domingo, 24 de janeiro de 2010

O Poder do Conhecimento - Entrevista com Ladislau Dowbor

O PODER DO CONHECIMENTO


Num mundo de informações fragmentadas, imagine se fosse possível orientar esse fluxo em favor do consumidor. E, com isso, surgisse um sistema de informação dirigido aos problemas e à qualidade do consumo. Imagine se o dinheiro captado para tais campanhas de conscientização viesse da publicidade, um setor que movimenta bilhões por ano. Para o professor Ladislau Dowbor, essa é uma realidade que pode equilibrar a dinâmica atual, na qual a propaganda domina o nosso espaço, tempo e a mídia.


Numa entrevista ao jornal Gazeta do Povo, o sr. defendeu uma idéia polêmica. Disse achar viável a cria­ção de uma taxa sobre os investimentos das empresas em publicidade. Esse recurso seria redire­cionado para campanhas de cons­cientização do consumidor. Como isso funcionaria?
Acho totalmente correta a proposta da criação de uma taxa, em torno de 3%, sobre os gastos em publicidade das empresas. O dinheiro arrecadado faria parte de um fundo de investimento, cujos recursos seriam destinados para organismos isentos de informação.
Atualmente, a publicidade movimenta US$ 430 bilhões por ano em todo o mundo. É simplesmente uma barbaridade! Você está “inundado” de anún­cios e nunca as pessoas ficaram tão desin­formadas. Estamos falando de um gigantesco recurso mundial que absorve a nossa capacidade limitada de atenção, joga lixo dentro do nosso nível de consciência, que é o negócio mais precioso que temos. Você se sente invadido, cansado! Os norte-americanos até usam o conceito de sobrecarga sensorial nesses processos.
Nem sempre nos damos conta também de que o investimento em propaganda sai dos nossos próprios bolsos. Outro dia, por exemplo, meu filho estava indignado com a publicidade feita por um governo. Ele disse: “Eles fazem propaganda com o nosso dinheiro”. E eu perguntei: “Mas e a Coca-Cola”? “A Coca-Cola não”, ele respondeu, “isso é dinheiro deles”. Daí, ele pensou um pouco e percebeu: “Claro, nós é que pagamos por isso”. O valor está embutido no preço final do produto.

Quem poderia administrar esses recursos?
O fundo poderia ser gerido por três representantes de organizações não-governamentais (ONGs) de defesa do consumidor, três membros de instituições acadêmicas de pesquisa, três da área pública (secretarias correspondentes), e de entidades empresariais (Fiesp etc.). Assim, você tem uma diversidade de interesses ideal para administrar o fundo.

Taxar os gastos em publicidade é uma idéia inusitada ou já acontece em outras partes do mundo?
Nos Estados Unidos, você tem exemplos em que empresas produtoras de tabaco pagam uma taxa com a qual se financiam campanhas de informação sobre os danos do cigarro e coisas do gênero. Isso porque o tabaco (mostrando a publicação The Tobacco Atlas, de dr. Judith Mackay e dr. Michael Eriksen, uma iniciativa da World Health Organization, 2002, da Suíça, Genebra) provoca sobrecustos generalizados para não-fumantes e para os próprios fumantes, que vão acabar recorrendo a serviços de saúde pública que todos nós pagamos (fumantes ou não) via impostos. Podemos fazer uma coisa semelhante no Brasil, tanto na área do cigarro como no âmbito geral.
Os documentos, estudos e análises das empresas de tabaco também ficam disponíveis na internet, a fim de que as diversas instituições que façam pesquisa sobre tabaco possam utilizá-los. Isso faz parte de uma filosofia que se difundiu nos Estados Unidos e é muito interessante. Chama-se “Right to know” (direito à informação). A idéia é que a sociedade tem o direito de saber sobre todas as coisas que geram impacto social.

