v Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 783-813, por Wanderson Flor do Nascimento e Karla Neves
I
Assim que comecei a estudar as regras, os deveres e as proibições da sexualidade, as proibições e as restrições que lhe são associadas, meu interesse foi levado não somente para os atos que eram permitidos e proibidos, mas também sobre os sentimentos que estavam representados, os pensamentos e os desejos que podiam ser suscitados, a inclinação a perscrutar no si todo sentimento escondido, todo movimento da alma, todo desejo travestido sob formas ilusórias. Existe uma sensível diferença entre as proibições concernentes à sexualidade e as outras formas de proibição. Ao contrário das outras proibições, as sexuais estão sempre ligadas à obrigação de dizer a verdade sobre o si.
Poder-se-ia contrapor dois fatos: primeiramente, que a confissão representou um importante papel nas instituições penais e religiosas, e naquilo a que concernem todos os pecados, não somente àqueles da carne. Mas a tarefa que incumbe o indivíduo de analisar seu desejo sexual é sempre mais importante que a de analisar todos os outros tipos de pecado.
Também tenho consciência de uma segunda objeção: a de que o comportamento sexual é, mais que todos os outros, submetido às regras muito estritas do segredo, da decência e da modéstia, de forma que a sexualidade está ligada, de maneira singular e complexa, por sua vez, à proibição verbal e à obrigação de dizer a verdade, de esconder aquilo que se faz e de decifrar quem se é.
A associação da proibição e de uma injunção muito forte, por assim dizer, é um traço constante em nossa cultura. O tema da renúncia à carne está ligado à confissão do monge ao abade, no fato de que o monge confia ao abade todos os pensamentos que lhe ocupam o espírito.
Concebi um projeto assaz singular: não o estudo da evolução do comportamento sexual, mas aquele, histórico, do laço que se estabelece entre a obrigação de dizer a verdade e as proibições que pesam sobre a sexualidade. Perguntei-me por qual decodificação de si mesmo o sujeito constrangeu-se, naquilo que concerne ao que foi proibido. É uma questão que interroga a relação entre o ascetismo e a verdade.
Max Weber colocou essa questão: se queremos adotar um comportamento racional e regular sua ação, em função de princípios verdadeiros, a qual parte de si devemos renunciar? De qual ascetismo se paga a razão? A que tipo de ascetismo se deve submeter? Eu, de minha parte, coloco a questão inversa: como certos tipos de saberes sobre o si são advindos do preço a pagar por causa de determinadas formas de proibição? O que se deve conhecer de si a fim de aceitar a renúncia?
Minha reflexão conduziu-me, assim, à hermenêutica das técnicas de si na prática pagã, depois à prática cristã dos primeiros tempos. Encontrei algumas dificuldades nesse estudo, pelo fato de que tais práticas não são muito conhecidas. Primeiramente, o cristianismo sempre está mais interessado na história de suas crenças do que na de suas práticas efetivas. Em segundo lugar, esse tipo de hermenêutica, contrariamente à hermenêutica textual não esteve organizada em um corpo de doutrinas. Em terceiro lugar, uma confusão se instalou entre a hermenêutica de si e as teologias da alma – a concupiscência, o pecado, a perda da graça. Em quarto lugar, uma hermenêutica de si difundiu-se por toda a cultura ocidental, infiltrando-se pelos numerosos canais e se integrando a diversos tipos de atitudes e de experiências, de forma que é difícil isolá-la ou distingui-la de nossas experiências espontâneas.
Contexto do estudo
Meu objetivo, depois de vinte e cinco anos, é esboçar uma história das diferentes maneiras nas quais os homens, em nossa cultura, elaboram um saber sobre eles mesmos: a economia, a biologia, a psiquiatria, a medicina e a criminologia. O essencial não é tomar esse saber e nele acreditar piamente, mas analisar essas pretensas ciências como outros tantos “jogos de verdade”, que são colocadas como técnicas específicas dos quais os homens se utilizam para compreenderem aquilo que são.
No contexto dessa reflexão, trata-se de ver que essas técnicas se dividem em quatro grandes grupos, onde cada qual representa uma matriz da razão prática: 1) as técnicas de produção graças as quais podemos produzir, transformar e manipular objetos; 2) as técnicas de sistemas de signos, que permitem a utilização de signos, de sentidos, de símbolos ou de significação; 3) as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito; 4) as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser; de transformarem-se a fim de atender um certo estado de felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade.
É raro que esses quatro tipos de técnica funcionem separadamente, mesmo por que cada tipo está associado a uma determinada forma de dominação. Cada um desses tipos implica em certos modos de educação e de transformação dos indivíduos, na medida em que se trata não somente, evidentemente, de adquirir certas aptidões, mas também de adquirir certas atitudes. Gostaria de descrever a especificidade dessas técnicas e sua interação constante. Por exemplo, a relação entre a manipulação dos objetos e a dominação aparece claramente em O Capital de Karl Marx, onde cada técnica de produção individual exige não somente aptidões, mas também atitudes.
Os dois primeiros tipos de técnicas se aplicam, geralmente, ao estudo das ciências e da lingüística. São os dois outros tipos de técnicas – as técnicas de dominação e as técnicas de si – que prenderam minha atenção sobremaneira. Gostaria de fazer uma história da organização do saber tanto no que concerne à dominação quanto no que concerne ao si. Por exemplo, estudei a loucura não em função dos critérios das ciências formais, mas a fim de mostrar qual tipo de gestão dos indivíduos no interior e no exterior dos manicômios esse estranho discurso tornou possível. Chamo “governamentalidade” ao encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si.
A evolução das técnicas de si
Gostaria de esboçar aqui a evolução da hermenêutica de si dentro de dois contextos diferentes, mas historicamente contíguos: 1) a filosofia greco-romana dos dois primeiros séculos do começo do Império Romano; 2) a espiritualidade cristã e os princípios monásticos tais como se desenvolveram nos IV e V séculos, sob o Baixo-Império.
Por outro lado, desejo abordar o sujeito não somente de um ponto de vista teórico, mas também em relação com um conjunto de práticas da Antigüidade tardia. Para os gregos, as práticas tomam a forma de um preceito: epimeleisthai sautou, isto é, “tomar conta de si”, ter “cuidado consigo”, “preocupar-se, cuidar-se de si”.
Para os gregos, esse preceito do “cuidado de si” configura um dos grandes princípios das cidades, uma das grandes regras de conduta da vida social e pessoal, um dos fundamentos da arte de viver. É uma noção que, para nós, hoje em dia, perdeu sua força e é obscura. Quando se coloca a questão: “Qual é o princípio moral que domina toda a filosofia da Antigüidade?”, a resposta imediata não é “tome conta de você mesmo”, mas o princípio délfico, gnôthi seauton, “conhece-te a ti mesmo”.
Sem dúvida nossa tradição filosófica tem insistido muito sobre esse último princípio e esquecido o primeiro. O princípio délfico não é uma máxima abstrata em relação à vida; é um conselho técnico, uma regra a observar para a consulta do oráculo. “Conhece-te a ti mesmo” significa: “Não imagines que és um deus”. Outros comentaristas ofereceram a seguinte interpretação: "Saiba bem qual é a natureza de tua pergunta quando vierdes consultar o oráculo".
Nos textos gregos e romanos, a injunção para conhecer-se a si mesmo está sempre associada àquele outro princípio que é o cuidado de si, e é essa necessidade de tomar conta de si que torna possível a aplicação da máxima délfica. Essa idéia, implícita em toda a cultura grega e romana, torna-se explícita a partir do Alcibíades I de Platão[i]. Nos diálogos socráticos, em Xenofonte, Hipócrates, e em toda a tradição neoplatônica que começa com Albino, o indivíduo deve tomar conta de si mesmo. Deve ocupar-se de si antes de colocar em prática o princípio délfico. O segundo princípio se subordina ao primeiro. Disso tenho três ou quatro exemplos.
Na Apologia, 29e, de Platão, Sócrates se apresenta a seus juízes como um mestre da epimeleia heatou[ii]. Vocês se “preocupam sem vergonha de adquirir riquezas, reputação e honrarias”, diz ele, mas não se ocupam de vocês mesmos, não têm nenhum cuidado com “a sabedoria, a verdade e a perfeição da alma”. Em contrapartida, ele, Sócrates, vela pelos cidadãos, assegurando-se que eles se preocupem consigo mesmos.
Sócrates diz três coisas importantes, concernentes à maneira como convida os demais a se ocuparem de si mesmos: 1) sua missão lhe foi confiada pelos deuses e ele não a abandonará antes de seu último suspiro; 2) ele não exige nenhuma recompensa por sua missão; ele é desinteressado; ele a cumpre por bondade; 3) sua missão é útil para a cidade – mais útil que a vitória militar dos atenienses em Olímpia -, porque ao ensinar os homens a se ocuparem de si mesmos ele lhes ensina a se ocuparem da cidade.
Oito séculos mais tarde, encontra-se a mesma idéia e a mesma formulação no De virginitate de Gregório de Nysse, mas o sentido é inteiramente diferente aqui[iii]. Não é o movimento que conduz o indivíduo a cuidar de si mesmo e da cidade que pensa Gregório de Nysse; ele pensa no movimento pelo qual o indivíduo renuncia ao mundo e ao casamento, se desapega da carne e, com a virgindade do coração e do corpo, reveste a imortalidade da qual foi privada. Comentando a parábola da dracma (Luc, XV, 8-10), Gregório exorta o homem a acender sua lâmpada e a explorar a casa, até que encontre a dracma, luzindo na sombra. A fim de encontrar a eficácia que deus imprime à alma humana e que o corpo obscureceu, o homem deve cuidar de si mesmo e explorar cada recanto de sua alma (de virg., XII).
