nos
pareceriam ingênuos. Esta idéia, entretanto, não se esgotaria nestes conteúdos. Para
Castoriadis, a busca de autonomia, como projeto político e coletivo, deve encontrar
sua condição de possibilidade no nível do próprio sujeito individual e, portanto, deve
estar incorporada ao projeto psicanalítico, sem o quê este perderia o sentido.
A idéia castoriadiana de autonomia foi inicialmente desenvolvida em seu livro
mais conhecido, A instituição imaginária da sociedade (1982), e aprofundada em
muitas obras posteriores. A proposta de leitura da psicanálise feita por Castoriadis
implica, como se sabe, certas discordâncias com outras leituras possíveis,
especialmente, com uma das mais respeitadas no meio: a lacaniana. Entretanto, é
preciso registrar uma aceitação cada vez maior de seu pensamento, não só na
filosofia, nas ciências sociais e na psicologia social, onde o autor é referência e sua
obra objeto de estudo em quantidade crescente de teses e artigos, mas também
entre psicanalistas.
A leitura de Freud por Castoriadis implica certa apropriação original da
metapsicologia freudiana em especulações que não se restringem ao psiquismo, mas
que procuram dar conta de uma dimensão fundamental do humano que se entrelaça
ao psíquico: o social-histórico. Especulações acerca do humano, inevitáveis em
teorizações psicanalíticas, diga-se de passagem, têm, no caso deste autor, um real
interesse filosófico, e não apenas psicanalítico em senso estrito. Castoriadis está, de
certa forma, interessado em “salvar” ou recuperar a autenticidade do sujeito reflexivo
e autônomo da filosofia, no interior da psicanálise, como um ser capaz de se pôr a
verdade como um problema e não como um impossível. Ao mesmo tempo, Castoriadis
tem presente, e nunca descarta, as aporias da subjetividade postas por Freud, a partir
da existência do inconsciente, das pulsões e do recalque, que tornam o projeto de
busca de uma subjetividade reflexiva sempre problemático ou inconcluso. Suas idéias
polemizam, principalmente, com a versão formalista do sujeito em Lacan (ou num
certo Lacan estruturalista).
Para evitar, de antemão, o risco de cairmos numa disputa estéril que obrigue a
uma opção entre Castoriadis ou Lacan, apresso-me a citar uma passagem de O divã a
passeio de Fábio Herrmann (1992), a propósito da necessária cautela em relação a
toda especulação em Psicanálise. Diz Herrmann: “a metapsicologia não descreve o
homem total, mas o ser do método interpretativo, isto é, a configuração subjetiva que
a análise cria e desvela, ao mesmo tempo”. Na concepção de Herrmann, a psicanálise
cria o Homem Psicanalítico. As iniciais maiúsculas explicitam a idéia desse homem se
passar por uma entidade, mas de ser, na verdade, uma entidade criada, no sentido
forte de ser inventada pela própria atividade da psicanálise. Sua concretude sendo tão
somente prático-epistemológica. Ao se nomear assim um Homem Psicanalítico, a
própria estranheza ou artifício da nomeação evita-nos cair no perigo de se crer nele
como uma entidade real, uma realidade em si – que em nada não ficaria devendo a
uma mística positivista, e que tampouco é infreqüente no meio psicanalítico.
O perigo dogmático de especulações em psicanálise, afinal exigidas pela
elucidação teórica da atividade analítica e não pelo mero gosto da especulação, como
lembra Castoriadis, ocorre quando essas pretendem dar conta, de forma cabal, da
espessura concreta do real psíquico. Castoriadis não se cansava de dizer que o
psiquismo, como de resto todo real, é inabordável de forma absoluta em sua extensão
e só temos acesso a ele por vias indiretas: os seus efeitos (no caso do psiquismo, os
sonhos, lapsos de linguagem, sintomas neuróticos, lacunas e ambigüidades dos
discursos). Seria bom guardarmos, ao menos neste aspecto crítico, a lição da
Fenomenologia de que o olhar que lançamos sobre a realidade é sempre um olhar
parcial e limitado, não por uma precariedade momentânea, provisória ou superável da
razão, mas por uma característica inerente a nossa capacidade de conhecer. A recusa
de tal limite pode conduzir a perspectivas totalitárias, segundo as quais só haveria
uma única psicanálise ou uma mais verdadeira. A leitura que privilegio é, portanto,
uma, dentre muitas, e a escolho porque, sem se restringir ao âmbito da psicanálise,
Castoriadis irá buscar na filosofia e na política os elementos para que se possa ir além
desse homo psicanaliticus para podermos pensar a possibilidade da autonomia no
sujeito humano, que, segundo o filósofo, se sustenta na idéia propriamente filosófica
de um imaginário radical.
