Postado no site da Rede Social Unifreire: Universitas Paulo Freire
Artigo apresentado no 19º Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste (EPENN) acontecido em João Pessoa, Paraíba, entre 5 e 8 de julho de 2009.
Resumo
Ao paradigma reducionista/cartesiano de estruturação do real - fundamentado em dualismos como “eu-outro” e “homem-natureza” - está substituindo-se com cada vez mais força um paradigma sistêmico que religa as diferentes esferas da realidade. O conceito tradicional de direitos humanos, concebidos como “consenso moral universal” entre indivíduos e coletividades separadas e autônomas, reflete o paradigma reducionista. Para que a educação em direitos humanos consiga promover uma transformação real nas consciências que permita o surgimento de uma cultura da solidariedade entre as pessoas e com a natureza, acreditamos que seja necessária uma mudança paradigmática que refunde suas práticas pedagógicas sobre uma visão sistêmica, a interconecte com a educação ambiental e faça confluir ambas em um novo modelo educacional integral que tenha como principal finalidade transcender do “eu” individual para o “eu” transpessoal.
Palavras-chave: Educação em Direitos Humanos, Educação Ambiental, Educação Integral
Introdução
Nas nossas experiências de educação em direitos humanos, fomos percebendo cada vez mais claramente que existe um abismo entre a tomada de consciência intelectual da própria condição ética e jurídica de sujeitos de direitos, da compreensão racional da igualdade essencial de todas as pessoas e a incorporação de uma visão de mundo, atitudes e modos de se relacionar com os outros e com o ambiente fundamentados nesta compreensão, tanto em nós educadores como nos(as) educando(as). Nem mesmo uma reflexão crítica sobre a própria prática cotidiana é capaz, por estar embasada também na dimensão meramente racional, de superar este hiato.
Além do mais, as práticas de educação em direitos humanos que conhecemos se fundamentam em uma visão rígida e aproblemática dos direitos humanos, que faz com que o(a) educador(a) perceba a si próprio(a) como depositário(a) de “atitudes corretas” a serem “ensinadas” superando a “ignorância” originária do(a) educando(a). A maioria dos(as) educadores(as) em direitos humanos não atribuem importância ao autoconhecimento próprio e do(a) educando(a), ao desapego dos próprios conceitos e visões como condição necessária para que as práticas de interação cooperativa efetivamente aconteçam. Isto nos fez interrogar sobre se, caso nos desapeguemos das nossas idéias de “como deveria pensar/agir/ser o(a) educando(a)”, “como deveria ser o mundo”, “o que são/o que não são os direitos humanos”, etc., enfim, de todo conceito, de todo construto mental que cria divisão entre “nós” e “os outros” e nos abramos totalmente para a experiência das nossas interconexões com o resto do existente, poderiam surgir de fato em ambos os sujeitos envolvidos no processo educativo atitudes e comportamentos solidários, tanto com as demais pessoas quanto com o ambiente.
Relatos de docentes ouvidos durante algumas das nossas capacitações reforçaram esta inquietação, ao mostrarem que quando uma comunicação mais profunda se instaura entre educador(a) e educando(a), uma comunicação que passe pela “presença real” no aqui e agora do(a) primeiro(a) que gera a aptidão de ouvir sem julgamentos conceituais e com compreensão afetiva do(a) outro(a), também fenômenos dramáticos como o da violência escolar se atenuam e o envolvimento efetivo do(a) educando(a) no processo de ensino-aprendizagem é mais forte.
A partir destes interrogantes, percebemos que nas propostas e nas práticas pedagógicas prevalentes de educação em direitos humanos está faltando uma reflexão mais profunda sobre quais elementos paradigmáticos as estruturam, sobre quais interconexões existem entre elas e outras práticas como a educação ambiental, e se em base a estas ligações seria possível pensar em uma confluência destas modalidades educativas dentro de perspectivas pedagógicas mais amplas que abranjam a totalidade das dimensões do ser humano e do real. É esta possibilidade que pretendemos analisar aqui teoricamente.