A filosofia antiga e o ascetismo cristão se colocam, nós os vemos, sob o mesmo signo: aquele do cuidado de si. A obrigação de conhecer-se é um dos elementos centrais do ascetismo cristão. Entre esses dois extremos – Sócrates e Gregório de Nyesse -, cuidar de si constitui não somente um princípio, mas também uma prática constante.
Dois outros exemplos; o primeiro texto epicúreo a ter servido como manual de moral foi a Carta a Meneceu (Diógenes Laërtius, 10, 122-38)[iv]. Epicuro escreveu que nunca é muito cedo ou muito tarde para se preocupar com sua alma. Deve-se filosofar quando se é jovem, mas também quando se é velho. É uma missão a qual se deve perseguir durante toda a vida. Os preceitos que regulam a vida cotidiana se organizam entorno do cuidado de si, a fim de ajudar cada membro do grupo na missão comum de salvação.
Um outro exemplo, que nos vem de um texto alexandrino, a De vita contemplativa de Philon de Alexandria[v]. O autor descreve um grupo obscuro, enigmático, à periferia da cultura helenística e da cultura hebraica; os therapeutae, que deram mostra de uma grande religiosidade. É uma comunidade austera, que se consagra à leitura, à meditação terapêutica, à prece coletiva e individual, e que ama se encontrar para um banquete espiritual (agapê = “festim”). Essas práticas encontram sua origem naquela missão principal que é o cuidado de si (De vita cont., XXXVI).
Tal é o ponto de partida de uma possível análise da preocupação com o si na cultura antiga. Adoraria analisar a relação entre o cuidado de si e o conhecimento do si, na tradição greco-romana e na tradição cristã, entre a preocupação que tem o indivíduo consigo mesmo e o preceito tão célebre “conhece-te a ti mesmo”. Da mesma forma que existem diferentes formas de cuidado, existem diferentes formas de si.
Resumo
Existem muitas razões que explicam que o “conhece-te a ti mesmo” eclipsou o “cuida de ti mesmo”. A primeira é que os princípios morais da sociedade ocidental passaram por uma profunda transformação. Experimentamos a dificuldade de fundamentar uma moral rigorosa e princípios austeros sobre um preceito que mostra que devemos nos preocupar conosco mesmos mais do que qualquer outra coisa. Inclinamo-nos, em princípio, a considerar o cuidado de si como qualquer coisa de imoral, como um meio de escapar a todas as regras possíveis. Herdamos isso da moral cristã, que faz da renúncia de si a condição da salvação. Paradoxalmente, conhecer-se a si mesmo constituiu um meio de renunciar a si mesmo.
Somos também herdeiros de uma tradição secular, que vê na lei externa o fundamento da moral. Assim, como o respeito que se tem por si mesmo pode constituir-se na base da moral? Somos os herdeiros de uma moral social que fundamenta as regras de um comportamento aceitável sobre as relações com os outros. Se a moral estabeleceu-se, depois do século XVI, como objeto de uma crítica, o fez em nome da importância do reconhecimento e do conhecimento de si. É ainda difícil imaginar que o cuidado de si pudesse ser compatível com a moral. “Conhece-te a ti mesmo” eclipsou “cuida de ti mesmo”, porque nossa moral, uma moral do ascetismo, não parou de dizer que o si é a instância que se pode rejeitar.
A segunda razão é que, na filosofia teórica que vai de Descartes a Husserl, o conhecimento de si (o sujeito pensante) ganhou uma importância tanto maior enquanto ponto de referência da teoria do conhecimento.
Para resumir: tem ocorrido uma inversão na hierarquia dos dois princípios da Antigüidade, “cuida de ti mesmo” e “conhece-te a ti mesmo”. Na cultura greco-romana, o conhecimento de si aparece como conseqüência do cuidado de si. No mundo moderno, o conhecimento de si constitui o princípio fundamental.
II
É no Alcibíades I de Platão que se encontra a primeira elaboração filosófica do cuidado de si que desejo examinar aqui. A data da redação desse texto é incerta, e é possível que tenhamos nele um diálogo platônico apócrifo. Minha intenção não a de estudar as datas, mas a de indicar as principais características do cuidado de si que estão no centro do diálogo.
Os neoplatônicos dos séculos III e IV mostraram qual significação convinha atribuir a esse diálogo e qual a importância que ele possuía na tradição clássica. Pretendiam transformar os diálogos de Platão em um utilitário pedagógico, fazendo a matriz do saber enciclopédico. O Alcibíades figurava para eles como o primeiro diálogo de Platão - o primeiro que é preciso ler, o primeiro que se necessita estudar. O archê[vi], em suma. No século II, Albinus declara que todo jovem homem dotado que quiser apartar-se da política e praticar a virtude, devia estudar o Alcibíades[vii]. Esse diálogo constitui assim um ponto de partida, que nos fornece o programa de toda a filosofia platônica. “Cuida de si” é seu primeiro princípio. Gostaria de analisar o cuidado de si no Alcibíades em função de três grandes interrogações.
1) Como essa questão se introduz no diálogo? Quais são as razões que levam Alcibíades e Sócrates a essa noção de cuidado de si?
Alcibíades está prestes a começar sua vida pública e política. Ele quer se dirigir ao povo e ser o Todo-Poderoso na cidade. Não está satisfeito com seu status tradicional, com os privilégios que lhe foram conferidos por nascença e por herança. Quer adquirir um poder pessoal e exercê-lo sobre os outros, tanto no interior quanto no exterior da cidade. Nesse ponto de interseção e de transformação, Sócrates intervém e declara seu amor por Alcibíades. Alcibíades não pode mais ser o amado: ele deve tornar-se o amante. Ele deve ter uma participação ativa no jogo da política e no jogo do amor. Assim elabora-se uma dialética entre o discurso político e o discurso erótico. A transição, para Alcibíades, se dá de maneira específica, tanto no que concerne à política quanto no que concerne ao amor.
O vocabulário político e erótico de Alcibíades faz aparecer uma ambivalência. Desde que era adolescente Alcibíades foi desejável, e um bando de admiradores se formou ao seu redor; mas, à medida que sua barba se desenvolve, ele vê seus pretendentes desaparecerem. No tempo de seu esplendor, ele os havia a todos rejeitado, porque queria ser dominante, e não dominado. Ele se recusava a deixar-se dominar quando era jovem, mas, no presente, ele quer dominar os outros. É nesse momento que Sócrates aparece, aquele que tem sucesso onde os outros fracassaram: forçará Alcibíades a submeter-se, mas de uma maneira diferente. Alcibíades e Sócrates fazem um pacto: Alcibíades submeter-se-á a seu amante, Sócrates, não no sentido de uma submissão física, mas de uma submissão espiritual. A ambição política e o amor filosófico encontram seu ponto de junção no “cuidado de si”.
2) Nessa relação, por que Alcibíades deveria cuidar de si mesmo, e por que Sócrates se preocupa com tal cuidado de Alcibíades? Sócrates interroga Alcibíades sobre suas capacidades pessoais e sobre a natureza de sua ambição. Conhece ele o sentido da regra jurídica, da justiça e da concórdia? Evidentemente, Alcibíades ignora tudo. Sócrates o exorta a comparar sua educação à dos reis da Pérsia e da Lacedemônia, seus rivais. Os príncipes da Pérsia e da Lacedemônia têm por professores a Sabedoria, a Justiça, a Temperança e a Coragem. Em comparação à deles, a educação de Alcibíades se assemelha à de um velho escravo ignorante. Não conhecendo todas essa coisas, Alcibíades não pode se dedicar ao saber. Mas, diz Sócrates, não é tarde demais. A fim de triunfar - de adquirir a tekhnê -, Alcibíades deve aplicar-se, cuidar de si mesmo. Mas Alcibíades ignora a que deve se aplicar. Que saber é esse que ele quer adquirir? O embaraço e a confusão o tomam. Sócrates o exorta a não perder a coragem.
É no 127d que encontramos a primeira ocorrência da expressão epimeleisthai sautou. O cuidado de si leva sempre a um estado político e erótico ativo. Epimeleisthai exprime qualquer coisa de muito mais séria que o simples fato de prestar atenção. Essa noção implica diferentes coisas - preocupar-se com suas posses e sua saúde, por exemplo. É sempre uma atividade real e não simplesmente uma atitude. A expressão se aplica à atividade do fazendeiro, que se ocupa de seus campos, vela por sua tropa e cuida de sua fazenda; ao trabalho do rei, que vela pela cidade e por seus súditos; ao culto dos ancestrais e dos deuses; em medicina, a expressão remete aos cuidados que se tem com as doenças. Significativo, o cuidado de si, no Alcibíades está diretamente ligado à idéia de uma pedagogia defeituosa - uma pedagogia que concerne à ambição política e um momento particular da vida.
3) O resto do texto está consagrado a uma análise dessa noção de epimeleisthai, do cuidado que se toma consigo mesmo. Duas questões orientam a análise: qual é esse si do qual deve-se cuidar, e em que consiste esse cuidado?
