segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Consumo Logo Existo - Frei Beto

Consumo, logo existo
Frei Betto
Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal,
em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não
conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e
hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico
impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A
economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos
submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura
acima de sua utilidade.
Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É
próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais -manipular
o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a
cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.A
ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de
arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa
coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e,
sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual
que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho,
retirando o alimento diretamente da panela.Marx já havia se dado conta do
peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele
constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus
respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós."
O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas
consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem
e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social.
Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da
pobreza e à cultura da exclusão.Para o povo maori da Nova Zelândia cada
coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de
África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a
nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com
certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o
próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?Assim como
um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de
consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um
vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari;
não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais
horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata
borralheira transforma-se em Cinderela.Somos consumidos pelas mercadorias
na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana
uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos
ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura,
um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados
desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão,
infelicidade.Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos
cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna
também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela
mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com
troca.
Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais
mediatizadas pelas pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia,
criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o
espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira.
Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola
abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de
convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que
a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói." E a
sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da
cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e
contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam
indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um
passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era
um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de
passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como
vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não
preciso para ser feliz".
Fonte: Adital

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