Vou retomar, rapidamente, a reflexão do autor sobre o mencionado mal-estar
do sujeito na cultura como um caminho que nos levará à questão da autonomia e do
imaginário.
A vida dita civilizada impõe uma diferenciação, constitutiva do sujeito humano,
entre um domínio do que podemos identificar como o real psíquico (constituído pelo
inconsciente e pelas pulsões), e o domínio das representações ou significações sociais
e subjetivas. A subjetividade só pode ser tecida a partir e mediante o ingresso do
sujeito no segundo domínio, no domínio da representação, que, na linguagem de
Castoriadis, corresponde ao domínio do social-histórico. Ocorre que esta passagem só
se torna possível com o recalcamento das pulsões, ou melhor, de seus representantes,
pela renúncia do sujeito ao estado supostamente originário de uma indiferenciação
com o mundo e submersão no real psíquico. O que só é possível mediante o
reconhecimento do outro e de uma ordem que se impõe à loucura original da mônada
psíquica. O mal-estar é a existência de uma tensão permanente entre as exigências da
cultura, a começar pela necessária mediação da linguagem (para se haver com o
mundo e com os outros é preciso que o sujeito fale e, portanto, ascenda às regras e
ao universo da linguagem e da convivência intersubjetiva), e exigências pulsionais
que, como disse Freud, não conhece qualquer regra, lógica ou contradição.
À diferença de outros viventes, a monstruosidade da espécie humana, segundo
nosso autor, residiria em ser inapta à vida, tanto do ponto de vista biológico, quanto
psicológico. No homem o psiquismo teria desenvolvido de forma monstruosa a
capacidade de imaginação própria do vivente. A partir da capacidade de criação
absoluta decorrente de uma imaginação radical, o homem cria aquilo mesmo que vai
operar um estancamento no fluxo representativo-pulsional originário e característico
da mônada psíquica alógica, amoral, louca. Este ponto de estancamento do fluxo
representativo-pulsional, através da criação de um mundo imaginário
representacional-afetivo-intencional, é dado pelas instituições sociais, também elas
criações humanas. As instituições sociais – de que é exemplo fundamental, mas não
fundante, a linguagem são para o autor produções simbólicas intersubjetivas que
dão ordem e sentido ao mundo e às relações sociais, sendo produzidas pelo que ele
chama de coletivo anônimo. Embora o social-histórico, como dimensão que transcende
o individual, tenha de estar sempre pressuposto, sem o que não existe sujeito
humano, ao mesmo tempo, não haveria social histórico sem a pressuposição do
imaginário radical no sujeito. Encontramo-nos, portanto, numa circularidade ainda
indecifrável, dirá. Embora só possamos falar obliquamente do psiquismo, pois ao
falarmos qualquer coisa dele já nos encontramos no reino da representação, e assim,
de certa forma, distanciados do real, não seria correto dizer que por isso a linguagem
seja fonte de engodo e de alienação. Aqui se encontraria a primeira grande diferença
de Castoriadis com Lacan e uma possível aproximação com o pragmatismo lingüístico.
O fato de estarmos imersos no domínio da representação significa que a
linguagem é o que me possibilita ser num certo modo de ser, ímpar na natureza. O
sujeito, pela própria existência da linguagem, é vir a ser, como já dizia Heidegger.
Aquele que se faz uma história, numa história. Portanto, um ser cuja essencialidade
não é substancial, mas produção/produto incessante de significações imaginárias. A
linguagem, e de resto todo simbólico, seria, por conseguinte, a forma por excelência
da liberdade expressiva do humano, e não o seu aprisionamento.
Por outro lado, a condição imaginária das significações individuais e sociais,
isto é, o fato destas serem criações da imaginação radical, própria do humano, não
quer dizer que sejam meras ilusões ou simulacros do real. No sentido que Castoriadis
dá a imaginário só existiriam significações imaginárias, a adjetivação sendo uma
redundância. O imaginário é a potência de criação a partir do nada que se manifesta,
de forma inédita na natureza, através tanto do desenvolvimento e autonomização
impressionantes do psiquismo quanto do aparecimento da cultura como função
destacada e acrescentada ao biológico. A propósito dessa qualificação das produções
imaginárias como ilusões ou engodo, Castoriadis dirá que se trata de um erro
grosseiro e inaceitável. Dos pontos de vista físico, epistemológico e filosófico,
equiparar imagem especular a ilusão é um equívoco: “nenhum espelho e nenhum
instrumento óptico jamais produziram ilusões e engodos; eles produzem
transformações reguladas de um observável a um outro observável” (1987, p.85). O
simulacro, o falseamento ideológico, a mistificação correspondem a determinada
função subjetiva, respectivamente: o simulacro diz respeito a certas significações
imaginárias no plano individual, o falseamento ideológico no plano da política, e a
mistificação no plano social, das crenças. Simulacro, ideologia e mistificação
correspondem ao tipo de relação do sujeito com as representações, nos casos em que
o sujeito vise a essas significações como versão inquestionável do real. Neste processo
está em jogo a subjugação e a alienação do sujeito, seja à ordem inconsciente
(alienação psíquica), seja à ordem social estabelecida (alienação social). A alienação
não diz respeito à mera produção de representações ou à existência de instituições
sociais, mas, sim, à relação heterônoma do sujeito com elas. Portanto, só
secundariamente uma significação pode ser uma ilusão, sendo todas, sem exceção,
imaginárias. As representações imaginárias se transformam em miríades quando o
sujeito as crê estabelecidas como transcendentes a ele ou à sociedade, ou seja,
quando a capacidade de transcendência, que é do sujeito, em sua potência criativa, é
tomada como transcendência da coisa criada, de suas próprias representações e das
representações socialmente impostas. Significa dizer que as significações imaginárias
consideradas em si mesmas são a própria condição de expressão do real e do
psíquico, ou do desejo.