Afinal, o que é o si (129b)? “Si é um pronome reflexivo, daí sua significação dúbia. Auto quer dizer “o mesmo”, mas remete também à noção de identidade. Esse segundo sentido permite passar da questão “o que é esse si?”, a outra “a partir de qual fundamento encontro minha identidade?”.
Alcibíades tenta encontrar o si através de um movimento dialético. Quando se cuida do corpo, não se cuida de si. O si não é reduzível a uma vestimenta, a uma ferramenta ou a posses. Deve ser procurado no princípio que permite utilizar tais ferramentas, um princípio que não pertence ao corpo, mas à alma. É preciso inquietar-se com a alma – essa é a principal atividade do cuidado de si. O cuidado de si é o cuidado com a atividade, e não preocupação com a alma enquanto substância.
A segunda questão é: como convém cuidar desse princípio da atividade, como cuidar da alma? Em que consiste esse cuidado? É preciso saber em que consiste a alma. A alma não pode se conhecer, a menos que se a observe dentro de um elemento que lhe seja semelhante, um espelho. A alma deve contemplar o elemento divino. É nessa contemplação do elemento divino que a alma descobrirá as regras suscetíveis de fundamentar um comportamento e uma ação política justas. O esforço que permite à alma se conhecer é o princípio sobre o qual pode se fundamentar o ato político justo, e Alcibíades será um bom político na medida em que contemple sua alma em seu elemento divino.
Freqüentemente a discussão gira em torno do princípio délfico “conhece-te a ti mesmo” e se exprime nesses termos. Cuidar de si consiste em conhecer-se a si mesmo. O conhecimento de si torna-se o objeto da busca do cuidado de si. Um laço se cria entre o cuidado de si e a atividade política. O diálogo se finaliza quando Alcibíades compreende que deve cuidar de si mesmo examinando sua alma.
Esse texto, um dos primeiros de Platão, esclarece o pano de fundo histórico sobre o qual assenta a imposição do cuidar de si mesmo; inaugura também quatro grandes problemas que não cessarão de assombrar a Antigüidade, mesmo que as soluções propostas difiram freqüentemente das que oferece o Alcibíades.
Primeiramente há o problema da relação entre o cuidado de si e a atividade política. Por volta do fim do período helenístico e do Império, a questão é: quando será melhor afastar-se da atividade política para ocupar-se de si?
Em segundo lugar, há o problema da relação entre o cuidado de si e a pedagogia. Para Sócrates, ocupar-se de si é o dever de um jovem homem, mas mais tarde, no decorrer do período helenístico, preocupar-se consigo tornar-se-á o dever permanente de toda uma vida.
Em terceiro lugar, há o problema da relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si. Platão dá prioridade ao preceito délfico “conhece-te a ti mesmo”. Esse privilégio caracteriza todos os platônicos. Mais tarde, no decorrer dos períodos helenísticos e greco-romanos, o privilégio será invertido. Não será ressaltado o conhecimento de si, mas o cuidado de si - esse último tornar-se-á autônomo e se imporá como primeiro problema filosófico.
Em quarto lugar, há o problema da relação entre o cuidado de si e o amor filosófico, ou a relação com um mestre.
Durante o período helenístico e sob o Império, a noção socrática de “o cuidado de si” tornou-se um tema filosófico comum e universal. Epicuro e seus adeptos, os cínicos, alguns estóicos como Sêneca, Rufus e Galien, todos reconheciam a “o cuidado de si”. Os pitagóricos ressaltam a idéia de uma vida comunitária ordenada. Esse tema do cuidado de si não constitui uma opinião abstrata, mas uma atividade irradiada, uma rede de obrigações e de serviços nos quais o indivíduo deve cumprir sua obrigação para com sua alma. Conforme o próprio Epicuro, os epicúreos pensam que nunca é tarde demais para ocupar-se consigo. Os estóicos declaram que se deve estar atento a si mesmo, “retirar-se em si mesmo e aí ficar”. Luciano parodia essa idéia[viii]. O cuidado de si é uma atividade das mais habituais, e está na origem da rivalidade que opõe os retóricos àqueles que se voltam contra si mesmos, em particular sobre a questão do papel do mestre.
Existiam charlatões, é claro. Mas alguns levavam a coisa a sério. Reconhece-se geralmente que a reflexão, ao menos por um breve período, é algo que faz bem. Plínio aconselha a um amigo de reservar alguns minutos a cada dia, ou de pegar algumas semanas ou alguns meses, para fazer um retiro. É um lazer ativo – estuda-se, lê-se, prepara-se para os reveses da fortuna ou a morte. É ao mesmo tempo uma meditação e uma preparação.
Nessa cultura do cuidado de si a escrita é, ela também, importante. Dentre as tarefas que definem o cuidado de si, há aquelas de tomar notas sobre si mesmo – que poderão ser relidas -, de escrever tratados e cartas aos amigos, para os ajudar, de conservar os seus cadernos a fim de reativar para si mesmos as verdades da qual precisaram. As cartas de Sócrates são um exemplo desse exercício de si.
É à cultura oral que pertence o primeiro lugar, na vida política tradicional. Daí a importância da retórica. Mas o desenvolvimento das estruturas administrativas e da burocracia no Império aumenta o número de escritos e a importância da escrita na esfera política. Nos escritos de Platão o diálogo cede lugar a um pseudo-diálogo literário. Contudo, com o período helenístico, é a escrita que prepondera e a verdade dialética encontra seu espaço de expressão na correspondência. Cuidar de si, de agora em diante, vai paralelo a uma atividade de escrita constante. O si é algo sobre o qual há assunto para escrever, um tema ou um objeto (um sujeito) da atividade da escrita. Não é nem um aspecto moderno nascido da Reforma, nem um produto do romantismo; é uma das tradições das mais antigas do Ocidente – uma tradição já bem estabelecida, profundamente enraizada, quando Agostinho começa a escrever suas Confissões[ix].
Um novo cuidado de si implica uma nova experiência de si. Pode-se ver qual forma toma essa nova experiência de si nos séculos I e II, nos quais a introspecção se torna cada vez mais explorada. Uma relação se forma entre a escrita e a vigilância. Presta-se atenção às nuanças da vida, aos estados da alma e à leitura, e o ato de escrever intensifica e aprofunda a experiência de si. Todo um campo de experiências que não existia anteriormente se abre.
Pode-se comparar Cícero a Sêneca o filósofo ou a Marco Aurélio. Encontra-se, por exemplo, em Sêneca e em Marco Aurélio uma atenção meticulosa para com os detalhes da vida cotidiana, aos movimentos do espírito, à análise de si. Todos os elementos característicos do período imperial estão presentes na carta de Marco Aurélio para Fronton (144-45 dC)[x]:
Essa carta nos oferece uma descrição da vida cotidiana. Todos os detalhes do cuidado de si estão presentes, todas as coisas sem importância que Marco Aurélio fez. Cícero não relata mais que os eventos necessários, mas na carta de Marco Aurélio os detalhes têm importância por representarem o assunto – o que ele pensa, a maneira que vivenciou as coisas.
A relação entre o corpo e a alma é, também para ele, interessante. Para os estóicos, o corpo não era tão importante, mas Marco Aurélio fala de si mesmo, de sua saúde, daquilo que comeu, de sua dor de garganta. Essas indicações caracterizam bem a ambigüidade que está relacionada ao corpo nessa cultura de si. Teoricamente a cultura de si é orientada em direção à alma, mas tudo que se relaciona ao corpo tem uma importância considerável. Em Plínio e Sêneca, a hipocondria é um sinal especial. Eles se retiram em uma casa no campo. Têm ocupações intelectuais, mas também rurais. Comem e participam de atividades com os camponeses. Se o retiro no campo é importante nessa carta, é porque a natureza ajudou o indivíduo a reencontrar o contato consigo mesmo.
Existe também uma relação amorosa entre Marco Aurélio e Fronton, uma relação que se forma entre um jovem homem de vinte e quatro anos e um homem de quarenta anos. A ars erotica constitui um dos temas da discussão. Naquela época o amor homossexual era importante; é um tema que será reencontrado na vida monástica cristã.
Enfim, nas últimas linhas, encontra-se uma alusão ao exame de consciência que se pratica no fim do dia. Marco Aurélio vai se deitar e examinar seu caderno a fim de ver se aquilo que havia feito corresponde àquilo que havia previsto fazer. A carta é a transcrição desse exame de consciência. Ela é a recordação daquilo que o indivíduo fez, e não daquilo que ele pensou. É nisso que a prática dos períodos helenístico e imperial difere da prática monástica mais tardia. Em Sêneca também são exclusivamente os atos, e não os pensamentos, que são transcritos. Mas temos aí uma prefiguração da confissão cristã.
Esse gênero de cartas coloca em evidencia um aspecto inteiramente particular da filosofia da época. O exame de consciência começa com a escrita de cartas como essas. A redação escrita de um diário vem mais tarde. Nasce na época cristã e ressalta essencialmente a noção de combate da alma.
III
Em meu comentário do Alcibíades de Platão, isolei três temas principais: inicialmente a relação entre o cuidado de si e a preocupação com a vida política; em seguida a relação entre o cuidado de si e a idéia de uma educação defeituosa; finalmente, a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si. Embora tenhamos visto no Alcibíades a estreita ligação entre “cuidar de si mesmo” e “conhecer-se a si mesmo”, o primeiro preceito termina por assimilar-se ao segundo.