Em primeiro lugar, procuraremos entender quais as principais características do paradigma de apreensão do real dominante e dos novos paradigmas emergentes. Sucessivamente, analisaremos as concepções prevalentes de direitos humanos para mostrar que foram estruturadas a partir do paradigma de pensamento reducionista/cartesiano. A seguir examinaremos a possibilidade da educação em direitos humanos superar tais limitações paradigmáticas, integrar-se à educação ambiental e de ambas convergirem em uma visão educacional integral, sem perder a sua essência específica, aliás potencializando-a.
1. Religando o universo despedaçado: a emergência do paradigma sistêmico
Antes de realizar uma reflexão paradigmática acerca do conceito de direitos humanos é preciso esclarecer o que entendemos com paradigma. Morin (2002) o define por duas operações: 1) A seleção dos conceitos-mestres da inteligibilidade, que subjazem a todas as construções teóricas, a todos os discursos e à visão de mundo de um indivíduo. Tais conceitos subordinam ou excluem os que lhes são antinômicos; 2) A definição das operações lógicas-mestras da inteligibilidade, que tendem a ser assumidas e se expressarem como axiomas através dos quais a mente atribui validade e universalidade à lógica que escolheu. Morin (MORIN et al., 2002) identifica três grandes características do paradigma, de matriz essencialmente cartesiana, dominante no Ocidente: o determinismo, isto é, a causalidade linear que torna o universo uma máquina previsível e quantificável; a separabilidade, em base à qual é possível isolar um objeto do seu contexto, conceitual ou experimentalmente, e examiná-lo em um meio artificial (um princípio que fundamenta a visão de um todo como a simples soma das suas partes); o método indutivo (extrair o geral do particular) e o método dedutivo (derivar o particular do universal). A partir destes princípios, assumidos como axiomas universais, o paradigma cartesiano operou as grandes separações que estruturam a compreensão do real do homem ocidental: sujeito/objeto, corpo/mente, energia/matéria, qualidade/quantidade, interno/externo, finalidade/causalidade, sentimento/razão, liberdade/determinismo, etc.
A partir do século passado, com as mudanças ocorridas nas ciências[1] e a aproximação cada vez mais fortes entre ciências e tradições espirituais, especialmente orientais, o paradigma cartesiano começou a ser questionado e em muitos âmbitos substituído por uma nova visão de mundo mais integral e abrangente, que denominaremos paradigma sistêmico (Capra, 1997). Como mostram Naranjo (In: BRANDÃO e CREMA, 1991) e Cardoso (1995), trata-se de uma percepção do universo como uma totalidade dinâmica e indivisível, não redutível à soma das suas partes, onde tudo se influencia reciprocamente e onde, como em um holograma ou nas células do corpo humano, cada parte é um micro-cosmos que contém o todo. Esta visão implica na superação das dicotomias típicas do paradigma cartesiano como sujeito/objeto, eu/outro, corpo/mente, interior/exterior, matéria/energia, vida/morte, felicidade/sofrimento, natureza/sociedade, etc.
Esta visão integral dos fenômenos guarda uma estreita relação com a abordagem ecológica da realidade. Capra (1997) utiliza o termo ecologia para indicar a interdependência de todos os fenômenos e dos seus ciclos de mudança e transformação, uma visão que enfatiza a ligação íntima entre o ser humano e a “teia da vida”, isto é, a infinita rede de conexões do universo que é acéfala (não possui um centro nem algum tipo de princípio unificador ou gerador, conseqüentemente cada ponto da rede possui o mesmo status e é definido nas relações com todos os outros, que ao mesmo tempo contem, como na metáfora da “Rede de Indra” que encontramos na mitologia hinduísta e na tradição budista), é caracterizada por relações causais complexas e não-lineares, em que nada se destrói e tudo se transforma. Esta visão, que se apóia nas observações do comportamento das partículas subatômicas feitas pela física quântica, mostra que as propriedades de cada fenômeno não são intrínsecas, mas relacionais e em constante mutação, dependendo das configurações assumidas pelas redes de interconexões das quais participam; não são possíveis, portanto, previsões certas sobre o comportamento dos fenômenos, fora da probabilidade. Do mesmo modo, o sujeito que observa participa ativamente na construção das propriedades do objeto observado, rompendo com o dualismo da perspectiva racionalista e empirista. Uma perspectiva ecológica é, portanto, uma abordagem fundamentada na interdependência de tudo o que existe, que não estabelece qualquer tipo de hierarquia entre os seres.