Para o homem, a realidade por mais material, “exterior” ou natural que pareça
ser, está sempre socialmente instituída de certa forma, revestida de significações ou
simbolizações imaginárias. Abrindo aqui um parêntesis me ocorre pensar na
ingenuidade em certa proposta da psicologia social atual, tida como inovadora e
apresentada por Martin Bauer em entrevista concedida a Pedrinho Guareschi e
publicada na revista Psicologia e Sociedade (Guareschi, 2003). Bauer separa uma
psicologia social das coisas, segundo ele em fase de gestação e descoberta (!), de
uma psicologia social tradicional que teria se fixado no simbólico, pobremente
entendido, pelos mesmos “inovadores”, como ‘influências sociais’ e ‘atitudes’. Além de
ser uma proposta que desconhece toda uma enorme tradição de pesquisas semióticas
e semiolingüísticas sobre objetos sociais, incorre numa reificação ingênua e positivista
da coisa em si. Para Castoriadis a separação entre real, imaginário e simbólico não
passa de uma separação heurística, não real.
Poder-se-ia questionar o autor que supor o imaginário radical como instância
última ou primeira do humano, é diluir diferenças entre imaginário real e simbólico e
incorrer, no mínimo, em um erro lógico. Crítica parecida poderia ser feita, igualmente,
ao estruturalismo lacaniano quando reduz a ‘causação’ do sujeito ao simbólico, na
famosa máxima segundo a qual, o sujeito é efeito do inconsciente, este visto como
uma estrutura ao modo da linguagem. Deixemos aos leitores mais interessados em
Lacan o contraditório à segunda crítica. No que se refere a Castoriadis, seu argumento
na defesa do imaginário primeiro ou radical reside no fato de que é forçoso considerar
que o jogo simbólico precisa ser ele mesmo inventado, isto é, seria preciso supor um
sujeito imaginante, aquele capaz de se dar como possível a substituição de uma coisa
por outra, para que se dê o jogo simbólico. O jogo, como expressão da imaginação,
estaria na base de nossa hominização e aqui poderíamos, curiosamente, aproximar
filósofos tão diferentes como Mead, Wittgenstein, Castoriadis. Esta é uma questão
enorme, que nos levaria a cair numa discussão sobre filosofias da linguagem,
extrapolando os limites e pretensão deste texto.
Introduzi a noção de imaginário radical do autor, pois é nela que se sustenta a
proposição da autonomia individual e coletiva, à qual chego agora. Noção fundamental
na reflexão teórica do filósofo, o imaginário desdobra-se num nível individual e
singular – o imaginário psíquico radical – e num nível coletivo ou sócio-histórico, do
social anônimo – o imaginário social, produzido na e pela cultura, através das
instituições sociais.
O autor se apoia duplamente na psicanálise e na filosofia para pensar o
compromisso político contido na idéia utópica de que uma sociedade autônoma,
composta por sujeitos igualmente autônomos, é possível e, mais ainda, é por ela que
devemos trabalhar.