Se essa idéia fosse transportada para o Brasil, certamente sofreria uma enorme resistência dos fabricantes e de veículos de comunicação. Como trabalhar com isso?
Sim, com certeza haveria resistência. Mas se pagamos um volume desse porte para as empresas informarem a visão delas do seu produto, uma visão interessada, uma taxa de 3% ou 5% é muito modesta. É adequado reverter um mínimo para o cidadão ter acesso a informações isentas.
Tudo isso atingiu uma gravidade muito grande porque, como são US$ 430 bilhões, a publicidade é de longe a principal fonte de financiamento de toda a mídia. E conseqüentemente de toda a informação. Por exemplo, quando na Europa proibiu-se a veiculação de artigos de publicidade de cigarros na televisão, as empresas passaram a fazer anúncios nas revistas. Há um levantamento de que houve uma redução de 65% no número de artigos sobre saúde nas revistas européias.
A conexão é óbvia. Você está sendo financiado pelas empresas. Então, os impactos são muitos. Toda gigantesca campanha que foi feita em torno das privatizações, enfim, da “salvação pretensamente dita que representaria privatizar”, faz parte de um instrumento de poder, porque a principal alavanca de financiamento do conjunto do sistema da informação hoje é a publicidade. Isso desequilibra totalmente o processo de informação. A taxa sobre a publicidade, na minha opinião, talvez fosse um modo de equilibrar essa dinâmica.

Atualmente, vivemos uma situação parecida com a dos anúncios da Monsanto. Muitas pessoas no Brasil nem sabem ao certo o que são transgênicos, e a empresa, defendendo os seus interesses unicamente, vende a tecnologia como se fosse uma maravilha para a saúde e o meio ambiente em anúncios nas mais diversas mídias. Apesar de haver informações divergentes da empresa, o problema é que a propaganda, na maioria das vezes, chega mais rápida e facilmente às pessoas?
O primeiro ponto é que a publicidade funciona. Cada vez que você condena o uso dessa prática de manipulação, as empresas despistam: “Não, nós estamos informando o cidadão”. Só que o conteúdo informativo da publicidade é praticamente nulo.

Até que ponto a sociedade tem consciência dessa invasão de privacidade, do domínio da publicidade sobre a mídia, da falta de informações úteis?
Estive agora em Genebra, na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação e, no evento, estavam todas as grandes empresas, inclusive de mídia, como os Marinho (Rede Globo). Todos estão claramente preocupados com esse monopólio mundial sobre a imprensa, associa­do com gigantescos fluxos de dinheiro que recebem da publicidade por meio das nossas compras. Na verdade, é um imposto “privado” que a gente paga nesse processo.
Essa dinâmica está gerando discussões interessantes. Qualquer comunidade pobre no Brasil - eu levantei isso lá -, por exemplo, está sendo informada dia­riamente sobre todos os detalhes da vida de Michael Jackson, mas não tem nenhum instrumento para saber quais são os projetos da região ondem moram. Como cada um poderia estar ajudando, participando... Essa é outra forma de ocuparmos nossa atenção com lixo. Nos desvia, na realidade, de informação útil e agradável.
O distanciamento informativo se tornou absolutamente catastrófico. Grandes empresários da mídia dos Estados Unidos declararam que a liberdade de informação na guerra do Iraque era praticamente nula. Como resultado, grande parte do público norte-americano informado passou a assistir à BBC, e não mais à televisão norte-americana.

Existe o princípio de uma certa resistência então?
Há um processo de tomada de consciência. Na Cúpula de Genebra reuniram-se cerca de 300 prefeitos de toda parte do mundo, preocupados com a ausência e a necessidade de sistemas locais de informação para que as pessoas possam participar de sua vida pública.
Também li um artigo, uma notícia que nunca tinha visto até então (Ladislau mostra um recorte de jornal que conta a façanha de um forte movimento contra a propaganda em Paris. Leia mais na página 39).