2. Direitos humanos como “consenso moral universal”: extensão e limites do conceito
Quais são os elementos paradigmáticos subjacentes ao conceito de direitos humanos? A definição mais compartilhada e aceite entre os estudiosos concebe estes últimos como “as necessidades essenciais da pessoa humana” (www.dhnet.org.br, 2009), isto é, as condições imprescindíveis para que qualquer ser humano possa sobreviver com dignidade que, sendo as mesmas para todos, tornam os seres humanos essencialmente iguais. Aparece evidente, mesmo sem uma reflexão mais aprofundada, a problematicidade desta visão que não tem em conta os diferentes significados que a idéia de “sobreviver com dignidade” pode assumir dependendo das culturas, dos estados mentais e psíquicos de cada indivíduo – uma pessoa pode não sentir como “necessidades vitais” para “ter dignidade” elementos que outro indivíduo, em condições psíquicas e mentais diferentes, pode considerar indispensáveis para atribuir à própria existência a qualidade de “digna” – e do paradigma de organização do real prevalente em uma sociedade em uma determinada época histórica, que estrutura também a percepção que se tem das “necessidades” humanas (excluindo-se, naturalmente, as necessidades biológicas elementares).
Por isso, outras abordagens preferem fundamentar o conceito nos elementos que tornam a espécie humana única no espectro da vida, refletindo sobre a experiência comum de humanidade que cada indivíduo pode vivenciar e perceber independentemente das suas características de raça, sexo, cultura, religião, opções políticas, orientação sexual, condições sócio-econômicas, etc. O postulado desta identidade fundamental[2] do gênero humano baseia-se no que todos os membros da sua espécie têm em comum e que os diferencia do resto do existente: a faculdade de pensar (a aptidão para construir sistemas conceituais de explicação do real, de elaborar operações lógicas, etc.), a linguagem, a afetividade (a capacidade de provar sentimentos e emoções e de se identificar ou diferenciar dos outros em base a estes), a criatividade (a faculdade de fazer, de originar através das próprias mãos, da inteligência, da intuição), a consciência (a faculdade de se auto-perceber enquanto sujeito individual, de se situar no mundo, de se compreender a si próprio em um contexto relacional, etc.). Esta visão permite uma definição mais complexa dos direitos humanos, que reconhece a natureza de criação histórica dos mesmos e os concebe como as condições necessárias e imprescindíveis para que em um determinado contexto sócio-histórico todo ser humano possa existir, se desenvolver plenamente como pessoa (isto é, expressar plenamente todos os seus potenciais intelectuais, afetivos, criativos, etc.) e participar plenamente da vida (isto é, ser sujeito protagonista das próprias escolhas). (www.dhnet.org.br, 2009). Como afirma Tosi, nestas perspectiva “os direitos humanos constituem as condições necessárias para que cada homem possa realizar plenamente suas potencialidades humanas nas condições históricas do mundo contemporâneo” (In: ZENAIDE e DIAS, 2001, p. 208). Refletindo sobre o caráter de universalidade atribuído ao conceito de direitos humanos, o autor sustenta que estes últimos “(...) podem se tornar o ponto de interseção e de consenso (um verdadeiro consensum gentium) entre diferentes doutrinas filosóficas, fé religiosas e culturas” (In: ZENAIDE e DIAS, 2001, p. 208).
