domingo, 13 de junho de 2010

Alfabetização Ecológica, o desafio para o próximo século - Fritjof Capra, 1999

Texto extraído do site /www.harmonianaterra.org.br/textos.htm


Desde sua introdução, no começo dos anos 80, o conceito de sustentabilidade tem sido distorcido, cooptado e mesmo banalizado quando usado sem o contexto ecológico que lhe dá o sentido adequado. Portanto, acredito ser importante refletir por um instante sobre o que sustentabilidade realmente significa.
O que é sustentável, em uma comunidade sustentável não é o crescimento econômico, o desenvolvimento, a fatia de mercado ou a vantagem competitiva, mas toda a teia da vida, da qual todos nós dependemos. Em outras palavras, uma comunidade sustentável estaria desenhada de uma forma que a sua vida, negócios, economia, estruturas físicas e tecnologias não interferissem na habilidade que a natureza tem de sustentar a vida.
O primeiro passo nessa caminhada, naturalmente, é compreender os princípios de organização que os ecossistemas desenvolveram para sustentar a teia da vida. Essa compreensão é o que eu chamo alfabetização ecológica.
Os ecossistemas do mundo natural são comunidades sustentáveis de plantas, animais e microorganismos. Não há lixo nestas comunidades ecológicas: o resíduo de uma espécie é o alimento da outra. Assim, a matéria percorre um ciclo contínuo na teia da vida. A energia que alimenta os ciclos ecológicos vem do sol, e a diversidade e a cooperação entre os membros das cadeias é a fonte da resistência da comunidade.
O Centro de Alfabetização ecológica em Berkley dedica-se a adotar a experiência da compreensão do mundo natural na educação fundamental. Ser ecoalfabetizado significa, no nosso ponto de vista, compreender os princípios básicos da ecologia e ser capaz de aplicá-los na vida cotidiana das comunidades humanas. Particularmente, nós acreditamos que os princípios da ecologia devem nos guiar para a criação de comunidades sustentáveis. Em outras palavras a alfabetização ecológica oferece um sistema de conhecimento ecológico para a reforma educacional.
A palavra ecologia, como vocês sabem, veio do grego oikos (casa). Ecologia é o estudo de como a casa Terra funciona. Mais precisamente, é o estudo das relações que interligam todos membros da casa Terra.
Sistemas Vivos
A teoria mais apropriada para a ecologia é a teoria dos sistemas vivos. Esta teoria que hoje está em grande evidência, tem suas raízes em diversos campos científicos que se desenvolveram durante a primeira metade do século - biologia organísmica, psicologia gestalt, ecologia, teoria geral dos sistemas e cibernética.