Esses três temas os encontramos em Platão, mas também ao longo de todo o período helenístico e, quatro ou cinco séculos mais tarde, em Sêneca, Plutarco, Epíteto et alii. Se os problemas permanecem os mesmos, as soluções propostas e os temas desenvolvidos diferem dos significados platônicos, e muitas vezes se opõem.
Primeiramente, ocupar-se de si na época helenística e sob o Império não constitui somente uma preparação para a vida política. Ocupar-se consigo tornou-se um princípio universal. Deve-se afastar da política para melhor ocupar-se consigo mesmo.
Em segundo lugar, cuidar de si mesmo não é simplesmente uma obrigação da qual se incumbem as pessoas jovens preocupadas com sua educação; é uma maneira de viver, da qual cada um deve se incumbir ao longo de sua vida.
Em terceiro lugar, mesmo se o conhecimento de si tem um papel importante no cuidado de si, outros tipos de relações estão também envolvidas.
Gostaria de comentar brevemente os dois primeiros pontos: a universalidade do cuidado de si, enquanto independente da vida política, e o cuidado de si como dever permanente de toda uma vida.
1) O modelo pedagógico de Platão é substituído por um modelo médico. O cuidado de si não é uma outra forma de pedagogia; ela deve constituir um cuidado médico permanente. O cuidado médico permanente é um dos traços essenciais do cuidado de si. Cada um deve tornar-se médico de si mesmo.
2) Já que cuidar de si deve ser a tarefa de toda uma vida, o objetivo não é mais de preparar-se para a vida adulta ou para uma outra vida, mas de prepara-se para uma realização total: a vida. Essa realização torna-se total no instante que precede à morte. Essa idéia de uma proximidade feliz da morte – a velhice como completude – constitui uma inversão de valores que se ligam tradicionalmente à juventude entre os gregos.
3) Existem, enfim, as diferentes práticas as quais a cultura de si fez nascer, e a relação que se estabeleceu entre essas práticas e a cultura de si.
No Alcibíades, a alma está numa relação especulativa com ela mesma – uma relação que está ligada ao conceito de memória e justifica a existência do diálogo como método que permite descobrir a verdade alojada na alma. Mas entre a época de Platão e a época helenística, a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si se modifica. Duas perspectivas se apresentam
No seio dos movimentos que agitam a filosofia estóica sobre o Império projeta-se uma nova concepção da verdade e da memória, assim como um outro método de exame de si. É primeiramente o diálogo que desaparece, enquanto que se instaura uma nova relação pedagógica de importância crescente; é um novo jogo pedagógico, no qual o mestre/professor fala sem colocar questões e o discípulo não responde: ele deve escutar e ficar em silêncio. Vê-se crescer a importância de uma cultura do silêncio. Na cultura pitagórica os discípulos devem ficar em silêncio durante cinco anos; tal era a regra pedagógica. Não se coloca nenhuma questão nem se fala durante a lição, mas se exercita a arte de escutar. Essa era a condição indispensável para adquirir a verdade. Essa tradição se instaura na época imperial, na qual a cultura platônica do diálogo cede lugar a uma cultura do silêncio e à arte da escuta.
Quem quer aprender a arte da escuta deve ler o tratado de Plutarco sobre a arte de escutar as conferências (Peri tou akouein)[xi]. No começo de seu tratado, Plutarco declara que, uma vez que esses anos de escola passam, o homem deve aprender a escutar o logos durante toda a sua vida de adulto. A arte da escuta é capital para quem quer distinguir a verdade e a dissimulação, a retórica e a mentira no discurso dos retóricos. A escuta está ligada ao fato de que o discípulo não está sob o controle de seus mestres, mas na postura daquele que acolhe o logos. Assim se define a arte de escutar a voz do mestre e a voz da razão em si.
O conselho pode parecer banal, mas eu o creio importante. Em seu tratado sobre A Vida Contemplativa, Philon de Alexandria descreve os banquetes do silêncio, que não têm nada a ver com aqueles banquetes dissolutos nos quais havia vinho, rapazes, orgias e o diálogo. Aqui é um professor que oferece um monólogo sobre a interpretação da Bíblia e dá as indicações mais precisas sobre a maneira que era conveniente escutar (De vita cont., 77). Por exemplo, devia-se sempre ter a mesma postura enquanto se escutava. A vida monástica, e mais tarde a pedagogia, deram a essa noção uma morfologia interessante.
Em Platão é graças ao diálogo que se urde o laço dialético entre a contemplação da contemplação de si e o cuidado de si. Na época imperial, dois temas se fazem presentes: de um lado, o tema da obrigação de escutar a verdade e, do outro, o tema do exame e da escuta de si como meio de descobrir a verdade que se aloja no indivíduo. A diferença que se marca entre as duas épocas é um dos grandes sinais do desaparecimento da estrutura dialética.
Em que consiste o exame da consciência nessa cultura e qual olhar o indivíduo se coloca sobre si mesmo? Para os pitagóricos o exame da consciência está ligado à purificação. O sono tinha uma relação com a morte na medida em que favorecia um reencontro com os deuses, era necessário purificar-se antes de dormir. Lembrar-se dos mortos é uma maneira de exercer sua memória. Mas essa prática ganha novos valores e muda de sentido com o período helenístico e o começo do Império. Em relação a isso, muitos textos são significativos: o De ira e o De tranquilitate de Sêneca[xii], assim como as primeiras páginas do livro IV dos Pensamentos de Marco Aurélio[xiii].
O De ira (livro III) de Sêneca contém traços da velha tradição[xiv]. A filosofia descreve o exame de consciência – um exame que recomendavam também os epicúreos, e cuja prática encontra sua origem na tradição pitagórica. O começo do exame de si é a purificação da consciência através de um procedimento mnemônico. Agir conforme o bem, praticar corretamente o exame de consciência são a garantia de um bom sono e de bons sonhos, que asseguram o contato com os deuses
Sêneca dá perfeitamente a impressão de que utiliza uma linguagem jurídica, na qual o si é ao mesmo tempo juiz e acusado. Sêneca é o juiz que persegue o si em justiça, de sorte que o exame de consciência toma forma de um processo. Mas é suficiente olhar mais perto para constatar que não se trata de uma corte de justiça. Sêneca utiliza os termos que remetem não às práticas jurídicas, mas às práticas administrativas, como quando um controlador examina as contas ou quando um vistoriador examina uma construção. O exame de si é uma maneira de estabelecer um inventário. As faltas não são mais do que boas intenções que permaneceram no estado de intenção. A regra constitui o meio de agir corretamente, e não de julgar o que teve lugar no passado. Mais tarde, a confissão cristã procurará desalojar as más intenções.
O olhar administrativo que a filosofia lança sobre sua vida é mais importante do que o modelo jurídico. Sêneca não é um juiz que se dá por tarefa punir, mas um administrador que estabelece um inventário. Ele é o administrador permanente de si mesmo, e não julga o seu passado. Ele vela para que tudo se efetue corretamente, de acordo com a regra, e não com a lei. As críticas que emite não se dirigem a suas faltas reais, mas antes a seus insucessos. Seus erros são os erros de estratégia, e não as faltas morais. Trata-se para ele não de explorar sua culpabilidade, mas de ver como aquilo que fez se ajusta àquilo que queria ter feito, e de reativar algumas regras de conduta. Na confissão cristã o penitente é obrigado a memorizar as leis, mas ele o faz a fim de descobrir seus pecados.
Primeiramente, o problema, para Sêneca, não é descobrir a verdade do sujeito, mas lembrar essa verdade à memória, ressuscitar uma verdade perdida. Em segundo lugar, não é nem ele mesmo, nem sua natureza, nem sua origem ou suas afinidades sobrenaturais que o sujeito esquece: ele esquece as regras de conduta, aquilo que deveria ter feito. Em terceiro lugar, a rememoração dos erros cometidos no dia permite medir a distância entre o que foi feito e aquilo que deveria ter sido feito. Em quarto lugar, o sujeito não é o terreno sobre o qual se opera o processo de decodificação, mas o ponto em que as regras de conduta se reencontram na memória. O sujeito constitui o ponto de interseção dos atos que necessitam ser submetidos às regras, e às regras que definem a maneira como deve se agir. Estamos bem longe da concepção platônica e da concepção cristã da consciência.
Os estóicos espiritualizam a noção de anakhôrêsis, que se trata da retirada de uma armada, do refúgio do escravo que se esconde de seu amo, ou do retiro para o campo, longe das cidades, como para Marco Aurélio. A saída para o campo toma forma de um retiro espiritual em si. Fazer um retiro em si constitui não somente uma atitude geral, mas um ato preciso, que se realiza a cada dia: faz-se retiro em si a fim de rememorar as regras de ação, as principais leis que definem a conduta. É uma fórmula mnemotécnica.
IV
Falei de três técnicas de si definidas pela filosofia estóica: as cartas aos amigos e o que elas revelam de si; o exame de si mesmo e de sua consciência, que compreende a avaliação daquilo que foi feito, daquilo que deveria ter sido feito, e a comparação dos dois. Gostaria, agora, de considerar uma terceira técnica definida pelos estóicos: a askêsis, que não é a revelação do si secreto, mas um ato de rememoração.