Estas concepções dos direitos humanos como necessidades compartilhadas ou consenso moral universal construído acima de características humanas comuns mostram que o paradigma de apreensão do real a partir do qual o conceito foi estruturado ainda é o cartesiano, através de cujo prisma os seres humanos concebem a si próprios como ilhas, entidades separadas e independentes umas das outras, desvinculadas do ambiente em que vivem e que, para conviverem em paz, necessitam encontrar um consenso acerca de valores comuns.
Não cabe dúvida de que, enquanto não acontecer uma transformação das consciências humanas em escala planetária e não se cultivar uma percepção nítida da interdependência e a inseparabilidade de tudo o que existe, a busca de um consenso entre seres que se percebem como entidades estanques será imprescindível. Mas é difícil imaginar que o reconhecimento de necessidades comuns ou de uma experiência de humanidade compartilhada possam, por si só, fazer com que as pessoas percebam naturalmente que a plena realização de cada indivíduo não pode acontecer independentemente da plena realização de todos. Isto passa pela experiência viva e multidimensional – que abrange corpo, mente, psique e afetividade – das interconexões entre os seres. O que impede à mente construir uma visão de mundo baseada em dualismos como “pessoas do bem” e “pessoas do mal”, “trabalhadores” e “vagabundos”, “vencedores” e “perdedores” – concebidas como características intrínsecas e imutáveis – mesmo percebendo que as condições essenciais para viver com dignidade são comuns a ambas as categorias arbitrariamente fabricadas? Buscar um consenso racional sobre valores é um passo imprescindível, mas não suficiente para a construção de uma sociedade realmente justa, solidária e ecologicamente sustentável. Para isto é preciso que a fraternidade brote de dentro, da totalidade do ser de cada indivíduo, como conseqüência do despertar de uma forma diferente de ver a realidade e de viver. É preciso uma mudança nas consciências, a adoção de um novo paradigma que permita enxergar o “outro” e o “ambiente” como não-separados de nós mesmos. Isto só será possível através da educação, mas para que aconteça também a educação em direitos humanos precisará passar por uma mudança de paradigma.
3. Educação em direitos humanos: rumo a qual direção?
As reflexões sobre educação em direitos humanos de alguns autores mostram a urgência de se pensar formas de promovê-la que transcendam as limitações entre esferas do ser humano e da existência e entre diferentes modalidades educativas.
A expressão educação em direitos humanos remete a visões da educação, propostas e práticas pedagógicas heterogêneas, mas perpassadas por uma intencionalidade comum bem sintetizada por Candau, que a define como: “Um processo sistemático e multidimensional orientado a formação de sujeitos de direito e a promoção de uma cidadania ativa e participante” (2009). A autora sustenta a necessidade de uma coerência entre os objetivos e as metodologias utilizadas nos processos de educação em direitos humanos:
Quanto às estratégias metodológicas a serem utilizadas na educação em Direitos Humanos, estas têm de estar em coerência com as finalidades (...) o que supõe a utilização de metodologias ativas, participativas, de diferentes linguagens. Exigem, no caso da educação formal, a construção de uma cultura escolar diferente, que supere as estratégias puramente frontais e expositivas, assim como a produção de materiais adequados, que promovam interação entre o saber sistematizado sobre direitos humanos e o saber socialmente produzido. Devem ter como referência fundamental a realidade e trabalhar diferentes dimensões dos processos educativos e do cotidiano escolar, favorecendo que a cultura dos Direitos Humanos penetre em todo o processo educativo. (In: SILVEIRA et al., 2007, p. 405).