Em todos estes campos cientistas exploraram sistemas vivos, o que significa integrar partes cujas propriedades não podem ser reduzidas em pequenas partes. Embora nós possamos perceber partes em cada sistema vivo, a natureza do todo é sempre diferente da mera soma das partes.
A teoria dos sistemas envolve uma nova maneira de ver o mundo e uma nova maneira de pensar, conhecida como pensamento sistêmico. Significa pensar em termos de relações, conexões e contextos.
O pensamento sistêmico alcançou um outro nível nos últimos vinte anos com o desenvolvimento de uma nova ciência da complexidade, incluindo toda uma nova linguagem matemática e um novo conjunto de conceitos para descrever a complexidade dos sistemas vivos.
Exemplos destes sistemas são abundantes na natureza. Cada organismo - animal, planta, microorganismo ou ser humano - é um todo integrado, um sistema vivo. Partes de organismos - folhas ou células - são também sistemas vivos. No mundo vivo vemos sistemas abrigando outros sistemas. E sistemas vivos incluem comunidades de organismos. Estes podem ser sistemas sociais - uma família, uma escola, uma cidade - ou ecossistemas.
Os sistemas vivos são todos cujas estruturas específicas surgem das interações e interdependências entre as suas partes. A teoria dos sistemas nos diz que todo sistema vivo divide um conjunto de propriedades comuns e princípios de organização. Isto significa que o pensamento sistêmico pode ser utilizado para integrar disciplinas acadêmicas e descobrir similaridades entre fenômenos de diferentes escalas: a criança, a classe, a escola, o bairro e as comunidades e ecossistemas vizinhos.
Os princípios da ecologia são os princípios de organização que são comuns a todo sistema vivo. Isso poderia ser dito assim: existem diferentes padrões de vida. E de fato, em comunidades humanas eles podem ser chamados princípios de comunidade.
É claro que há muitas diferenças entre ecossistemas naturais e comunidades humanas. Não há cultura nos ecossistemas, não há consciência, justiça nem equidade. Então não podemos aprender algo sobre estes valores humanos estudando os ecossistemas naturais. O que nós podemos aprender é como viver de forma sustentável. Em mais de três bilhões de anos de evolução os ecossistemas se organizaram para maximizar a sustentabilidade. Esta sabedoria da natureza é a essência da alfabetização ecológica.
A teia da vida
Então, como os ecossistemas se auto-organizam? Bem, a primeira coisa que percebemos quando observamos um ecossistema é que não se trata de um simples conjunto de espécies, e sim uma comunidade, o que significa que os seus membros dependem uns dos outros. Eles estão todos interconectados em uma vasta rede de relações, a teia da vida.
Compreender ecossistemas nos leva ao estudo de relações. Este é um aspecto-chave do pensamento sistêmico. Implica uma mudança no foco, do objeto para a relação. Uma comunidade vibrante é plena de múltiplas relações entre seus membros. Nutrir a comunidade significa nutrir essas relações.
Agora, entender relações não é fácil para nós, porque é algo que vai contra a ciência tradicional da cultura ocidental. A ciência mede e pesa coisas. Mas relações não podem ser pesadas nem medidas, devem ser mapeadas. Você pode desenhar um mapa de relações, interconectando diferentes membros e diferentes membros da comunidade. Quando faz isto, descobre certas configurações de relações que se repetem. A estas configurações damos o nome de padrões. O estudo das relações nos leva ao estudo de padrões.
Matéria e Forma
E aqui nós descobrimos uma tensão que é bem característica da ciência e filosofia ocidentais, através dos anos. É uma tensão entre duas maneiras de compreender a natureza, o estudo da matéria e o estudo da forma. Essas duas maneiras são bastante diferentes. O estudo da matéria começa com a questão: "do que é feito". Isto leva para uma noção de elementos fundamentais, blocos de construção que são medidos e quantificados. O estudo da forma pergunta: "qual é o padrão?". E este leva a uma noção de ordem, organização e relações. Em vez de quantidade, envolve qualidade, em vez de medida, envolve mapeamento.
Então, essas são duas linhas de pesquisa muito diferentes, que competiram entre si na tradição científica e filosófica. Na maior parte do tempo, o estudo da matéria - de quantidades e constituição - foi dominante. Mas nas últimas décadas a ascensão do pensamento sistêmico trouxe o estudo da forma - dos padrões e das relações - para a discussão novamente. A principal ênfase na teoria do caos e da complexidade está nos padrões. Os estranhos atratores da teoria do caos, os fractais da geometria fractal - todos esses são padrões visuais. Toda essa nova matemática da complexidade é essencialmente uma matemática de padrões.
Arte e Educação
Como disse anteriormente, quando você estuda um padrão necessita mapear um conjunto de relações, enquanto estudar a matéria é estudar as quantidades que podem ser medidas. Compreender padrões requer visualização e mapeamento. Esta é a razão pela qual sempre o estudo dos padrões esteve na vanguarda, os artistas contribuíram significativamente para o avanço da ciência. Talvez os dois exemplos mais célebres são Leonardo da Vinci, que dedicou sua vida a estudar padrões, e o poeta alemão Goethe, que no século XVIII, fez contribuições significativas para a biologia ao estudar padrões.