Para Platão o indivíduo deve descobrir a verdade que se esconde nele. Para os estóicos a verdade não está para ser descoberta no indivíduo, mas nos logoi, os preceitos dos mestres. O discípulo memoriza o que escutou, convertendo as palavras de seus mestres em regras de conduta. O objetivo dessas técnicas é a subjetivação da verdade. No Império os princípios éticos não são assimiláveis sem um cabedal teórico tal qual a ciência, como no testemunho, por exemplo, na De natura rerum de Lucrécio[xv]. Certas questões estruturais subtendem-se à prática do exame de si às quais nos obrigamos a cada noite. Devo sublinhar o fato de que não é a decodificação de si, nem os meios de que se lança mão para revelar um segredo, que são importantes no estoicismo; o que conta é a lembrança do que se fez e daquilo do que se é tido como feito.
Na prática cristã, o ascetismo é sempre semelhante a uma certa forma de renúncia a si mesmo e à realidade, o si fazendo parte dessa realidade à qual se deve renunciar para acessar um outro nível de realidade. É esse movimento para alcançar a renúncia a si mesmo que distingue o ascetismo cristão.
Na tradição filosófica inaugurada pelo estoicismo, a askêsis, longe de indicar a renúncia a si mesmo, implica na consideração progressiva de si, a maestria de si - uma maestria à qual se alcança não pela renúncia à realidade, mas ao se obter e assimilar a verdade. O objetivo final da askêsis não é preparar o indivíduo para uma outra realidade, mas de lhe permitir acessar a realidade deste mundo. Em grego a palavra que descreve essa atitude é paraskeuazô (“preparar-se”). A askêsis é um conjunto de práticas pelas quais o indivíduo pode obter, assimilar a verdade, e transformá-la em um princípio de ação permanente. A alêtheia se torna o êthos. É um processo de intensificação da subjetividade.
Quais são os principais traços que caracterizam a askêsis? A askêsis compreende um certo número de exercícios, nos quais o sujeito se coloca na situação de verificar se é capaz ou não de fazer face aos acontecimentos e de utilizar o discurso do qual está armado. O objetivo é testar a preparação. O sujeito assimilou suficientemente essa verdade a ponto de transformá-la em uma ética e se comportar como deve na presença de um acontecimento?
Duas palavras, em grego, caracterizam os dois pólos desses exercícios: meletê e gumnasia. Meletê , segundo a tradução latina (meditatio), significa “meditação”. Essa palavra tem a mesma raiz que epimeleisthai. É um termo muito vago, um termo técnico pegado da retórica. Meletê designa a reflexão sobre os termos e os argumentos adequados que acompanham à preparação de um discurso ou de uma improvisação. Trata-se de antecipar a situação real através do diálogo dos pensamentos. A meditação filosófica resulta da meletê: Ela consiste em memorizar as reações e em reativar suas lembranças, colocando-se em uma situação na qual pode-se imaginar de qual maneira a ela se reagiria. Por meio de um exercício de imaginação (“suponhamos que...”), julga-se o raciocínio que se deverá adotar a fim de testar uma ação ou um acontecimento (por exemplo: “Como reagirei?”). Imaginar como se articulam diversos acontecimentos possíveis a fim de experimentar de qual maneira se reagiria: é essa a meditação.
O exercício de meditação mais célebre é a praemeditatio malorum, tal como a praticavam os estóicos. A praemeditatio é uma experiência ética, um exercício da imaginação. Aparentemente ela corresponde a uma visão mais para sombria e pessimista do futuro. Pode-se compará-la ao que diz Husserl da redução eidética.
Os estóicos operavam três reduções eidéticas da infelicidade futura. Inicialmente não se trata de imaginar o futuro tal que esteja suscetível de se fazer presente, mas de imaginar o pior, mesmo se esse pior tem poucas de chances de acontecer. – o pior como certitude, como atualização do possível, e não como cálculo de probabilidades. E depois, não se deve considerar as coisas como suscetíveis de se produzir em um futuro longínquo, mas como realidade já , e em curso. Imaginar, por exemplo, não que se possa ser exilado, mas que já se está exilado, submisso à tortura e agonizante. Enfim, o objetivo dessa atitude não é vivenciar os sofrimentos mudamente, mas de convencer-se que esses sofrimentos não são na verdade males reais. A redução de todo o possível, de toda a duração e de toda a infelicidade revelam não um mal, mas a aceitação à qual somos levados. Ela constitui uma penhora simultânea do acontecimento futuro e do acontecimento presente. Os epicúreos lhe eram hostis, porque a achavam inútil. Consideravam que era melhor relembrar-se os prazeres passados a fim de desfrutar os acontecimentos presentes.
No polo oposto, temos a gumnasia (o “entretenimento”, o “exercício”). Se a meditatio é uma experiência imaginária que exerce o pensamento, a gumnasia é o entretenimento em uma situação real, mesmo se essa situação tenha induzida artificialmente. Uma longa tradição aparece a partir de então: a abstinência sexual, a privação física e outros rituais de purificação.
Essas práticas de abstinência não visam outra coisa que a purificação e a verificação do poder do demônio, que as justificava para Pitágoras e para Sócrates. Na cultura estóica, sua função é a de estabelecer e de testar a independência do indivíduo em relação ao mundo exterior. No De genio Socratis de Plutarco, por exemplo, o indivíduo se entrega a atividades esportivas muito experienciadas; ou então se submete à tentação colocando diante de si iguarias muito apetitosas e a elas renunciando. Chama seu escravo e lhe dá iguarias, enquanto que ele mesmo come a refeição destinada aos escravos[xvi]. Disso encontramos outro exemplo na carta 18 de Sêneca a Lucílio. Sêneca se prepara para uma grande jornada de festividades pelos atos de mortificação da carne, a fim de convencer-se que a pobreza não é um mal e que é capaz de suportá-la[xvii].
Entre esses dois pólos de exercício do pensamento e do entretenimento na realidade, que são a meletê e a gumnasia, existe toda uma série de possibilidades intermediárias. É em Epíteto que se encontra o melhor exemplo de meio termo. Epíteto pretende vigiar sem cessar as representações – uma técnica que encontrará seu apogeu com Freud. Duas metáforas são, para ele, importantes: a do guarda-noturno, que não deixa entrar ninguém na cidade se não pode provar sua identidade (devemos, em relação ao fluxo de nossos pensamentos, adotar a atitude do guarda-noturno)[xviii], e aquela do cambista, que verifica a autenticidade da moeda, a examina, a sopesa, assegura-se de seu valor. Devemos ser os fiscais de nossas representações, de nossos pensamentos, testando-os com precaução, verificando seu metal, seu peso, sua efígie[xix].
Essa metáfora do cambista, nós a encontramos nos estóicos e na literatura cristã primitiva, mas dotada de significações diferentes. Adotar a atitude do cambista, para Epíteto, significa que, desde que uma idéia se apresente a nosso espírito, devemos refletir as regras que nos permitem avaliá-la. Para Jean Cassiano, entretanto, ser um cambista e examinar seus pensamentos significa outra coisa: trata-se de tentar determinar se, na origem do movimento que suscita as representações, não existe a concupiscência ou o desejo – se nosso inocente pensamento não possui origens culpáveis, se não existe, velada, qualquer coisa que é a grande sedutora, que é talvez invisível, a moeda de nosso pensamento[xx].
Epíteto definiu dois tipos de exercícios: os exercícios sofísticos e os exercícios éticos. A primeira categoria se compõe de exercícios retirados da escola: é o jogo das perguntas e das respostas. Esse jogo deve ser ético, quer dizer qualquer coisa que desencadeie em um ensinamento moral[xxi]. A segunda série é constituída pelos exercícios ambulantes: vai-se passear, pela manhã, e testam-se as reações sobre si que suscita o passeio[xxii]. O objetivo desses dois tipos de exercício não é a decodificação da verdade, mas o controle das representações. Elas são as recordações das regras às quais deve-se conformar frente à adversidade. Os testes que preconizam Epíteto e Cassiano evocam, até nos termos utilizados, uma máquina de censura pré-freudiana. Para Epíteto, o controle das representações não consiste em uma decodificação, mas em uma recordação da memória dos princípios de ação, a fim de determinar, graças ao exame que o indivíduo pratica sobre si mesmo, se esses princípios governam sua vida. É uma espécie de exame de si permanente, no qual o indivíduo deve ser seu próprio censor. A meditação sobre a morte constitui o termo mais completo desses diferentes exercícios.
Além das cartas, o exame e a askêsis, existe uma quarta técnica de exame de si que nós devemos, agora, evocar: a interpretação dos sonhos. É uma técnica que, no século XIX, veio a conhecer um destino importante, mas, na Antigüidade, a posição que ocupava era assaz marginal. Os filósofos da Antigüidade tinham, em relação à interpretação dos sonhos, uma atitude ambivalente. A maior parte dos estóicos mostrava-se cética e crítica para com as coisas. Mas, a interpretação dos sonhos é uma prática geral e popular. Existem, de um lado, os “experts” capazes de interpretar os sonhos – dentre os quais pode-se citar Pitágoras e alguns filósofos estóicos – e, de outro, os especialistas que escrevem livros a fim de ensinar às pessoas a maneira de interpretar seus sonhos. Os escritos sobre esse tema são inúmeros, mas o único manual de onirocrítica que nos resta, em sua totalidade, é a Chave dos sonhos de Artemidoro (século II DC)[xxiii]. A interpretação dos sonhos é importante, na Antigüidade, porque é através da significação de um sonho que se pode ler o indício de um acontecimento futuro.