Tais sugestões, ao prospectarem uma reformulação da cultura escolar predominante, representam uma ponte para a transição da educação em direitos humanos a uma proposta pedagógica mais ampla fundamentada no paradigma sistêmico. A própria finalidade mencionada por Candau, a nosso ver, pode ser integrada sem perder a sua essência em uma perspectiva educativa mais abrangente que contemple todas as dimensões do ser humano e estimule a construção de uma visão de si próprio que, ao ir além do “eu” individual, fundamente a auto-percepção do mesmo enquanto sujeito de direitos interdependentes na vivência da não-separação com o “outro”, possibilitando o empoderamento conjunto dos protagonistas do processo educativo e a construção de uma identidade múltipla e aberta. A própria pedagoga, no texto citado, afirma a necessidade de que as estratégias metodológicas adotadas na educação em direitos humanos trabalhem “diferentes dimensões dos processos educativos e do cotidiano escolar”, vislumbrando a possibilidade de se ir além não só das práticas pedagógicas expositivas e reprodutivistas tradicionais, mas da própria problematização crítica da realidade do(a) educando(a) só no plano congitivo-racional e a participação deste(a) em ações sociais concretas sem se promover ao mesmo tempo o autoconhecimento e o desapego de conceitos, que possibilitam uma comunicação mais fluida e autêntica e favorecem uma maior interconexão entre as pessoas.
Ao enfatizar a necessidade de uma coerência entre discurso e atitudes como fundamento de qualquer metodologia de educação em direitos humanos, Freitas (2006) evidencia claramente a necessidade de se trabalhar o autoconhecimento:
É indispensável que o/a educador/a vivencie o que propõe (...). Este processo implica uma reflexão permanente, autocrítica constante, que pode ser um processo complicado, muitas vezes doloroso, pois pode confrontar posturas, discursos, convicções, valores arraigados, preconceitos e formas de ver o mundo. Supõe estar constantemente atento às próprias atitudes e, muitas vezes, aos próprios pensamentos. Não possui uma terminalidade, nunca está pronto. (In: ZENAIDE et alii, 2006, p. 201, o itálico é nosso).
Em outros âmbitos educacionais, como o da educação ambiental, estão já sendo travadas discussões sobre a necessidade de se superar as barreias paradigmáticas existentes entre diferentes modalidades educativas. Ao criticar as concepções conservadoras de educação ambiental, que reproduzem uma visão de mundo fundada na centralidade do homem e se propõem apenas a amenizar os efeitos da exploração deste sobre a natureza, sem questionar o modelo de desenvolvimento que as produz, Guimarães prospecta uma “educação ambiental crítica” (2000, p. 70) que integra a visão pedagógica histórico-crítica ao paradigma integral e interconecta as dimensões social e natural, atrelando a luta dos oprimidos para romper as relações históricas de desigualdade à construção de uma cidadania planetária fundada na percepção da inseparabilidade entre ser humano e todos os demais seres vivos e não vivos. Vemos aqui, claramente, um inseparável elo de interligação com a educação em direitos humanos. Afirma o autor:
Para superarmos o afastamento entre seres humanos em sociedade e a natureza, que produz a degradação de ambos, faz-se necessário vivenciarmos a nossa relação com o meio de forma integral, na complementaridade das dimensões racional e emocional do ser, e integrada às relações dinâmicas e interdependentes que informam a natureza. (2000, p. 74).
Uma perspectiva que guarda certa afinidade com a proposta de “alfabetização ecológica” de Capra (1997), segundo o qual a percepção da interdependência entre todos os seres que integram a “teia da vida” tem como implicação, na educação, a necessidade de se “(...) entender os princípios de organização das comunidades ecológicas (ecossistemas) e usar estes princípios para criar comunidades humanas sustentáveis” (1997, p. 231). Esta perspectiva também enfatiza a necessidade de se superar o paradigma separativista que centraliza o ser humano, hierarquiza os seres e divide os homens entre si, e que isto pode ser estimulado através da experiência direta da natureza e das interconexões entre os seres.
Esta interligação de dimensões, que não apenas concebe o ser humano como um todo irredutível à soma das suas partes como o integra plenamente à “teia da vida” da qual é um fio inseparável, encontra-se na base de diversas propostas educativas contemporâneas que estão tentando promover uma reforma da maneira de ser, viver, pensar e relacionar-se com os outros que, como sustenta Morin, supere a fragmentação do paradigma reducionista e estimule uma nova forma de se compreender o real baseada na interligação entre as partes e o todo:
É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto. (2003, p. 89).