O estudo dos padrões, portanto, é central para a ecologia. Para educadores, esta percepção deve ser também importante porque ela abre a porta para integrar as artes ao currículo. Dificilmente existe algo mais eficiente que as artes - artes visuais, música ou artes performáticas - para desenvolver e refinar as habilidades naturais das crianças para reconhecer e expressar padrões. Assim as artes podem ser uma poderosa ferramenta para ensinar o pensamento sistêmico, além de realçar a dimensão emocional que é cada vez mais reconhecida como um componente essencial do processo de aprendizagem.
Os princípios da ecologia
Quando o pensamento sistêmico é aplicado ao estudo dos múltiplos relações que interligam os membros da casa-Terra, alguns princípios básicos podem ser reconhecidos. Eles podem ser chamados de princípios da ecologia, princípios de sustentabilidade, ou princípios de comunidade, ou você poderia chamá-los de princípios básicos da vida. Nós necessitamos de um currículo que ensine às nossas crianças esses princípios fundamentais da vida:
· que um ecossistema não produz lixo, o lixo de uma espécie é o alimento da outra;
· que a matéria cicla continuamente através da teia da vida;
· que a energia que alimenta os ciclos ecológicos vem do sol;
· que a diversidade assegura a sobrevivência;
· que a vida, desde o seu começo há mais de três bilhões de anos atrás, não expandiu-se pelo planeta através da competição, mas através da cooperação, parceria e trabalho em rede.
Ensinar conhecimento ecológico, que é também sabedoria ancestral, será o papel mais importante da educação no próximo século.
Reforma do sistema escolar
Como tem sua base intelectual no pensamento sistêmico, a alfabetização ecológica oferece uma poderosa ferramenta para sistematizar a reforma da ensino discutida entre educadores. Uma reforma "sistêmica" da escola é baseada, essencialmente em duas idéias: uma nova visão do processo de aprendizagem e uma nova visão da liderança.
Recentes pesquisas em neurociência e ciências da cognição resultaram em uma nova compreensão do processo de aprendizagem, baseada na visão de que o nosso cérebro é um sistema complexo, fortemente adaptativo e auto-poiético. A nova compreensão reconhece uma construção ativa do conhecimento, na qual toda nova informação é reportada a experiências passadas em uma busca constante por padrões e significado; assim vemos a importância de uma aprendizagem a partir da experiência onde diversas aprendizagens envolvem múltiplas inteligências; e os contextos emocional e social, que é onde começa o conhecimento.
Uma nova compreensão do processo de aprendizagem necessita estratégias institucionais. Particularmente, é necessário redesenhar e integrar o currículo, enfatizando conhecimentos contextuais, para que cada disciplina seja percebida como recursos que servem a um foco central.
Uma maneira ideal de conseguir esta integração é o método de aprendizagem por projetos que consiste a facilitação de experiências de aprendizagem que coloquem o estudante dentro de um mundo complexo, projetos que estejam no universo cotidiano dos estudantes, através dos quais eles desenvolvam ações e apliquem seus conhecimentos e habilidades.
O jardim escolar

No centro para a alfabetização ecológica, nós vivenciamos que cultivar um jardim escolar e usá-lo como um recurso para conseguir alimentos para a merenda é um projeto perfeito para experimentar o pensamento sistêmico e os princípios da ecologia na prática, e integrar o currículo. A jardinagem reconecta as crianças aos princípios da alimentação - e portanto, para os princípios da vida - enquanto integra e enriquece qualquer atividade da escola.
No jardim, nós aprendemos sobre os ciclos naturais da comida e os integramos com outros ciclos como o da plantação, colheita, compostagem e reciclagem. Dentro desta prática nós também aprendemos que o jardim é um todo envolvido em sistemas maiores que são redes vivas com seus próprios ciclos. O ciclo alimentar está interconectado com estes ciclos maiores - o ciclo da água, o ciclo das estações, e assim por diante - todos eles ligados à rede planetária da vida.
Através da jardinagem nós também nos tornamos conscientes de como somos parte da teia da vida, e a experiência ecológica nos permite sentir um sentido de lugar. Nós nos conscientizamos de como estamos envolvidos em um ecossistema, em uma paisagem com fauna e flora particulares ou em um sistema social e cultural. "Lugares", escreve David W. Orr, "são laboratórios de diversidade e complexidade, combinando funções sociais e um processo natural... O estudo do lugar
nos permite ampliar nosso foco para examinar as interrelações entre as disciplinas e aumentar nossa percepção do tempo."
Para as crianças, estar no jardim é algo mágico. Como um dos nossos professores relatou "uma das coisas mais empolgantes do jardim é que criamos um local mágico para crianças que não teriam esse contato em nenhuma outra parte, que não sentiriam a Terra nem as plantas que crescem. Você pode ensinar o que quiser, e estar ali, vendo crescer, cozinhando e comendo, essa é a ecologia que toca o coração deles e que fará diferença..."
Crescimento e Desenvolvimento
No jardim, nós observamos e vivenciamos o ciclo da vida de um organismo - o ciclo de nascimento, crescimento, maturidade, morte e nascimento da próxima geração. No jardim nós experimentamos crescimento e desenvolvimento diariamente, e a compreensão de crescimento e desenvolvimento é essencial, não somente para a jardinagem, mas sobretudo para a educação. Enquanto as crianças aprendem que aquele trabalho no jardim da escola muda com o desenvolvimento e maturação das plantas, os métodos pedagógicos dos professores e seu discurso mudam com o desenvolvimento e a maturidade dos estudantes.