Devo mencionar outros dois documentos que revelam a importância da interpretação dos sonhos na vida cotidiana. O primeiro é de Sinésio de Cyrène, e data do século IV de nossa era[xxiv]. Sinésio era um homem conhecido e instruído. Mesmo não sendo cristão, pediu para tornar-se bispo. Suas observações sobre os sonhos são interessantes, tanto mais que a adivinhação pública estava proibida, a fim de poupar o Imperador das más novidades. Devia-se, portanto, interpretar seus sonhos por si mesmo, fazer-se intérprete de si mesmo. Por isso, era necessário rememorar não somente os sonhos que se havia tido, mas também os acontecimentos que os haviam precedido e sucedido. Devia-se registrar aquilo que havia se passado a cada dia, quer fosse na vida diurna, quer na vida noturna.
Em seus Discours sacrés (Discursos sagrados), escritos no século II, Aelius Aristides relata seus sonhos e explica de qual maneira os convém interpretar[xxv]. De acordo com ele, nós recebemos, através da interpretação dos sonhos, os conselhos dos deuses quanto ao remédio capaz de curar nossas enfermidades. A obra de Aristide nos coloca em uma encruzilhada entre dois tipos de discurso. Não é o relato detalhado das atividades cotidianas do sujeito que constituem a matriz dos Discursos Sagrados, mas a conotação ritual dos louvores que o sujeito dirige aos deuses que lhe curaram.
V
Gostaria, agora, de examinar o perfil geral de uma das principais técnicas de si inauguradas pelo cristianismo, e ver como essa técnica constituiu um jogo de verdade. Para fazê-lo, devo considerar a passagem da cultura pagã à cultura cristã – passagem na qual se distingue as continuidades e descontinuidades bem claramente.
O cristianismo se classifica dentre as religiões de salvação. É uma dessas religiões que se investem da missão de conduzir o indivíduo de uma realidade a outra, da morte à vida, do tempo à eternidade. Com esse fim, o cristianismo impõe um conjunto de condições e de regras de conduta que têm por objetivo uma certa transformação de si.
O cristianismo não é somente uma religião de salvação: é também uma religião confessional, que, bem mais que as religiões pagãs, impõe obrigações bastante rígidas de verdade, de dogma e de cânone (princípios). No cristianismo, as obrigações de verdade que impõem ao indivíduo crer nisso ou naquilo sempre existiram, e permanecem muito numerosas. A obrigação leva o indivíduo a aceitar um certo número de deveres, a considerar certos livros como uma fonte de verdade permanente, a consentir nas decisões autoritárias em matéria de verdade, a crer em certas coisas – e não somente nelas crer, mas também demonstrar que o crê -, a reconhecer a autoridade da instituição: é tudo isso que caracteriza o cristianismo.
O cristianismo exige uma outra forma de obrigação com a verdade, diferente da fé. Requer de cada um que saiba o que é, quer dizer, que se empenhe em descobrir, aquilo que passa em si mesmo, que reconheça suas faltas, admita suas tentações, localize seus desejos; cada um deve em seguida revelar essas coisas seja a Deus, seja aos outros membros da comunidade, conduzindo desta maneira a um testemunho, público ou de caráter privado, contra si próprio. Um laço existe entre as obrigações com a verdade que concernem à fé e aquelas que tocam ao indivíduo. Esse laço permite uma purificação da alma, impossível sem o conhecimento de si.
As coisas não se apresentam da mesma maneira no catolicismo e na tradição protestante. Mas, tanto em uma, quanto na outra, se encontram as mesmas características: um conjunto de obrigações com a verdade concernente à fé, os livros, o dogma, e um outro conjunto concernente à verdade, o coração e a alma. O acesso à verdade não pode ser concebido sem a pureza da alma. A pureza da alma vem como conseqüência do conhecimento de si, e é a condição necessária à compreensão do texto; Agostinho fala de “quis facit veritatem” (fazer a verdade em si, ter acesso à luz).
Gostaria de analisar a maneira pela qual a Igreja, e sua aspiração à luz, pode conceber a iluminação como revelação de si. O sacramento da penitência e a confissão dos pecados são invenções bastante recentes. Nos primeiros tempos do cristianismo, recorria-se a outras formas para descobrir e decifrar a verdade em si. É através do termo exomologêsis, seja o “reconhecimento de um fato”, que se pode indicar uma das duas principais formas dessa revelação do si. Mesmo os padres latinos haviam conservado a palavra grega, sem buscar uma tradução exata. Para os cristãos, o exomologêsis significava reconhecer publicamente a verdade de sua fé ou reconhecer publicamente que eram cristãos.
A palavra tinha também uma significação penitencial. Um pecador que solicita a penitência deve ir buscar seu bispo e a ele pedi-la. Nos primeiros tempos do cristianismo, a penitência não era nem um fato, nem um ritual, mas um estatuto que era imposto àquele que havia cometido pecados muito graves.
O exomologêsis era o ritual pelo qual um indivíduo se reconhecia como pecador e como penitente. Compreendia muitas características: primeiramente, o pecador possuía estatuto de penitente para um período que poderia ser de quatro a dez anos, e esse estatuto afetava o conjunto de sua vida. Admitido o jovem, impunha certas regras concernentes à vestimenta e proibições em matéria de sexualidade. O indivíduo era designado como penitente, de maneira a que sua vida não se pareceria mais à dos outros. Mesmo depois da reconciliação, certas coisas lhe permaneceriam proibidas: por exemplo, não poderia se casar ou tornar-se pai.
Nesse estatuto se encontra a obrigação de exomologêsis. O pecador solicita a penitência. Ele vai ver o bispo e roga que se lhe imponha o estatuto de penitente. Ele deve justificar as razões que lhe levam a desejar esse estatuto e explicar suas faltas. Não é uma confissão: é uma condição para a obtenção desse estatuto. Mais tarde, na Idade Média, ao exomologêsis tornar-se-á um ritual interveniente no final do período da penitência, até a reconciliação. Essa será a cerimônia graças a qual o penitente encontrará seu lugar entre os outros cristãos. Ao descrever essa cerimônia de reconhecimento, Tertúlio diz que o pecador, portando o ódio sob seus farrapos e todo coberto de cinzas, mantém a promessa diante da igreja, em uma atitude de humildade. Depois se prosterna e abraça os joelhos de seu irmãos(La Pénitence, 9-12)[xxvi]. O exomologêsis não é uma conduta verbal, mas a expressão teatralizada do reconhecimento do estatuto de penitente. Bem mais tarde, São Jerônimo, em uma de suas Epístolas, descreverá a penitência de Fabíola, pecadora da nobreza romana[xxvii]. À época em que Fabíola figurou na fileira dos penitentes, as pessoas se lamentavam com ela, tornando mais patética ainda sua punição pública.
O reconhecimento indica também todo o processo a que o estatuto de penitente obriga o indivíduo no correr dos anos. O penitente é o ponto de convergência entre uma conduta penitencial claramente exibida, a autopunição e a revelação de si. Não se pode distinguir os atos pelos quais o penitente se pune daqueles pelos quais ele se revela. Existe um laço estreito entre a autopunição e a expressão voluntária de si. Esse laço aparece claramente em numerosos escritos. Cipriano, por exemplo, fala de manifestações de honra e de modéstia. A penitência não é nominal: ela é teatral[xxviii].
Alardear o sofrimento, manifestar a vergonha, dar a conhecer a humildade e exibir a modéstia, esses são os principais traços da punição. A penitência, em seus primórdios no cristianismo, é um modo de vida que se manifesta, a todo momento, pela aceitação da obrigação de se revelar. Ela necessita uma representação visível e a presença de outros, que reconheçam o ritual. Essa concepção da penitência manter-se-á até os séculos XV e XVI.
Tertúlio utiliza a expressão publicatio sui para qualificar o exomologêsis. A publicatio sui remete ao exame de si de que fala Sêneca – mas um exame cuja prática cotidiana fica inteiramente privada. Para Sêneca o exomologêsis ou publicatio sui não implica na análise verbal dos atos ou dos pensamentos. É somente uma expressão somática e simbólica. O que era privado para os estóicos torna-se público para os cristãos.
Essa publicatio sui, quais eram suas funções? Primeiramente, representava uma maneira de apagar o pecado e de devolver ao indivíduo sua pureza que lhe havia conferido seu batismo. Em seguida é também um meio de revelar o pecador como tal. Aí está o paradoxo que é o coração do exomologêsis: apaga o pecado, mas revela o pecador. O mais importante, no ato da penitência, não é revelar a verdade do pecado, mas de mostrar a verdadeira natureza pecadora do pecador. Não é um meio, para o pecador, de explicar seus pecados, mas um meio de revelar seu ser de pecador.
Em que a proclamação dos pecados tem o poder de os apagar? A exposição é o coração do exemologêis. Os outros cristãos dos primeiros séculos recorreram a três modelos para explicar a relação paradoxal entre a purificação dos pecados e a revelação de si.
O primeiro é o modelo médico: deve-se mostrar suas ofensas a fim de ser curado. Um outro modelo, menos freqüente, é o modelo do tribunal, do julgamento: apazigua-se sempre ao juiz confessando-lhe as faltas. O pecador se faz de advogado do diabo, tal como o próprio diabo no dia do Julgamento Final.