4. Além do “eu”: pensando um novo modelo educacional para os direitos humanos
À luz das experiências descritas no começo deste trabalho e das reflexões desenvolvidas até agora, acreditamos ser necessário que as práticas atuais de educação em direitos humanos transcendam a visão limitada dos direitos humanos como “consenso moral” entre indivíduos e grupos separados, autônomos e independentes, produto do paradigma de apreensão do real de matriz cartesiana. Também estamos convencidos de que, para que ela atinja as suas finalidades últimas – construir uma cultura da fraternidade entre os seres humanos, formar sujeitos de direitos conscientes e participantes – e estimule a promoção integral de todos os direitos, incluindo a harmonia entre homem e natureza, seja indispensável desenvolver formas de se superar a visão fragmentada que a isola em um compartimento separado da educação ambiental e de se promover a confluência de ambas em uma perspectiva educacional mais ampla, fundamentada no paradigma sistêmico. Uma pedagogia que tenha como objetivo principal despertar “uma nova consciência que transcenda do eu individual para o eu transpessoal” (CARDOSO, 1995, p. 53).
Nesta visão, a educação em direitos humana integrada à educação ambiental se proporia estimular em todos os sujeitos envolvidos no processo educativo uma percepção interligada das múltiplas dimensões que integram o ser humano (física, biológica, psíquica, racional, afetiva, sócio-cultural, histórica); favorecer a percepção em todos os níveis – cognitivo, afetivo, corporal, etc. – da complexa rede de inter-retro-ações (MORIN, 2003) entre todas estas dimensões e entre cada ser humano e tudo o que existe; incentivar a consciência permanente do(s) paradigma(s) através do(s) qual(is) a realidade é apreendida de forma a promover uma relação flexível e aberta com o real: uma mente consciente do paradigma, mas não apegada a ele; desenvolver, além da racionalidade crítica e da lógica, a intuição, a criatividade, a afetividade, a sensibilidade estética; desenvolver o potencial humano de compreensão, compaixão e solidariedade, que só podem nascer a partir de um sentimento profundo e visceral de reconexão da pessoa com a totalidade do ser (ESPÍRITO SANTO, 1998; CARDOSO, 1995). Seria uma educação que resgate o sentido etimológico da palavra educere: extrair de dentro (ESPÍRITO SANTO, 1998); que promova o autoconhecimento[3] e o encontro[4] do(a) educador(a) e o(a) educando(a), permitindo-lhes assim reconhecer o outro; que promova não somente a reflexão crítica sobre a prática cotidiana de ambos, estimulando o desvendamento dialógico dos mecanismos sociais de dominação inerentes aos saberes reproduzidos nas instituições educacionais e nas relações vigentes nelas, mas incentive ao mesmo tempo a consciência da interdependência, da não-dualidade de oprimidos e opressores, sociedade e natureza, corpo e mente, razão e sentimento, uma consciência que nasça da vivência da interligação do existente e não apenas da reflexão intelectual, permitindo a transformação das raízes mais profundas de qualquer forma de opressão, que a nosso ver residem em uma visão de mundo que concebe os seres humanos como ilhas, entidades separadas em constante competição pela afirmação dos próprios interesses individuais ou de grupo[5].
Estas considerações pretendem apenas estimular uma reflexão mais profunda e sistemática sobre a necessidade e as possíveis formas de se promover uma mudança de paradigma na educação em direitos humanos que favoreça a interligação da mesma com a educação ambiental dentro de uma proposta pedagógica mais ampla e integral, para que as finalidades últimas de educar para os direitos humanos possam ser efetivamente atingidas. Este artigo não representa o resultado final de uma pesquisa, mas umas simples reflexões teóricas a partir de necessidades e exigências detectadas ao longo de nossas experiências de educação em direitos humanos. A intenção dele é instigar pesquisadores e educadores a desenvolverem pesquisas e experiências pedagógicas que permitam aprofundar as interconexões entre esferas do ser humano, da realidade e da educação.