E o papel do poder público na questão? Se uma das funções do Estado é justamente informar os cidadãos acerca dos seus direitos, como ele poderia contribuir para viabilizar essa proposta?
Acho que o Estado tem um conjunto de tarefas, como a Secretaria de Direito Econômico, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), onde minimamente busca-se assegurar que os mecanismos de regulação do poder público sejam respeitados. As formas de organização econômica estão mudando de maneira radical. O Estado ainda está na visão de combater cartéis, o que é útil, mas não suficiente.
Na minha opinião, cidadania informada é muito mais importante do que uma lei. Só a última não basta, porque não teremos uma alavanca para fazer aplicar a lei. Acredito que teríamos, sim, que transformar em lei o direito à informação econômica, isenta, de terceira parte, eventualmente nos processos comerciais. Portanto, seria importante trabalhar junto com o CADE. Além do governo, devemos gerar sistemas articulados com as mais diversas áreas.
Afinal, os abusos acontecem aos montes. Lembro-me de uma discussão que tive com o pessoal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre sistemas de consumo. Eu dei o exemplo de um pára-choque, cuja produção não custa
R$ 50,00. Antigamente, quando você batia o carro, ia ao mecânico, ele dava uma martelada e desentortava o pára-choque, que era de metal. Hoje é de plástico e você tem que trocar a peça, e segundo o modelo e o ano do veículo. Ou seja, você tem que comprar na concessionária e paga praticamente R$ 1.000,00 numa peça que não custa R$ 50,00. O consumidor deve ser informado sobre isso, enfim, a empresa detém o monopólio.

Isso gera transformação, não?
Sim, incentiva mudanças. Outro dado é dos Cebions, Redoxons etc. Por caixa, em média, esses produtos têm R$ 0,03 de ácido ascórbico. Você paga R$ 7,00 a caixa, ou seja, o custo do produto é multiplicado por cerca de 200 (multiplicado, não estou falando em 200%). E, com isso, você está tirando do mercado a vitamina C, um produto sumamente importante para a saúde de dois terços da população brasileira. No entanto, o consumidor está financiando o papelzinho dourado, a embalagem, a propaganda.

A população desinformada, sem dúvida, acaba perdendo uma importante arma na luta pela cidadania. Como reverter isso?
Eu acredito que a informação tem um poder muito grande. Estou trabalhando com 22 municípios no oeste do Paraná, que estão criando sistemas de informação local ao cidadão. Isso é muito interessante! Eles começaram com 24 indicadores básicos, que permitem à população estar informada sobre mortalidade infantil, número de prisões, criminalidade, acesso à saúde. São diversos indicadores do tipo: “Quanto tempo você espera em média pelo ônibus?” Imagina que você regulariza essa informação e ela se torna disponível de maneira inteligente. O prefeito pode, por exemplo, reunir-se com o secretário de transportes e dizer: “Nossa população está esperando 18 minutos pelo ônibus, mas na nossa gestão vamos baixar isso para 12”.
A cidadania informada é fundamental: senão, você não controla a empresa, não controla o Estado, não controla a aplicação das leis.

No seu ponto de vista, há áreas mais cruciais no âmbito do consumo em que a falta de informação lesa mais o cidadão?
Sim. Por exemplo, na área farmacêutica é preciso conhecer o princípio ativo de cada medicamento; se tem embalagem, pesquisa etc. Se você não tem acesso à informação também não tem como batalhar por outros direitos básicos. Pode não ter acesso à saúde, à educação, que são um “pré-direito”.
Se conseguirmos gerar uma base de informação cidadã muito mais ampla, certas informações provocarão com muito mais facilidade uma indignação no cidadão. Conseqüentemente, isso fará com que as empresas se comportem de outra maneira.




*Ladislau Dowbor é formado em Economia Política e doutorado em Ciências Econômicas. Foi professor de finanças públicas na Universidade de Coimbra, já coordenou o Ministério do Planejamento da Guiné-Bissau (1977-81) e foi consultor da Organização das Nações Unidas. Atualmente, é professor de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de conselheiro de ONGs como

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