Desde o trabalho pioneiro de Jean Piaget, Rudolf Steiner e Maria Montessori um amplo consenso emergiu entre cientistas e educadores sobre a revelação das funções cognitivas no crescimento infantil. Parte deste consenso é o reconhecimento que um rico e multisensorial ambiente de aprendizagem - as formas e as texturas, as cores, os aromas, e os sons do mundo real - é essencial para o completo desenvolvimento cognitivo e emocional da criança.
Aprender no jardim da escola é aprender no mundo real no que há de melhor. Isto é benéfico para o desenvolvimento individual do estudante e da comunidade escolar, e esta é uma das melhores formas das crianças se tornarem ecologicamente alfabetizadas e portanto capazes de contribuir na construção de um futuro sustentável.
Liderança Compartilhada
É obvio que a integração do currículo escolar a partir de um trabalho de horta ou qualquer outro projeto ambiental só será possível se a escola se tornar uma verdadeira comunidade de aprendizagem. As relações entre as várias disciplinas só ficam claras se houver relações humanas correspondentes entre professores e administradores escolares.
Em uma comunidade de aprendizagem professores, estudantes, administradores e família estão interconectados em uma rede de relações, trabalhando juntos para facilitar a aprendizagem. O conhecimento não flui de cima para baixo, mas há um intercâmbio cíclico de informações. O foco é no aprendizado e qualquer um do sistema é, ao mesmo tempo, professor e aluno. Feedbacks são intrínsecos ao processo de aprendizagem, como uma chave para avaliar o processo. O pensamento sistêmico é crucial para entender o funcionamento das comunidades de aprendizagem. De fato, como eu já mencionei, os princípios da ecologia podem também ser vistos como princípios das comunidades.
Finalmente, a compreensão sistêmica da aprendizagem, um novo desenho do currículo e novos padrões de qualidade só serão possíveis com uma nova prática de liderança. Essa nova maneira de liderança é inspirada na compreensão de uma importante propriedade dos sistemas vivos, que só recentemente foi identificada e explorada. Todo sistema vivo ocasionalmente atravessa fases de instabilidade, na qual algumas de suas estruturas quebram enquanto novas estruturas emergem. Este estabelecimento espontâneo de ordem - de novas estruturas e novas formas de comportamento - é uma das características da vida. Em outras palavras, criatividade - a geração de formas que são sempre novas - é uma propriedade de todos sistemas vivos.
Liderança, portanto, consiste em uma grande escala contínua de facilidades para emergir novas estruturas e incorporá-las no que elas têm de melhor para o desenho da organização. Este tipo de "liderança sistêmica" não é limitado a indivíduos sozinhos, mas pode ser compartilhado e a responsabilidade então torna-se uma capacidade do conjunto de indivíduos
Componentes da alfabetização ecológica
Isto me leva a concluir minha fala. Eu tenho tentado mostrar para você como é a forma do pensamento sistêmico intelectual essencial da alfabetização ecológica, a estrutura conceitual que nos permite integrar vários componentes. Vou resumir estes componentes:
· entender os princípios da ecologia, experenciando-os na natureza e deste modo adquirindo o senso de lugar;
· incorporar as inspirações vindas do novo aprendizado que enfatiza a pesquisa das crianças em padrões e significados;
· implementar os princípios da ecologia que alimentam o aprendizado comunitário, facilitar a emergência e compartilhar lideranças;
· integrar o currículo através de projetos de aprendizagem.

Como nosso século está acabando e nós vamos na direção do início do novo milênio, a sobrevivência da humanidade depende de nossa habilidade para entender os princípios da ecologia e viver de acordo com eles. Esta é a iniciativa que transcende todas as diferenças de raça, cultura ou classe. A Terra é nossa casa comum e criar um mundo sustentável para nossas crianças e para as futuras gerações é nossa tarefa comum.


Um comentário:

  1. Muito bom, precisa ampliar, pois para a boa compreensão de que fazemos parte da natureza, é necessário termos uma visão integrada do planeta, com seus mares, rios, florestas e montanhas, e seu imutável ciclo de transformação e renovação. A pureza do ar que respiramos, a água como o suporte da vida, a integração da fauna e da flora e o solo gerador de nutrientes para todas as espécies são elementos básicos para a educação fundamental.
    http://vidaeaprendizado.com.br/artigo.php?id=607

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