O pressuposto psicanalítico de uma clivagem da subjetividade que põe sob
suspeição as representações egóicas (representações que o sujeito se dá de si
mesmo) e a crença inabalável no discurso racional consciente, não autorizariam dizer,
generalizando, que a verdade do sujeito é a verdade do inconsciente, ou que toda
verdade do sujeito esteja do lado do inconsciente e, portanto, que o sujeito é mero
efeito de determinações que lhe escapam. Interpretar dessa forma o sujeito humano
seria de um reducionismo psicanalítico inaceitável, para Castoriadis. Se no discurso
(na enunciação), a verdade do sujeito emerge para, ato contínuo, se ocultar no que é
dito (nos enunciados), isto não significa que toda significação seja engodo, ilusão,
alienação. A questão é que a verdade do sujeito, seja o sujeito individual, seja o
sujeito sócio-histórico do qual participamos e que nos habita, está sempre por ser,
permanentemente, reconstruída, re-significada. Não está dada, nem pode ser
afirmada de uma vez por todas. De fato, a verdade sendo sempre uma representação
(preferira dizer apresentação), é, a cada momento, também uma nova representação
possível, sem o que, não só o projeto político mas o próprio projeto da psicanálise se
veriam comprometidos. O que funda a psicanálise, diz Castoriadis, “é o julgamento
(com certeza falível) do analista de que uma transformação essencial do sujeito é
possível” (1987, p.40), do contrário, a psicanálise não passaria de mais uma mera
teorização psicológica ou uma pseudofilosofia.
O encontro da verdade na psicanálise não se dá via saber racional discursivo, e
sim, via ampliação da capacidade auto-reflexiva do sujeito, por um efeito de produção
de sentido. O psicanalista tem de contar com essa capacidade ou veria impossibilitado
seu trabalho. Para Castoriadis seria preciso resgatar o tempo todo a experiência clínica
em sentido amplo, como experiência de transformação, que é o solo no qual a
psicanálise se enraíza e de onde retira seu sentido.
A riqueza da proposta de uma capacidade de imaginação radical reside, a meu
ver, no acento posto sobre a possibilidade de criação e de auto-alteração substantiva
do sujeito e da história. Entretanto, parafraseando Foucault, seria preciso fazer justiça
a Lacan. Esse aspecto de liberação, e não apenas de clausura, da linguagem, pode ser
lido no próprio Lacan. A abertura da linguagem, que não implica em poder dizer ou
fazer absolutamente qualquer coisa, está enunciada em Lacan quando, por exemplo,
ele diz : “o Eu [que, segundo Lacan, guarda uma radical diferença com o Ego,
implicando certa revisão sutil do texto freudiano] é o lugar onde o sujeito se produz
como aquele que fala” (Écrits,1966, p.155). Salta aos olhos, na frase de Lacan, o
pronome reflexivo do verbo produzir, que, em sentido grego original teukein, significa
criar. No entanto, voltando a nosso autor, se esse Eu é inacessível à mesma
linguagem, a partir da qual ele se torna “alguma coisa”, não é porque esteja desde
sempre determinado por uma estrutura que o preceda e que o sujeito desconheça. É,
antes, porque esse Eu, ademais de não ter uma essência, é capaz de re-significar e de
realizar a seu modo, e de maneira singular, não totalmente previsível, ao mesmo
tempo que temporal, histórica e contingente, as determinações de sua existência;
podendo, inclusive, criar novas determinações. Se assim não fosse, a história seria
impossível. Se o sujeito certamente não é substância, não se confunde com um ente,
não pode ser totalmente objetificado e objetivado, por outro lado, a subjetividade não
pode ser tomada por mera ficção psicológica, ela é social e histórica. O sujeito
tampouco é uma massa informe ou camaleônica de representações. Faz toda a
diferença para o sujeito, e para os outros evidentemente, se esse sujeito age ou deixa
de agir, como age, o que fala ou cala. Mas sobre as implicações éticas e políticas do
agir e do dizer, a psicanálise não pode dar conta sozinha, afirma Castoriadis. É neste
ponto que é preciso recorrer não só ao pensamento filosófico e político, mas à história
concreta das sociedades para podermos reinventar pensamento e história de modo
mais desejável.
Lembro, a propósito, uma passagem de Humberto Eco de A Estrutura ausente
(1987). Diante da pergunta fundamental dos estruturalismos, psicanalítico ou
filosófico, “quem fala?”, diz Eco: “levantamos a hipótese de que possa existir uma
pergunta mais constitutiva, feita não pelo homem livre (posto em condições de poder
‘contemplar’), mas pelo escravo, que não pode fazê-la para si mesmo, e que acha
mais urgente indagar-se, ao invés de ‘quem fala?’, ‘quem morre?’”. Certamente, neste
caso, completa Eco, outra filosofia estará sendo fundada.
Neste ponto, construído o caminho que nos permite concluir com uma
aproximação da idéia de autonomia, diria que autonomia é a capacidade de
apropriação, pela reflexividade, de nossa experiência de sujeitos e, também, a
capacidade para transformá-la a partir de projetos coletivos, construídos eticamente
com outros sujeitos.
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Dissertação de Mestrado em Filosofia. Belo Horizonte, UFMG, 1992, Mimeo.
CONTATO
Izabel Christina Friche Passos
Endereço Eletrônico: izabelfrichepassos@terra.com.br
CATEGORIA: Ensaio Teórico
Recebido em 31 de mai 2006
Aprovado em 15 de jun 2006
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