O modelo mais importante ao qual recorremos para explicar o exomologêsis é aquele da morte, da tortura ou do martírio. Tanto na teoria quanto na prática, a penitência se elabora em torno do problema do homem que prefere morrer a se comprometer ou abandonar sua fé. A maneira na qual o mártir enfrenta a morte constitui o modelo do penitente. Para obter sua reintegração na Igreja, o relapso deve expor-se voluntariamente a um martírio ritual. A penitência é o destino da mudança, da ruptura consigo mesmo, com seu passado e com o mundo. É uma maneira, para o indivíduo, de mostrar que é capaz de renunciar à vida e a si mesmo, de enfrentar e aceitar a morte. A penitência não tem por objetivo estabelecer uma identidade, mas, pelo contrário, assinalar a privação de si, a ruptura consigo mesmo: Ego non sum, ego. Essa fórmula está no cerne da publicatio sui. Representa a ruptura do indivíduo com sua identidade passada. Os gestos ostentatórios têm por função revelar a verdade do próprio ser do pecador. A revelação de si é ao mesmo tempo a destruição de si.
A diferença entre a tradição estóica e a tradição cristã é que, na tradição estóica, o exame de si, o julgamento e a disciplina franqueiam o acesso ao conhecimento de si ao utilizar a memória, quer dizer, a memorização das regras, para fazer aparecer, em alto relevo, a verdade do indivíduo sobre ele mesmo. No exomologêsis, é por uma ruptura e uma dissociação violentas que o penitente faz aparecer a verdade sobre ele mesmo. É importante ressaltar que esse exomologêsis não é verbal. É simbólico, ritual e teatral.
VI
Vê-se aparecer no século IV uma técnica de revelação de si muito diferente: a exagoreusis, bem menos conhecida que o exomologêsis, porém mais importante. Essa técnica lembra os exercícios de verbalização que, para as escolas filosóficas pagãs, definiam a relação mestre/discípulo. Algumas técnicas de si elaboradas pelos estóicos transmitiram-se às técnicas espirituais cristãs.
Um exemplo, ao menos, de exame do de si – aquele que nos oferece São João Crisóstomo – apresenta a mesma forma e o mesmo caráter administrativo que aquele que descreve Sêneca no De ira. No exame de si, tal como o concebe Crisóstomo, o sujeito deve examinar suas contas desde a manhã; à noite, ele deve se interrogar a fim de prestar contas de sua conduta, de examinar aquilo que lhe é proveitoso e aquilo que lhe é prejudicial, mais pelas orações do que pelas palavras indiscretas[xxix]. Reencontramos lá, bem exatamente, o exame de si tal como o descreve Sêneca. É importante notar que essa forma de exame de si é rara na literatura cristã.
Se a prática generalizada e elaborada do exame de si na vida monástica cristã difere do exame de si segundo Sêneca, ela difere também, radicalmente, da que descreve Crisóstomo e o exomologêsis. É uma prática de um gênero novo, que devemos compreender em função de dois princípios da espiritualidade cristã: a obediência e a contemplação.
Para Sêneca a relação do discípulo com seu mestre tinha certa importância, mas era uma relação utilitária e profissional. Fundamentava-se na capacidade do mestre em guiar seu aluno através de uma vida feliz e autônoma por meio de conselhos judiciosos. A relação cessava assim que o discípulo encontrava a via de acesso à vida.
Por toda uma série de razões, a obediência que requer a vida monástica é de uma natureza bem diferente. Ela difere do modelo greco-romano da relação com o mestre por não se fundamentar unicamente na necessidade, para o sujeito, de progredir em sua educação pessoal, mas afeta todos os aspectos da vida monástica. Não há nada, na vida do monge, que possa escapar dessa relação fundamental e permanente de obediência absoluta ao mestre. Jean Cassiano lembra um velho princípio da tradição oriental: “tudo que o mundo faz sem a permissão de seu mestre se assemelha a um furto[xxx]”. A obediência, longe de ser um estado autônomo final, implica no controle integral da conduta pelo mestre. É um sacrifício de si, um sacrifício da vontade do sujeito. É a nova técnica de si.
Não importa para qual dos seus atos, mesmo o ato de morrer, o monge precisa da permissão de seu diretor. Tudo aquilo que faz sem essa permissão é considerado como um furto. Não há um só momento de sua vida em que o monge seja autônomo. Mesmo quando se torna dirigente, por sua vez, deve conservar o espírito de obediência – conservá-lo como um sacrifício permanente do controle absoluto da conduta pelo mestre. O si deve se constituir em si pela obediência.
O outro traço que caracteriza a vida monástica é que a contemplação figura como bem supremo. É a obrigação feita ao monge de voltar sem cessar seus pensamentos em direção ao ponto que é Deus, e de se assegurar que seu coração é bastante puro para ver Deus. O objetivo visado é a contemplação permanente de Deus.
Essa nova técnica de si que se elabora no interior do mosteiro, recebendo apoio na obediência e na contemplação, apresenta certas características específicas. Cassiano, que a considera um princípio de exame de si emprestado das tradições monásticas sírias e egípcias, a expõe em termos bastante claros.
Essa técnica de exame de si, de origem oriental, em que a obediência e a contemplação figuram como princípios dominantes, preocupa-se bem mais com o pensamento do que com a ação. De acordo com Cassiano, não são as ações passadas do dia que constituem o objeto de exame de si, mas os pensamentos presentes. Que o monge deva voltar continuamente seu pensamento em direção a Deus implica que examine o curso atual daquele pensamento. O exame ao qual se submete tem por objeto uma discriminação permanente entre os pensamentos que dirige a Deus e aqueles que o desviam. Essa preocupação contínua com o presente difere da memorização dos atos e, portanto, daquelas regras que preconizava Sêneca. Os gregos possuíam, para designá-lo, um termo assaz pejorativo: logismoi, quer dizer, as cogitações, o raciocínio, o pensar calculista. Encontra-se, em Cassiano, uma etimologia de logismoi – coagitationes -, mas não sei se é válida. O espírito é polukinêtos, “num estado de mobilidade constante” (Primeira Conferência do abade Serenus, 4)[xxxi]. Para Cassiano a mobilidade constante do espírito significa sua fraqueza. Ela é o que distrai o indivíduo da contemplação de Deus (Primeira Conferência do abade Nesterus, 13)[xxxii].
Sondar o que passa no si consiste em tentar imobilizar a consciência, tentar eliminar os movimentos do espírito que desviam de Deus. Isso implica que se examine cada pensamento que se apresenta à consciência com o fim de perceber a relação que existe entre o ato e o pensamento, entre a verdade e a realidade; a fim de ver se não há, nesse pensamento, qualquer coisa que seja suscetível de tornar nosso espírito móvel, de provocar nosso desejo, de desviar nosso espírito de Deus. O que fundamenta o exame, é a idéia de uma concupiscência secreta.
Existem três grandes tipos de exame de si: primeiro, o exame pelo qual se avalia a correspondência entre os pensamentos e a realidade (Descartes); segundo, o exame pelo qual se estima a correspondência entre os pensamentos e as regras (Sêneca); terceiro, o exame pelo qual se aprecia a relação entre um pensamento escondido e uma impureza da alma. É com o terceiro tipo de exame que começa a hermenêutica de si cristã e sua decodificação dos pensamentos íntimos. A hermenêutica de si se fundamenta na idéia de que existe em nós qualquer coisa de escondido, e que nós vivemos sempre na ilusão de nós mesmos, uma ilusão que mascara o segredo.
Cassiano diz que, a fim de praticar esse exame, devemos nos ocupar de nós mesmos e testemunhar nossos pensamentos diretamente. Ele utiliza três analogias. A primeira é a analogia do moinho (Primeira Conferência do abade Moisés, 18)[xxxiii]. Os pensamentos são os grãos e a consciência é uma mó. Assim como o moleiro, devemos escolher os grãos – separar os que são ruins daqueles que, triturados pela mó, darão a boa farinha e o bom pão para nossa salvação.
A Segunda analogia é militar (Primeira Conferência do Abade Serenus, 5)[xxxiv]. Cassiano estabelece uma analogia com o oficial que ordena a seus soldados que desfilem em duas filas: os bons à direita e os maus à esquerda. Devemos adotar a atitude do oficial que divide sua tropa em duas filas, a dos bons e a dos maus.
A terceira analogia é a do cambista (Primeira Conferência do abade Moisés, 20-22)[xxxv]. A consciência é o fiscal (argyronome) de si. Ela deve examinar as peças, considerar sua efígie, perguntar-se de que metal são feitas, interrogar sua proveniência. A consciência deve pesar as peças a fim de ver se não foram falsificadas. Da mesma forma que as peças levam a efígie do imperador, nossos pensamentos devem ser cunhados com a imagem de Deus. Devemos verificar a qualidade de nosso pensamento: essa efígie de Deus é bem real? Qual é seu grau de pureza? Não se confunde com o desejo ou a concupiscência? Encontramos aqui a mesma imagem que em Sêneca, mas com uma significação diferente.
Estando colocado que devemos ser os fiscais permanentes de nós mesmos, como essa discriminação se faz possível, como podemos determinar se um pensamento é de boa qualidade? Como essa discriminação pode ser efetiva? Existe uma só maneira: devemos confiar todos os nossos pensamentos ao nosso dirigente, obedecer em todas as coisas ao nosso mestre, praticar permanentemente a verbalização de todos os nossos pensamentos. É diferente na filosofia estóica. Ao confessar não somente os pensamentos, mas também os movimentos mais ínfimos de sua consciência e suas intenções, o monge se coloca em uma analogia hermenêutica tanto em relação a seu mestre quanto em relação a si mesmo. Essa verbalização é a pedra dos nove, ou a moeda de nossos pensamentos.