Referências Bibliográficas
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CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. A canção da inteireza. Uma visão holística da educação. São Paulo, Summus, 1995.
DALLA VECCHIA, Agostinho Mário. Afetividade: convergência entre educação biocêntrica e a educação dialógica de Paulo Freire. Pensamento Biocêntrico, Revista eletrônica, n. 2, p. 11-34, jan.-mar. 2005.
Direitos Humanos: Noção e Significado. Texto online. Disponível em:
ESPÍRITO SANTO, Ruy Cezar do. O renascimento do sagrado na educação. Campinas, Papirus, 1998.
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GUIMARÃES, Mauro. Educação ambiental: No consenso um embate? São Paulo, Papirus, 2000.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo, Cortez, 2002.
______ . A cabeça bem feita. Repensar a reforma, Reformar o pensamento. 8. ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
MORIN et. al. Educação e complexidade: Os sete saberes e outros ensaios. São Paulo, Cortez, 2002.
NARANJO, Cláudio. Educando a pessoa como um todo para um mundo como um todo. In: BRANDÃO, D. M. S.; CREMA, R. Visão holística em psicologia e educação. São Paulo, Summus, 1991, p. 111-122.
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TOSI, Giuseppe. Por que educar para os direitos humanos? In: ZENAIDE, M. N. T.; Dias, L. L. Formação em Direitos Humanos na Universidade. João Pessoa, Editora Universitária, 2001, p. 201-212.
[1] Pense-se na teoria da relatividade de Einstein - que mostrou que massa e energia não são entidades separadas, mas realidades permutáveis e não distintas, e que tempo e espaço não possuem uma essência inerente, mas são variáveis interdependentes – e no nascimento de novas ciências como a física quântica – que mostra que as propriedades e os comportamentos das partículas subatômicas não podem ser definidas se não em termos de probabilidades, sendo modificadas permanentemente, de forma imprevisível alheia a qualquer causalidade e determinismo, pelas interações entre elas e pela intervenção do sujeito observador – ou a ecologia que enfatiza a interdependência de todos os fenômenos; assim como no surgimento de teorias transdisciplinares como a dos sistemas vivos que mostra como as totalidades não são redutíveis à soma mecânica das suas partes, mas possuem propriedades específicas entre as quais a da auto-regulação; a teoria de Gaia, que concebe o planeta Terra como um sistema vivo auto-regulador; a das redes autopoiéticas, que compreende os sistemas vivos como sistemas cognitivos capazes de produzir-se a si mesmos continuamente e a realidade como uma criação permanente realizada por cada indivíduo segundo a configuração biopsicossocial de seu organismo em um determinado momento.
[2] Trata-se de uma visão de unidade que não exclui a diversidade, mas na qual esta última está inscrita: de fato, é exatamente em virtude da capacidade humana de pensar, de criar, de sentir e de experienciar através da consciência que tornam-se possíveis os mais diversos sistemas de pensamento, as mais diversas civilizações e culturas, criações artísticas, científicas e tecnológicas, manifestações de espiritualidade, sistemas econômicos e políticos, etc.,
[3] Entendemos com autoconhecimento uma compreensão maior, adquirida gradativamente seja através da auto-observação consciente como da interação com os outros no plano afetivo e dialógico, da maneira como a nossa mente constrói a percepção que temos de nós mesmos, dos demais e do mundo; da forma como nossa mente e nosso corpo interagem e se afetam mutuamente; das transformações que se produzem em nós o tempo todo na nossa interação com o mundo, assim como da forma como se originam as nossas formações psíquicas (sensações, emoções, sentimentos, desejos, sonhos, aspirações, necessidades, fantasias, medos, frustrações, ansiedades, tensões etc.) e como influenciam a nosso modo de pensar, falar, agir e relacionar-nos com os outros. (cfr. ESPÍRITO SANTO, 1998; NHÂT HANH, 1996).
[4] Como mostra Cardoso (1995), nem o(a) educador(a) e nem o(a) educando(a) são, isoladamente, o centro do processo educativo, que só se dá no encontro entre eles que, como em uma dança livre em que é impossível perceber quem conduz e quem é conduzido, realizam uma troca permanente na qual se transformam e enriquecem mutuamente. Um encontro, este, que não pode se dar apenas no plano intelectual, mas antes de mais nada no plano afetivo, envolvendo sensibilidade, sentimentos e emoções. Como afirma Dalla Vecchia (2005), a proximidade de outras pessoas produz transformações em nossa mente, mobiliza os sistemas límbico-hipotalâmico e endócrino, estimula a produção de hormônios, provoca mudanças orgânicas e psíquicas. Conseqüentemente, a presença do(a) educador(a) assume um papel decisivo na vida do(a) educando(a) a partir da forma como se relaciona com os outros, da forma como é e vive, do jeito como pensa, fala e age e não pelos conteúdos que ensina. Por este motivo, o autor afirma a necessidade de se promover uma educação que estimule as relações afetivas entre educador(a) e educando(a) e dos os(as) educando(as) entre si, incluindo educar para o contato, a carícia, a ternura e qualquer manifestação espontânea de afetividade. Uma perspectiva, esta, que quebra as tradicionais barreiras físicas, psicológicas e simbólicas entre os sujeitos envolvidos no processo educativo e se fundamenta na percepção de que o entrelaçamento efetivo entre as pessoas é a base vivencial de onde pode surgir uma ética de solidariedade e compaixão.
[5] Fazemos questão de ressaltar que esta visão não pretende de forma alguma negar, suprimir ou esconder a existência de diferentes grupos sociais em conflito - manifesto ou latente – pela sobrevivência e pela afirmação dos respectivos interesses em diferentes âmbitos (econômico, político, das relações sociais, da esfera cultural, simbólica, de valores, etc.), assim como de estruturas, dinâmicas e mecanismos de dominação econômica, política, sócio-cultural, simbólica etc. de determinados grupos sobre outros. Entretanto, consideramos que além das estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais geradoras de desigualdades, exploração e violência, existem raízes de dominação entre os seres humanos bem mais profundas, transversais a todas as classes e grupos sociais, pois residem nas mentes das pessoas e determinam a forma como o real é percebido e interpretado e a maneira como os indivíduos se relacionam com seus semelhantes e com todas as outras espécies. Trata-se, pó um lado, da dimensão paradigmática, que perpassa classes dominantes e classes dominadas configurando uma percepção da realidade despedaçada, composta por fragmentos isolados, independentes uns dos outros, em choque permanente, em constante conflito pela afirmação e a hegemonia dos respectivos interesses. Esta visão repercute tanto nas relações interpessoais e entre ser humano e natureza como nas macro-relações políticas, econômicas, etc. Por outro lado, entendemos que a própria dimensão paradigmática é produto de escolhas da mente e da psique humanas no processo de construção do “eu”. Conseqüentemente, os desejos, impulsos, medos etc. que surgem da percepção que o “eu” individual tem de si próprio determinam uma análoga configuração do paradigma de inteligibilidade do real por parte de pessoas das mais diversas classes e grupos sociais e influenciam da mesma forma – na maioria dos casos, inconscientemente – as maneiras delas pensarem, agirem e se relacionarem com o ambiente ao seu redor. Por isto, acreditamos que promover relações e vivências que estimulem uma percepção ampla, transpessoal e interdependente do “eu” individual possa contribuir de forma muito mais profunda e eficaz na transformação da realidade do que a simples - embora importante e necessária – reflexão sobre os mecanismos sociais de exploração e submissão de certas classes sobre outras.
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