Em que a confissão é capaz de assumir essa função hermenêutica? Como podemos tornarmos em hermeneutas de nós mesmos, ao exprimir, verbalmente ou por escrito, todos os nossos pensamentos? A confissão confere ao mestre, cuja experiência e sabedoria são maiores, um saber, que assim o permite ser um conselheiro melhor. Mesmo se, em sua função de poder discriminante, o mestre não diz nada, é como se o pensamento exprimido tivesse um efeito discriminante.
Cassiano dá o exemplo do monge que havia roubado um pão. Num primeiro momento, não podia confessá-lo. A diferença entre os bons e os maus pensamentos é que os maus pensamentos não podem se exprimir facilmente, o mal ficando indizível e escondido. Que os maus pensamentos não possam se exprimir sem dificuldade nem sem vergonha, impede que apareça a diferença cosmológica entre a luz e a escuridão, entre a verbalização e o pecado, entre o segredo e o silêncio, entre Deus e o diabo. Em um segundo momento, o monge se prosterna e confessa. Enquanto ele não se confessa verbalmente, o diabo não sai dele. A verbalização do pecado é o momento capital (Segunda Conferência do abade Moisés, II)[xxxvi]. A confissão é o seio da verdade. Mas essa idéia de uma verbalização permanente não é senão um ideal. Em algum momento, a verbalização não pode ser total. O preço da verbalização permanente é a transformação em pecado de tudo aquilo que não se pode expressar.
Existe, portanto – e concluirei nesse ponto – duas grandes formas de revelação de si, de expressão da verdade do sujeito, no cristianismo dos primeiros séculos. A primeira é o exomologêsis, ou seja, a expressão teatralizada da situação do penitente que torna manifesto seu estatuto de pecador. A segunda é a que a literatura espiritual chamou de exagoreusis. A exagoreusis é uma verbalização analítica e contínua dos pensamentos, que o sujeito pratica nos moldes de uma relação de obediência absoluta a um mestre. Essa relação toma por modelo a renúncia do sujeito à sua vontade e a si mesmo.
Se existe uma diferença fundamental entre o exomologêsis e a exagoreusis, deve-se, entretanto, ressaltar que ambos apresentam um elemento comum: a revelação não pode ser concedida sem a renúncia. No exomologêsis, o pecador deve perpetrar o “assassinato” de si mesmo ao praticar mortificações ascéticas. Quer se comprometa com o martírio ou com a obediência a um mestre, a revelação de si implica na renúncia do sujeito a si mesmo. Na exagoreusis, por outro lado, o indivíduo, pela verbalização constante de seus pensamentos e a obediência da qual dá testemunho a seu mestre, mostra que renuncia à sua vontade e a si mesmo. Essa prática, que nasce com o cristianismo, persistirá até o século XVII. A introdução, no século XIII, da penitência, constitui uma etapa importante no desenvolvimento da exagoreusis.
Esse tema da renúncia do sujeito a si mesmo é muito importante. Através de toda a história do cristianismo, um laço se arma entre a revelação, teatral ou verbal, de si e a renúncia do sujeito a si mesmo. A hipótese que me inspira a estudar essas duas técnicas é a de que é a segunda – a verbalização – que se tornou a mais importante. A partir do século XVIII e até a época atual, as “ciências humanas” reinseriram as técnicas de verbalização em um contexto diferente, fazendo delas não o instrumento de renúncia do sujeito a si mesmo, mas o instrumento positivo da constituição de um novo sujeito. Que a utilização dessas técnicas deixou de implicar na renúncia do sujeito a si mesmo constitui uma ruptura decisiva.
[i] Platão, Alcibíades (trad. M. Croisset), Paris, Les Belles Lettres,
[ii] Ibid., p. 157.
[iii] Gregório de Nysse, Traité de la virginité (371), (trad. M. Aubineau), Paris, Éd.du Cerf, coll, "Sources chrétiennes", nº 119, cap. XII, 3, pp. 411-417.
[iv] Epicuro, Lettre à Ménécée, in Lettres et Maximes (trad. M.Conche), Villes-sur-Mer, Éd. De Mégare, 1977, pp. 215-227 (ver também Diogène Laërce, Vie doctrines et sentences des philosophes illustres, trad. R. Genaille, Paris, Garnier-Flammarion, t. II, 1965, pp. 258-269).
[v] Philon de Alexandria, La Vie contemplative (trad. P. Miquel), Paris, Éd. Du Cerf, 1963, p. 105.
[vi] arch: princípio. (N. da T)
[vii] Albinus, Prologos, 5 (citado in Festugière,A.)., Études de philosophie grecque, Paris, Vrin, 1971, p. 536).
[viii] Luciano, Hemotime Works (trad. K. Kilburn), Cambridge, Loeb Classical Library, t. IV, 1959, p. 65.
[ix] Agostinho redige suas Confissões entre 397 e 401. In Oeuvres (trad. G. Bouissou et E. Tréhorel), Paris, Desclée de Brouwer, t. XIII-XIV, 1962.
[x] Marc Aurèle, Lettres à Fonoton, in Pensées (trad. A. Cassan), Paris, Charpentier et Fasquelle, s.d., lettre XXIX, pp. 391-393.
[xi] Plutarco, Comment écouter. In: Oeuvres morales (trad. R. Klaerr, ª Philippon et J. Sirinelli), Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 1989, t. I, 2e. partie, chap. III, pp. 39 – 40.
[xii] Sêneca, De la tranquilité de l’âme in Dialogues (trad. R. Waltz), Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 1927, t. IV, livre 6 , par. 1-8, pp 84-86.
[xiii] Marc Auréle, Pensées (trad. ª Trannoy),Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 1925, livre IV, par. 3, pp. 27-29.
[xiv] Sêneca, De la colère, in Dialogues (trad. ª Bourgery), Paris, Les Belles Lettres, "collection des universités de France", t. I, livre III, par. 36, pp. 102-103.
[xv] Lucréce, De la nature des choses (trad. ª Ernout), Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 5a ed., 1984, t. I, 1984, e t. II, 1985.
[xvi] Plutarco, Le Démon de Socrate in Oeuvres morales (trad. J. Hani), Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 1980, t. VIII, par. 585a, p. 95.
[xvii] Sêneca, Lettres à Luiclius (trad. H. Noblot), Paris, Les Belles Lettres, "Collection des univerités de France", 1945, Carta 18, par. 1-8, pp. 71-76.
[xviii] Épictète, Entretiens (trad. J. Souilhé), Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 1963, livro III, cap. XII, par. 15, p.45.
[xix] Épictète, op.cit., pp. 76-77.
[xx] Jean Cassiano, "Première conférence de l’abbé Moïse", in Conférences (trad. Dom E. Pichery), Paris, Ed. Du Cerf, Col. "Sources chrétiennes", nº 42, 1955, t. I, cap. XX, pp. 101-105.
[xxi] Épictète, op. Cit., pp. 32-33.
[xxii] Épictète,op.cit., p.18.
[xxiii] Artémidore, La Clef des songes. Onirocriticon (trad. A. J. Festugiére), Paris, Vrin, 1975.
[xxiv] Sybésius de Cyrène, Sur les rêves (404) in Oeuvres, trad. H. Druon, Paris, Hachette, 1878, pp. 346-376.
[xxv] Aelius Aristide, Discours sacrés (trad. A.J. Festugière), Paris, Macula, 1986.
[xxvi] Tertullien, La Peniténce (trad. C. Munier), Paris, Ed. Du Cerf, col. "Sources chrétiennes", nº 316, 1984, cap. IX, p. 181.
[xxvii] Jérôme, Correspondence, (trad. J. Labourt), Les Belles Lettres, "Collection des universités de France", 1954, t. IV, carta LXXVII, pp. 42-44.
[xxviii] Cyprien de Carthage, De ceus que ont faili, in Textes (trad. D. Gorce), Namur, Ed. Du Soleil levant, 1958, pp. 89-92.
[xxix] Jean Chrysostome, Homélie: "que é perigoso para o orador e para o ouvinte falar pelo prazer, é muito mais útil como de mais rigorosa justiça acusar seus pecados". In: Oeuvres complètes (trad. M. Jeannin), Nancy, Thomas er Pierron, 1864, t. III, p. 401.
[xxx] Jean Cassiano, Institutions cénobitiques (trad. J. Cl. Guy), Paris, Ed. Du Cerf, col. "Sources chrétiennes", nº 109, 1965, livro IV, cap. X-XII, pp. 133-137, e cap. XXIII-XXXII, pp. 153-171.
[xxxi] Jean Cassiano, Première Conférence de l’abbé Serenus, "Da mobilidade da alma e dos espíritos do mal" ("De la mobilité de l’âme er des esprits du mal"), par. 4, in Conférences (trad. E. Pichery), Paris, Ed. Du Cerf, col. "Sources chrétiennes", nº 42, 1955, p. 248.
[xxxii] Jean Cassiano, Première Conférence de l’abbé Nesterus, op. Cit., 1958, t. II, par. 13, pp. 199-201.
[xxxiii] Jean Cassiano, Première Conférence de l’abbé Moïse, op. Cit., 1955, t. I, par. 18, p. 99.
[xxxiv] Op. Cit., pp. 249-252.
[xxxv] Op. Cit., pp. 101-107.
[xxxvi] Op. Cit., pp. 121-123.
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